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AS ELITES E A SOCIEDADE

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Academic year: 2021

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T. B. BOTTOMORE

Lente de Sociologia da Universidade de Londres

AS ELITES

E A SOCIEDADE

Tradução de

OTÁVIO

GUILHERME

C. A. VELHO

Segunda edição

ISBN: 85-245-0064-6

ZAHAR EDITORES

(2)

Nota de Esclarecimento

Caro(a) leitor(a)

Este livro fora digitalizado pelo Projeto Prometheus, que

tem por objetivo, a digitalização de toda e qualquer obra

acadêmica e literária que seja de fundamental importância para

o enriquecimento do conhecimento de toda a sociedade, pois

acreditamos que as mesmas citadas não devem permanecer nas

limitações dos poucos exemplares oferecidos nas bibliotecas

públicas ou privadas, como tão pouco, nas livrarias a preços

inacessíveis a grande parte da população de nosso país.

Entretanto, condenamos e repudiamos veemente a pirataria,

pois ela faz seus lucros sobre o que mais condenamos, os altos

preços por aquilo que deveria ser de acesso gratuito a todos, o

conhecimento. Mediante a isto, e em reafirmação dos valores do

Projeto Prometheus, esta obra é oferecida a toda sociedade de

maneira total e perpetuamente gratuita. Vedada toda forma de

lucro sobre ela e/ou uso que não seja exclusivamente o do

ascender do conhecimento pessoal ou coletivo.

Atenciosamente.

(3)

ÍNDICE

CAPITULO

I. A Elite: Conceito e Ideologia...07

CAPITULO

II. Da Classe Dominante à Elite do Poder...22

CAPITULO

III. A Política e a Circulação de Elites...44

CAPITULO

IV. Intelectuais, Gerentes e Burocratas...63

CAPITULO

V. Tradição e Modernismo: As Elites nos Países

em Desenvolvimento...84

CAPITULO

VI. A Democracia e a Pluralidade de Elites...101

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[07]CAPITULO I

A Elite: Conceito e Ideologia

A palavra "elite" era empregada no século XVII para designar produtos de qualidade excepcional. Seu emprego foi posteriormente estendido para abranger grupos sociais superiores, tais como unidades militares de primeira ordem ou os postos mais altos da nobreza.1

1. Ver o Dictionnaire de Trévous (1771), onde o sentido original de elite consta corno sendo "Ce qu'il y a de meilleur dans chaque espèce de marchandise"; e se acrescenta, então, que "ce terme a passe de la boutíque des marchands à d'autres usages ... (troupes d elite, l'élite de la noblesse)." (Citado em Renzo Sereno, "The Anti-Aristotelianism of Caetano Mosca and Its Fate", Ethics, XLVIII (4), julho de 1938, p. 515.) No século XVI, de acordo com Edmond Huguet, Dictionnaire de la Zangue

française du seizième siècle, a palavra elite significava simplesmente choix (uma

escolha); faire elite queria dizer "escolher". Vide também, sobre o uso inicial do termo em si e da idéia de elites, Hans P. Dreitzel, Elitebegriff und Sozialstruktur, e H. D. Lasswell et al., The Comparative Study of Elites. A idéia de que a comunidade deveria ser dominada por um grupo de indivíduos superiores figura com destaque no pensamento de Platão e ainda mais nas doutrinas de casta brâmanes que regulavam a antiga sociedade hindu. Com outra forma, mas possuindo também uma importante influência sobre teorias sociais, muitas crenças religiosas têm expressado a noção de uma elite em termos de os "eleitos de Deus". A concepção moderna, social e política, de elites talvez possa ser remontada à defesa de Saint-Simon do governo de cientistas e industriais; porém no trabalho de Saint-Simon a idéia sofre diversas restrições, especialmente devido ao seu reconhecimento da existência de diferenças de classe e da oposição entre ricos e pobres, o que permitiu aos seus seguidores imediatos desenvolver seu pensamento na direção do socialismo. Foi na filosofia positivista de Auguste Comte que os elementos elitistas e autoritários do pensamento de Saint-Simon, juntamente com as idéias de De Bonald, tiveram sua proeminência restaurada, influenciando assim diretamente os criadores da moderna teoria das elites, Mosca e Pareto.

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Na língua inglesa o primeiro uso conhecido de "elite", de acordo com o

Oxford English Dictionary[08], data de 1823, quando já era aplicado para

referir-se a grupos sociais. Entretanto, o termo não se tornou amplamente utilizado em literatura social e política na Europa senão bem para o final do século XIX, e na década de 1930 na Grã-Bretanha e na América, quando se difundiu através das teorias sociológicas das elites, especialmente através da obra de Vilfredo Pareto.

Pareto definiu "elite" de duas formas diferentes. Principiou com uma definição bem geral: "Suponhamos que em todos os ramos de atividade humana seja atribuído a cada indivíduo um índice que represente um sinal de sua capacidade, de maneira semelhante àquela pela qual se conferem notas nas diversas matérias em exames escolares. Ao tipo superior de advogado, por exemplo, será dado nota dez. Ao homem que não consegue um cliente será atribuído nota um — reservando-se o zero para o que foi completamente idiota. Ao indivíduo que tiver auferido milhões — honestamente ou não, conforme o caso — daremos um dez. O que chegar à casa dos milhares receberá um seis. Os que apenas conseguem deixar de ter de ir para um asilo de indigentes terão nota um, reservando-se o zero para os que não o conseguirem... E assim por diante em todos os ramos de atividade humana.. . Reunamos, pois, em uma categoria, as pessoas que possuem os índices mais altos em seus ramos de atividade, e a essa categoria daremos o nome de elite". 2

2. V. Pareto, The Mind and Society, III, pp. 1422-3 (tradução inglesa do seu

Trattato di Sociologia Generale).

O próprio Pareto não vai além na utilização desse conceito de elite; serve apenas para acentuar a desigualdade de atributos individuais em todas as esferas da vida social, e como um ponto de partida para uma definição de "elite governante", seu verdadeiro objeto de estudo. "Para a

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investigação específica que empreendemos, um estudo do equilíbrio social, será útil dividirmos[09] mais ainda essa classe [a elite] em duas: uma elite governante, compreendendo os indivíduos que direta ou indiretamente participam de forma considerável do governo, e uma elite

não-governante, compreendendo os demais... Assim, ficamos com dois

estratos em uma população: I) um estrato inferior, a não-elite, com cuja possível influência sobre o governo não estamos preocupados no momento; e II) um estrato superior, a elite, dividida em dois: a) uma

elite governante; b) uma elite não-governante".3

3. Ibid., pp. 1423-4.

Não é difícil descobrir pelos trabalhos anteriores de Pareto como ele chegou a essa concepção. Em seu Cours d'économie politique 4 havia sugerido a idéia de uma curva normal de distribuição da riqueza na sociedade.

4. Lausanne, 1896-7.

Em Les systèmes socialiste 5 foi adiante, argumentando, em primeiro lugar, que se os indivíduos fossem agrupados de acordo com outros critérios, tais como nível de inteligência, aptidão para a Matemática, talento musical, caráter, etc., provavelmente resultariam curvas de distribuição semelhantes às da riqueza; e, em segundo lugar, se fossem agrupados de acordo com seu grau de poder ou influência política e social, verificar-se-ia, na maioria das sociedades, que todos ocupariam os mesmos lugares nessa hierarquia que na hierarquia de riquezas.

5. Primeira edição, Paris, 1902; segunda edição, 1926.

"As chamadas classes altas são também em geral as mais ricas. Essas

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6. Op. cit., p. 28.

