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A negativa epopéia

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Academic year: 2020

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A N E G A T I V A E P O P É I A

Á l v a r o Cardoso G O M E S *

L u k á c s , em sua obra j á clássica, a Teoria do Romance, caracteriza a e p o p é i a como uma obra fechada, que se articula, visando a representar uma totalidade. Essa totalidade, por sua vez, se deve ao fato de o poema é p i c o resgatar a imagem de um mundo ocluso, dentro do qual se movimenta n ã o um herói individual, mas uma coletividade. Conforme L u k á c s ,

o herói da epopéia não é nunca um indivíduo. Desde sempre considerou-se como uma característica essencial da epopéia o fato de o seu objeto não ser um destino pessoal, mas o de uma comunidade (s.d., p. 66).

N u m sistema de valores "acabado", seria muito difícil pensar que um i n d i v í d u o poderia destacar-se e afirmar sua voz. Desse modo, mesmo quando o i n d i v í d u o e n c a b e ç a a a ç ã o , como acontece na Odisséia, ele n ã o passa de r e p r e s e n t a ç ã o s i m b ó l i c a da coletividade, no caso, o povo grego.

Essa idéia de totalidade desaparece quando o i n d i v í d u o , tentado pelo d e m ô n i o , procura expressar a interioridade e, com isso, rompe a muralha do mundo fechado e h a r m ô n i c o da e p o p é i a . Nesse caso, esse g ê n e r o c l á s s i c o morre e cede lugar ao romance. Em suma: a e p o p é i a é a r e p r e s e n t a ç ã o do mundo feliz, h a r m ô n i c o , onde as d i s s e n s õ e s se resolvem pela i n t e g r a ç ã o plena do i n d i v í d u o na coletividade, que o acolhe e lhe direciona a caminhada, enquanto que o romance é a r e p r e s e n t a ç ã o do mundo aberto à s i n q u i e t a ç õ e s de um sujeito

* Docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas USP 05508900 -São Paulo - SP.

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atormentado, que faz da busca (quase sempre desorientada) a r a z ã o essencial de sua e x i s t ê n c i a .

Em Portugal, a e p o p é i a se fez representar notoriamente p e f O s Lusíadas cujo assunto reafirma a e s s ê n c i a do g ê n e r o . O poema conta a viagem de Vasco da Gama a t é as í n d i a s . A q u i , como na Odisséia, o herói individual n ã o passa de um s í m b o l o da coletividade. C a m õ e s , portanto, canta a raça portuguesa, seus mitos fundamentais e sua história. Da perspectiva do poeta, a conquista lusa teria um efeito civilizador, de modo que Vasco da Gama n ã o passaria de f i o condutor de uma aventura de valor espiritual, cujo f i m era disseminar os valores c r i s t ã o s e os valores culturais europeus pelas terras do Oriente ("Dilatar a Fé e o I m p é r i o " ) . Em que pese p o r é m à estrutura d'Os Lusíadas, cuja base tem por modelo as lições virgilianas, o que se verifica, numa v i s ã o crítica mais acurada, é que falta algo ao poema para que este possa se configurar como uma e p o p é i a h í b r i d a , ou se se quiser, uma e p o p é i a em crise, primeiro, porque a viagem de Vasco da Gama n ã o tinha propriamente m a t é r i a para uma e p o p é i a ; segundo, porque C a m õ e s viveu numa é p o c a em que os mitos p a g ã o s j á se conformavam como mitologia. O resultado: de um lado, as i n s e r ç õ e s líricas - os e p i s ó d i o s de I n ê s de Castro, do Gigante Adamastor, da Ilha dos Amores - acabam por ter mais força p o é t i c a que os é p i c o s ; de outro lado, os mitos p a g ã o s passam a ter uma c o n v i v ê n c i a forçada com os c r i s t ã o s , restringindo, por assim dizer, o maravilhoso.

N a realidade, C a m õ e s tentou conciliar as forças a n t a g ô n i c a s , sociais e culturais, que experimentou em seu tempo. A crise por que passava o país teve a sua melhor r e p r e s e n t a ç ã o numa e p o p é i a t a m b é m em crise. Expliquemo-nos: no instante em que o I m p é r i o atinge seu auge, c o m e ç a paradoxalmente a desmoronar, pondo em cheque os valores h u m a n í s t i c o s , a e x p a n s ã o da F é e da c i v i l i z a ç ã o que o poeta em v ã o apregoara. Mas n ã o só isso: o rei D . S e b a s t i ã o , que emblematiza a vontade férrea em expandir as fronteiras do I m p é r i o e a quem o poema é dedicado, desaparece, poucos anos depois da p u b l i c a ç ã o do poema, numa aventura inglória em África, deixando uma n a ç ã o desamparada e povoando o i m a g i n á r i o de todo um povo com o sonho de seu regresso m á g i c o , em meio às brumas do m i s t é r i o . O c a r á t e r h í b r i d o d'Os Lusíadas assim se justifica, pois o poema reflete, em sua estrutura e em sua ideologia, as c o n t r a d i ç õ e s fundamentais de uma é p o c a controversa, que afirma e nega o e s p í r i t o da e p o p é i a . Podemos, e n t ã o , dizer que Os Lusíadas, ao mesmo tempo

