AIMÉ CÉSAIRE E O INTERTEXTO SHAKESPEARIANO
Mauro Luís THOBIAS*
Por m a i o r que s e j a a o r i g i n a l i d a d e de uma o b r a literária - e i s s o podemos e s t e n d e r aos mais v a r i a d o s campos das a t i v i d a d e s humanas -e l a não d -e i x a d-e t r a z -e r -em s i r -e f l -e x o s d-e o u t r a s o b r a s com as q u a i s f o r a e s t a b e l e c i d o um c o n t a t o . De m a n e i r a implícita, o u , m u i t a s v e z e s , o s t e n t a n d o uma explicitação, que c o n s t i t u i seu próprio p o n t o de i n t e r e s s e ,
" q u a l q u e r t e x t o - nas p a l a v r a s de L a u r e n t Jenny, c i t a n d o Júlia K r i s t e v a - se constrói como mosaico de citações e é absorção e transformação de um o u t r o t e x t o " . ( 2 . p. 13) Por aí, vemos que a i n t e r t e x t u a l i d a d e não se consuma somente com o p r o l o n g a m e n t o , ou com a referência, ou com o e n x e r t o de um t e x t o em o u t r o , mas s i m , com t u d o i s s o a c r e s c i d o de um
* Aluno do Programa de Pós-GraduaçSo.
Itinerários. A r a r a q u a r a , 5: 211-229. 1993
-novo s e n t i d o , de uma nova reinterpretação dos f a t o s .
Com a l e i t u r a do d o i s t e x t o s dramáticos que o r a t r a z e m o s p a r a análise, podemos d i z e r com precedência que há, no cruzamento da o b r a de Aimé Césaire com a de Shakespeare, a mais p r o f u n d a correspondência. Essa já vem explícita a p a r t i r do próprio título de cada uma das peças, p o i s ambos u t i l i z a m , p a r a sua designação, o mesmo vocábulo ( t e m p e s t a d e ) , sensatamente m o d i f i c a d o p o r um d e t e r m i n a n t e .
Vemos que em Shakespeare o título A
Tempestade ( 3 , p. 915) é no f u n d o a metáfora de s e n t i m e n t o s extremamente i n c r u s t a d o s no íntimo de um e l e m e n t o . A determinação através do a r t i g o d e f i n i d o , enquanto nos f a z i n t u i r uma d i r e c i o n a l i d a d e da ação e o p l e n o c o n h e c i m e n t o do s e n t i m e n t o que a i m p u l s i o n a , c o l o c a em d e s t a q u e a e s c o l h a s i g n i f i c a t i v a do a r t i g o
i n d e f i n i d o , r e a l i z a d a p o r Césaire. Assim m o d i f i c a d o , o vocábulo d e s i g n a uma e n t r e t a n t a s histórias a r e s p e i t o da colonização que p o d e r i a m s e r r e l a t a d a s ; como também, i r o n i c a m e n t e , chama a atenção p a r a o desdém com que é t r a t a d a a questão c o l o n i a l i s t a . Torna-se e v i d e n t e que em Une Tempête é o f a t o r e x t e r i o r , a situação r e i n a n t e f o r a , o d e s c o n h e c i d o , que é o
responsável p e l o e n r i j e c i m e n t o do s e r e p o r sua ação d e n t r o desse u n i v e r s o .
Mas é ao nível da fábula que m e l h o r se pode d e t e c t a r a presença t r a n s f o r m a d a de A
Tempestade d e n t r o do t e x t o de Aimé Césaire (Uma Tempestade) .
Em Shakespeare - como em Césaire - os a c o n t e c i m e n t o s p r e c e d e n t e s ao início da ação da peça nos vêm r e l a t a d o s p o r Próspero, duque de Milão. No o r i g i n a l inglês, a deposição de Próspero é f r u t o da união e n t r e seu irmão -Antônio - e A l o n s o , r e i de Nápoles. E sob a acusação de t e r um e x c e s s i v o amor às ciências em d e t r i m e n t o dos r e a i s i n t e r e s s e s do ducado, Próspero e a f i l h a são lançados ao mar a b o r d o de uma embarcação em situação precária. T a l v e z p o r forças d i v i n a s , ambos passam a v i v e r em uma i l h a na companhia de um a b o r i g i n e - C a l i b a n - e de um espírito, de nome A r i e l .
