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Uma análise de O que é isso, companheiro?

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Academic year: 2022

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

RAFAEL FONSECA SANTOS

JORNALISMO LITERÁRIO E CINEMA:

Uma análise de O que é isso, companheiro?

São Paulo 2016

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RAFAEL FONSECA SANTOS

JORNALISMO LITERÁRIO E CINEMA: uma análise de O que é isso, companheiro?

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras

ORIENTADORA: Profª. Drª. Marlise Vaz Bridi

São Paulo 2016

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S237j Santos, Rafael Fonseca

Jornalismo literário e cinema: uma análise de O que é isso, companheiro? / Rafael Fonseca Santos. – 2016.

103 f. : il. ; 30 cm

Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2016.

Orientadora: Marlise Vaz Bridi Bibliografia: f. 100-103

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À minha esposa, Tábitah, meu grande amor;

Aos meus pais, em quem me espelho;

Aos meus sogros, pelo constante incentivo e apoio;

Aos meus irmãos, Juliana e Guilherme, a quem amo.

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Agradecimentos

A Deus, que me amou primeiro e me susteve ao longo de todo o projeto, por sua bondade e graça.

À Profª. Drª. Marlise Vaz Bridi, querida orientadora, que marcou profundamente minha vida e de quem jamais me esquecerei. Minha eterna gratidão.

Aos meus familiares, que me deram todo amparo necessário para a conclusão deste projeto. Sem vocês, eu não chegaria até aqui.

Aos meus irmãos da Igreja Presbiteriana de Higienópolis, pela amizade, orações e suporte, mesmo diante de minhas falhas.

Aos meus professores e amigos do trabalho, que muito me ensinam a cada dia.

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“Eu sou pobre e necessitado, porém o Senhor cuida de mim;

tu és o meu amparo e o meu libertador;

não te detenhas, ó Deus meu!”

Salmo 40.17

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Resumo

Na década de 1970, período em que o Brasil esteve sob um regime ditatorial militar, que duraria até 1985, muitas das liberdades de expressão e de circulação de informações foram ameaçadas. O AI-5, Ato Institucional número 5, de 1968, coloca em xeque a boa prática jornalística que, por sua vez, se vê obrigada a se reinventar para conseguir cumprir com seus deveres. Assim, não foram poucos os jornalistas que se aventuraram na literatura em busca de novas vozes e novos caminhos para a resistência, inclusive política. Esta tese investiga as relações, implicações e possíveis efeitos de sentido resultantes da aproximação entre jornalismo e literatura, por meio do exame da obra O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, de 1979, e de sua posterior transposição para o cinema, em 1997, pelo diretor Bruno Barreto. O escopo de análise também perpassa os elementos do jornalismo literário, especialmente os do Novo Jornalismo: descrição, narrativa cena a cena, uso de diálogos e pontos de vista da terceira pessoa. Diante desses elementos, esta tese investiga, ainda, como se deu seu deslocamento do texto escrito para o produto audiovisual.

Palavras-chave: O que é isso, companheiro?; jornalismo literário; cinema; ditadura militar; Fernando Gabeira; literatura e resistência.

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Abstract

In the 1970s, a period when Brazil was under a military dictatorship that would last until 1985, many of the freedoms of expression and of information flow were threatened. The AI-5, Institutional Act No. 5, 1968, puts into question the good journalistic practice, which in turn, is forced to reinvent itself to get fulfill its duties. Thus it were not few journalists who ventured in the literature for new voices and new ways of resistance, including politics. This thesis investigates the relations, implications and possible meaning effects resulting from the rapprochement between journalism and literature by examining Fernando Gabeira's work O que é isso, companheiro?, and his subsequent transposition to the cinema, in 1997, directed by Bruno Barreto. The scope of analysis also pervades the elements of literary journalism, especially those of the New Journalism: description, narrative scene to scene, use of dialogues and points of view of the third person. In view of these elements, this thesis also investigates how the written text was moved for the audiovisual product.

Keywords: O que é isso, comapnheiro?; literary journalism; cinema; military dictatorship; Fernando Gabeira; Literature and resistance.

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Lista de Imagens

Imagem 1 – Capa de 1979, editora Codecri ... 20

Imagem 2 – Capa de 1979, editora Codecri ... 21

Imagem 3 – Capa de 1981, editora Codecri ... 22

Imagem 4 – Capa de 1982, editora Nova Fronteira ... 23

Imagem 5 – Capa de 1984, editora Nova Cultural ... 24

Imagem 6 – Capa de 1996, editora Companhia das Letras ... 25

Imagem 7 – Capa de 1998, editora Companhia das Letras ... 27

Imagem 8 – Capa de 2009, editora Companhia das Letras...28

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Sumário

INTRODUÇÃO ... 11

1. O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? ... 19

1.1 O objeto livro ... 19

1.2 Enredo ... 29

1.3 Clímax ... 45

2. ANÁLISE DO FILME O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? ... 51

2.1. Preparação ... 51

2.2. Entrada ... 57

2.3. Clímax ... 65

2.4. Saída ... 85

3. JORNALISMO LITERÁRIO NO CINEMA ... 89

3.1. Diálogos ... 91

3.2. Descrição ... 94

3.3. Pontos de vista da terceira pessoa ... 95

3.4. Narração cena a cena ... 96

CONCLUSÃO ... 98

BIBLIOGRAFIA ... 100

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Introdução

Este trabalho se propõe a investigar as relações entre o jornalismo, a literatura e o cinema por meio da análise da obra O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira (1979) e a sua posterior transposição para um longa-metragem, no filme homônimo de Bruno Barreto (1997).

O livro foi publicado em meio à ditadura militar brasileira (1964-1985), período em que tanto a literatura quanto o jornalismo se tornaram instrumentos de resistência e de contestação política. O filme, por sua vez, estreou quase duas décadas depois, quando o país já vivia sob um regime democrático, com os militares de volta aos quartéis.

Embora trate de duas artes distintas, o cinema e a literatura, este é um trabalho sobre jornalismo. Mais especificamente, de que maneira o jornalismo literário traspassa as fronteiras de seu campo e influencia e é influenciado pelo cinema. Há que se reconhecer a vasta literatura acadêmica acerca do jornalismo literário e as suas muitas nuances; no entanto, são poucos os estudos que se dedicam às relações deste com o cinema.

O jornalismo carrega em sua essência a contestação. A natureza jornalística é investigativa, crítica e de questionamento social. Segundo Kunczik (2001, p. 16), “o jornalismo é considerado a profissão principal ou suplementar das pessoas que reúnem, detectam, avaliam e difundem as notícias; ou que comentam os fatos do momento”. Reunir, detectar e avaliar notícias é o âmago crítico do jornalismo, ainda que o desenvolvimento dos gêneros jornalísticos evidencie diferentes nuances da ciência jornalística, sua natureza crítica e investigativa permanece. Concorda com essa tese, Manuel Chaparro (1994, p.22): “A âncora ética do jornalismo, da qual deriva a responsabilidade moral de cada jornalista pelo seu fazer, é o direito individual e universal de investigar, receber e difundir informações e opiniões”.

O jornalismo brasileiro, por exemplo, nasceu com essa perspectiva. Considerado o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense, editado por Hipólito José da Costa (embora ele mesmo não tenha assinado sua publicação), chega ao Brasil em 1808 questionando os deveres cívicos dos cidadãos já na Introdução (1808, p. 3):

O primeiro dever do homem em sociedade he ser útil aos membros della; e cada um deve, segundo as suas forças Phisicas, ou Moraes, administrar, em benefício da mesma, os conhecimentos, ou talentos, que a natureza, a arte, ou a educação lhe prestou. [...] Ninguém mais útil pois do que aquelle que se destina a mostrar, com evidência, os acontecimentos do presente, e desenvolver as sombras do fucturo. Tal tem sido o trabalho dos redactores das folhas publicas, quando estes, munidos de uma critica saã, e de uma censura

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adequada, represêntam os factos do momento, as reflexoens sobre o passado e as soldidas conjecturas sobre o futuro.