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que registra os sonhos de grandeza de uma coletividade, profetiza t a m b é m o seu debacle como I m p é r i o .

Essas r e f l e x õ e s sobre a e p o p é i a no geral e sobre a e p o p é i a portuguesa v ê m a p r o p ó s i t o , paradoxalmente, por causa da obra de A l m e i d a Faria. Dissemos paradoxalmente, porque o escritor p o r t u g u ê s é um romancista e porque a e p o p é i a , j á nos tempos de C a m õ e s , estava fadada a desaparecer c o m o g ê n e r o . Mas pensamos que o romancista p o r t u g u ê s monta, com seus romances, uma e s p é c i e de e p o p é i a à s avessas, uma e p o p é i a degradada, ou em suas p r ó p r i a s palavras, uma "negativa e p o p é i a " , tendo, como modelo p a r ó d i c o , Os Lusíadas. Mas n ã o s ó isso: A l m e i d a Faria, ao tratar de uma g e r a ç ã o perdida em sua obra romanesca, a v ê como herdeira de todo um lastro do passado ( t ã o bem registrado por C a m õ e s ) , que a impede de afirmar seus p r ó p r i o s valores e de viver a modernidade em plenitude. Atrelada ao passado, sonhando alienadamente com velhos mitos e apegando-se, i m p l í c i t a ou explicitamente, à figura de D . S e b a s t i ã o , tal g e r a ç ã o acabou por perder o trem da H i s t ó r i a , ainda que, de modo aparente, tentasse a p a n h á - l o a t r a v é s da a ç ã o r e v o l u c i o n á r i a , por exemplo (parte da obra de A l m e i d a Faria é funda r e f l e x ã o sobre os efeitos da r e v o l u ç ã o de 25 de abril em Portugal). Em s í n t e s e , A l m e i d a Faria trata de uma coletividade, como c o n v é m a uma boa e p o p é i a ; contudo, o mundo em que esta coletividade vive n ã o é mais h a r m ô n i c o , e os heróis, por sua vez, e s t ã o sempre em busca. D a í a r e f e r ê n c i a à negativa e p o p é i a (ou a história " c ô m i c o - m a r í t i m a " , conforme outra d e f i n i ç ã o de uma das personagens).

A obra romanesca de A l m e i d a Faria compreende seis romances. O primeiro deles, escrito precocemente, Rumor Branco (1962), n ã o nos interessa nos limites deste ensaio, pois somente com a montagem de sua Tetralogia (A Paixão, Cortes, Lusitânia, Cavaleiro Andante) e com o ú l t i m o romance, O Conquistador, é que o autor d á v a z ã o à v i s ã o epopeica da realidade. Concentremo-nos, portanto, na Tetralogia e em O Conquistador. A s quatro obras posteriores a Rumor Branco c o m p õ e m o que se poderia chamar de roman fleuve, a saga de uma família do Alentejo que, de romance a romance, se desintegra, devido à s c o n t r a d i ç õ e s internas, devido ao peso do passado, ao choque entre o velho e o novo e aos efeitos devastadores da r e v o l u ç ã o social e e c o n ô m i c a que varreu Portugal nos anos que antecedem e que se seguem ao 25 de abril. A f a m í l i a é basicamente c o n s t i t u í d a pelo patriarca Francisco, sua mulher M a r i n a , os filhos A n d r é , J o ã o Carlos, A r m i n d a , J ó e Tiago, a l é m dos empregados Piedade, Estela, M o i s é s . Juntam-se à família as figuras de S ó n i a ,

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Marta, Samuel, que m a n t ê m laços amorosos com os t r ê s primeiros filhos do casal. Sucintamente, a série de romances mostra a família que se desintegra, desde a perda da herdade rural em M o n t e m í n i m o , o ê x o d o dos filhos, que rejeitam a autoridade paterna, a morte do pai, a t é a final d i á s p o r a dos membros da família, que partem do campo para a cidade e, finalmente, para o mundo. Os membros mais representativos da família, A n d r é e J o ã o Carlos, terminam a Tetralogia em busca: o primeiro parte para o Brasil e, depois, v a i morrer na África; o segundo vai contra a vontade para a Itália e, mais adiante, como c o m i s s á r i o de bordo, passa o tempo em a v i õ e s .