O p o n t o i n i c i a l da comédia é a tempestade que se a b a t e s o b r e o n a v i o de A l o n s o e de sua c o m i t i v a . Atraídos à i l h a p e l o engenho mágico de Próspero, t o d o s a l i são submetidos à v o n t a d e do duque, s o f r e m a l g u n s r e v e s e s p o r e l e d e s t i n a d o s , p a r a no f i m se e s t a b e l e c e r e n t r e t o d o s a mais p e r f e i t a harmonia.
E s t r u t u r a l m e n t e , Shakespeare d i s t r i b u i a ação da peça em c i n c o a t o s , enquanto Césaire a
condensa em três a t o s , p r e c e d i d o s de um prólogo.
Nesse prólogo, Aimé Césaire nos d e i x a c o n v i c t o s de que a q u i l o que passaremos a a p r e c i a r se t r a t a de uma representação, já que em cena se apresentam um s u p o s t o d i r e t o r e d i v e r s o s a t o r e s empenhados na montagem de uma peça à semelhança de A Tempestade. Sendo a s s i m , no p r i m e i r o nível da representação, ao t e a t r o p r o p r i a m e n t e d i t o , p e r t e n c e u n i c a m e n t e esse prólogo. As demais p a r t e s pertencerão à representação da representação - ou ao m e t a t e a t r o . Embora i n e x i s t a no t e x t o dramático, ou mesmo no p a r a t e x t o , q u a l q u e r referência à constituição física desses a t o r e s d e n t r o do prólogo, supõe-se que a l i e s t e j a m p r e s e n t e s
somente a t o r e s n e g r o s . Intuição t i d a a p a r t i r d a q u i l o que sabemos a r e s p e i t o da o b r a de Césaire e, s o b r e t u d o , a p a r t i r do sub-título da peça: Une Tempête: adaptation pour un theatre nègre — um t e a t r o v i v i d o e l i g a d o à temática n e g r a .
A importância dessa questão é que a crítica de Césaire ao mundo que o c e r c a pode s e r d e t e c t a d a a p a r t i r d i s s o . Muitíssimo s i g n i f i c a t i v a p a r a o espetáculo, a distribuição dos papéis e n t r e os a t o r e s ganha mais c o r p o quando e m p a r c e i r a d a com o c o n h e c i m e n t o do pensamento do a u t o r , no t o c a n t e à absorção de
um padrão da s o c i e d a d e b r a n c a p e l a s o c i e d a d e n e g r a . E a s s i m , poderíamos tomar o pequeno espaço do p a l c o como r e c o r t e do mundo; a l i se r e p r o d u z - v i a d i r e t o r - a r e a l i d a d e o b s e r v a d a p o r Césaire. À exceção das personagens C a l i b a n e A r i e l , que estarão sendo r e p r e s e n t a d a s sob a p e l e n a t u r a l dos d o i s a t o r e s , as o u t r a s assumirão a máscara e a p o s t u r a b r a n c a s . Através das p a l a v r a s do d i r e t o r , vemos que e l e e n c o n t r o u em A Tempestade uma enorme v a r i e d a d e de f a t o s e s e r e s que bem podem s e r v i r p a r a a concretização de suas idéias:
"Vamos, s e n h o r e s , s i r v a m - s e . . . A cada um sua personagem e a cada personagem sua más-c a r a " (prólogo).