Entretanto, existe uma importante diferença na formulação da questão em The Mina and Society, pois aí Pareto preocupa-se não com uma curva de distribuição de certos atributos (inclusive poder e influência), mas com uma simples oposição entre aqueles que possuem poder, a "elite governante", e os que não o possuem — as massas. Essa mudança na concepção de Pareto talvez se deva em parte à influência da obra de Caetano Mosca, o primeiro a fazer uma distinção sistemática entre "elite" e massas — embora utilizando outros termos — e a tentar a elaboração de uma nova ciência da política a partir desse[10] fundamento.7 Mosca expressava sua idéia básica nestas palavras: "Entre os fatos e tendências constantes encontrados em todos os organismos políticos, um é tão óbvio que é visível até ao olhar menos atento.

7. Caetano Mosca, The Ruling Class. Esta versão inglesa, organizada por Arthur Livingston, é uma fusão e reordenação de capítulos de duas edições separadas do Elementi di scienza política de Mosca (1ª ed., 1896, 2ª ed., revista e aumentada, 1923). Um ótimo estudo recente da obra de Mosca — J. H. Meisel, The

Myth of the Rulíng Class — deixa claro já ter Mosca formulado os elementos

fundamentais de sua doutrina em seu primeiro livro, Sulla Teoria del gocerni e sul

governo parlamentarei Studi storici e sociali (Turim, 1884), e mostra como foi essa

doutrina desenvolvida e aperfeiçoada em seus trabalhos posteriores. Meisel também discute, com muita imparcialidade (op. cit., cap.8), as relações entre as idéias de Mosca e Pareto, e demonstra que este último dificilmente pode ser acusado de puro plágio (como alegou Mosca); todavia, a descrição final de Pareto da elite governante parece realmente dever algo à doutrina de Mosca.

Em todas as sociedades — desde as parcamente desenvolvidas que mal atingiram os primórdios da civilização até as mais avançadas e poderosas — existem duas classes de pessoas — uma classe que dirige e outra que é dirigida. A primeira, sempre a menos numerosa, desempenha todas as

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funções políticas, monopoliza o poder e goza das vantagens que o poder traz consigo, enquanto a segunda, a mais numerosa, é dirigida e controlada pela primeira de uma forma que ora é mais ou menos legal, ora é mais ou menos arbitrária e violenta..." 8

8. G. Mosca, The Ruling Class, p. 50.

Mosca explica o domínio da minoria sobre a maioria pelo fato daquela ser organizada. "... o domínio de uma minoria organizada, obedecendo ao mesmo impulso, sobre a maioria desorganizada, é inevitável. O poder de qualquer minoria é irresistível ao se dirigir contra cada um dos membros da maioria tomado isoladamente, o qual se vê sozinho face à totalidade da minoria organizada. Ao mesmo tempo, a minoria é organizada exatamente por ser uma minoria" — e também pelo fato da minoria ser geralmente composta de indivíduos superiores — "... os membros de uma minoria dominante sempre possuem um atributo, real ou aparente, que é altamente valorizado e de muita influência na sociedade em que vivem".9

9. Ibid., p. 53.

[11]Tanto Mosca quanto Pareto, portanto, preocupavam-se com as elites no sentido de grupos de pessoas que exercem diretamente o poder político, ou que estão em condições de influir sobre seu exercício. Ao mesmo tempo reconheciam que a "elite governante" ou "classe política" compõe-se, ela mesma, de grupos sociais distintos. Pareto observou que o "estrato superior da sociedade, a elite, reconhecidamente contém certos grupos de pessoas, nem sempre bem definidos, denominados aristocracias", e prosseguiu referindo-se a "aristocracias e plutocracias militares, religiosas e comerciais". 10

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A questão foi colocada com maior precisão em um estudo das elites na França realizado por uma discípula de Pareto, Marie Kolabinska, que discutiu explicitamente o movimento de indivíduos entre os diferentes subgrupos da elite governante e se propôs fazer um histórico com certo detalhe de quatro desses grupos: os ricos, os nobres, a aristocracia guerreira e o clero.11

11. Marie Kolabinska, La circulation des élites en f rance, p. 7.

Todavia, Pareto sempre tende a acentuar mais a divisão entre a elite governante e a não-elite, e é Mosca quem examina de forma mais minuciosa a composição da própria elite, especialmente nas modernas sociedades democráticas. Assim, ele se refere às "diversas organizações partidárias em que se divide a classe política", as quais precisam disputar os votos das classes mais numerosas; e adiante observa que "não se pode negar que o sistema representativo (de governo) fornece um meio de participação no sistema político para muitas diferentes forças sociais, e, portanto, um meio de equilibrar e limitar a influência de outras forças sociais e da burocracia em particular". Esta última passagem também revela uma divergência considerável entre Pareto e Mosca na interpretação do desenvolvimento dos sistemas políticos. Pareto acentua sempre a universalidade da distinção entre elite governante e massas, e reserva seus comentários mais mordazes para as modernas noções de "democracia", "humanitarismo" e "progresso". Mosca, por outro lado, dispõe-se a reconhecer, e até certo ponto a aprovar, os traços distintivos da moderna democracia. Em seu primeiro livro, é verdade, observa que numa democracia parlamentar "o representante não é escolhido pelos eleitores, e sim, em geral, faz-se escolhido por eles[12] ... ou ... seus amigos o fazem"; porém, em seus trabalhos posteriores, admite poder a

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maioria exercer, através de seus representantes, certo controle sobre a política governamental. Como nota Meisel, é somente na sua crítica a Marx que Mosca faz uma distinção rígida entre massas e minorias; em geral apresenta uma teoria mais refinada e complexa, em que a própria classe política é influenciada e contida por muitas "forças sociais" (representando numerosos interesses diferentes dentro da sociedade), e também pela unidade moral da sociedade como um todo, expressa no império da lei. Na teoria de Mosca, uma elite não se impõe apenas pela força e pela impostura, mas "representa", de alguma maneira, os interesses e propósitos de grupos importantes e influentes dentro da sociedade.

Existe outro elemento, também, na teoria de Mosca, que modifica seus rígidos contornos originais. Nos tempos modernos a elite não está apenas colocada bem acima do restante da sociedade; está intimamente ligada à sociedade através de uma sub-elite, um grupo bem maior que compreende, para todos os efeitos, toda a "nova classe média" de funcionários públicos, gerentes e empregados de loja e escritório, cientistas e engenheiros, estudiosos e intelectuais. Esse grupo não só fornece novos membros para a elite (a classe dirigente no sentido restrito) como também constitui, ele mesmo, um elemento vital no governo da sociedade, e Mosca observa que "a estabilidade de qualquer organismo político depende do nível de moralidade, inteligência e atividade atingido por este segundo estrato". Não é, portanto, fora de propósito, afirmar-se, como Gramsci, que sua "classe política... é um quebra-cabeça. Não se entende exatamente o que quer dizer Mosca, pois se trata de uma noção extremamente flutuante e elástica. Por vezes parece referir-se à classe média, por vezes aos proprietários em geral, e noutras aos que se consideram 'educados'. Porém em outras ocasiões,

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ainda, Mosca dá a impressão de ter em mente aqueles que se dedicam à política".12

12. Antônio Gramsci, Note sul Machiavelli.

Posteriormente, diria Gramsci de forma mais categórica: "A 'classe política' de Mosca não é nada mais do que o setor intelectual do grupo dominante. O termo utilizado por Mosca aproxima-se do conceito de elite em Pareto[13]mais uma tentativa de interpretação do fenômeno histórico da intelligentsia e sua função na vida política e social".13