A s s i m , a Tetralogia elaborada por A l m e i d a Faria, num prazo aproximado de 20 anos (o primeiro romance é de 65, o ú l t i m o de 83), e iniciada c o m o e s p é c i e de complexa c r ô n i c a familiar, com A Paixão, pouco a pouco confirma sua v o c a ç ã o epopeica, ao refletir cada vez mais, de romance a romance, sobre o destino do p a í s . Em outras palavras, suas personagens confirmam-se como emblemas de uma coletividade presa alienadamente ao passado ou tentando de todas as formas romper com esse mesmo passado, a t r a v é s de "cortes" com a t r a d i ç ã o . De um lado, portanto, temos as figuras derrotadas inexoravelmente pelos novos tempos e que procuram manter estruturas arcaicas, como Francisco, Marina, M o i s é s ; de outro lado, as figuras que, "tentadas pelo d e m ô n i o " , atentam contra o sistema e v i v e m em eterna busca: A n d r é , J o ã o Carlos, Marta, S ó n i a , Arminda. Estas ú l t i m a s personagens, simbolizando o novo, negam o passado, e isso se torna bem evidente no seu discurso p a r ó d i c o , que muitas vezes incorpora estilemas d'Os Lusíadas, ou mesmo comenta ironicamente a d e c a d ê n c i a do p a í s e seu desacerto. Mais ainda: tais personagens v i v e m uma e x p e r i ê n c i a paradoxal. A o mesmo tempo que tentam se livrar do peso do passado, ironicamente, por caminhos í n v i o s , repetem uma caminhada ancestral, que leva ao vazio e à a l i e n a ç ã o .

A idéia de que as personagens de A l m e i d a Faria s ã o emblemas de todo um povo pode ser comprovada de l i v r o a livro. Mais ainda: a i d e n t i f i c a ç ã o sujeito-coletividade cresce dentro da obra do autor à medida que as personagens v ã o deixando o c e n á r i o campesino e ingressam no urbano. Se, em A Paixão, o discurso mostra a família revivendo o m i t o da p a i x ã o de Cristo, de uma perspectiva p a r ó d i c a , a partir de Cortes e culminando com Cavaleiro Andante, mais e mais se acentuam as referências e x p l í c i t a s à s i t u a ç ã o do p a í s como um todo. O discurso das (e sobre as) personagens, assim, torna-se m e t a f ó r i c o , ao

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fazer que a v i v ê n c i a individua) se torne um s í m i l e da coletiva, ou mesmo ostensivamente p a r ó d i c o , ao incorporar estilemas d'Os Lusíadas.

A grosso modo, em Cortes, h á cinco c o m e n t á r i o s e x p l í c i t o s sobre a s i t u a ç ã o do país (referências ao povo que aguarda c u m p r i r profecias, ao n a u f r á g i o da coletividade à " d e m ê n c i a do passado", etc) e uma p a r ó d i a da " I n v o c a ç ã o " de Os Lusíadas, quando da chegada de J o ã o Carlos a Lisboa: " ó v ó s , ovas marinhas, pois criado tendes nele um novo engenho ardente, dai-lhe em breve gozo alto e sublimado em actos grandilongos e potentes, j á que haveis consentido que ele seja neonato sob lustral signo do líquido, s ê m e n suor sangue saliva" (s.d., p.186). E m Lusitânia, h á um todo de seis c o m e n t á r i o s sobre a coletividade. Uns, h i s t ó r i c o s que servem de contraponto c r í t i c o ao presente, principalmente os relativos à s n a v e g a ç õ e s , outros que desenvolvem a m e t á f o r a n á u t i c a do p a í s como "nave perdida", "furada nave" e outros ainda que tratam do "secular capticismo, indiferença, fatalismo", do "povo desempregado desde Vasco da Gama" (Faria, s.d., p. 390 e 395). H á t a m b é m , nesse romance, a p a r ó d i a Os Lusíadas, em pelo menos dois instantes: no p r i m e i r o c a p í t u l o , quando do rapto de J o ã o Carlos e Marta pelos á r a b e s , e numa r e f l e x ã o de Tiago ( c a p í t u l o 34). N o p r i m e i r o caso, sintomaticamente, A l m e i d a Faria parodia o e p i s ó d i o do V e l h o do Restelo. A o contemplar o desastre e c o l ó g i c o causado ao m i t o l ó g i c o r i o Tejo, J o ã o Carlos diz que isso é o que resta das "descobertas e viagens, do apregoado i m p é r i o e seus n a u f r á g i o s , dos sublimes sucessos, dos desastres em m á - h o r a anunciados por um velho de venerando aspecto, que ficara entre as gentes no cais, postos em n ó s os olhos meneando t r ê s vezes a c a b e ç a , a voz pesada um pouco alevantado, que n ó s no r i o ouvimos claramente" (s.d., p. 262). Repare-se que a figura do velho, invocada pela linguagem, torna-se real, ou torna-seja, o discurso, que glosa estilema camoniano, ressuscita a figura e reatualiza o tempo. A outra referência ao poema camoniano surge na seguinte passagem: "Tantos perigos passados, tantos duros trabalhos, no mar tanta tormenta e tantos anos, tantas fezes e m i j o d i l u í d o , na terra tanto berro e tanto engano, tanta r u i m idade p o l u í d a , onde pode acolher-se um pobre humano, onde v e r á lonjura a curta vista?" (s.d., p. 358).