Por aí, vemos que t o d o s possuem uma p e r s o n a l i d a d e que se e n c a i x a era um ou em o u t r o p a p e l . Diríamos que a q u e l e d i r e t o r é uma metáfora que o próprio Césaire f a z de s i . É e l e quem r e c e b e das mãos de seu c r i a d o r o caráter visionário. D e n t r o do espetáculo a l i m a n i f e s t a d o , a p a l a v r a é o s i s t e m a de s i g n o s
r e v e l a d o r dessa r e a l i d a d e . 0 d i r e t o r p r o c e s s a a distribuição dos papéis, r e v e l a n d o , através de suas inflexões, a grande s u r p r e s a nessa ligação e n t r e a r e a l i d a d e e a ficção. D i z e l e :
"... você, Próspero? Há v e l e i d a d e s de p o d e r que se i g n o r a ! Você, C a l i b a n ? Ora, o r a , é r e v e l a d o r ! Você, A r i e l ! Não v e j o nenhum i n c o n v e n i e n t e n i s s o . E Estéfano? E Trínculo? Nada de amadores? Sim! M u i t o bem. É p r e c i s o de t u d o p a r a r e p r e s e n t a r o mundo! A f i n a l de c o n t a s , esses não são os p i o r e s ! Para os p r o t a g o n i s t a s M i r a n d a e F e r d i n a n d o , nada de d i f i c u l d a d e s . . . Vocês, de a c o r d o ! Também nenhuma d i f i c u l d a d e p a r a os c r i m i n o s o s : você Antônio, você A l o n s o , p e r f e i t o ! Deus! Eu me e s q u e c i a dos deuses. Exu l h e c a i como uma l u v a ! Quanto aos o u t r o s v i r e m - s e . Então escolham... mas, há um desses que eu e s c o l h i : é você. Você, e n t e n d e ! é a Tempestade. É-me necessário uma t e m p e s t a d e sem f r e i o s . P r e c i s o de um a t a r r a c a d o p a r a f a z e r o v e n t o . Então, é você? De a c o r d o . Depois um comandante de p u l s o p a r a o n a v i o . Bom, a g o r a vamos lá... atenção: p a r t i u , v e n t o s , soprem! chuvas e relâmpagos, à v o n t a d e " (prólogo).
Mergulhamos, dessa f o r m a , d e n t r o do segundo nível da representação.
Em relação ao espetáculo, notamos que em Shakespeare (A Tempestade), há uma p r i m a z i a do
espetáculo s o b r e a fábula. D i a n t e da t e m p e s t a d e r e p r e s e n t a d a , vemos a i n t e n s i d a d e da força que
i m p e l e Próspero a l u t a r c o n t r a seus o p o n e n t e s , força essa que pode s e r intuída através das i n -dicações dadas no p a r a t e x t o . Os relâmpagos e trovões, a l i p e d i d o s , como e l e m e n t o s p e r t e n c e n ^ t e s a d o i s s i s t e m a s de s i g n o s t e a t r a i s : a i l u -minação e o som, são tomados não somente como
fenômenos n a t u r a i s , mas, s o b r e t u d o , como índi-ces da condição i n t e r i o r de Próspero.
A marcação c o n s t a n t e das personagens Gon-çalo, Antônio e Sebastião, com suas r e p e t i d a s i d a s e v i n d a s e n t r e o espaço mimético e o e s paço diegético, se r e v e s t e de ampla s i g n i f i -cação, p o i s m o s t r a o q u a n t o de patético e de exacerbação e x i s t e em cada um. O a s p e c t o dinâ-m i c o da dinâ-marcação dessas personaqens c r i a a tensão dramática e n t r e e l a s e uma q u a r t a personagem, o c o n d u t o r do n a v i o , que se d e s t a c a nessa cena p o r a p r e s e n t a r uma p o s t u r a d i f e r e n t e das dos demais. 0 a s p e c t o estático de sua mar-cação, m o s t r a que e l e é f i g u r a d o m i n a n t e d e n t r o dessa cena.