13. Idem. De seu diário de prisão (1932), publicado em Gli Intellettuali e l'organizzazione della cultura.

Assim, o esquema conceptual transmitido por Mosca e Pareto compreende as seguintes noções comuns a ambos: em toda sociedade existe, e não pode deixar de existir, uma minoria que controla o restante da mesma. Esta minoria — a "classe política" ou "elite governante", composta dos que ocupam os cargos de comando político e, mais vagamente, dos que podem influir diretamente nas decisões políticas — sofre mudanças na sua composição dentro de certo período de tempo, em geral através do recrutamento individual de novos membros nos estratos inferiores da sociedade, por vezes pela incorporação de novos grupos sociais e ocasionalmente pela substituição total da elite estabelecida por uma "contra-elite", como ocorre nas revoluções. Esse fenômeno, a "circulação de elites", será examinado de forma mais completa em um capítulo posterior. A partir desse ponto as concepções de Pareto e Mosca divergem. Pareto tende a acentuar mais a separação entre dominadores e dominados em toda sociedade, e não aceita o ponto de vista de que um sistema político democrático possa diferir, nesse sentido, de qualquer outro.14

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14. A não ser pelo fato de a elite governante, sob a influência de sentimentos democráticos, tornar-se, provavelmente, hesitante e incompetente em seu domínio. Como acontece freqüentemente, há aqui um conflito entre a ciência de Pareto e sua doutrina política; em um sistema democrático existe, ainda, inevitavelmente, uma elite governante, e no entanto Pareto investe contra a democracia como se constituísse de fato uma verdadeira ameaça à existência de tal elite.

Explica a circulação de elites fundamentalmente em termos psicológicos, utilizando a noção de resíduos (sentimentos), que expôs longamente nas partes precedentes de The Mind and Society. Mosca, por outro lado, mostra-se muito mais consciente da heterogeneidade da elite, o próprio estrato superior da classe política, como também dos interesses ou forças sociais nela representados, e, no caso das modernas sociedades, de seus vínculos estreitos com o restante da sociedade, principalmente através do estrato inferior da classe política, a "nova classe média". Assim, Mosca aceita inclusive[14] a existência de uma diferença entre as modernas democracias e outras formas de organização política, e até certo ponto reconhece que se dá uma interação entre a minoria dirigente e a maioria, ao invés de um simples domínio daquela sobre esta. Finalmente, Mosca discute a circulação de elites sociologicamente, e não apenas de um ponto de vista psicológico, ao explicar o surgimento de novas elites (ou de novos elementos na elite), em parte, pela emergência de forças sociais que representam novos interesses (e.g., interesses tecnológicos ou econômicos) no seio da sociedade.15

15. Cf. Meisel, op. cit., p. 303 "... como as classes marxistas, as forças sociais de Mosca refletem de perto todas as mudanças econômicas, sociais, culturais, de uma civilização que se expande. Cora cada nova necessidade surgem novas forças sociais para enfrentar o desafio e reclamar sua fração de poder dos velhos interesses estabelecidos".

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Os estudos posteriores sobre as elites acompanharam de perto Pareto e Mosca, especialmente este último, em sua preocupação com as questões relacionadas com o poder político. Assim, H. D. Lasswell, tanto em seus trabalhos iniciais, que foram recomendados pelo próprio Mosca, quanto mais recentemente nos Estudos do Instituto Hoover sobre elites, tem-se dedicado principalmente ao estudo 'da elite política, definida nos seguintes termos: "A elite política compreende os detentores do poder de um organismo político. Os detentores do poder incluem a liderança e as formações sociais das quais surgem normalmente os líderes e às quais estes prestam contas durante um determinado período".16

16. Lasswell, em H. D. Lasswell, D. Lerner e C. E. Rothwell, The Comparativo Study

of Elites.

A diferença em relação às concepções de Pareto e Mosca está em que a elite política é no caso distinguida de outras elites relacionadas de forma menos íntima com o exercício do poder, embora possam ter considerável influência social; e está também no fato de que a idéia de "formações sociais" (inclusive classes sociais), das quais são tipicamente recrutadas as elites, é reintroduzida num esquema de raciocínio do qual, sobretudo na teoria de Pareto, havia sido expelida. Como veremos dentro em pouco, a noção de elites foi de início concebida em oposição à de classes sociais. Percebe-se[15] claramente um tratamento semelhante nos trabalhos de Raymond Aron, o qual se. tem preocupado também, fundamentalmente, com a elite no sentido de uma minoria governante, mas procura estabelecer uma relação entre a elite e as classes sociais,17 insiste na pluralidade de elites nas sociedades modernas e tem examinado a influência social da elite intelectual, que normalmente não faz parte do sistema de poder político.18

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17. Raymond Aron, "Social Structure and the Ruling Class, Part I", Brítish Journal

of Sociology, I (1), 1950. "O problema de combinar em uma síntese a sociologia de

'classe' e a sociologia de 'elite'... pode ser reduzido à seguinte pergunta: 'Qual a relação entre diferenciação social e hierarquia política nas sociedades modernas?'"

18. Vide Aron, The Opium of the Intellectwds (Londres, 1957).

As novas distinções e refinamentos no conceito de elite exigem uma terminologia mais apurada do que a utilizada até agora. 19

19. Isso foi também proposto por Raymond Aron em seu artigo "Classe sociale, classe politíque, classe dirigeante", European Journal of Sociology, I (2), 1960; e sigo suas sugestões até certo ponto.

O termo "elite(s)" é hoje em dia em geral aplicado, na verdade, referindo-se a grupos funcionais, sobretudo ocupacionais, que possuem

status elevado (por uma razão qualquer) em uma sociedade. Daqui em

diante eu o utilizarei, sem restrições, com este significado. O estudo de tais elites é proveitoso em vários sentidos: o tamanho das elites, seu número, seu relacionamento entre si e com os grupos possuidores de poder político, estão entre os fatos mais importantes a serem considerados na distinção entre diversos tipos de sociedade e na consideração das causas de modificações na estrutura social; assim também o caráter aberto ou fechado das elites, ou, em outras palavras, a forma de recrutamento de seus membros e o conseqüente grau de mobilidade social. Visto como o termo geral "elite" será empregado referindo-se a esses grupos funcionais, necessitaremos de outro para designar a minoria que dirige uma sociedade, a qual não é exatamente um grupo funcional, nesse sentido, e de qualquer maneira possui tão grande importância social que merece uma denominação que a distinga. Utilizarei o termo empregado por Mosca, "classe política", para referir-me a todos os grupos que exercem poder ou influência política e estão diretamente empenhados em disputas pela liderança política. Distinguirei

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no seio da classe política um grupo menor, a elite[16] política, compreendendo os indivíduos que efetivamente exercem o poder político em uma sociedade em qualquer época. A extensão da elite política é, portanto, relativamente fácil de ser determinada: incluirá membros do governo e da alta administração, chefes militares, e, em alguns casos, famílias politicamente influentes de uma aristocracia ou casa real e dirigentes de poderosos empreendimentos econômicos. É menos fácil estabelecer os limites da classe política. Incluirá, evidentemente, a elite política, mas poderá também abranger "contra-elites", compreendendo os chefes de partidos políticos que estão fora do governo e representantes de novos interesses sociais ou classes (e.g., líderes sindicais), bem como grupos de homens de negócios e intelectuais ativos politicamente. A classe política, portanto, compõe-se de muitos grupos que podem estar empenhados em diversos níveis de cooperação, competição ou conflito entre si.

O conceito de elite política foi apresentado por Mosca e Pareto como um termo-chave em uma nova ciência social,20 mas possuía outra faceta, um pouco menos evidente em suas obras; isto é, fazia parte de uma doutrina política que se opunha ou tomava uma atitude crítica em relação à democracia moderna, e ainda mais em relação ao socialismo moderno. 21

20. Ambos os autores insistiam muito no caráter positivo, científico, de seus estudos, e seus méritos nesse sentido foram reconhecidos por James Burnham em The

Machiavellians.