Por f i m , Cavaleiro Andante (Faria, 1987), o ú l t i m o romance da Tetralogia, é o que mais tece r e f e r ê n c i a s ao passado (principalmente à obsessiva figura de D . S e b a s t i ã o ) e o que mais incorpora estilemas epopeicos. H á um todo de mais ou menos catorze c i t a ç õ e s h i s t ó r i c a s sobre o culto do A t l â n t i c o em Portugal, as profecias de Bandarra, o V I m p é r i o , D . S e b a s t i ã o , a " h e r a n ç a

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s e b a s t i â n i c a " , a falta de vontade do p o r t u g u ê s , devido à "demanda do sonho m i l e n á r i o " , à vergonha das "derrotas i n g l ó r i a s " e à descoberta das í n d i a s . A o lado dessas r e f e r ê n c i a s , como n ã o poderia deixar de ser, h á novamente os c o m e n t á r i o s p a r ó d i c o s da e p o p é i a . A primeira e mais importante delas é a glosa de um soneto de Bocage, em que este comparava seu destino ao de C a m õ e s . Parodicamente, J o ã o Carlos, retomando o texto bocagiano, compara-se ao é p i c o luso: " Q u ã o diferente acho teu fado e o meu, quando os cotejo: outra causa nos fez, perdendo o Tejo, encontrar novos aires e desaires; e versos t ã o diversos escrevemos, os teus famosos e h e r ó i c o s , a m i m cabendo a vez da negativa e p o p é i a ; n ã o te i m i t o nos dons da natureza, nem as eras s ã o de igual grandeza" (s.d., p. 33).

Repare-se na referência e x p l í c i t a à idéia da e p o p é i a degradada que vimos desenvolvendo: J o ã o Carlos, escritor de poemas, escreve a sua "negativa e p o p é i a " , que aponta criticamente as mazelas do Portugal de hoje. De modo a n t i f r á s i c o , sua e p o p é i a situa-se como o anverso d'Os Lusíadas, que cantava as g l ó r i a s do I m p é r i o . A outra c i t a ç ã o p a r ó d i c a surge na mesma r e f l e x ã o de J o ã o Carlos, ainda da perspectiva da "negativa e p o p é i a " . A personagem canta "os que se v ã o afogar e insistem em nadar sem saber para onde, contra tudo e todos, contra as ondas, contra m a r é s inelutáveis, contra mares há m u i t o navegados" (p. 34). O navegar "por mares nunca dantes navegados" é s u b s t i t u í d o por nadar "contra mares" que, por sua vez, j á s ã o de todo conhecidos, como se o e s p í r i t o da aventura houvesse se esgotado.

Esse levantamento s u m á r i o (e p r e c á r i o ) das c i t a ç õ e s , das p a r ó d i a s epopeicas levadas a cabo por A l m e i d a Faria pode-nos revelar o seguinte: o romancista como que realiza um ritual iniciático, a t r a v é s da linguagem, para recuperar o passado, ou melhor, para recuperar certas s i t u a ç õ e s e m b l e m á t i c a s do passado. Contudo, essa r e c u p e r a ç ã o tem sentido i r ô n i c o , e é efetuada com vistas a atuar criticamente sobre a realidade portuguesa. O ritual, no caso, residiria na montagem da "negativa e p o p é i a " , um espelho em negro d'Os Lusíadas. Simbolicamente, nisso tudo, J o ã o Carlos passa a representar o C a m õ e s dos novos tempos, pois a ele e s t á destinado cantar o seu p a í s , da perspectiva p a r ó d i c a , com a sua história " c ô m i c o - m a r í t i m a " . Por outro lado, A n d r é é o D . S e b a s t i ã o do presente, igualmente fadado, como o malogrado Rei, morrer, numa aventura inglória em África. Observe-se que A n d r é tem a mesma idade de D . S e b a s t i ã o e que ele parte para sua viagem no mesmo dia em que o rei partiu para a batalha final: " É curioso, c o n s e r v á m o s para a a v i a ç ã o a