Desde o Correio Braziliense, crítico ao governo de D. João (1808) e fazendo um jornalismo de contestação, até os modernos blogs em que jornalistas analisam cenários políticos, propostas econômicas, movimentos globais etc., o jornalismo aponta sua proeminência nas discussões mais profundas da sociedade.

O jornalismo é também a intermediação dos membros de uma sociedade entre si. Em citação aos “Cânones do Jornalismo”, adotado pelo Comitê de Ética da “American Society of Newspaper Editors”, Fortes (2005) salienta:

A função primária dos jornais é comunicar à raça humana o que seus membros fazem, sentem e pensam. O jornalismo, portanto, exige de seus praticantes o mais amplo alcance de inteligência, de conhecimento e de experiência, assim como poderes naturais e treinados de observação e raciocínio. As suas oportunidades como cronista estão indissoluvelmente ligadas a suas obrigações como professor e intérprete. (p.23-24).

Essa afirmação é altamente representativa, uma vez que suscita a aproximação do fazer jornalístico com a interpretação do mundo e, portanto, da literatura. Além de levar ao conhecimento público notícias e reportagens, o jornalismo é determinante para a própria formação da opinião pública.

Essas funções intrínsecas ao fazer jornalístico aparecem como primeiro ponto de destaque para sua relação com o poder. Sem dúvida, a comunicação (e o seu eventual controle) constitui peça fundamental nos projetos governamentais desde o Antigo Regime1, quando reis usaram pinturas, peças de teatro e até impressões em moedas nacionais para construir imagens mais favoráveis de si mesmos.

O cardeal Richelieu, que governou a França junto com o rei Luís XIII entre 1630 e 1643, pode ter aprendido muito sobre a importância da mídia naquela crise. Ele inspirou a fundação de um jornal oficial em 1631, a Gazette, e ocasionalmente mandava para o editor notícias a serem publicadas. Jean- Baptiste Colbert, o ministro mais importante de Luís XIV, entre 1661 e 1683, tinha ainda maior consciência do alcance da mídia do que Richelieu. A criação de uma imagem favorável do rei para público estrangeiro e interno, por meio de reportagens na imprensa, histórias oficiais, poemas, peças, balés, óperas, pinturas, estátuas, gravuras e medalhas, foi produzida por uma equipe de

1 Período de regimes absolutistas ao final da Era Medieval, por volta dos séculos XVI e XVII.

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artistas e escritores supervisionados por Colbert. (BRIGGS; BURKE. 2006, p. 92).

A relação entre comunicação e poder será melhor apresentada e discutida no capítulo 1 desta tese, tendo por base as argumentações do contexto histórico brasileiro dos anos de 1960, período em que se instaura no país um regime ditatorial militar.

Há definições que dão conta da notícia como aquilo que o público precisa conhecer.

Dessa maneira, pode-se traduzir o jornalista não apenas como emissor de notícias, mas como o próprio meio pelo qual a mensagem chega ao seu receptor. Se essa mensagem é conscientizadora, intrigante e formadora da criticidade do receptor, então o jornalismo cumpriu seu papel comunicacional de transformação social.

O jornalismo literário é uma vertente da área que traz para os textos de reportagens recursos estéticos da literatura que contribuem para maior cadência de leitura, tornando textos jornalísticos mais agradáveis ao leitor.

Essa não é, absolutamente, uma ideia nova. É possível perpassar alguns períodos históricos a fim de verificar a aproximação do jornalismo com a literatura. De fato, os dois sempre caminharam muito próximos. Quando, no século XVII, surgem os primeiros jornais (BRIGGS; BURKE. 2006), seus autores eram, em sua maioria, escritores de ofício, isto é, literatos. Os jornais eram conduzidos pelos intelectuais de seu tempo, homens letrados e com certa influência social.

Embora a proximidade dos literatos com as redações fosse muito íntima, o texto dedicado aos jornais foi ganhando uma linguagem própria, distinta da literária. Seus mecanismos de construção foram se erigindo em torno das bases do jornalismo moderno:

apuração da informação, ênfase à função referencial da linguagem, uso de entrevistas, discurso direto, texto claro e objetivo. Tais mecanismos se construíram ao longo dos anos, moldados pela percepção das redações e dos próprios leitores, não sendo, portanto, uma mudança pontual ou radical.

Dessa forma, observa-se já no século XIX a diferenciação entre texto jornalístico e texto literário. A maior delas ficou por conta da mensagem em si, que poderia ser calcada no real ou não. O jornalismo não admite o ficcional em seu território.

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Seria da natureza do jornalismo tomar a existência como algo observável, comprovável, palpável, a ser transmitido como produto digno de credibilidade. Com isso, prestaria- ou desejaria prestar uma espécie de testemunho do “real”, fixando-o e ao mesmo tempo buscando compreendê- lo... A natureza da literatura, por sua vez, parece ser outra e até oposta à do jornalismo. Trata-se de dotar a linguagem verbal de uma dimensão em que ela não é meio, mas fim; tomá-la como matéria em si, portadora de potencialidades expressivas. Na literatura, a linguagem não é mera figurante, mas centro das atenções. (BULHÕES, 2007. p 12).

Bulhões (2007) mostra a diferenciação básica que se vai construir, teoricamente, acerca do jornalismo e da literatura. Os jornais se apegam ao real, por mais fluída que possa ser tal definição. Por sua vez, a literatura dedica-se à estética, usando ficção ou realidade como referencial. Concordam com Bulhões, Contrera, Figueiredo e Reinart (2004):

O jornalismo sempre postulou o seu compromisso de identificar, selecionar e esquadrinhar essa realidade como ponto de referência para realizar a sua missão de informar, difundir o conhecimento, entreter, permitir a reflexão e a vigília e, em alguns momentos, a transformação. (p. 7).

As autoras colocam como missão essencial da práxis jornalística o compromisso com a realidade. A esse compromisso, deu-se o nome, no meio jornalístico, de credibilidade. Há um contrato social pelo qual a sociedade concede aos jornalistas o dever de buscar as informações necessárias à opinião pública, atendendo a certos critérios, crendo que este profissional o fará de forma idônea.

Este preceito de credibilidade é essencial na tarefa jornalística. Não é possível que o redator de um jornal apresente em um texto a realidade tal como ela é. O texto é uma representação (e constituinte) do real. É, dessa maneira, construído, forjado nos processos de estruturação textual, sujeito à vontade de seu autor.

1) O jornalismo é um processo social de ações conscientes, controladas ou controláveis – portanto, fazeres combinados com intenções. 2) Porque as ações são conscientes, controláveis e intencionadas, cada jornalista é responsável moral pelos seus fazeres. 3) Se uma intenção se refere unicamente à execução de um fazer, então as intenções dos fazeres jornalísticos estão necessariamente vinculadas aos motivos éticos próprios do jornalismo.

(CHAPARRO, 1994, p. 22).

A notícia não é, a rigor, informação. Como qualquer mensagem, ela porta informação em diversos níveis. Também não precisa ser necessariamente atual. Mais correto seria pensar a notícia como um meio através do qual acontecimentos são atualizados. E a questão da verdade da notícia se converte num tema extremamente questionável. Existem notícias falsas e tal

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peculiaridade não lhes retira seu funcionamento como notícia. Ela é um relato e não o fato em si. (HENN, 2003, p. 32).