21. A crítica das doutrinas e movimentos socialistas constitui uma faceta proeminente de Political Parties de Robert Michels, o qual será examinado adiante.

C. J. Friedrich chamou a atenção para o fato de que as doutrinas européias do século XIX acerca da supremacia de uma elite de indivíduos

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superiores — doutrinas que abrangiam a filosofia do herói de Carlyle e a visão do super-homem de Nietzsche. assim como os estudos mais prosaicos de Mosca, Pareto e Burckhardt — eram "todas fruto de uma sociedade contendo ainda muitos vestígios feudais" e representavam diferentes tentativas para reviver antigas noções de hierarquia social e erigir obstáculos contra a propagação de idéias democráticas.22

22. CarI J. Friedrich, The New Image of the Common Man.

O ambiente social em que surgiram tais doutrinas é definido de forma ainda mais[17] categórica por G. Lukács, que sugere ter sido o problema da liderança política levantado por sociólogos precisamente naqueles países que não tiveram sucesso no estabelecimento de uma autêntica democracia burguesa (i.e., onde os elementos feudais eram especialmente resistentes). Lukács aponta o conceito de "carisma" de Max Weber (na Alemanha) e o conceito de "elite" de Pareto (na Itália) como manifestações semelhantes, típicas dessa mesma preocupação.23

23 G. Lukács, Dte Zerstönung der Vernunft.

A oposição entre a noção de elites e a de democracia pode ser expressa de duas formas: primeiro, a insistência, nas teorias das elites, na desigualdade de atributos individuais choca-se com um elemento fundamental do pensamento político democrático, o qual prefere acentuar a igualdade básica dos indivíduos; e, segundo, a idéia de uma minoria governante contradiz a teoria democrática de governo da maioria. Todavia, essa oposição não precisa de maneira alguma ser tão rígida e extremada quanto parece à primeira vista. Se a democracia for encarada, antes de tudo, como um sistema político, pode ser argumentado, como muitos têm feito, que o "governo pelo povo" (i.e., sob a direção de fato da maioria) é impossível na prática, e o sentido da

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democracia política estará sobretudo em que as posições de poder na sociedade encontram-se abertas em princípio para todos, que há competição pelo poder, e seus detentores precisam estar em condições de prestar contas do seu exercício a qualquer momento perante o eleitorado. Schumpeter apresentou essa imagem da democracia, a qual tem sido a partir de então amplamente aceita, quando definiu o método democrático como "o sistema institucional para a tomada de decisões políticas no qual certos indivíduos adquirem o poder de decisão por meio de uma luta competitiva pelo voto popular". 24

24. J. A. Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy.

De forma semelhante, Karl Mannheim, que anteriormente vira nas idéias dos teóricos das elites uma justificativa irracional da "ação direta" e da subordinação incondicional a um líder, 25 veio mais tarde a considerar tais teorias compatíveis com a democracia: "... a formulação efetiva da política governamental está nas mãos de elites.

25. Karl Mannheim, Ideology and Utopia (1929, tradução inglesa 1936), p. 119.

[18]Porém isso não significa que a sociedade não seja democrática, pois basta para caracterizar uma democracia que os cidadãos, embora impossibilitados de participar diretamente do governo o tempo todo, tenham ao menos a possibilidade de tornar suas aspirações sentidas em intervalos regulares".26

26 . Idem, Essays on the Sociology of Culture.

Além do mais, pode-se argumentar igualmente bem que mesmo sendo a democracia encarada como abrangendo mais de um sistema político, ainda é compatível com teorias de elites, pois a idéia de igualdade, que na democracia como uma forma de sociedade é possível

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considerar implícita, pode facilmente ser reinterpretada como "igualdade de oportunidades". A democracia será então vista como um tipo de sociedade em que as elites — econômica e cultural, além de política — são em princípio "abertas", e de fato recrutadas em diferentes estratos sociais na base do mérito individual. Essa concepção do lugar das elites em uma democracia é na verdade sugerida pela teoria da circulação das elites, e é explicitamente afirmada nos trabalhos de Mosca.

Neste ponto é necessário acentuar que ambas as concepções discutidas — a da competição política e a da igualdade de oportunidades — podem ser apresentadas como corolários da teoria econômica liberal ou do laissez-faire. Schumpeter tinha plena consciência disso: "Essa noção (de luta competitiva pela liderança política) apresenta dificuldades semelhantes às da competição na esfera econômica, com a qual é válido compará-la". 27

27. J. A. Schumpeter, op. cit., p.271.

Um autor mais recente apresentou essa conexão de forma ainda mais categórica: "... a teoria das elites é, essencialmente, apenas um refinamento do laissez-faire social. A doutrina da oportunidade de educação é apenas uma silhueta da doutrina do individualismo econômico com sua ênfase na competição e no avançar por si". 28

28. Raymond Williams, Culture and Society (Penguin Books edit), 236.

Em certo sentido, portanto, as teorias das elites de Pareto e Mosca não eram (e as de seus sucessores não o são agora) irreconciliáveis com a idéia geral de democracia. Seu antagonista inicial e mais importante era de fato o socialismo[19], especialmente o socialismo marxista. Como

escreveu Mosca: "No mundo em que vivemos o socialismo só será detido se uma Ciência Política realista for bem sucedida na demolição dos

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métodos metafísicos e otimistas que atualmente prevalecem nos estudos sociais..." Esta "ciência realista", que Pareto, Weber, Michels e outros ajudaram a promover de diferentes maneiras, propunha-se, acima de tudo, refutar em dois pontos básicos a teoria de classes sociais de Marx: primeiro, provando que o conceito marxista de "classe dominante" é errôneo, ao demonstrar a contínua circulação de elites que impede, na maioria das sociedades, e especialmente nas modernas sociedades industriais, a formação de uma classe dominante estável e fechada; e, segundo, mostrando ser impossível uma sociedade sem classes, pois em toda sociedade precisa haver uma minoria que efetivamente a governe. Como nota Meisel, bem a propósito: "Elite era inicialmente um conceito da classe média... (Na teoria marxista)... o proletariado será a classe que por fim introduzirá a sociedade sem classes. Não é verdade. Pelo contrário, a história de todas as sociedades, do passado e do futuro, é a história de suas classes dominantes... sempre haverá uma classe dominante, e portanto sempre haverá exploração. Essa é a faceta anti-socialista e, especificamente, anti-marxista, da teoria das elites, como ela se revela na última década do século XIX".29

29. J. H. Meisel, op. cit., p. 10.

As teorias das elites também se opõem às doutrinas socialistas de maneira mais geral, substituindo a noção de uma classe que domina em virtude de seu poder econômico ou militar pela noção de uma elite que domina devido às qualidades superiores de seus membros. Como diz Kolabinska, "... a principal idéia transmitida pelo termo elite é a de superioridade... " 30

30. M. Kolabinska, op. cít., p. 5. S. F. Nadei, em seu ensaio sobre "The Concept of Social Elites", International Social Science Bulletin VIII (3), 1956, acentua, também, a

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"superioridade social" como o traço que caracteriza uma elite, sem perceber o elemento ideológico contido nessa concepção.

