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DEGREDO E TRAJETÓRIAS DEGREDADOS NA COLÔNIA DO SACRAMENTO (SÉCULO XVIII)

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DEGREDO E TRAJETÓRIAS DEGREDADOS NA COLÔNIA DO SACRAMENTO (SÉCULO XVIII)

ALUÍSIO GOMES LESSA Mestrando em História PPGH - UFRGS / Bolsista CNPq aluisiolessa@gmail.com

O degredo no Império Português, assim como em outros Estados da Europa moderna, pode ser compreendido tanto como um mecanismo punitivo como uma forma de reaproveitamento dos degredados nos domínios ultramarinos. Enquanto punição o degredo caracterizou-se pela aplicação de uma pena que resultava na expulsão territorial do condenado, o que dependendo da gravidade do crime cometido poderia envolver desde o cumprimento de trabalhos navais forçados nas galés, passando pelo exílio em localidades próximas e chegando a expulsão para as regiões mais longínquas do império português. Por outro lado, a Coroa via nesses criminosos também uma mão de obra disponível para ser utilizada na colonização e defesa de seus vastos domínios ultramarinos.

Entre as várias regiões longínquas que figuraram como destino de degredados ao longo da história do Império Português esteve a Colônia do Sacramento. Durante o século XVIII a praça portuguesa às margens do Rio da Prata recebeu tanto condenados vindos de Portugal quanto os provenientes das capitanias da América Portuguesa, muitos deles enviados para lá para defender a praça diante das disputas entre portugueses e espanhóis pelo domínio da região.

Esta apresentação estará centrada nas possibilidades de reconstituição de trajetórias de condenados a cumprir suas penas de degredo em Colônia do Sacramento e de como suas experiências se relacionam com a trajetória do domínio português naquela região durante o século XVIII. Os vestígios sobre esses degredados podem ser encontrados em diferentes tipos de documentos, como as fontes administrativas, que incluem cartas régias, ofícios e petições e que podem informar sobre a aplicação e

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desdobramentos das penas de degredo. Há ainda os processos inquisitoriais, que possibilitam compreender as motivações para a condenação ao degredo e também as especificidades da concepção de criminalidade do antigo regime. Por fim, as fontes paroquiais também apresentam um grande potencial para se investigar a trajetória dos degredados, pois podem informar sobre o quanto estes sujeitos conseguiram se inserir nas sociedades para onde foram enviados, através da análise da constituição de famílias, alianças através de relações de compadrio e também a posse de escravos por meio de registros de batismos.

I. Gregório Gomes Henriques

A primeira fundação da Colônia do Sacramento ocorreu em 1680, às margens do Rio da Prata, em uma região de “fronteira múltipla”, limite meridional entre as coroas ibéricas na América onde convivam espanhóis, portugueses, missionários jesuítas, índios Tapes, Minuanos e Charruas. (PRADO, 2002: 21-22). Era um espaço que facilitava as trocas comerciais, especialmente o lucrativo contrabando no Rio da Prata, ao mesmo tempo em que exigia atenção constante quanto a defesa dos territórios ali estabelecidos, e não seria diferente com a Colônia do Sacramento. As ameaças à sobrevivência do domínio lusitano sobre a praça logo apareceram, e poucos meses após sua fundação a localidade foi destruída pelas forças espanholas. No entanto, em 1682 os lusitanos se reestabeleceriam em seu posto avançado no Prata, onde enfrentaram novas hostilidades até novamente se retirarem em 1705.

Foi durante este período inicial de Sacramento que o sujeito aqui analisado, Gregório Gomes Henriques esteve na região. Já desde o início da década de 1680 os primeiros degredados começaram a ser enviados para lá e a região passou a integrar o sistema de degredo que se estendia pelos domínios ultramarinos do Império Português. (POSSAMAI, 2006: 165; ALMEIDA, 1973: 66-67).

Gregório teve um papel relevante na história da engenharia militar do Brasil. De origem portuguesa, em 1694 foi nomeado capitão engenheiro da capitania do Rio de Janeiro, data em que também se tornou o primeiro professor da primeira aula militar da

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cidade, cujo objetivo era instruir sobre a reparação de fortificações (GAMA, 2011: p.8). Ainda em 1694 também tornou-se capitão de artilharia, após a morte do antigo ocupante do posto. (AHU- ACL- N-RJ, n. 600). No entanto, em 1697 acaba sendo preso após uma denúncia feita pelo governador sobre o trabalho que este vinha realizando no Rio de Janeiro, fato que não impediu que o engenheiro continuasse a ensinar artilharia e a dirigir as obras de fortificação. (CAVALCANTI, 204: p. 249; GAMA, op.cit.). Dois anos depois, Gregório foi apontando como nome para ser o diretor de uma Aula de Fortificação que seria criada na cidade, no entanto não há evidências de que ele tenha de fato assumido o cargo, e em curto período de tempo ele já seria forçado a cumprir pena de degredo no extremo sul.