Entender que o produto jornalístico não é a realidade em sua essência, não é o fato, permite libertar-se de certas amarras estéticas. A ideia de que o texto jornalístico não pode atribuir juízo de valor ou de que a subjetividade fere a credibilidade do que se noticia acabou por reduzir os jornais a textos insossos e mecanizados. Os manuais de redação, que vão surgir no Brasil desde o Diário Carioca, nos anos de 1930 (SODRÉ. 1998), trarão a ideia de formatação do texto para uma publicação. É um valor conceitual jornalístico moldando a estética de seu texto.

A partir da noção de que o jornalismo se afastara de uma estética textual mais rica, muitos jornalistas empreenderam esforços no sentido de restituir aos textos de jornais a beleza da literatura, a sutileza lexical, o drama possível por meio da estética. Retoma-se a ideia de jornalismo literário.

Da mesma maneira, é possível traçar um papel-chave da literatura na construção moral e política das sociedades modernas. Como uma forma de comunicação extremamente persuasiva, a literatura tem se mostrado um agente influenciador dos mais relevantes. Nos séculos XVIII e XIX, por exemplo, vê-se um enorme ganho de prestígio e força dos romances, que eram, por sua vez, referências para os intelectuais e formadores de opinião.

A proposta deste trabalho, portanto, consiste em investigar as relações entre jornalismo e literatura sob alguns aspectos: de que maneira jornalistas se utilizaram da literatura nos anos de 1970 como forma de resistência política; como se deram as relações de poder entre a obra analisada e o governo vigente; de que modo tal obra contribui para registro e compreensão histórica do período, analisando, inclusive, o processo editorial do livro; quais as estratégias estilísticas literárias e jornalísticas utilizadas pelos autores a fim de questionar o poder vigente e moldar a opinião pública; como se deu a transposição de técnicas do jornalismo literário para a linguagem cinematográfica; e que impactos essa transposição acarreta, tanto no âmbito jornalístico quanto estético.

Entre os anos 1964 e 1985, o Brasil viveu sob um regime ditatorial, centralizador e repressor, comandado pelas Forças Armadas Nacionais e amparado pelos movimentos políticos conservadores e de direita. Permanecer por tanto tempo no poder exigiu dos governantes um cuidado especial com as comunicações. Assim, com o intuito de manter-se nesta posição, foi

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criado um departamento oficial responsável por verificar a prudência das publicações (jornalísticas e literárias, entre outros) que saíam no território brasileiro, a fim de que não houvesse nenhum tipo de incitação a revoltas ou questionamentos ao regime vigente.

Deste contexto, surge o questionamento sobre de que maneira jornalismo e literatura se uniram como forma de crítica, resistência e documentação histórica nos anos de 1970 no Brasil, bem como de que maneira essa resistência foi reinterpretada na transposição de O que é isso, companheiro? para o cinema. Tal indagação se justifica, uma vez que o período da ditadura militar brasileira foi de extrema repressão aos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa (afetando literatura e jornalismo). Desse modo, a criatividade estética e a resistência política forjaram mecanismos para burlar a repressão, e registrar e contestar o regime vigente. Uma vez mais, o jornalismo buscou na literatura ferramentas para cumprir com seus objetivos. De igual modo, a literatura se serviu de estratégias jornalísticas para exercer resistência.

O objetivo desta tese é investigar como se deram as relações entre jornalismo, literatura e cinema e identificar pontos de contato entre as áreas, a fim de contribuir para o entendimento do impacto estético desse contato. Essa investigação se dará a partir da análise literária da obra de Gabeira (2009) e do filme de Barreto (1997).

O que é isso, companheiro? foi escrito por Fernando Gabeira em 1979, quando, após sua intensa participação em um movimento revolucionário contra a ditadura e, posteriormente, captura e tortura, resolve contar o que vivenciou.

O envolvimento de Gabeira com o jornalismo é antigo. Ele trabalhou como redator no Jornal do Brasil (JB), do Rio de Janeiro, de 1964 a 1968. Ainda hoje tem programas na rádio CBN e no canal de televisão Globo News, ambos da maior empresa de comunicação do país, Rede Globo. Sua experiência jornalística contribuiu para seu desenvolvimento como escritor.

Quando ainda era redator do JB, envolveu-se na luta armada contra o regime militar. O que é isso, companheiro? conta a história de quando ele e seu grupo planejaram e executaram o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, com o fim de negociar a liberdade de outros companheiros da luta contra a ditadura. Seu texto, ao contar a história, é certamente marcado pelo jornalismo que fez parte da sua vida.

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Apesar de ser uma obra literária, O que é isso, companheiro? se assume real. Gabeira cria um narrador-personagem como um repórter de si mesmo, constrói um texto muito mais rápido que os anteriores, privilegia, ao que parece, o conteúdo em detrimento da estética (característica marcante do jornalismo, com sua função referencial sempre à vista). Por essa razão, a obra de Fernando Gabeira se torna relevante nesta tese, aproximando literatura e jornalismo.

Este pesquisador não pretende categorizar o livro aqui analisado, mas buscar elementos intertextuais que tragam novas significações para a obra e para os estudos nas áreas de Letras e Comunicação. Dessa maneira, observar os dialogismos possíveis entre jornalismo e literatura contribuirá tanto para pesquisas acerca do jornalismo literário brasileiro, quanto para estudos sobre jornalistas escritores.

Outrossim, a investigação literária dos anos 1970 joga luz sobre os estudos de um dos períodos políticos mais inquietantes da história nacional, que carece de exames mais profundos em sua relação com o jornalismo e a literatura como formas de resistência.

O filme, dirigido por Bruno Barreto (1997), surge em um contexto democrático, quando muitos passaram a (re)discutir a história brasileira. O enredo é um recontar da obra de Gabeira, adaptado, evidentemente, para um produto audiovisual. Os anos de 1990, ainda foram marcantes para o mercado cinematográfico nacional, uma vez que estabelece um novo patamar de qualidade nas produções.

No primeiro capítulo desta tese, o leitor se deparará com uma análise da obra O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira (2009), a partir de uma discussão sobre as técnicas literárias empregadas pelo autor para a construção de um relato realístico. São investigadas as construções dos personagens, o papel do narrador-personagem, além de uma contextualização histórica do momento político que o Brasil vivia à época da narrativa e da publicação. Também são analisados elementos do objeto-livro, especialmente suas capas.

O segundo capítulo constrói-se a partir da investigação da construção narrativa do longa-metragem O que é isso, companheiro? (BARRETO, 1997), que usou como referência o livro de Gabeira (2009). A discussão se dá em torno do olhar cinematográfico para um episódio marcante da história brasileira. Investiga-se o uso de técnicas literárias e jornalísticas na sua transposição para o cinema e suas possíveis implicações na produção de novos significados.

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Também se analisa o uso de estratégias audiovisuais para a composição do enredo e dos personagens.

O último capítulo apresenta uma comparação, ponto a ponto, dos elementos do Novo Jornalismo (movimento norte-americano que reaproximou literatura e jornalismo) usados no livro de Gabeira (2009) e como essas estratégias estilísticas aparecem no produto audiovisual de Barreto (1997). Assim, é possível analisar as facetas literárias e jornalísticas no filme O que é isso, companheiro? (1997).

As conceituações teóricas que serviram de escopo para o desenvolvimento desta tese surgem à propósito das análises das obras. Dessa maneira, não há um capítulo de explanação teórico que anteceda as investigações, uma vez que, entretecidos ao texto, os fundamentos empíricos ganham maior relevância na leitura e dinâmica de pesquisa.

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1. O que é isso, companheiro?