Em Césaire, ao s e r t r a b a l h a d o o mesmo t r e -cho, vemos que a preocupação com o espetáculo não é a mesma. Tudo, d e n t r o da tempestade a p r e s e n t a d a p o r Césaire, é amenizado p a r a que p o s -sam s e r realçadas a intolerância e a arrogância e x i s t e n t e s nas relações humanas e a t r a n s i t o -r i e d a d e do p o d e -r - o nada do homem d i a n t e do
ímpeto da n a t u r e z a . P r i v i l e g i a - s e , p a r a t a n t o , o diálogo e n t r e as personagens.
Na continuação do p r o c e s s o de atualização da peça, f a z - s e uma l i g e i r a modificação do mo-t i v o p e l o q u a l Próspero se vê o b r i g a d o a aband o n a r Milão. A expansão abandos impérios c o l o n i a -l i s t a s e a conseqüente -l u t a que se e s t a b e -l e c e e n t r e as potências são responsáveis p e l a queda do duque, p o i s sendo e l e o d e s c o b r i d o r de novas t e r r a s , consegue amainar a cobiça dos oponen-t e s . O amor e a admiração p o p u l a r e s , evocados em Shakespeare, são substituídos p e l o s u b o r n o , r o u b o e f a l s a s denúncias à Inquisição, que o condena a v i v e r numa i l h a d e s e r t a .
Em Césaire, é o acaso e não mais os p o -d e r e s -de Próspero - que a t r a i os seus i n i m i g o s p a r a a i l h a , a f i m de se j u n t a r e m àqueles que já v i v e m a l i : A r i e l e C a l i b a n . Assim, nas p e -quenas dimensões da i l h a estão p r e s e n t e s t o d o s os m a t i z e s da s o c i e d a d e : o bem/o m a l , a r i queza/a p o b r e z a , o n e g r o / o b r a n c o , o c o l o n i -zado/o c o l o n i z a d o r . E, de início, percebemos que em Próspero se a p r e s e n t a sempre uma das p a r t e s das d i c o t o m i a s d e t e c t a d a s na peça. Co-l o c a - s e essa personagem como c e n t r o i r r a d i a d o r dos c o n f l i t o s g e r a d o s .
De uma m a n e i r a bem d i f e r e n t e da de Shakespeare, que m o r a l i z a o r e l a c i o n a m e n t o h u
-mano, através do perdão, vê-se que a questão r a c i a l e seu c o n f l i t o são o c e r n e da o b r a de Césaire.
O u t r a s u t i l modificação e n t r e uma o b r a e o u t r a é que, em A tempestade, A r i e l é um espírito submisso à força de Próspero, enquanto que C a l i b a n r e p r e s e n t a o a b o r i g i n e , um m i s t o de homem e p e i x e na visão g e n e r a l i z a d a um r e v o l -t a d o com a presença e s -t r a n g e i r a s o b r e a -t e r r a que l h e p e r t e n c e . Levemente g r o t e s c o , é r e s p o n -sável p o r a l g u n s momentos de humor d e n t r o da representação.
Já na versão césairiana as duas f i g u r a s são submetidas a s u t i s modificações. A r i e l , h u -manizado, é um m u l a t o e s c r a v o que se c o l o c a na
l u t a , mas não dando crédito à violência, p a r a c o n s e g u i r a l i b e r d a d e . Usa, p a r a i s s o , o método de adesão a p a r e n t e aos p l a n o s do senhor. Bem contrária é a p o s t u r a do negro C a l i b a n que, a p r e s e n t a n d o uma resistência i n c o n t i n e n t ! a Próspero, se f a z p o r n a t u r e z a seu único e a u -têntico o p o n e n t e .
