• Nenhum resultado encontrado

OBSERVATÓRIO FEMINISTA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS. Feminismos, gênero e agenda internacional: é possível uma diplomacia feminista?

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "OBSERVATÓRIO FEMINISTA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS. Feminismos, gênero e agenda internacional: é possível uma diplomacia feminista?"

Copied!
5
0
0

Texto

(1)

1

Feminismos, gênero e agenda internacional: é possível uma diplomacia feminista?

Beatriz Brandão Liz Cosmelli

O Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) votou, em julho desse ano, duas importantes resoluções para definir e assegurar o compromisso internacional dos Estados em relação aos direitos das mulheres. O principal foco do debate era o combate à discriminação e à violência de gênero, como a condenação

da prática de mutilação genital feminina.

No entanto, o Brasil solicitou na etapa de negociação que fossem retirados parágrafos inteiros que recomendavam o pleno acesso de mulheres à saúde e a direitos sexuais e reprodutivos. Essa orientação partiu do Itamaraty chefiado, atualmente, pelo Ministro das Relações Exteriores no Brasil, Ernesto Araújo.

Esse posicionamento demostra a resistência do governo federal em pautar temáticas legítimas de direitos humanos, gênero e sexualidade na política externa brasileira. E chama atenção para uma outra reflexão, o debate sobre uma agenda feminista e de igualdade de gênero para as relações exteriores.

A concepção da política, um espaço historicamente moldado de homens para homens, é constantemente associado a valores como racionalidade e objetividade. Valores esses socialmente relacionados a identidades masculinas. Assim como a Política Externa do Estado, que define o funcionamento da diplomacia, da economia, segurança, meio ambiente e justiça, entre outros, está ancorada como espaços de poder exclusivos aos homens. Dentro dessa perspectiva cabia às mulheres os espaços privados, como o lar, e características opostas aos homens, como afeto, cuidado e sensibilidade. Nesse sentido, é evidenciado a marginalização feminina na política. (BIROLI; MIGUEL, 2014).

Esse texto tem por objetivo recuperar um recorte do processo de admissão da mulher na diplomacia brasileira, partindo da premissa dessa ser uma conquista atrelada

(2)

2

aos movimentos feministas – tanto em suas vertentes teóricas quanto na ação política1. Trazemos à pauta o debate sobre uma agenda feminista e de igualdade de gênero para as relações exteriores, e em diálogo com o trabalho de Marina Mendes (2011) sobre mulheres diplomatas no Brasil, observa-se uma contínua necessidade de voltar ao ponto chave fundamental que é “como as lutas das mulheres tem contribuído para uma mudança real e estrutural nas relações de gênero estabelecidas em nossa sociedade”. (MENDES, 2011, p. 06).

O livro Itamaraty na cultura brasileira (COSTA E SILVA, 2002) traz já em seu prefácio a naturalização da carreira diplomática como tradicionalmente masculina. Escrito pelo ex ministro Celso Lafer diz trazer as mais representativas e expressivas figuras na cultura brasileira nos últimos dois séculos. No entanto, nem entre essas figuras e nem mesmo dentre os ensaístas do livro vemos a presença de mulheres. Seria esse um fato não dotado de importância que passe despercebido a todos? Dentre essas figuras dos últimos dois séculos nenhuma mulher teria feitos a se rememorar? Nem mesmo a primeira diplomata mulher, Maria José Rebello, que subverteu as ordens e óticas de uma época ao ser aprovada em primeiro lugar com 18 anos?

Essas são pretensas naturalizações que demarcam espaços, discursos e formas de pensar. Que permitem que aloquem e elenquem somente homens num histórico também dotado de mulheres, sem nenhum constrangimento social. Isso ocorre a despeito de diversas instituições se organizarem internacionalmente, como a ONU, OEA em prol de um aumento efetivo da presença da mulher nos espaços decisórios e de implementação de medidas políticas internacionais, sendo compreendida também uma forma de exercício da cidadania. (TABAK, 2002). Não há um descolamento de aceno democrático e luta cidadã sem que se leve em conta a incorporação feminina em tais esferas.