1.1 O objeto livro

A obra de Fernando Gabeira, publicada pela primeira vez em 1979, é narrada em primeira pessoa e conta a história de um dos idealizadores do grupo Dissidência Comunista, que mais tarde assumiria o nome de MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro, em referência à data de morte de Che Guevara), e de como participou do sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969. Conta também como foi perseguido pela ditadura, preso, torturado e exilado.

A obra é dividida em dezesseis capítulos, sendo os quinze primeiros curtos e o último maior, contendo quase 40% de toda a obra. A divisão inicial dos capítulos segue um pouco o fluxo de consciência do narrador, com títulos não muito explicativos, mas instigantes. Esta primeira metade da obra remete a episódios de uma novela, lembrando a ideia dos folhetins, muito comuns no século XIX.

Além disso, em uma primeira análise, a obra aparentemente tinha como público-alvo o jovem brasileiro dos anos de 1980. Por vezes é possível identificar o narrador se referindo ao leitor como alguém novo e interessado nos movimentos revolucionários que questionaram a ditadura militar. O início do terceiro capítulo, por exemplo, faz, mais claramente, referência a esse leitor:

O amigo(a) talvez fosse muito jovem em 64. Eu mesmo achei a morte do Getúlio um barato só porque nos deram um dia livre na escola. Um golpe de Estado, entretanto, mexe com a vida de milhares de pessoas. Gente sendo presa, gente fugindo, gente perdendo o emprego, gente aparecendo para ajudar, novas amizades, ressentimentos... (GABEIRA, 2009, p.22)

Este trecho mostra como o narrador entende que o seu leitor provavelmente era “muito jovem em 64”. Ao se apresentar como uma criança em um momento político extremamente relevante para a história política brasileira, o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, o narrador traça um comparativo entre o que ele viveu (e como enxergou o episódio) com o que o seu leitor pudesse ter vivido em 1964. Isso aponta para uma série de implicações que serão discutidas ao longo desse capítulo, por ocasião de argumentações acerca dos encadeamentos da construção literário-jornalística da obra.

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Ainda com um olhar sobre o objeto livro, as capas das primeiras edições, publicadas pela editora Codecri2, fundada pelos jornalistas do lendário jornal O Pasquim, traziam uma imagem enegrecida do jovem Fernando Gabeira, evidenciando o autor em detrimento da obra.

Apontar para a foto do autor na capa induz o leitor a entender que o narrador em primeira pessoa é um personagem à semelhança do autor (indução confirmada mais ao longo da obra, quando o narrador se apresenta como Gabeira).

O fato de publicarem estas capas em cores amareladas ou avermelhadas remete a um furor esquerdista, típico do movimento revolucionário defendido por Gabeira à época. As cores vermelho e amarelo são símbolos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Estado que polarizou o mundo em contraponto aos Estados Unidos e que foi o berço do comunismo. A obra de Gabeira terá como pano de fundo ideológico, justamente, a disputa entre comunistas e capitalistas no Brasil. Assim, as primeiras edições dando destaque a essas cores evidenciavam o caráter ideológico do livro.

Imagem 1 – Capa de 1979, editora Codecri.

2 Codcri foi uma editora fundada pelos redatores do lendário jornal O Pasquim, que fez ferrenha oposição ao regime militar, mas que se utilizou de inovações estéticas até então pouco exploradas no jornalismo brasileiro.

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Fonte - http://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed5667.html - Acesso em:

15/04/2015.

Também merece destaque a foto ser no formato retrato, em que o rosto da pessoa é o grande destaque. Retratos geram identificação, principalmente, por conta dos olhos. No entanto, nas capas da Codcri, os olhos de Fernando Gabeira estão escuros e apagados, trazendo um certo desconforto à imagem. Os olhos enegrecidos deixam também a subjetividade apagada, isto é, não há vida naquela foto, é um retrato indiferente, sem vigor. O leitor se identifica e ao mesmo tempo se afasta da fotografia.

Imagem 2 – Capa de 1979, editora Codecri.

Fonte: https://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed142046.html - Acesso em:

03/11/2016.

Em 1981, a Codecri lança uma nova capa para o livro. Desta vez, não é um retrato de Gabeira, mas uma imagem irônica, com aspecto cômico. Trata-se de um painel de tiro ao alvo, todo perfurado por marcas de balas, aparentemente de um circo (observa-se uma lona listrada

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em azul e amarelo no canto superior direito). Os objetos-alvo são patos com capacetes, alvos circulares e canhões. Emoldurando a imagem, na parte superior há o título da obra e, na inferior, o nome do autor.

A imagem provoca a ideia de militares e tiros, temas da obra em destaque. Contudo, o uso de um painel de tiro ao alvo remete a jogos e infantilidades, quebrando um pouco a seriedade do assunto. Uma possível leitura é a de que os movimentos revolucionários foram alvos fáceis para a ditadura, que massacrou grupos guerrilheiros ao longo dos anos de 1960 e 1970. É possível também fazer a leitura contrária, de que os grupos guerrilheiros e o sequestro narrado no livro colocaram os militares contra a parede, inertes e sem reação. De qualquer forma, é uma capa divertida e muito colorida, bem ao estilo de O Pasquim.

Imagem 3 – Capa de 1981, editora Codecri

Fonte: https://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed168615.html - Acesso em:

03/11/2016.

Edições seguintes dos anos 1980, como a de 1982, pela editora Nova Fronteira, e a de 1984, pela Nova Cultural, traziam imagens mais provocantes. A Nova Fronteira trazia o desenho de um homem com raios e faixas saindo de sua cabeça, enquanto um enorme ponto de

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interrogação emoldura o fundo da imagem. Esta capa assinala as inquietações do narrador e ilustra a aflição ideológica que o livro carrega, exaltando um ponto central da obra: a dúvida.

O enredo, como será discutido mais a frente, muitas vezes mostra o narrador questionando seus próprios ideais, sobre a maneira de enfrentar uma ditadura, sobre quem eram os “mocinhos” da história, etc.

Em tempo, o personagem que aparece em primeiro plano é interessante. Ele está com a cabeça aberta, em uma simbologia de pensamentos incontroláveis, de loucura. Ele também está vestido de terno e sua gravata está ligeiramente desajustada. Faz referência a um intelectual, com suas ideias irrefreáveis, com certo desleixo para as aparências ou as convenções sociais, aludindo ao personagem principal da história.

Imagem 4 – Capa de 1982, editora Nova Fronteira.

Fonte - http://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed96864.html - Acesso em:

15/04/2015.

A capa da Nova Cultural trazia o desenho de um pássaro em uma gaiola com o Congresso Nacional compondo o segundo plano da imagem. A imagem do poder político brasileiro ao fundo é significativa, uma vez que avulta a obra para o ambiente de discussões

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políticas. Da mesma maneira, o pássaro na gaiola salienta a impotência do personagem principal diante do cenário político, como também pode apontar para a criação de ideologias circunscritas em si mesmas, sem poder observar além.

A foto e o texto estão ligeiramente inclinados para a diagonal esquerda. Essa inclinação carrega um aspecto de inquietude e de desordem, fatores que serão explorados nas discussões do livro e, posteriormente, na versão cinematográfica também. Os tons avermelhados ao fundo do Congresso remetem a violência e exprimem força.

Imagem 5 – Capa de 1984, editora Nova Cultural.

Fonte - http://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed93904.html - Acesso em:

15/04/2015.

De qualquer maneira, essas capas remetem mais ao conteúdo desafiador da obra, do que propriamente a seu autor, o que é uma estratégia ideológica e mercadológica interessante, assumida pelas respectivas editoras.