Sendo c o l o c a d o o r a d i a n t e de A r i e l , o r a d i a n t e de C a l i b a n , Próspero r e v e l a um t r a t a -mento d i f e r e n c i a d o a um e a o u t r o . A nível de espetáculo, há uma t e n t a t i v a de se f a z e r essa diferenciação e n t r e ambos, através de referên-c i a s ao a s p e referên-c t o físireferên-co de C a l i b a n , sempre a
p a r t i r da visão p a r t i c u l a r i z a d a de Próspero, que d i z em uma das passagens:
"Sempre g r a c i o s o eu v e j o , vilão macaco! como se pode s e r tão f e i o ! "
A i s s o , C a l i b a n responde, mostrando uma r e c i p r o c i d a d e de s e n t i m e n t o :
"Você me acha f e i o , mas eu, eu não o acho i n t e i r a m e n t e b o n i t o ! Com seu n a r i z adunco você p a r e c e um v e l h o a b u t r e .
Um v e l h o a b u t r e de pescoço pelado"(1-í,2-p.24) .
T a i s colocações são a n t e s de t u d o f r u t o de s e n t i m e n t o s n u t r i d o s p o r cada um d e l e s , que uma r e a l i d a d e v i s t a p o r t o d o s . F i c a - n o s f o r t e a impressão de que, no j o g o e n t r e C a l i b a n e Próspero, um vem a s e r o e s p e l h o f i e l do o u t r o e, sob essa imagem r e f l e t i d a , aparecerão t o d o s os p o n t o s de convergência e divergência que n e l e s são d e t e c t a d o s . Desde a i g u a l d a d e - o f a t o de serem vítimas da ganância a l h e i a , e vítimas imperecíveis d i a n t e dos i n i m i g o s -, até as diferenças e s t a b e l e c i d a s nessa relação s e -n h o r / e s c r a v o , t u d o vem c o -n t r i b u i r p a r a que s e j a c o l o c a d a p a r a f o r a essa gama de s e n t i m e n t o s
r e v e l a d a p e l a p a l a v r a . Sendo i g u a i s , ambos se conhecem e se reconhecem, p o i s , segundo Próspero, é em C a l i b a n que se esconde o p e r i g o . E, com base nessa c e r t e z a , é que é perdoado o e r r o dos o u t r o s . Logo após um diálogo a c a l o r a d o e n t r e Próspero e C a l i b a n , o duque de Milão d i r i g e a A r i e l e s t a s p a l a v r a s :
"Meu c a r o A r i e l , você v i u como e l e me o l h o u , e s t a l u z em seus o l h o s ? I s s o é novo. Então eu l h e d i g o , C a l i b a n e i s aí o i n i m i g o . Quanto às pessoas do n a v i o , meus s e n t i m e n t o s em relação a e l a s mudaram. Apavore-as, eu c o n s i n t o n i s s o . Mas p o r Deus, que não se t o q u e em um só de seus c a b e l o s ! Você me responderá com a sua cabeça!" ( 1 - 1 , 2-p.29).
A i n d a sob esse a s p e c t o , o espetáculo r e s e r v a p a r a o t e r c e i r o a t o o momento de C a l i b a n e x p r e s s a r a força desse r e c o n h e c i m e n t o , f r a c a s s a n d o no momento de m a t a r o i n i m i g o . Intuímos que q u a l q u e r t e n t a t i v a de q u e b r a dessa u n i d a d e acabará l o g o p o r s e r diluída, p o r q u e haverá sempre o r i s c o de se l i q u i d a r a própria imagem, e, dessa f o r m a , seguramente, se a existência d a q u e l e permanecesse não t e r i a em s i a mesma razão de s e r . Próspero e C a l i b a n se opõem e se e x p l i c a m mas não se excluem!