A história da chegada da mulher ao Itamaraty nos revela as irrelevantes oportunidades abertas a sua atuação. Antes, elas foram aceitas com enormes

resistências, deixando claro que aquela seria uma concessão aberta nos critérios da época. Mesmo frente a uma Constituição (a de 1891) que previa que “todos os brasileiros” poderiam postular cargos públicos, esse “todos” não estava interpretado para o gênero – nem mesmo o verbo - feminino. Após inscrições de mulheres serem recusadas a

1 Utilizo o feminismo no plural porque esse não pode ser encarado como um movimento homogêneo e

linear devido a suas várias correntes e vertentes. Para uma história do feminismo ver Bridenthal, Koonz & Stuard (1987); Duby, Perrot & Thebáud (1994); Scott (1994).

(3)

3

despeito da Constituição e só a partir d o aval de Nilo Peçanha, Maria Rebello Mendes foi aprovada em primeiro lugar, tornando-se a primeira diplomata brasileira.

Após anos de uma política discriminatória vigente, em 1954 o Itamaraty volta a abrir a oportunidade de acesso à carreira diplomática pelas mulheres. Essa entrada não prescindia de obstáculos jurídicos que prejudicavam a presença feminina no Itamaraty tais quais a proibição de casamento entre diplomatas e servidores públicos e a obrigatoriedade da chamada “agregação” para acompanhar cônjuge em missões no exterior, que, na prática, obrigava mulheres diplomatas a licenciar-se para acompanhar maridos também diplomatas.

As privações foram sendo revistas processualmente ao longo do século XX, no entanto, ainda hoje encontramos entraves, não mais da ordem jurídica, mas cultural e moral que incide nos cotidianos e nas relações sociais. Em comparação aos anos entre 1919 e 1938 tivemos apenas 19 mulheres ingressando no Itamaraty, esses números em 1953 e 2015 subiu para 427 mulheres, com uma correspondência de 20,1% e em 2016 alcançou-se o número de 355 mulheres numa totalidade de 1.571, num aumento de apenas 2%, isto é, hoje temos 22,6% de quadro feminino na carreira diplomática brasileira.

Quando buscamos por dados de raça dentre essas mulheres a invisibilidade se torna dupla. O Itamaraty não possuí dados estatísticos de quantos negros trabalhando na pasta. Não há formulários que permitam um espaço de identificação da raça dos

funcionários. No entanto, há dados sobre a primeira mulher negra diplomata, Mônica de

Menezes Campos. Ela ingressou em 1979, porém teve sua carreira interrompida

precocemente por sua morte em 1985.

Dentro dos objetos primordiais e as concepções construídas pelas Relações Internacionais, temos um marco paradigmático no que se refere à mulher como sujeito e objeto. Isso ocorre quando, n o fim da Guerra Fria, Barry Buzan (1991) nos afirma que o Estado deixaria de ser sujeito e objeto único das pautas de segurança internacional, pois as Teoria das Relações Internacionais (TRI) apreendem um novo elemento epistemológico: as relações com o indivíduo. Momento em que “a mulher, como sujeito e objeto, pode existir como contraponto a um mainstream masculino” (DELAMONICA, 2014, p.10). Decerto que o passar das décadas foi marcado por um apagamento dos “assuntos referentes à mulher”, esses eram encarados como esferas do âmbito privado, não adquirindo potência e legitimidade para na esfera de atuação dos Estados, tampouco importantes para as relações internacionais. (NOGUEIRA e MESSARI, 2005).

(4)

4

Essas mudanças em relação aos estudos de gênero, vistas, segundo Scott (1986), como um poder transgressor, conseguiu adensamento nos ambientes acadêmicos e reconhecimento de outros atores como sujeitos de direitos nas novas vertentes de análise das relações internacionais contemporâneas. Trazer a mulher como objeto e sujeito das Relações Internacionais (RI) implica em incorporar também as teorias feministas e as discussões de gênero. De fato, o ramo da RI se articulou com essa literatura após muitas outras áreas acadêmicas já estarem com relativo avanço na formatação teórica (HALLIDAY, 1999), ainda assim, ao serem absorvidas, não foram tratadas com homogeneidade de interpretações. (NOGUEIRA e MESSARI, 2005).