É importante salientar que as capas anteriormente discutidas foram publicadas enquanto o Brasil ainda vivia sob o regime militar. As capas de 1979 surgem em meio à Lei de Anistia,

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que marca o início da abertura política brasileira. As edições seguintes, dos anos 1980, encontram um contexto mais ameno e menos repressor da ditadura, posto que os anos de chumbo já se tornavam insuportáveis à população, que pressionava por mais liberdade, e as lideranças militares começavam a afrouxar suas amarras. Assim, essas capas se tornam ainda mais impactantes, porque desafiaram a censura e os governos militares.

Em um contexto bem diferente, a Companhia das Letras publicou, em 1996, uma edição do livro com uma capa mais simplória, sem desenhos ou fotos. Apenas a retomada das cores amarelo e vermelho, como das primeiras edições da Codecri. No ano desta edição, o país já vivia um regime democrático, tendo como presidente eleito em um processo eleitoral livre, Fernando Henrique Cardoso.

Imagem 6 – Capa de 1996, editora Companhia das Letras.

Fonte: https://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed147103.html - Acesso em:

03/11/2016.

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Em 1997, é lançado o filme O que é isso, companheiro?, que alcança um público de mais de trezentos mil espectadores em bilheterias3 de cinema, o que alavanca o interesse do público pelo livro que o inspirou. No ano seguinte, a Companhia das Letras publica uma nova edição da obra, utilizando-se do cartaz do filme para a capa.

A imagem da capa é uma montagem de uma fotografia do Rio de Janeiro anoitecendo, acima, e uma fotografia da primeira página do jornal O Globo sobre uma mesa, junto a um revólver. A imagem do Rio de Janeiro mostra o Corcovado com o Cristo Redentor em seu topo e, ao lado, o Pão de Açúcar, que são símbolos da paisagem carioca. Essa imagem foi largamente usada no filme como cena de transição e seus tons avermelhados contribuem para o efeito de tensão do filme.

A chamada do jornal estampado na parte inferior da capa diz “Exército caça sequestradores”. A chamada, composta na imagem com o revólver, induz o leitor mais ao caráter de ação do enredo do que suas discussões ou críticas políticas. Traz para o livro, o apelo do audiovisual.

Imagem 7 – Capa de 1998, editora Companhia das Letras.

3 Segundo dados do Observatório do Cinema e do Audiovisual, o público do filme nos cinemas foi de 321.450 espectadores, rendendo R$ 1.787.262,00 a seus produtores.

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Fonte: https://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed22211.html - Acesso em:

03/11/2016.

Já a edição mais utilizada nesta tese, a da Companhia das Letras (GABEIRA, 2009), traz um grande destaque para o nome do autor, escrito em letras graúdas ocupando a parte superior da página, mas também trabalha com uma imagem interessante para a obra: um avião parado, com sua escadaria à postos e três silhuetas negras descendo da aeronave. A imagem se faz interessante porque, aparentemente, não ilustra nenhuma cena específica da obra, mas faz uma referência a dois momentos: quando são libertados os presos em troca do embaixador americano sequestrado e a parte final da obra, quando o próprio narrador desembarca, exilado, na Argélia. O fato de não apresentar nenhuma crítica evidente, ou qualquer relação com política, violência ou aspectos ideológicos, pouco carrega de significados a capa. Torna-se uma capa apenas visualmente atraente, mas sem discussões políticas mais aguçados.

Imagem 8 – Capa de 2009, editora Companhia das Letras.

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Fonte - http://www.skoob.com.br/o-que-e-isso-companheiro-4593ed35857.html - Acesso em:

15/04/2015.

Esta mesma edição de 2009, da Companhia das Letras, traz um prefácio escrito pelo autor em 1996. Neste texto introdutório, o autor faz alguns comentários sobre a construção da obra. A primeira frase do texto, “Publicado logo após a anistia” (GABEIRA, 2009, p.09), é muito representativa porque situa leitor e obra em um contexto histórico extremamente relevante. Em agosto de 1979, o então presidente, Gal. João Baptista Figueiredo, promulga a chamada Lei da Anistia (lei nº. 6.683), em que concede perdão aos exilados políticos e aos torturadores. Essa informação aponta para a pertinência da obra em uma conjuntura ainda muito confusa na política brasileira. Além disso, tal indicação temporal coloca o leitor a par dos possíveis impactos e relações que a narrativa assumirá.

Ainda no prefácio, Gabeira indica que realizou alterações textuais a partir de indicações do embaixador dos Estados Unidos, à época, que se tornou personagem da história, Charles Burke Elbrick. Ele é figura-chave na história, uma vez que trouxe ao grupo MR-8 (a Dissidência Comunista) os holofotes da luta armada no Brasil. Gabeira usa anotações que o embaixador fez em seu exemplar do livro para “reeditá-lo, com ligeiras alterações” (2009, p.09). Essa preocupação do autor em aproximar-se da realidade em sua obra é uma marca de seu veio

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jornalístico, que tenta trazer ao leitor um relato extremamente verossímil. Em outras palavras, aponta para o compromisso jornalístico da veracidade dos fatos.

O autor ainda argumenta que há milhares de maneiras de contar a luta/resistência armada à ditadura militar no Brasil. Essa inferência levanta a discussão de que um mesmo fato pode ser relatado a partir de diferentes perspectivas e, ainda sim, ser calcado no real. Assume, portanto, que a obra é, na verdade, a sua experiência relatada, não é o real, mas uma percepção do real.

Admitir a fronteira entre o real e a ficção exprime maturidade jornalística e consciência dos limites da obra apresentada.

Fernando Gabeira informa, também no prefácio, que nunca havia indicado o autor da carta que foi lida em rede nacional pedindo a liberação de presos políticos, e registra que seu autor é Franklin Martins. Em seguida, Gabeira reconhece que gostaria de ter dado mais informações sobre outros integrantes da luta armada, mas que não o fez. Esse mea culpa evidencia um anseio comum do jornalismo e da literatura: o de se “fazer justiça” a personagens históricos. Entretanto, há que se discutir se esse é um papel do jornalismo e da literatura; ou, então, até que ponto a história pode ser contada por ambos; ou mesmo se a história faz justiça.

Tais discussões serão melhor expostas conforme a análise do enredo.

Outra informação relevante do objeto livro é o que a editora Companhia das Letras traz acerca da tiragem da obra. Segundo ela, “O que é isso, Companheiro?” já vendeu mais de 300 mil exemplares, em 40 edições. Em 2015, o livro mais vendido no Brasil, de acordo com ranking publicado pelo Publish News (2015), vendeu 719 mil exemplares e o segundo lugar chegou a 485 mil. Mas essas obras não são regra. A partir do 13º livro mais vendido, as obras não chegam à tiragem de 100 mil exemplares e este número está bem mais próximo da realidade do mercado editorial brasileiro. Dessa forma, o volume de vendas de “O que é isso, companheiro?” coloca a obra em um patamar de significativa relevância no mercado brasileiro.

1.2 Enredo

Ainda no início da obra, o narrador se abre para o jornalismo, se abre para o narrador- jornalista. Em dado momento, parece até que os dois (narrador e narrador-jornalista) conversam entre si: “se escapo de mais essa, vou contar como foi tudo” (GABEIRA, 2009, p. 11). Aqui, tem-se a impressão de que o narrador evoca o seu lado jornalístico, desafiando-se a assumir-se

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repórter e cumprir com suas obrigações de divulgar a informação. Abre-se, então, o desejo jornalístico do narrador.

Essa natureza na área jornalística vai se tornando mais evidente com a construção da obra, usando, por exemplo, jargões típicos do mundo dos periódicos, como “copidesque” (setor do jornal responsável pela revisão dos textos que serão publicados), “JB” (abreviatura para Jornal do Brasil) e “empastelamento” (fechamento de um periódico à força, normalmente destruindo suas oficinas, por razões políticas). O narrador ambienta-se, assim, como jornalista.

