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FREDRIK BACKMAN BEARTOWN. A cidade dos grandes sonhos. Tradução de Elsa T. S. Vieira

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Academic year: 2021

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FREDRIK BACKMAN

BEARTOWN

A cidade dos grandes sonhos

Tradução de Elsa T. S. Vieira

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Uma noite, em finais de março, uma adolescente pegou numa caçadeira de canos duplos, entrou na floresta, encostou a arma à testa de outra pessoa e puxou o gatilho.

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Bang-bang-bang-bang-bang.

Em Björnstad1, é uma sexta-feira em princípios de março e ainda

não aconteceu nada. Está toda a gente à espera. Amanhã, a equipa de juniores do Clube de Hóquei no Gelo vai jogar as meias-finais do maior torneio de jovens do país. Que importância poderá ter um evento desses? Na maior parte dos sítios, não muita, claro. Mas Björnstad não é como a maior parte dos sítios.

Bang. Bang. Bang-bang-bang.

A cidade acorda cedo, como acontece todos os dias; as cidades pequenas precisam de um certo avanço se querem ter hipótese de chegar a algum lado neste mundo. Os carros arrumados no parque de estacionamento em frente da fábrica já estão cobertos de neve, en-quanto as pessoas avançam em filas silenciosas, de olhos meio aber-tos e mentes meio fechadas, à espera de que os cartões magnéticos confirmem a sua existência no relógio de ponto eletrónico. Batem com as botas no chão para sacudir a lama, com olhos em piloto auto-mático e vozes de gravador de mensagens, e esperam que a sua droga de eleição – seja cafeína, nicotina ou açúcar – comece a fazer efeito e lhes deixe o corpo pelo menos minimamente funcional até à hora da primeira pausa.

Na estrada, lá fora, outras pessoas seguem caminho para as ci-dades maiores que ficam para além da floresta. Batem com as mãos

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enluvadas nas saídas de ar quente dos carros e soltam o tipo de im-precações que uma pessoa só ousa proferir quando está bêbada, mo-ribunda ou sentada num Peugeot gelado a esta hora madrugadora.

Se estivessem em silêncio, conseguiriam ouvir à distância:

Bang--bang-bang. Bang. Bang.

Maya acorda e fica na cama, a tocar guitarra. As paredes do quarto estão cobertas por uma mistura de desenhos a lápis e bilhetes guardados de concertos a que assistiu em cidades longe daqui. Muito menos dos que gostaria de ter visto, mas bastantes mais do que aque-les que os pais tinham de facto autorizado. Adora tudo na sua gui-tarra – o peso contra o seu corpo, a forma como a madeira responde quando nela tamborila com as pontas dos dedos, as cordas que lhe vincam a pele dos dedos. As notas simples, os riffs suaves – para ela, é tudo um jogo maravilhoso. Tem quinze anos e já se apaixonou mui-tas vezes, mas a guitarra será sempre o seu primeiro amor. Ajudou-a a tolerar a vida em Björnstad e a lidar com o facto de ser a filha do diretor-geral de uma equipa de hóquei no gelo no meio da floresta.

Maya detesta hóquei, mas compreende o amor do pai pelo des-porto: é apenas um instrumento diferente do dela. Às vezes, a mãe segreda-lhe ao ouvido: «Nunca confies numa pessoa que não ame pelo menos uma coisa na vida de forma completamente irracional.»

A mãe ama um homem que ama um sítio que ama um desporto. Esta é uma cidade de hóquei, e há muita coisa que se poderia dizer sobre esse tipo de cidades, mas, pelo menos, são previsíveis. Quem aqui vive sabe o que pode esperar. Dia após dia após dia.

Bang.

Björnstad não fica perto de nada. Até nos mapas parece esqui-sita. «Como se um gigante embriagado tivesse tentado escrever o nome com mijo na neve», poderão dizer alguns. «Como se homem e natureza estivessem a lutar por espaço», diriam almas mais sen-síveis. De qualquer maneira, a cidade está a perder a luta. Há muito tempo que não ganha nada. Todos os anos desaparecem mais em-pregos e, com os emem-pregos, vão-se as pessoas, e todas as estações a floresta devora mais uma ou duas casas abandonadas. No tempo

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em que ainda tinham algo de que se vangloriar, a câmara municipal ergueu um cartaz ao lado da estrada, à entrada da cidade, com o tipo de slogan que era popular na altura: «Björnstad – ficará com fome de voltar!» O vento e a neve demoraram apenas alguns anos a apagar as palavras «de voltar». Às vezes, toda a comunidade se sente como se fosse uma experiência filosófica: se uma cidade cai na floresta, mas ninguém a ouve, terá alguma importância?

Para responder a essa pergunta, é preciso caminhar umas cen-tenas de metros, em direção ao lago. O edifício que aí se encontra pode não parecer grande coisa, mas é um rinque de gelo. Cons-truído há quatro gerações por operários fabris, homens que traba-lhavam seis dias por semana e precisavam de ter qualquer coisa por que ansiar no sétimo. Todo o amor que esta cidade conseguiu der-reter foi passado de geração em geração e parece acabar ainda hoje dedicado ao jogo: gelo e tábuas, linhas vermelhas e azuis, sticks e discos, e toda a determinação e força dos corpos jovens que se lan-çam a toda a velocidade para os cantos do rinque, na perseguição a esses discos. As bancadas enchem-se todos os fins de semana, ano após ano, apesar de as proezas da equipa terem desabado a par da economia da cidade. Talvez até seja esse o motivo – porque toda a gente tem esperança de que a sorte da equipa, quando melhorar outra vez, ajude a reerguer o resto da cidade.