Essas reflexões sobre os componentes ideológicos das teorias das elites provocam novas indagações. É possível, como já observei, conciliar a noção de elites com as teorias sociais democráticas. [20] Todavia, os primeiros expoentes das teorias das elites eram sem dúvida hostis à democracia (embora Mosca tenha mudado em parte de opinião após a sua experiência de governo fascista na Itália, tornando-se um cauteloso defensor de alguns aspectos do governo democrático), e essa hostilidade é ainda mais pronunciada no caso daqueles, como Carlyle e Nietzsche, que apresentaram mitos sociais, e não teorias políticas científicas. Como se explica isso? Em primeiro lugar, há o fato de que esses pensadores do século XIX concebiam a democracia de maneira diferente, como um estágio na "revolta das massas", levando necessariamente, ao que tudo indicava, para o socialismo. Criticando a democracia, estavam, portanto, de forma indireta, combatendo o próprio socialismo. Deve-se notar, além do mais, terem tido os próprios teóricos das elites uma importante influência no aparecimento das novas definições de democracia, como a de Schumpeter, consideradas compatíveis com a noção de elites. Essas contribuições ao pensamento social, que afetam nossas concepções modernas tanto de democracia quanto de socialismo, serão examinadas mais atentamente em um capítulo posterior.

Outra característica das teorias das elites tem ressurgido em muitas teorias sociais recentes dirigidas contra o socialismo. É que, embora essas teorias critiquem o determinismo que se observaria especialmente no marxismo, elas próprias tendem a estabelecer um tipo de determinismo igualmente rígido. O argumento fundamental dos teóricos das elites não é apenas que toda sociedade conhecida dividiu-se em dois estratos — uma minoria dominante e uma maioria que é dominada —

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mas que todas as sociedades não podem deixar de ser assim divididas. Em que sentido essa afirmação é menos determinista que o marxismo? Sejam os homens obrigados a atingir a sociedade sem classes, sejam necessariamente impedidos de fazê-lo, não estarão sendo igualmente tolhidos? Pode-se argumentar não serem casos idênticos: os teóricos das elites estariam apenas excluindo a possibilidade de uma forma de sociedade, deixando em aberto outras possibilidades (e Mosca sustentou ser mais fácil nas Ciências Sociais prever o que nunca acontecerá do que prever exatamente o que acontecerá); enquanto os marxistas predizem que uma forma particular de sociedade necessariamente surgirá. No entanto, pode-se também dizer que os teóricos das[21] elites — e em especial Pareto — afirmam que um tipo de sociedade política é universal e necessário, e que os marxistas negam a validade universal desta "lei de elites e massas" e insistem na liberdade humana de imaginar e criar novas formas de sociedade. Em suma, em ambas as teorias existe um componente de determinismo social que pode ser mais ou menos acentuado.

Menciono essa questão agora apenas para trazer à baila a conexão entre os aspectos ideológico e teórico da noção de elites. Tal noção refere-se a um fenômeno social observável e insere-se em teorias que procuram explicar acontecimentos sociais, em especial mudanças políticas. Ao mesmo tempo, surge no pensamento social em uma época e em circunstâncias que imediatamente lhe conferem relevância ideológica na disputa entre o liberalismo econômico e o socialismo, e se propaga amplamente por entre doutrinas possuidoras de um propósito ideológico declarado. Mesmo mais tarde, mesmo em nossa era, que, segundo se afirma, seria pós-ideológica, o conceito não pode ser considerado simplesmente como uma elaboração científica. Isso porque todo conceito e toda teoria sociológica possuem uma força ideológica, devido a sua

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influência sobre os pensamentos e ações dos homens em sua vida cotidiana. Essa influência pode dar-se seja porque o conceito está impregnado por uma doutrina social, seja porque, embora exclua qualquer influência doutrinal imediata, chame a atenção e destaque certos aspectos da vida social em detrimento de outros, e assim convença os homens a conceber sua condição e seu possível futuro através de uma determinada série de termos, e não de outra. Criticar um esquema conceptual ou uma teoria em seu aspecto ideológico não significa, portanto, simplesmente mostrar sua conexão com uma doutrina mais ampla do homem e da sociedade, e opor-lhe outra doutrina social; é também, ou principalmente, chamar a atenção para as limitações científicas dos conceitos e teorias, e propor novos conceitos e teorias mais verdadeiros ou mais adequados à descrição daquilo que realmente se dá na esfera da sociedade. Daqui em diante, preocupar-me-ei, em princípio, exatamente com um exame crítico da noção de elites nesse sentido, e somente no final do livro voltarei a uma discussão das doutrinas sociais rivais expressas imperfeitamente através das teorias científicas.

[22]CAPÍTULO II

Da Classe Dominante à Elite do Poder

A preocupação demonstrada por Mosca e Pareto na criação de uma nova ciência da política foi provocada, como vimos, por sua oposição ao socialismo, e, especialmente, à teoria social de Marx. a qual dera ao movimento operário em ascensão uma energia intelectual e uma autoconfiança notáveis. Será essa nova ciência dos "maquiavelistas",

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como os denominou James Burnham,1 superior à teoria de classes sociais

e de conflito de classes de Marx?

1. James Burnham, The Machiavellians.

A teoria marxista pode ser sintetizada nas seguintes proposições: I) em toda sociedade, a não ser as mais primitivas, podem-se distinguir duas categorias de pessoas:

a) uma classe dominante; b) uma ou mais classes a ela sujeitas.

II) a supremacia da classe dominante é explicada pela posse dos principais instrumentos de produção econômica, mas a sua dominância política é consolidada pelo controle que passa a exercer sobre a força militar e a produção de idéias.

III) há um conflito permanente entre a classe dominante e a classe ou classes a ela sujeitas; e a natureza e o sentido[23]desse conflito é influenciado, antes de mais nada, pelo desenvolvimento das forças produtivas, i.e., por mudanças tecnológicas.

IV) as linhas divisórias do conflito de classes são definidas com maior nitidez nas modernas sociedades capitalistas. Em tais sociedades, a divergência de interesses econômicos aparece mais claramente, sem ser toldada por quaisquer laços pessoais, tais como os da sociedade feudal, e o desenvolvimento do capitalismo traz consigo uma polarização de classes mais radical do que jamais se deu em qualquer tipo de sociedade, devido à concentração de riquezas sem paralelo em um extremo da sociedade, e de pobreza no outro, e à eliminação gradativa dos estratos sociais intermediários e de transição.

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V) a luta de classes na sociedade capitalista terminará com a vitória da classe operária, e a essa vitória seguir-se-á a edificação de uma sociedade sem classes. Uma série de razões são apresentadas para justificar a crença no advento de uma sociedade sem classes. Primeiro, a tendência do capitalismo moderno é para a criação de uma classe trabalhadora homogênea, da qual é improvável surgirem novas divisões sociais no futuro. Segundo, a própria luta revolucionária dos trabalhadores cria a cooperação e um sentimento de fraternidade, e esse sentimento é fortalecido pelas doutrinas morais e sociais produzidas pelo movimento revolucionário, e que foram absorvidas pelo próprio pensamento de Marx. Terceiro, o capitalismo cria as pré-condições materiais e culturais para uma sociedade sem classes — as condições materiais devido a sua imensa produtividade, a qual torna possível a satisfação das necessidades básicas de todos os homens e acaba com o extremo rigor da luta pela sobrevivência física, e as condições culturais, superando a "idiotice da vida rural", promovendo a alfabetização, difundindo o conhecimento científico e envolvendo a massa popular na vida política.