A cena inicial, que se passa no Chile, aflita e tensa, é interrompida para se iniciar a narrativa de fato. Este é um recurso que transmite uma ideia cinematográfica para a obra, dá velocidade de leitura, oferece dinamismo. Destarte, a trama começa a ser construída muito rapidamente, a partir de pequenas conjurações do narrador, que se questiona acerca das infinitas possibilidades não concretizadas que poderiam alterar o rumo dos acontecimentos.

A primeira elucubração do narrador sobre essas possibilidades aparece como uma confissão de ingenuidade:

De repente, não sei como, cinquenta pessoas se reúnem no meio da rua, tiram suas faixas e cartazes e gritam: abaixo a ditadura. Como? Os carros não podem se mexer: é uma passeata. Mil coisas estavam acontecendo nos telegramas empilhados na minha mesa: guerras, terremotos, golpes de Estado. Ali, diante dos meus olhos, cinquenta pessoas com faixas e cartazes, iluminadas pelos faróis e meio envoltas na fumaça dos canos de descarga, avançavam contra o trânsito. Mais verba, menos tanques, abaixo a ditadura, gritavam. Lembrei-me da minha terra. O Guarani Futebol Clube batido mais uma vez, pelo mesmo adversário, irrompendo na rua Vitorino Braga com sua bandeira azul e branca, cantando “Em Juiz de Fora quem manda sou eu”. (GABEIRA, 2009, p.12)

No fragmento, o narrador tenta apontar para uma ignorância da população, que segue sua vida normalmente, enquanto um punhado de pessoas estampam suas reivindicações atrapalhando o trânsito. Levanta o desinteresse social por questões mais profundas do que um jogo de futebol, por exemplo. Surge, desde esse ponto, uma discussão acerca da briga ideológica que será travada ao longo da obra, ideológica, diga-se, a partir da visão marxista (MARX, 2007) sobre a questão. De um lado, tem-se uma população apática, alienada (sem autonomia), vítima da ideia de “naturalidade” das coisas, ou seja, tomar por natural algo que não é: as coisas são como são, não há o que se fazer, não há por que protestar, o melhor a se fazer é trabalhar. De outro lado, um movimento esquerdista que se levanta contrário ao regime instaurado, questionador, disposto, inclusive, a pegar em armas a fim de enfrentar as forças contrárias.

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Gabeira coloca uma visão dicotômica acerca da luta contra a repressão do governo militar no Brasil. Essa visão era típica da esquerda da época, um tanto ingênua e romântica.

Dividia-se o mundo das ideias em apenas duas partes: direita e esquerda. Ou se usava o aparelho do Estado para prevenir um golpe comunista, ou para, de fato, criar um sistema comunista; ou se colocavam a soberania e a segurança nacionais em primeiro lugar, ou o bem comum em primeiro lugar. Tal divisão ideológica é o argumento da obra. Gabeira e seus companheiros assumem-se esquerdistas, comunistas, dispostos a usar a luta armada para a resistência.

A resistência, aliás, será por ele mesmo questionada. No primeiro capítulo, o narrador relata que era jornalista de dois periódicos, o Jornal do Brasil e o Panfleto4. Ele conta que, por ocasião da tomada do poder pelos militares, o Panfleto fora empastelado5 e que ele, assim como muitos outros jornalistas, pensava que resistiria, mas no fim fugiria. Mais uma vez, Gabeira- narrador aparece desiludido, conformado que o real poder popular e jornalístico é o de fugir, tão somente.

Segui para o JB e encontrei um grupo de jornalistas na Rio Branco. Era o que procurava. Fomos juntos para o Sindicato dos Gráficos, onde resistiríamos. E nós, que pensávamos em resistir, acabamos sendo envolvidos na confusão geral que se armou para retirar os papéis, para escapar da polícia. Foi assim também com muita gente no Chile. Você diz que vai resistir, você parte para resistir, mas o que você vai fazer, de verdade, é fugir. (GABEIRA, 2009, p.13)

O primeiro capítulo aparece, portanto, com um ar de derrota. Derrota, porque a esquerda brasileira havia sucumbido diante das tropas militares e da instabilidade de seus próprios movimentos. Assim como no cinema, o frenesi da cena inicial segura o leitor, ainda que a imagem do golpe seja de fracasso para os movimentos populares. Gabeira se valeu de estratégias estéticas comuns na literatura para conduzir a informação (jornalismo).

No segundo capítulo, o narrador traz reflexões e questionamentos típicos de quem viveu os anos de 1964 e 1965. Discute as relações de poder e duvida do próprio vigor da luta armada.

Essas dúvidas serão fundamentais para a compreensão dos atos do protagonista ao longo da obra. Considerado um intelectual no movimento esquerdista, ele tenta, a todo momento, dimensionar o impacto das ações a serem tomadas, ainda que essa não seja uma tarefa a ele

4 “Semanário da ala esquerda do PTB que, mais tarde, depois do golpe, iria sobreviver de forma autônoma como Movimento Nacionalista Revolucionário, MNR” (GABEIRA, 2009, p.12)

5 Fechamento de um periódico à força, normalmente destruindo suas oficinas, por razões políticas.

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atribuída oficialmente. “De que adiantavam as armas se os principais partidos políticos não tinham tensionado suas forças para resistir? E de que adiantava os partidos fazerem isso, se a sociedade no seu conjunto não estava convencida da importância de resistir?” (GABEIRA, 2009, p.19).

Sua hesitação diante das circunstâncias e da movimentação política contrasta com sua ousadia jornalística de questionar a insignificância simbólica das armas. Ora, o jornalismo já foi considerado o quarto poder6, especialmente em tempos de comunicação de massa, e a reflexão do narrador acerca da ineficiência das armas, naquele momento, aponta para sua desilusão com o poder jornalístico. Ele, um repórter de um dos maiores jornais do Brasil, com tiragem dominical7 na casa dos 200 mil exemplares, não acredita que seu emprego neste periódico ajudará a mudar muitas coisas. Aliás, sua dúvida parece circunscrever mais o jornal do que a profissão de repórter, tendo em vista que ele se propõe ao longo de toda a história a publicar e divulgar seu Panfleto, um jornal independente que não teria amarras políticas que o impedissem de cumprir com sua missão jornalística.

Essa investigação intelectual também alude à essência do jornalismo de apuração da notícia, de esquadrinhar qualquer informação a fim de desnudá-la e a ponto de compreendê-la e de dizer a verdade. A paixão da maioria dos jornalistas reside nesta apuração. Quando Gabeira percebe que a grande mídia (composta pelos principais veículos impressos, radiofônicos e televisivos de comunicação do país) apoiou direta ou indiretamente a tomada do poder pelos militares, ele entende que o ufanismo jornalístico da verdade e da apuração são dependentes da ação do homem, que por sua vez é corruptível e sujeito aos mais escusos interesses.

O terceiro capítulo, “Engolindo Sapos”, segue apresentando ao leitor o contexto político dos anos de 1960, sempre ancorado na percepção do próprio narrador sobre os fatos.