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linguagem das viagens de barco, o que me lembra ter lido hoje nos j o r n a i s que neste mesmo dia, h á quatrocentos anos, partiu D . S e b a s t i ã o da foz do Tejo em d i r e ç ã o ao s u i c í d i o que lhe seria fatal e ao país. Com certo frisson reparo que o Desejado era da minha idade e, supersticioso, desato a ver desastres" (s.d., p. 72).

Ora, n ã o seria demais acreditar que a história se reatualiza, ou ainda, que o presente, de certa maneira, se iguala ao passado? Em outras palavras: é como se Portugal, apesar da passagem do tempo, mantivesse as mesmas estruturas arcaicas, apesar da vontade em c o n t r á r i o de suas personagens mais l ú c i d a s . O p a í s continua a se apegar ao passado g r a n d í l o q u o , a ser uma nave de loucos, querendo afirmar a " v o c a ç ã o a t l â n t i c a " , a v o c a ç ã o suicida de se perder, para tentar se reencontrar, ou querendo afirmar a v o c a ç ã o m e s s i â n i c a , ao sonhar com o retorno do Desejado, que representaria a panaceia para todos os males. Dessa maneira, J o ã o Carlos e A n d r é , ainda que sejam personagens c r í t i c a s , em r e l a ç ã o à massa falida que é o p r ó p r i o país, n ã o deixam de sofrer um processo de auto-engano, p r ó p r i o das personagens de romances, ao reviverem uma velha história, cuja idealidade se esgotou. C a m õ e s e D . S e b a s t i ã o retornam, cansados, aos novos tempos, para expiar mais uma vez a d e c a d ê n c i a de um p a í s votado ao fracasso.

Se a Tetralogia reaviva um processo crescente de a l i e n a ç ã o e funciona como remontagem de uma " h i s t ó r i a exemplar", com força ritualística, onde se situa O Conquistador! O ú l t i m o romance de A l m e i d a Faria evidentemente n ã o se incorpora à Tetralogia quanto ao tema, uma vez que a saga familiar se esgota com Cavaleiro Andante (1987); contudo, essa narrativa funciona como verdadeiro fecho e m b l e m á t i c o da obra do autor escrita a t é aqui. Isso porque A l m e i d a Faria trabalha com o obsessivo mito que corre seus livros, como vimos, num crescendo, desde Cortes a t é Cavaleiro Andante, que é o de D . S e b a s t i ã o . E como n ã o poderia deixar de ser, tal mito comparece de modo p a r ó d i c o , como se o escritor quisesse criticar a doentia t e n d ê n c i a m e s s i â n i c a do p o r t u g u ê s . O u seja: a c o n s c i ê n c i a que faltou à s suas personagens, envoltas num processo de busca, comparece nesse l i v r o , a t r a v é s da ironia, que combate a m í s t i c a guerreira, substituindo-a pela ars amatoria. O S e b a s t i ã o redivivo, nascido sob o signo de V é n u s e que nunca gramou guerreiros, satisfaz as mulheres m a l amadas, doando-se amorosamente, ao c o n t r á r i o de seu h o m ô n i m o , que devido à m i s o g í n i a , ao desprezo das mulheres, se entregou ao desastre da aventura guerreira. A l m e i d a Faria fecha assim sua trajetória ( a t é

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aqui por enquanto), negando o veio m e s s i â n i c o , o sonho doentio com o I m p é r i o e a v o c a ç ã o atlântica do p o r t u g u ê s , substituindo esses valores esclerosados pela s u g e s t ã o da prática do amor. Quem sabe, n ã o estaria ele, aoescrever sua "negativa e p o p é i a " , minimizando a g r a n d i l o q ü ê n c i a d'Os Lusíadas, presente nas exaustivas estrofes, cantando os feitos h e r ó i c o s do "peito lusitano" e valorizando os efeitos líricos dos e p i s ó d i o s amorosos, como acontece nos fragmentos de Inês de Castro, no do Gigante Adamastor e nomeadamente no da Ilha dos Amores?

R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S

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B I B L I O G R A F I A C O N S U L T A D A

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