A teoria de Marx era a mais inteligível e sistemática proposta até aquela época nas Ciências Sociais, e, olhando em retrospecto, não é de surpreender que tenha dominado o pensamento social durante os últimos cem anos e influenciado tanto o crescimento do movimento operário. Nem é, tampouco, surpreendente[24], por outro lado, que a audácia e a extensão de suas generalizações, bem como a doutrina revolucionária que se afirmava basear-se nelas, atraíssem tantas críticas, as quais têm seguido linhas de raciocínio diversas. Em um dos níveis, a interpretação econômica da História é atacada em termos muito gerais, como uma teoria unicausal, possivelmente incapaz de abarcar toda a complexidade

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das mudanças históricas. Tanto Mosca quanto Pareto utilizaram-se desse argumento, porém no decorrer de sua crítica ampliaram indevidamente o suposto âmbito da teoria marxista. Marx não disse que todas as mudanças sociais e culturais podiam ser explicadas por fatores econômicos. Pretendia estabelecer que os principais tipos de sociedade, principalmente os compreendidos dentro da área da civilização européia, poderiam ser distinguidos através de seus sistemas econômicos e que as mudanças sociais mais importantes de um tipo de sociedade para outro encontrariam sua melhor explicação nas mudanças de atividades econômicas, trazendo consigo novos grupos sociais com novos interesses. Uma crítica mais séria à teoria de Marx consistiria em demonstrar que um ou mais dos principais tipos de sociedade por ele definidos surgiram, mantiveram-se ou declinaram devido à ação de fatores não-econômicos. É o que pretendeu Schumpeter, por exemplo, quando chamou a atenção para a dificuldade em explicar o advento do feudalismo europeu através de fatores econômicos e para a tendência das instituições sociais a manter a sua forma em circunstâncias econômicas novas. "As estruturas, tipos e atitudes sociais são moedas que não se fundem com facilidade. Uma vez existentes, persistem, possivelmente séculos; e como diferentes estruturas e tipos apresentam diferentes graus dessa habilidade para sobreviver, quase sempre vamos verificar que o comportamento real dos grupos e nações afasta-se, mais ou menos, do que imaginaríamos ser, caso tentássemos inferi-lo das formas dominantes do processo produtivo. Embora isso tenha aplicação geral, é verificado mais claramente quando uma estrutura extremamente durável transfere-se em bloco de um país para outro... Um caso semelhante a esse possui um significado mais dramático. Considere-se o surgimento do tipo feudal de propriedade agrária no reino dos francos durante os séculos VI e VII. Constituiu-se, sem dúvida, em um

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acontecimento dos mais importantes, que moldou a estrutura da sociedade por muito[25] tempo e influenciou, igualmente, as condições

de produção, inclusive as necessidades e a tecnologia. Porém sua

explicação mais simples é encontrada no exercício de funções de liderança militar anteriormente executadas pelas famílias e indivíduos que (embora mantendo essas funções) tornaram-se senhores feudais após a conquista definitiva do novo território". 2

2. J. A. Schumpeter, Caplialism, Socialism and Democracy pp. 12-13.

A emergência de sociedades feudais na Europa e em outros lugares constitui, realmente, um difícil problema para a teoria marxista, pois embora essas sociedades possam ser consideradas resultantes imediatas de uma combinação de tradições de chefia militar com a propriedade da terra em larga escala em uma sociedade agrária estabilizada (e não podendo assim serem inteiramente excluídas do âmbito de uma interpretação econômica da História) surgem, entretanto, fundamentalmente, como criações políticas que aparecem em resposta à desintegração de impérios centralizados.

Uma crítica ainda mais contundente à teoria de Marx, dentro dessa mesma linha de raciocínio, seria uma que lançasse dúvidas acerca da interpretação econômica das origens do moderno capitalismo, i.e., dúvidas sobre a explicação exatamente da transição de um tipo de sociedade para outro que Marx examinou com maior detalhe e que supunha fornecer evidência convincente para a sua teoria. A mais conhecida dessas críticas é a tentativa de Weber para demonstrar, em A

Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que o desenvolvimento do

capitalismo moderno exigiu, além das mudanças econômicas e da formação de uma nova classe, como afirmara Marx, uma mudança radical nas atitudes dos homens em relação ao trabalho e à acumulação

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de riquezas, o que foi realizado pela religião protestante. Weber fez uma série de ressalvas ao seu argumento — inclusive reconheceu que as doutrinas protestantes eram aceitas, em geral, por aqueles grupos sociais já empenhados em atividades econômicas capitalistas -7- mas de qualquer maneira representa uma tentativa de refutação de Marx, enquanto nega ter a mudança do feudalismo para o capitalismo ser devido somente, ou principalmente, a fatores econômicos. Entretanto, seria a própria tese de Weber válida? Ela tem sido criticada em vários sentidos:[26] seria historicamente inexata na descrição da ética protestante e na apresentação das conexões entre o protestantismo e o empreendimento capitalista; e, de maneira mais geral, não forneceria uma explicação própria para o surgimento do capitalismo. Para isso, Weber teria que mostrar não só que a ética protestante constituiu-se em um elemento significativo na formação de novas atitudes econômicas, mas também que nenhuma das outras idéias que estavam germinando nos círculos da burguesia poderia ter servido aos mesmos propósitos, e que o incidente histórico da Reforma foi portanto essencial para o desenvolvimento do capitalismo. Nos últimos anos tem-se atribuído um valor mais modesto à tese de Weber, o qual reside no fato de destacar mais do que na teoria de Marx (apesar da análise marxista do utilitarismo como a ideologia da burguesia) a influência das ideologias no acelerar ou retardar as mudanças sociais. Hoje em dia estamos em condições de julgar melhor a importância do papel das ideologias na mudança social, pois já possuímos a experiência dos resultados do próprio marxismo como uma ideologia que auxilia tremendamente a industrialização rápida, bem como, por outro lado, a influência retardadora de crenças tradicionais em países subdesenvolvidos como a Índia.

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O valor do conceito marxista de classe dominante depende da comprobabilidade de sua teoria social geral. Se essa teoria não for universalmente válida, pode-se conceber uma classe dominante originando-se do poder militar, ou, nos tempos modernos, do poder de um partido político, tanto quanto da posse dos meios de produção. Pode-se insistir, entretanto, em que a consolidação de uma clasPode-se dominante requer a concentração dos vários tipos de poder — econômico, militar e político — e que de fato, na maioria das sociedades, a formação dessa classe se inicia com a aquisição do poder econômico. Porém isso levanta uma questão ainda mais fundamental acerca da noção de classe dominante. Será que em toda sociedade, a não ser a mais simples e primitiva, essa concentração de poder ocorre, forma-se uma classe dominante? É bom que se diga desde logo que diferentes tipos de sociedade adaptam-se em grau variável ao modelo marxista de uma sociedade nitidamente dividida em uma classe dominante e em classes dominadas. O caso mais favorável é provavelmente o do feudalismo europeu, caracterizado[27] pelo domínio de uma classe guerreira 3 que mantinha segura em suas mãos a posse da terra, da força militar e da autoridade política, e recebia o apoio ideológico de uma poderosa Igreja. Entretanto, mesmo nesse caso há necessidade de se fazer uma série de restrições.

3. Vide Marc Bloch, Feudal Society, Vol. II, 3.a parte, cap. I.

A idéia de uma coesa classe dominante está em contradição com a descentralização do poder político característico das sociedades feudais,4 e quando essa descentralização foi superada — nas monarquias absolutas — as sociedades européias já não eram dominadas, strictu

sensu, por uma nobreza guerreira.