6 A expressão Quarto Poder surgiu na Inglaterra no século XIX. “Na Europa, o jornal The Times, órgão dominante de imprensa em Londres, se considerava, durante as décadas de 1830, 1840 e 1850, um "quarto poder". Diz-se que quem cunhou a frase foi o historiador Macaulay, embora ele estivesse se referindo à Galeria de Imprensa no Parlamento, e não especificamente ao The Times ou à imprensa como um todo. O conceito medieval de um

"Estado" ou "poder" — espiritual, temporal e comum — havia sido quebrado na França revolucionária, mas sobreviveu residualmente na Grã-Bretanha nas duas casas do Parlamento, e a nova expressão "quarto poder" foi usada como título de um livro sobre imprensa em 1850, escrito pelo jornalista F. Knight Hunt”. (BRIGGS;

BURKE, 2006, p. 192). A expressão, já no século XX, indica o caráter fiscalizador da prática jornalística, apontando-o em equivalência de relevância social e influência com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

7 Tradicionalmente, as tiragens dominicais são mais numerosas que as semanais.

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[...] O governo Goulart nos era apresentado numa versão unilateral, a versão dos inquisidores.

Na minha mesa de redator do JB, caíram muitas notícias sobre o período Goulart. A algumas delas demos até um certo encanto, transformando-as em matérias atraentes. Lembro-me de um IPM8 numa repartição oficial, onde se apurou que o chefe beliscava a secretária, vinha diariamente vestido de terno branco, calçava sapato marrom e branco e dava rasteira no contínuo.

Imaginem que diversão: rasteira num companheiro de trabalho. Lembro-me de um depoimento do chefe da Casa Militar, dizendo que o mordomo do palácio tratava mal os convidados e ajudou a isolar Jango. Lembro-me da notícia em sua forma final: chefe da Casa Militar diz que a culpa da queda de Goulart foi do mordomo. (GABEIRA, 2009, p.23)

Chamar os oposicionistas do governo João Goulart de inquisidores mostra como o narrador vai compondo a imagem dos que tomaram o poder em 1964. O parágrafo destacado é um exemplo que o narrador usa para mostrar o uso da grande imprensa na defesa de uma posição política específica, contrariando qualquer princípio jornalístico de imparcialidade ou de sempre mostrar todos os lados de uma notícia.

O “engolir sapos”, a que o narrador se refere, envolve diversas formas de conduzir e cercear a opinião pública, por meio de estratégias que envolviam manobras jurídicas, políticas e midiáticas para manutenção do poder. Outro exemplo é o comentário do narrador de que “A supressão das eleições diretas não chegou a provocar uma reação na massa” (GABEIRA, 2009, p.22). Este comentário sinaliza para a teoria da Espiral do Silêncio, proposta por Noelle- Neumann (1955), que defende:

A teoria da espiral do silêncio se apoia na suposição de que a sociedade – e não apenas os grupos em que os membros se conhecem mutuamente – corre o risco de isolamento e de exclusão dos indivíduos que se desviem do consenso.

Os indivíduos, por sua vez, têm um medo em grande medida subconsciente do isolamento, provavelmente determinado geneticamente. Este medo do isolamento faz com que as pessoas tentem comprovar constantemente quais opiniões e modos de comportamento são aprovados ou desaprovados em seu

8 Inquérito Policial Militar.

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meio, e quais opiniões e formas de comportamento estão ganhando ou perdendo força.9 (NOELLE-NEUMANN, 1955, p.179-180).

O jornalismo exige, em sua natureza, leitores críticos. Essa é a razão do jornalismo ter sido por anos um local de debate dos poderosos somente, já que por séculos sociedades eram massificadamente analfabetas. Está aqui uma pista para se compreender o porquê de tão poucas notícias e informações na grande mídia sobre a periferia e sobre os oprimidos.

Assim, é possível perceber que o jornalismo tem forte atuação na educação da sociedade. Além de levar ao conhecimento público notícias e reportagens, o jornalismo é determinante para a própria formação da opinião pública. Cabe ressaltar que as salas de aula são fundamentais para sua compreensão e constituição. E aqui se encontra um grande ponto convergente das duas áreas, educação e jornalismo.

Paulo Freire, talvez o maior educador brasileiro, defende a educação como promoção do sujeito, como instrumento de mudança pessoal e social. Para ele, a educação tem que promover a conscientização do educando, o que gera crítica social (mudança na opinião pública) e, consequentemente, mudança social.

O ato de estudar, no fundo, é uma atitude em frente ao mundo. (FREIRE, 2011, p.12).

Mais que escrever e ler que a “asa é da ave”, os alfabetizandos necessitam perceber a necessidade de um outro aprendizado: o de “escrever” a sua vida, o de “ler” a sua realidade, o que não será possível se não tomam a história nas mãos para, fazendo-a, por ela serem feitos e refeitos. (FREIRE, 2011, p.20).

Colocar a educação como práxis de posicionamento frente ao mundo é dizer que ela é constituinte da opinião pública, uma vez que a criticidade levantada em tal posicionamento alicerça a construção social de opiniões sobre diferentes assuntos. Em outras palavras, Freire fixa o conhecimento junto ao processo de conscientização do indivíduo em sociedade.

9 Tradução do pesquisador para: “La teoria de la espiral del silencio se apoya en el supuesto de que la sociedad - y no sólo los grupos en que los miembros se conocen mutuamente - amenaza con el aislamiento y la exclusión a los individuos que se desvían del consenso. Los individuos, por su parte, tienen un miedo en gran medida subconsciente al aislamiento, probablemente determinado genéticamente. Este miedo al aislamiento hace que la gente intente comprobar constantemente qué opiniones y modos de comportamiento son aprobados o desaprobados en su medio, y qué opiniones y formas de comportamiento están ganando o perdiendo fuerza.” (NOELLE- NEUMANN, 1955, p.179-180).

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Estabelece a fonte do aprendizado fora do ambiente de sala de aula, na vivência e história de cada educando.

Paulo Freire preocupa-se, por toda sua obra, em despertar uma possibilidade de educação dialógica e libertadora. Dialógica porque a educação deve ser construída a partir da troca de experiências entre o educador e o educando. Libertadora porque, para ele, a sociedade brasileira vive em um sistema dicotômico, dividido em opressores e oprimidos (daí sua obra mais conhecida intitular-se “Pedagogia do Oprimido” (FREIRE, 1987)) e a educação em seu ver é elemento-chave para transformação dessa estratificação.

O bom jornalismo é também elemento-chave para essa transformação. Com o avanço das populações e das complexidades sociais, o jornalismo assume um papel que a comunicação interpessoal direta já não era capaz de suprir. Assim, ele abraça a função de amplificador coletivo da educação que se dá no âmbito particular.

O jornalismo se tornou um espaço das elites: alimentado, comandado e direcionado por elas. A apropriação desse meio por parte da sociedade comum é basilar para a transformação social. Sem essa apropriação, grande parte da população cai na Espiral do Silêncio.

Essa teoria baseia-se na observação de que, quando um determinado assunto é amplamente difundido nos meios de comunicação de massa, ele pode uniformizar a opinião pública e faz com que opiniões contrárias percam força, esvaindo-se até que caiam em uma espiral de silêncio. A razão principal desse processo, segundo Noelle-Neumann, é o medo da rejeição que assume o controle das mentes opositoras, forçando-as a se calarem.

Dessa forma, o jornalismo pode funcionar como instrumento de dominação. Pode ser uma ferramenta de manutenção do poder e não de contestação. O poderoso, quando domina o processo comunicacional do jornalismo, vale-se desse poder para manter ou aumentar sua opressão. O resultado, nesse cenário, é o da desinformação, em que o leitor (receptor da mensagem) não apreende ou não recebe em sua totalidade a informação almejada.

No melhor dos casos (escreve Schulz) ele é informado superficialmente sobre os fatos, personagens e temas em destaque que dominam as discussões dos assuntos atuais. Não está capacitado a elaborar um conhecimento acumulativo e uma compreensão duradoura dos contextos políticos. (KUNCZIK, 2001, p.326).