E é por isso que lugares como este têm sempre de depositar as suas esperanças de futuro nos jovens. Eles são os únicos que não se lem-bram de que as coisas já foram melhores, o que pode ser uma bênção. Assim, treinaram a equipa de juniores com os mesmos valores que os seus antepassados usaram para construir a comunidade: trabalhar arduamente, aguentar as pancadas, não se queixar, manter a boca fechada e mostrar aos filhos da mãe das cidades grandes de onde é que somos. Por aqui, não há muita coisa digna de nota. Mas qualquer pessoa que cá tenha estado sabe que é uma cidade de hóquei.

Bang.

Amat está quase a fazer dezasseis anos. O seu quarto é tão pe-queno que, se fosse num apartamento maior, num bairro abastado de uma cidade grande, mal poderia ser considerado uma despensa.

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As paredes estão repletas de posters de jogadores da NHL, com duas exceções. A primeira é uma fotografia de si próprio, aos sete anos, com umas luvas demasiado grandes e o capacete caído até ao meio da testa, o mais pequeno dos rapazes no rinque de gelo. A outra é uma folha de papel branco no qual a mãe escreveu par-tes de uma oração. Quando Amat nasceu, ela ficou deitada com ele em cima do peito numa cama estreita, num pequeno hospital do outro lado do planeta, como se fossem as duas únicas pessoas à face da Terra. Uma enfermeira murmurou então a oração ao ouvido da mãe – dizia-se que era a oração escrita na parede por cima da cama de Madre Teresa –, na esperança de assim dar alguma força e espe-rança àquela mulher solitária. Quase dezasseis anos depois, o papel ainda está colado na parede do quarto do filho. As palavras talvez não estejam certas na totalidade, mas ela escreveu-as o melhor que as conseguia recordar:

Se fores honesto, podem enganar-te. Mesmo assim, sê honesto. Se fores bondoso, podem acusar-te de egoísmo. Mesmo assim, sê bondoso.

Todo o bem que fizeres hoje pode ser esquecido amanhã. Mesmo assim, faz o bem.

Amat dorme com os patins ao lado da cama, todas as noites. «Deve ter sido complicado para a tua pobre mãe dar-te à luz já de patins calçados», costuma dizer o guarda do rinque, para se meter com ele. Já se ofereceu para o deixar guardar os patins num cacifo no armazém da equipa, mas Amat gosta de os levar quando vai para o rinque e de os trazer consigo depois. Quer tê-los sempre por perto.

Amat nunca foi tão alto como os outros jogadores, nunca foi tão musculado como eles, nunca disparou o disco com tanta força. Mas ninguém na cidade o consegue apanhar. Ninguém, em nenhuma das equipas com que se cruzou até agora, é tão rápido como ele. Não sabe explicar porquê, mas calcula que é mais ou menos o que acontece quando as pessoas olham para um violino: algumas veem apenas um monte de madeira e parafusos, enquanto outras veem música. Nunca

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se sentiu limitado pelos patins. Pelo contrário, quando enfia os pés num par de sapatos normais, sente-se como um marinheiro em terra firme.

As últimas linhas que a mãe escreveu naquela folha de papel na parede do seu quarto dizem o seguinte:

Aquilo que criares pode ser destruído por outros. Mesmo assim, cria.

Porque, no fim, é entre ti e Deus. Nunca foi entre ti e mais ninguém.

Logo por baixo, a lápis vermelho, na caligrafia determinada de um aluno da escola primária, diz:

Dizem que sou muito pequeno para jogar! Mesmo assim, vou ser um bom jogador!

Bang.

Uma vez, há muito, muito tempo, a equipa principal de hóquei no gelo de Björnstad – a que fica acima dos juniores – foi a segunda melhor da primeira divisão nacional. Passaram entretanto mais de duas décadas e a equipa desceu três divisões, mas amanhã Björns-tad vai jogar de novo contra os melhores. Então, que importância pode ter afinal um jogo de juniores? Até que ponto pode uma cidade estar interessada nas meias-finais que um bando de adolescentes vai jogar num torneio de uma liga pouco importante? Não muito, é claro. Se não se tratasse deste pontinho específico no mapa.

Uns duzentos metros a sul do cartaz à beira da estrada ficam os Montes, um pequeno aglomerado de casas caras com vista para o lago. As pessoas que vivem nelas são proprietárias de supermerca-dos, diretoras de fábricas ou aquelas que têm empregos melhores em cidades maiores, onde os colegas, nas festas da empresa, per-guntam, de olhos muito abertos: «Björnstad?! Como é que conse-gues viver tão longe, no meio da floresta?» Eles dão uma resposta qualquer sobre caça e pesca, ou mencionam a proximidade da na-tureza; porém, hoje em dia, quase todos começam a perguntar-se se

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conseguirão mesmo continuar a viver ali. Perguntam-se se restará alguma coisa além do valor das propriedades, que parece baixar tão depressa como as temperaturas.

Referências

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