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Apesar disso, a nobreza do ancien regime realmente se aproxima do tipo ideal de classe dominante. Outro caso que se adapta bem, em muitos sentidos, ao modelo marxista, é o da burguesia dos primórdios do capitalismo. O desenvolvimento da burguesia como uma importante classe social pode ser bem explicada em função de mudanças econômicas, e sua ascensão na esfera econômica foi acompanhada pela aquisição de outras posições de poder e prestígio na sociedade — na política, na administração, nas forças armadas e no sistema educacional. Essa conquista de poder nas diferentes esferas da sociedade foi um processo longo e confuso, com muitas variações locais nos diversos países europeus; e o modelo de Marx era uma abstração retirada da complexa realidade histórica, combinando as experiências da revolução na França — a mais violenta expressão ideológica e política da ascensão de uma nova classe — com as da revolução industrial na Inglaterra. Entretanto, o quadro geral de acontecimentos adapta-se bastante ao esquema de Marx. Na Inglaterra, a Lei de Reforma de 1832 deu poder político à burguesia e produziu mudanças no espírito da legislação, apesar de não modificar ainda, durante bastante tempo, a composição social do Parlamento ou dos gabinetes. 5

5. Ver W. L. Guttsman, The Brítish Political Elite, cap.3 — "The changing social structure of the British politícal elite: 1868-1955".

A reforma do serviço público, a partir de 1855, abriu o caminho para os aspirantes aos mais altos postos administrativos oriundos da classe média superior.6

6. Ver J. Donald Kingsley, Representatíve Bureaucracy, especialmente cap. III — "Middle Class Reform: the Triumph of Plutocracy". Kingsley conclui que "em 1870 as classes médias já haviam destruído o ancien regime em quase todas as frentes, [mas] os principais avanços haviam sido realizados pelas camadas superiores

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dessas classes. Na Câmara dos Comuns ricos comerciantes, banqueiros, industriais, estavam desalojando os proprietários de terra, e começariam, antes que se passassem muitos anos, a substituí-los no gabinete. No serviço público ocorrera uma transformação semelhante, O acesso aos postos mais altos já não dependia de influência aristocrática. A chave que agora abria a porta era uma educação dispendiosa que ... emprestava ao novo sistema um 'caráter plutocrático'." (p. 76).

E o desenvolvimento da[28] rede de escolas públicas criou novas oportunidades para os filhos das novas famílias ricas da indústria e do comércio serem preparados para posições de elite. A burguesia recebeu também, de acordo com Marx, poderoso apoio ideológico dos economistas políticos e dos filósofos utilitaristas.

No entanto, a burguesia parece ser, em vários sentidos, uma classe dominante menos coesa que a nobreza feudal. Não acumula, de fato, nas mesmas pessoas, o poder militar, político e econômico, e passa a existir a possibilidade de conflitos de interesse entre os diferentes grupos que

representam (como diz Marx) a burguesia. Além do mais, a sociedade

capitalista é mais aberta e sujeita a variações do que era a sociedade feudal, e, especialmente na esfera ideológica, com o desenvolvimento de ocupações intelectuais seculares, podem surgir doutrinas conflitantes. Marx esperava que a polarização das duas principais classes — a burguesia e a classe trabalhadora industrial — acompanhasse o desenvolvimento do capitalismo, e o domínio da burguesia tornar-se-ia mais manifesto e oneroso. Porém, nas sociedades capitalistas avançadas, tal não se deu: as diferentes esferas de poder parecem ter-se tornado mais autônomas e as fontes de poder mais numerosas e variadas. A oposição entre as "duas grandes classes" da teoria de Marx foi modificada pelo crescimento das novas classes médias e por uma diferenciação muito mais complexa de ocupação e status. E a dominação política tem-se tornado, de maneira geral, muito mais suave e menos policialesca. Um fator importante no desenvolvimento desse estado de

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coisas foi a introdução do sufrágio adulto universal, que produz, teoricamente, uma separação entre o poder econômico e o político. O próprio Marx considerava o sufrágio universal como uma medida

revolucionária, e que transferiria[29] o poder político para a classe

trabalhadora.7

7. Karl Marx, "The Chartísts", New Yorfe Daily Tribune, 25 de agosto de 1852. "Examinaremos agora os cartistas, a. facção politicamente ativa da classe trabalhadora inglesa. Os seis pontos da Carta pela qual se batem nada contêm além da exigência do sufrágio universal e das condições sem as quais o sufrágio universal seria ilusório para a classe trabalhadora, tais corno o voto secreto, o pagamento dos membros e eleições gerais anuais. Porém, o sufrágio universal, na Inglaterra, eqüivale à posse do poder político pela classe trabalhadora, pois lá o proletariado constitui a grande maioria da população, tendo ganho, através de uma longa, embora clandestina, guerra civil, uma consciência clara de sua posição como classe, e até nos distritos rurais já não existem camponeses, mas apenas senhores de terra, capitalistas industriais (fazendeiros) e assalariados. O sufrágio universal na Inglaterra seria uma medida de caráter muito mais socialista, portanto, que qualquer uma que tenha sido assim considerada no Continente. Sua conseqüência inevitável, nesse caso, seria a supremacia política da classe trabalhadora".

Assim, enquanto a conexão entre o poder econômico e o político pode ser facilmente constatada no caso da sociedade feudal, ou no caso dos primeiros tempos do capitalismo com a limitação dos direitos políticos aos proprietários, não pode ser tão facilmente estabelecida nas modernas democracias capitalistas, e a noção de uma classe dominante definida e estabelecida torna-se dúbia e obscura. Os fundamentalistas marxistas, em suas tentativas de manter a teoria social de Marx intacta, têm sido obrigados a argumentar que mesmo nas democracias políticas a burguesia, na verdade, sempre domina, através da influência indireta da riqueza; mas isso é mais fácil dizer do que demonstrar.

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Essas são, em resumo, algumas das principais dificuldades apresentadas pela concepção de Marx de classe dominante. Seu valor reside na tentativa rigorosa de analisar as fontes do poder político e explicar as mudanças fundamentais de regime político. Com o auxílio dessa concepção, Marx foi bem sucedido ao expressar de forma mais exata uma idéia que ressurge continuamente no pensamento popular e em teoria social: ou seja, que uma das principais características estruturais das sociedades humanas é a divisão em um grupo dominante e explorador, por um lado, e outros grupos, dominados e explorados, por outro.8

8. Cf. Stanislaw Ossowski, Class Strttcture in the Social Consciousness, cap. II (N. do T.: Traduzido por esta editora, em 1964, sob o titulo Estrutura de

Classes na Consciência Social).

[30]Foi ainda bem sucedido ao fornecer uma explicação das causas dessa divisão, juntando em uma impressionante síntese uma massa de fatos econômicos, políticos e culturais, até então não relacionados, e ao explicar as mudanças na estrutura social pela ascensão e queda das classes. O conceito de "elite governante" ou "classe política" foi proposto como uma alternativa; em parte, como vimos, para demonstrar a impossibilidade de se atingir uma forma de sociedade sem classes, mas também para fazer frente às dificuldades teóricas que acabamos de considerar. O conceito de elite governante evita, principalmente, o problema de demonstrar que uma determinada classe, definida em termos de sua posição econômica, domina de fato todas as esferas da vida social; porém só atinge esse objetivo em troca do abandono de qualquer tentativa de explicar o fenômeno a que se refere. A elite governante, de acordo com Mosca e Pareto, compreende os ocupantes das posições reconhecidas do poder político em uma sociedade. Assim,

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quando perguntamos quem tem poder em uma determinada sociedade, a resposta é aqueles que possuem poder, i.e., os ocupantes das posições que implicam a posse de poder. Isso quase nada esclarece. Não nos ex-plica como esses determinados indivíduos vêm a ocupar as posições de poder. Ou, então, pode ser até enganador, caso, por exemplo, aqueles que parecem ter poder no sistema formal de governo são de fato sujeitos ao poder de outros indivíduos, ou grupos, fora desse sistema. Tampouco serve muito essa noção de elite governante para explicar as mudanças políticas. A teoria de circulação de elites de Pareto, a ser examinada no próximo capítulo, baseia-se em afirmações sobre a distribuição de características psicológicas em uma população que apresentam numerosas dificuldades, e que permanecem sem ter sido testadas inclusive no próprio trabalho de Pareto. Mosca, por outro lado, quando considera os problemas de mudança política, é obrigado a introduzir a noção de "forças sociais" (i.e., importantes interesses na sociedade) como a origem de novas elites; e, como Meisel já comentou, isso "aproxima-o incomodamente de Marx". 9

9. J. H. Meisel, op. ctí.

As dificuldades apresentadas pelo conceito de elite governante podem ser percebidas bem claramente em um recente trabalho[31] que mostra a influência tanto de Marx, por um lado, quanto de Mosca e Pareto, por outro — The Power Elite * do falecido C. Wright Mills.