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No contexto da redação do Jornal do Brasil, foi com o convívio de Raul Ryff, redator no JB e ex-secretário de imprensa de João Goulart, que o narrador começou a simpatizar mais com o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), relembrando um pouco de sua infância em uma rua de operários. Esta lembrança mostra que, desde jovem, Gabeira vê uma direita aristocrática, que não gosta de pobre, e uma esquerda mais igualitária.

Na tentativa de entender seu contexto político-partidário, o autor resgata a origem anarquista do PCB (Partido Comunista Brasileiro). A partir dessa análise, critica a postura de importação acrítica de ideias e modelos europeus, que não se sustentam em um contexto brasileiro. Coloca este ponto como a razão da queda dos movimentos anarquistas em 1922 e salienta que a crise que o PTB vivia em 1964 era muito parecida com o contexto daquele período. Esses apontamentos, segundo o narrador, direcionam para grandes mudanças na estrutura do país, que ainda eram incompreensíveis para o jovem Gabeira.

Uma possível leitura desses primeiros capítulos da obra é a de que o narrador está em busca de significados para as transformações vividas na década de 1960. É, de certa maneira, uma preparação para os eventos futuros da obra. Gabeira-narrador escancara sua inocência em uma crítica velada aos movimentos esquerdistas daquele tempo.

O narrador conta que o Partido Comunista lhe era muito misterioso à época. Não sabia direito do que se tratava:

Do Partido Comunista conhecia muito pouco, no princípio dos anos 60.

Quando menino todos os operários do meu bairro eram getulistas. Apenas seu Milton Barbeiro era comunista e o único líder famoso que o partido deu em Juiz de Fora foi Lindolfo Hill. A simpatia que havia por eles era a simpatia que havia por todos aqueles de quem a polícia não gostava. (GABEIRA, 2009, p.26)

Acrescenta que “as coisas tinham um sabor de século XIX, mas as questões que a luta interna foi colocando diante dos meus olhos eram muito mais sofisticadas que as minhas”

(GABEIRA, 2009, p.26). Para exemplificar sua inocência conta de uma assembleia estudantil de quando tinha 17 anos e não conseguia convencer os pais dos alunos a entrar em greve geral, quando um senhor se levanta e faz um discurso inflamado dizendo que, como pais, eles todos deveriam acatar a palavra de ordem da greve. Tempos depois encontra o mesmo senhor em um bar, bebendo. Conversando com ele, descobre que o senhor não tinha filhos.

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Ao mesmo tempo em que Gabeira constrói aos poucos seu narrador e personagem principal, também enumera alguns exemplos de jornais e jornalistas que foram resistentes a ditadura. Faz esse levantamento, evidenciando que não eram poucos os que tentavam resistir:

No nível da imprensa, o centro da oposição estava localizado no Correio da Manhã, de onde surgiram excelentes artigos condenando o governo. António Callado, Oto Maria Carpeaux, Carlos Heitor Cony, Márcio Moreira Alves e Hermano Alves eram alguns dos autores da crítica à ditadura. Os jornais chegavam às bancas e praticamente se esgotavam. Se a venda avulsa desse lucro, o Correio da Manhã daquela época teria prosperado rapidamente. A política de Castelo, que acabou culminando com a edição do AI-2, após a vitória da oposição em Minas e no Rio, era dissecada impiedosamente. Havia um outro jornal no Rio que se dedicava exclusivamente à oposição. Chamava- se Folha da Semana, era publicado em cores, azul e preto. Alguns dos articulistas eram os mesmos, como por exemplo Carpeaux e Artur José Poerner. O Correio da Manhã foi asfixiado pelo corte da propaganda. Só com

a venda avulsa não dava para agüentar. O Folha da Semana foi simplesmente fechado pelo Cenimar e seus diretores processados. O estopim foi um artigo acusando o ministro Suplicy de Lacerda de tentar corromper a liderança estudantil. Na verdade, os órgãos de segurança diziam ser o Folha da Semana um órgão simpático ao Partido Comunista Brasileiro e iriam fazer todo esforço para demonstrar essa conexão. (GABEIRA, 2009, p.29)

A estratégia de minar um jornal pelo corte de propaganda não era novidade na imprensa brasileira. Nos anos de 1930 e 1940, o governo Getúlio Vargas, no Estado Novo, já exercia influência estatal sobre as empresas (com ameaças de cortes nos contratos com o governo, ameaças de uso da máquina pública para prejudicar empresas etc.) a fim de que o sustento da imprensa ficasse limitado à venda em bancas.

Essa tática governamental é extremamente funcional porque a estrutura financeira de publicações jornalísticas se dá em uma relação triangular, cujos vértices são o produtor da informação (jornal), o público leitor e a indústria e o comércio (publicidade). Assim, um jornal, para sobreviver, necessita da verba que procede do público, por meio de assinaturas e vendas em bancas, e da verba proveniente da publicidade. Regido também pelas leis de mercado, as publicações reduzem o custo para o leitor com o intuito de vender mais, e repassam esse custo aos anunciantes, ficando “reféns” desse investimento. Quando qualquer player do mercado financeiro atua para prejudicar os investimentos de anunciantes na imprensa, os jornais ficam sem alternativas de sobrevivência comercial, estando fadados, muitas vezes, à falência.

É interessante notar que a asfixia comercial articulada pelo governo é uma tática muito sagaz, uma vez que maquia a censura. A restrição autoritária do que deve ou não ser publicado

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corre nas sombras das influências do jogo político, invisível à população comum e tão perigoso quanto um empastelamento, como foi o caso do Folha da Manhã, por parte do Cenimar10.

Aos olhos do narrador, a imparcialidade jornalística, por vezes tão defendida nas cátedras, neste período de repressão serviu como correntes que prendiam os jornalistas aos textos passivos e condescendentes. A criatividade se tornou um instrumento de resistência.

Quando você é repórter e quer participar da oposição, não pode usar juízos de valor nem adjetivos como os grandes articulistas que têm um espaço a sua disposição. O que você pode fazer é organizar os fatos de forma tal que incomode o adversário. Foi assim comigo, que morria de inveja do que se fazia no Correio da Manhã. (GABEIRA, 2009, p.29-30).

O personagem principal, neste começo da obra, está se formando, apresentando os moldes que forjam seu comportamento. Sua frustração em fazer oposição nos jornais é basilar em suas decisões, especialmente em participar da luta armada contra a ditadura. A maneira como o narrador coloca as questões dos jornais e da repressão parece uma tentativa de interpretação de sua futura afiliação às fileiras da luta armada.

Outro elemento formador do caráter do personagem principal é a sua ligação com o marxismo. Sua interpretação das estratégias governamentais de arrocho salarial para contenção da inflação (colocadas em 1964) evidencia essa linha de pensamento. “Em alguns casos, jogavam com o pavor da dissolução das diferenças entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Diziam: os estivadores estão querendo ganhar tanto quanto um médico. É um absurdo, uma república sindicalista” (GABEIRA, 2009, p.30-31).

A ideia marxista de que se vale o narrador é a da alienação e da ideologia. Segundo este pensamento, o trabalho é fundamental na interpretação das relações humanas, porque ele é essencialmente condição humana. O grande diferencial do homem é o fato de ele se apropriar da natureza por meio do trabalho. O conceito de alienação surge quando, socialmente, separa- se do trabalhador os resultados de seu trabalho, transformando-o em mercadoria. Assim, o trabalhador não tem autonomia: o trabalho é mercadoria e seu resultado é usufruído por outros.

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a força intelectual dominante. A classe

10 “Centro de Informações da Marinha. Teve importante papel na repressão às organizações de resistência do governo. Sua área de atuação era o Rio de Janeiro.” (GABEIRA, 2009, p.208)

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