"Próspero - D e c i d i d a m e n t e , o mundo está i n v e r t i d o . Teremos v i s t o de t u d o : C a l i b a n dialético I A f i n a l de c o n t a s , C a l i b a n , eu o amo... Vamos façamos a paz... nós vivemos dez anos j u n t o s e t r a b a l h a m o s l a d o a l a d o dez anosí Dez anos, i s s o c o n t a ! Acabamos p o r nos t o r n a r c o m p a t r i o t a s ! C a l i b a n - não é a paz que me i n t e r e s s a , você sabe m u i t o bem! É s e r l i v r e . L i v r e , está me o u v i n d o ! (...) Próspero, você é um g r a n d e i l u s i o n i s t a , a m e n t i r a , i s s o você conhece. E de t a l modo você m e n t i u p a r a mim, m e n t i u s o b r e o mundo, m e n t i u s o b r e mim, que acabou p o r me impor uma imagem de mim mesmo: um s u b d e s e n v o l v i d o , como você d i z , um i n c a p a z , e i s como você me o b r i g o u a me v e r , e essa imagem eu a o d e i o . E e l a é f a l s a ! Mas a g o r a , eu o conheço, v e l h o câncer, e eu me conheço também"
( l - I I I , V, p. 87) A c e r t e z a da i n d i s s o c i a b i l i d a d e vem a i n d a e x p r e s s a em o u t r a réplica de C a l i b a n , no I I I C A t o , cena 5, onde o n a t i v o a p o s t a na permanência do c o l o n i z a d o r no l o c a l , já que esse e n c o n t r a , na v i d a da colônia, v a n t a g e n s que não l h e s e r i a m dadas em sua t e r r a de o r i g e m . A f i r m a C a l i b a n :
"Você permanecerá como esses c a r a s que f i z e r a m as colônias e que não podem v i v e r em o u t r o l u g a r . Um v e l h o i n t o x i c a d o , e i s o que você é!" ( l - I V , - 5 - p . 89)
A i n d a , p a r a c r i s t a l i z a r essas idéias, o espetáculo lança mão de s i s t e m a s de s i g n o s d i v e r s o s : iluminação, maquiagem, expressão
f a c i a l , g e s t o s e p a l a v r a s , p a r a d a r a e x a t a l o n g a n i m i d a d e dessa l u t a e do tempo que c o r r e : t u d o a p r e p a r a r a a t m o s f e r a propícia p a r a a réplica f i n a l de Próspero, que, após l o n g o s anos de l u t a , confunde sua existência com a existência do r i v a l :
"Então, meu v e l h o C a l i b a n , nós somos apenas d o i s nessa i l h a . Só eu e você. Você e eu! Você-eu! Você-eu ( . . . ) " ( l - I I I , 5 - p . 92)
Não se pode negar que é o l a d o a g u e r r i d o de C a l i b a n - o elemento mais próximo à n a t u r e z a , a essência a f r i c a n a - o responsável p o r essa i n s t a b i l i d a d e no r e l a c i o n a m e n t o com Próspero. Bem o u t r a , porém, é a s o r t e de A r i e l
a q u e l e que bem sabe m e s c l a r a l u t a , a inteligência e o senso e x a t o de s i e do o u t r o . E n i s s o r e s i d e seu sucesso em comparação ao r e s u l t a d o o b t i d o p o r C a l i b a n . A r i e l é o
o p o n e n t e e n v o l t o na capa da c u m p l i c i d a d e , p a r a d i s s o t i r a r p r o v e i t o .
Percebemos que, na relação de Próspero com ambos, a q u i l o que i m p u l s i o n a o duque de Milão a e s t a b e l e c e r c o n t a t o com essas duas personagens
é o mesmo i n s t i n t o dominador, a mesma ambição
i m p e r i a l i s t a . A r i e l e C a l i b a n , nessa situação dramática, vão em busca do mesmo bem d e s e j a d o : a l i b e r d a d e . Mas o que exatamente d e t e r m i n a o r e s u l t a d o é a p o s t u r a que cada um toma d i a n t e do f a t o . Porém, se há uma diferença na tomada de caminho, e l a não se t o r n a causa de r u p t u r a e n t r e e l e s ; bem ao contrário, t o r n a - s e um c a n a l a b e r t o ao diálogo i n t r a - r a c i a l . Se em Shakespeare a relação e n t r e e l e s é marcada p e l a fustigação, p r i n c i p a l m e n t e p o r p a r t e de A r i e l , esse em Césaire se f a z invencível no campo da f r a t e r n i d a d e .