* N. do T.: Já traduzido por esta editora com o título de A Elite do Poder.

Mills explica sua preferência pelo termo "elite do poder" ao invés de "classe dominante" dizendo: " 'Classe dominante' é uma expressão mal construída. 'Classe' é um termo econômico; 'domínio', um termo político. A expressão 'classe dominante', assim, subentende a idéia de que uma

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classe econômica domina politicamente. Essa teoria simplista pode ou não, por vezes, ser verdadeira, mas não queremos, exatamente por ser um tanto simplificadora, supô-la nos termos que utilizarmos para definir nossos problemas; queremos formular as teorias explicitamente, usando termos de sentido mais preciso e não-ambíguo. No caso, o termo 'classe dominante', em suas conotações políticas usuais, não dá suficiente autonomia à ordem política e seus agentes, e não se refere aos militares como tais . .. Acreditamos que uma visão tão simples de 'determinismo econômico' precisa ser completada por um 'determinismo político' e um 'determinismo militar'; que os agentes maiores de cada um desses três domínios hoje possuem comumente um grau de autonomia considerável; e somente em formas muitas vezes intrincadas de coalizão tomam e levam adiante as decisões mais importantes".10

10. op. cit., p. 277.

Mills define a elite do poder de maneira semelhante a Pareto a sua "elite governante", pois diz: "podemos definir a elite do poder em termos dos meios de poder como aqueles que ocupam os postos de comando".11

11. op. cit., p. 23.

Mas a análise que deriva dessa definição possui diversos aspectos pouco satisfatórios. Em primeiro lugar, Mills distingue três elites fundamentais nos Estados Unidos — os dirigentes de empresa, os líderes políticos e os chefes militares — e é obrigado a ir adiante e indagar se esses três grupos juntos formam uma única elite do poder, e, se assim for, o que os une. Uma possível resposta a essas perguntas seria dizer que esses grupos formam realmente uma única elite, pois são representantes de uma classe alta que, conseqüentemente, terá de ser considerada uma classe dominante. Porém Mills,[32] embora acentue

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que a maioria dos membros dessas elites é de fato retirada de uma classe alta reconhecida socialmente, afirma de início que deixará em aberto a questão de averiguar se é ou não essa classe que domina através das elites; e quando volta ao problema é apenas para rejeitar, na curta passagem citada acima, a idéia marxista de uma classe dominante. Em suma, o problema não chega a ser discutido seriamente, e isso é uma falha curiosa no caso particular que Mills examina, e no contexto das idéias que expressa. Ele rejeitara, anteriormente, o ponto de vista segundo o qual se dá um controle popular sobre a elite do poder através do voto e outros meios, e acentuara a unidade da elite bem como a homogeneidade de suas origens sociais — e tudo isso aponta para a consolidação de uma classe dominante. A formulação que de fato fornece é vaga e não convence: é uma referência à "coincidência muitas vezes instável do poder econômico, militar e político", coincidência essa que se propõe explicar, em grande parte, pelas pressões do conflito internacional no qual a América está envolvida.

Essas questões têm sido freqüentemente levantadas em críticas a Pareto e a Mosca. Assim, Carl J. Friedrich observou que uma das partes mais problemáticas de todas as doutrinas de elites é a suposição de constituírem os homens do poder um grupo coeso: "À luz da mudança contínua na composição da maioria, não é possível dizer, em condições tais como as que prevalecem em uma democracia atuante, que aqueles que representam um papel considerável no governo constituem um grupo coeso".12

12. Carl J. Friedrich, The New Image of the Common Man, pp. 259-60.

Essa visão da elite nas democracias modernas tem sido muito disseminada. Ela é ousadamente formulada nas conclusões de um recente estudo do estrato superior da sociedade britânica: "... os

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dirigentes não formam absolutamente um todo coeso ou unido. Não estão no centro de um sistema solar, mas sim em um conglomerado de círculos encadeados, cada um preocupado, antes de mais nada, com a sua própria profissão e especialidade, tocando-se apenas em uma das pontas... não constituem uma única Instituição, mas uma cadeia de Instituições, com poucas conexões. As fricções e o equilíbrio entre os diferentes círculos constituem o supremo guardião da democracia.[33] Nenhum indivíduo pode manterse no centro, pois não existe um centro".13

13. Anthony Sampson, Anatomy of Britain, p. 624.

Mills rejeita essa doutrina tão à moda liberal, a qual assim sintetiza: "Longe de serem onipresentes, as elites são consideradas tão dispersas que não possuem nenhuma coerência como força histórica..., Os ocupantes dos postos formais de autoridade são de tal forma mantidos em xeque-mate pelas outras elites exercendo pressão, pelo público como eleitorado ou por códigos constitucionais — que, embora possa haver classes altas, não há classe dominante; embora possa haver homens de poder, não há uma elite do poder; embora possa haver um sistema de estratificação, este não possui, de fato, uma cúpula".14

14. op. cit., pp. 16-17.

Como vimos, ele insiste em que as três principais elites — econômica, política e militar — são, efetivamente, um grupo coeso, e sustenta seu ponto de vista estabelecendo a semelhança de suas origens sociais, os estreitos laços pessoais e familiares entre membros de diferentes elites, e a freqüência de intercâmbio de pessoal entre as três esferas. Porém, como resiste à conclusão de que esse grupo constitui uma classe dominante, torna-se incapaz de fornecer uma explicação convincente, e

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não apenas uma descrição, da solidariedade da elite do poder. Além do mais, eliminando a idéia de uma classe dominante, exclui também a de classes em oposição, chegando assim a uma visão extremamente pessimista da sociedade americana. A verdadeira temática de seu livro é, primeiro, a transformação de uma sociedade na qual numerosos e pequenos grupos tinham voz ativa na tomada das decisões políticas em uma sociedade de massa na qual a elite do poder decide todas as questões importantes e mantém as massas sossegadas através da bajulação, da mistificação e do entretenimento; e, segundo, a corrupção da própria elite do poder, atribuída principalmente a um estado de coisas em que ela não é responsável por suas decisões políticas perante um público organizado e, também, ao valor dominante de aquisição de riquezas. O relato de Mills das mudanças históricas, o qual de fato traz à luz alguns importantes aspectos da política moderna — a crescente influência política dos chefes militares, por exemplo — é pessimista, no sentido de não sugerir nenhuma[34] maneira de sair da situação que descreve e condena. Como Pareto e Mosca, Mills parece dizer que se olharmos para as sociedades modernas sem ilusões veremos que, por mais democráticas que sejam suas constituições, são de fato dominadas por uma elite; e parece acrescentar, de forma desoladora, ter a força dos acontecimentos, mesmo em uma sociedade tão favoravelmente situada em suas origens quanto os Estados Unidos — sem um sistema feudal de hierarquias, com uma igualdade de condição econômica e social- bem considerável entre seus cidadãos, e com uma ideologia fortemente democrática — produzido uma elite governante de poder e irresponsabilidade sem precedente. Mills difere dos demais maquiavelistas ao condenar um estado de coisas que os outros louvavam ou, com certa desilusão, aceitavam.

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