No tocante ao específico do Ministério das Relações Exteriores, e suas aberturas aos movimentos feministas dentro das pequenas brechas que lhe eram ofertadas, é preciso compreender historicamente essas concepções para avaliar de que forma tais perspectivas influenciaram como o feminismo foi e é representado dentro do Itamaraty.

Essa postura é vista, a partir de uma perspectiva histórica, que ainda que agindo a partir dos fundamentos feministas de igualização de direitos e ampliação do acesso ao mercado de trabalho, as primeiras diplomatas não se consideravam feministas, por esse ainda parecer um debate distante de suas realidades.

Podemos compreender essa argumentação pelo prisma da história da presença feminina no Itamaraty. Quando no início do século XX, mais precisamente em 1918, transgredindo todo um modus da época. Maria José Rebello, que se tornou a primeira mulher diplomata, disse não se considerar feminista. A fala, retratada pela matéria jornalística “A Moça do Itamaraty”, a fazia se distanciar do movimento por afirmar não cogitar emancipação do sexo nem jamais ter se preocupado de literatura semelhante. É claro que devemos levar em conta que as discussões feministas ainda eram incipientes à época, mas a entrada de Maria José Rebello acendeu debates ainda embrionários na cultura brasileira sobre a mulher no mercado de trabalho e, mais notadamente, se podia a mulher ser funcionária pública.

O debate aberto foi acirrado e, anos mais tarde, com mais substância teórica e entrada política, em 1934, Beata Vettori, diplomata aprovada nesse mesmo ano, confirmava e alegava que a entrada de mulheres na carreira diplomática se configurava numa etapa importante para os movimentos feministas brasileiros.

O que se torna curioso e de interessante análise nos fatos relatados é que essas mudanças no Itamaraty, com a entrada de mulheres na carreira diplomática, se fomentaram como vital para o crescimento e avanço do feminismo.

(5)

5

REFERÊNCIAS

BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

BUZAN, Barry. New patterns of global security in the twenty-first century. International Affairs: Royal Institute of Internacional Affairs, v. 67, n. 3, pp. 431-451, 1991.

COSTA E SILVA, Alberto da. Itamaraty na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2002.

DELAMONICA, Laura Berdine Santos. Mulheres Diplomatas Brasileiras. Dissertação de Mestrado. Brasília: UNB, 2014.

HALLIDAY, Fred. Repensando as Relações Internacionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999.

MENDES, Marina. Gênero e Relações Internacionais – a inserção da mulher na esfera política e na carreira diplomática brasileira. IRI- UNB, 2011.

NOGUEIRA, João Pontes e MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais. São Paulo: Campus, 2005.

SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analysis. The American Historical Review, v, 91, pp 1053-1075, 2004.

TABAK, Fanny. Mulheres públicas: participação política e poder. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2002.

Referências

Documentos relacionados

Este trabalho se propõe a investigar as relações entre o jornalismo, a literatura e o cinema por meio da análise da obra O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira (1979) e a sua

Com relação ao CEETEPS, o tema desta dissertação é interessante por se inserir no Programa de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), sob a tutela da Coordenação de

Sem desconsiderar as dificuldades próprias do nosso alunado – muitas vezes geradas sim por um sistema de ensino ainda deficitário – e a necessidade de trabalho com aspectos textuais

interseccionalidade, políticas de identidade e violência contra mulheres não-brancas” do ano de 2002, a autora expõe, de forma mais contundente, as políticas de

Os motins na América Portuguesa tanto quanto na Espanhola derivam do colapso das formas acomodativas - como será melhor explicado à frente -, ou melhor dizendo, do rompimento

Refletindo sobre a minha própria prática acadêmica, como antropóloga, pesquisadora do campo dos estudos de gênero e feminista e também instigada pelo desejo de compreender a

Entre outras, podem ser citadas: a falta de apoio dos grandes partidos no Congresso Nacional; o crescente isolamento político que o presidente passou a sofrer muito em função

Há amplo espaço para preocupação quanto às dificuldades para aprovação de reformas necessárias à contenção do déficit público, peça crucial para o sucesso