O j o g o que Césaire impõe a C a l i b a n e A r i e l em nada pode s e r comparado àquele v i s t o e n t r e C h r i s t o p h e e Pétion, heróis da peça La Tragédie du Roi Christophe, onde o negro e o m u l a t o se d i g l a d i a m até a f a t a l i d a d e . Se na relação desses é d i a g n o s t i c a d o o mal de uma s o c i e d a d e que se acaba na l u t a e n t r e seus e l e m e n t o s , em
Une Tempête, vemos n i t i d a m e n t e que se o f e r e c e uma possível solução p a r a se combater o que corrói o e n t e n d i m e n t o e n t r e irmãos.
A r i e l tem a mente a b e r t a ao c o l e t i v o . Como um pássaro e l e f l u t u a no a r , l e v a n d o seus sonhos. E l e e n x e r g a a l i b e r d a d e como um bem a t o d o s d e s t i n a d o ; e, num dos t r e c h o s mais b e l o s da peça, e l e c o n f e s s a ao irmão C a l i b a n :
"Você me d e s e s p e r a . Freqüentemente, t i v e sonho e x a l t a n d o que um d i a , Próspero, você e eu, empreenderíamos, irmãos a s s o c i a d o s , a construção de um mundo m a r a v i l h o s o , cada um t r a z e n d o como contribuição suas q u a l i d a d e s próprias: paciência, v i t a l i d a d e , amor, v o n t a d e também, e r i g o r , sem c o n t a r a l g u n s s o p r o s de sonho sem o q u a l a humanidade p e r e c e r i a de a s f i x i a . " ( 1 , I I , 1 , p. 38)
A diferença, e n t r e o A r i e l s h a k e s p e a r i a n o e esse c r i a d o p o r Césaire, é exatamente esse compromisso com o mundo que a personagem césairiana nos a p r e s e n t a . Esse f a t o também é um o u t r o p o n t o na diferenciação desse com C a l i b a n . Mas, mesmo sendo traçados caminhos d i f e r e n t e s , e l e s permanecem fiéis àquilo que pensam; e, nessa d i v e r s i d a d e , t o r n a - s e possível a u n i d a d e sonhada:
" A r i e l - cada um de nós ouve seu t a m b o r . Você marcha ao som do seu. Eu marcho ao som do meu. Eu l h e d e s e j o coragem, meu irmão.
C a l i b a n - Adeus, A r i e l , eu l h e d e s e j o boa s o r t e , meu irmão". ( 1 , I I , 1 , p. 38)
Se a importância de C a l i b a n r e s i d e no f a t o de s e r o p o r t a - v o z d a q u e l e s que s o f r e m p o r causa da opressão c o l o n i a l i s t a , A r i e l se f a z dono de t o d o o espetáculo, q u e r s e j a p o r sua presença e s p i r i t u o s a , q u e r s e j a p e l o seu l a d o m u s i c a l . E é em f a v o r dessas personagens e das idéias que e l a s p e r s o n i f i c a m , que os o u t r o s temas, tão r e l e v a n t e s em Shakespeare, são m i t i g a d o s em meio àquilo que Césaire tem p a r a e x p o r . Se em Shakespeare, a questão e n t r e Próspero e seus i g u a i s toma grande p a r t e da ação da peça, o mesmo não a c o n t e c e em Césaire.
Em Une Tempête, o perdão de Próspero a seus t r a i d o r e s é dado l o g o de início, não sendo mais f r u t o da humanidade, mas s i m f r u t o m a n i f e s t o da mais p u r a conveniência política. Faz-se necessária a união e n t r e as forças p a r a o combate de um mesmo p e r i g o . Essa união em Césaire vem s i m b o l i z a d a p e l a união de F e r d i n a n d o e M i r a n d a , que perdendo a f o r t e dosagem de romantismo s h a k e s p e a r i a n o , passam a
s e r peças f u n d a m e n t a i s na manutenção da força do o p r e s s o r . No pensamento de Próspero.:
"Toda a n o b r e z a da Itália, Nápoles e Milão de a g o r a em d i a n t e c o n f u n d i d a s me farão proteção com o seu c o r p o . " ( 1 , I , 2 -p.29)
E, se essa união vem coroada com os v o t o s de boa s o r t e , t r a z i d o s p o r deusas g r e g a s , e l a não d e i x a de a t r a i r s o b r e s i as imprecações de infortúnio com a chegada de Exu, o único acréscimo no r o l de personagens já e s t a b e l e c i d o p o r Shakespeare.
A presença de Exu t r a z de v o l t a a r e a l i d a d e do mundo. Com suas p a l a v r a s , no c a n t o de saudação, e l e f a l a de sacrifício, l o u c u r a , traição e engano. Exu se e s t a b e l e c e na v i d a de ambos e se d e f i n e como sendo f r u t o d a q u i l o que se semeia:
"Exu! a p e d r a que se lançou ontem É h o j e que e l a mata o pássaro
Da desordem e l e f a z a ordem, da ordem a desordem
Ah! Exu é uma pessoa que f a z b r i n c a d e i r a s de
mau g o s t o ! " ( l - I I I , 3-p.70)
-A ação da peça e s t e n d e seus e f e i t o s p a r a além de seus próprios l i m i t e s de tempo e espaço; vemos que a aliança e n t r e Nápoles e Milão, que se a p r e s e n t a viável p a r a o momento, a l o n g o p r a z o fará v i r à t o n a sua f r a g i l i d a d e , que t e n d e a f i c a r mais tênue à medida que uma das p a r t e s d e s c o b r e os v e r d a d e i r o s i n t e r e s s e s da o u t r a .
Através de uma p a r t i d a de x a d r e z , na q u a l se vêem e n v o l v i d o s M i r a n d a e F e r d i n a n d o , o espetáculo se e n c a r r e g a de t r a d u z i r essa idéia, d o t a n d o a jovem p r i n c e s a de uma perspicácia até então d e s c o n h e c i d a . E l a que no início da peça exclamava c o n t r a a maldade do mundo, e n c o n t r a -se, no f i n a l do t e r c e i r o a t o , plenamente a d a p t a d a ao mundo em que aos poucos v a i sendo i n s e r i d a . E l a consegue s e n t i r o engano ao q u a l está sendo s u b m e t i d a p e l o companheiro. E, esse mal que está p r e s e n t e na b r i n c a d e i r a dos amantes, é o mesmo que veremos f o r a d e l e . M i r a n d a se m o s t r a p r o n t a p a r a a q u i l o que há de v i r :
"Estou p r o n t a p a r a e n f r e n t a r os demônios do i n f e r n o . " ( l - I I I , 4 - p ) .
CONCLUSÃO
Parece-nos então que, a s s i m r e a l i z a d a , a r e e s c r i t u r a de A Tempestade t o r n a - s e a r a d i o g r a f i a de uma situação que se e s t e n d e há séculos e que - d i a n t e da disposição demonstrada p e l a personagem M i r a n d a , no exemplo acima - r e v e l a o q u a n t o é v i v a e a t u a l .
M u i t o mais que uma reinterpretação de uma grande o b r a , Une Tempête vem a s e r p a n f l e t o acusador que quer c o l o c a r às c l a r a s t o d a s as intenções de um s i s t e m a e seus males. A o b r a de Césaire é um mergulho a fundo na alma do s e r , a f i m de t r a z e r à t o n a os espíritos que s u s t e n t a m e combatem as situações de miséria e de injustiça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS
1. CÉSAIRE, A. Une tempête. P a r i s : S e u i l , 1969. 2. JENNY, L. A estratégia da f o r m a . I n : .
Intertextualidades. Coimbra: A l m e d i n a , 1979. (Tradução de Poétique, n. 27, 1 9 7 6 ) .
3. SHAKESPEARE, W. Obra completa - V o l . I I . R i o de J a n e i r o : José A g u i l a r , 1969.