Os detalhes de sua condenação não são revelados pela documentação que faz referência a ele, no entanto, sua pena foi aquela aplicada aos delitos considerados leves, uma vez que não ultrapassou os cinco anos de degredo. Talvez sua condenação possa ter relação com as denúncias que o governador do Rio de Janeiro fez ao rei em 1697. Ao menos sabe-se com segurança que em 1701 ele se encontrava cumprindo sua pena de degredo e que em 1706 ele já se encontrava novamente no Rio de Janeiro. (RIBEIRO, 2009: p. 107)

A presença de uma figura como Gregório entre os degredados que foram enviados para o extremo meridional da América lusitana oferece uma possibilidade de análise interessante, uma vez que demonstra que não foram apenas as massas de gente desqualificada que frequentemente aparecem na historiografia que foram degredados para a região. Através do estudo de sua trajetória percebe-se que ao lado de muitos degredados que receberam descrições pouco elogiosas por parte das autoridades coloniais também existiram degredados muito qualificados como no caso deste engenheiro-militar requisitado para ocupar importantes cargos pelas autoridades coloniais.

Assim como havia ocorrido no Rio de Janeiro, quando o engenheiro-militar continuou a exercer suas funções apesar de preso, também durante o período em que esteve degredado ele seguiu prestando seus serviços ao Império Português. Isto foi possível porque a legislação sobre o degredo permitia que os condenados circulassem e

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dessem continuidade às suas vidas nos locais para onde eram enviados, desde que se mantivessem dentro dos limites dessas localidades. Para a Coroa era bastante útil que a situação se desse de tal modo, pois uma vez que a ocupação e manutenção dos territórios coloniais exigia grandes contingentes populacionais, deixar estes condenados ociosos representaria um grande desperdício de mão de obra. No entanto, o valor que figuras com uma formação especializada tinham para a Coroa era ainda mais elevado, uma vez que a falta de profissionais qualificados era um problema constante na Colônia e os degredados com este perfil poderiam inclusive receber um tratamento privilegiado das autoridades.

Desse modo, a presença de um capitão-engenheiro como Gregório Gomes Henriques, apto a projetar obras de fortificação acabou sendo muito bem aproveitada pelas autoridades coloniais em uma região fronteiriça em que os embates com os espanhóis eram constantes. Isto verifica-se assim que ele chega na região, quando é mencionado em uma carta em que o rei D.Pedro II traz instruções sobre a defesa da praça: “trateis logo de a fortificar em tal forma que fique com a defesa que se necessita, fazendo-se lhe aquelas obras que parece ao engenheiro Gregório Gomes Henriques, que aí se acha” (AHU- C.Ult – 224, fl. 10v in: ALMEIDA, op.cit., 408-9). Em 1703 Gregório ainda estava envolvido nas obras, quando copia e traduz um mapa castelhano do Rio da Prata (ALMEIDA, op.cit, 213).

Após retornar ao Rio de Janeiro, Gregório terminou sua vida em Salvador, para onde sua presença havia sido solicitada para mais um trabalho importante, nas fortificações daquela cidade. Isto demonstra que o período em que esteve degredado em Colônia do Sacramento não representou um fim para a sua carreira como engenheiro-militar, pois continuou exercendo seu ofício tanto no extremo-sul da América Portuguesa quanto após o cumprimento de sua pena, quando continuou a ser requisitado em função de sua qualificação profissional. (RIBEIRO, op.cit., 108).

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Após a tomada de Colônia do Sacramento pelas forças espanholas em 1705, uma nova fase da presença portuguesa na região platina se iniciaria somente em 1715, após a assinatura do tratado de Utrecht. Os embates entre as duas coroas ibéricas, no entanto, prosseguiram, pois os castelhanos se sentiam lesados pelo contrabando da prata potosina, ao mesmo tempo em que índios e povoadores das missões se opunham à concorrência na exploração do gado selvagem representada pelos portugueses. O ápice das animosidades deste período foi o cerco espanhol aos portugueses de Sacramento, entre 1735 e 1737, que foi rompido graças ao envio de expedições de socorro vindas da América Portuguesa (POSSAMAI, op.cit.: 21-23).

Durante o século XVIII, assim como havia ocorrido no final do século XVII, a chegada de degredados à praça foi frequente, e a Colônia do Sacramento acabaria consolidando o seu papel enquanto um importante destino de degredados para o sistema de degredo do Império Português. Como apontou Almeida,

Num tempo em que toda a gente disponível era pouca para a colonização de áreas vastíssimas, não se admira que se recorresse muitas vezes aos próprios criminosos, dos quais se procurava assim tirar alguma utilidade social. A Colônia do Sacramento não escapou ao destino de tantas praças longínquas. (1973: 67-68).

Foi neste período das primeiras décadas do século XVIII que Salvador Brochado de Mendonça, o segundo degredado aqui analisado chegou ao Rio da Prata, onde ocupou diferentes postos militares. A presença de militares na Colônia do Sacramento era expressiva, devido aos inúmeros conflitos que ocorreram entre Portugal e Espanha pelo controle da região, que exigiram a mobilização de um grande número de militares. Do mesmo modo, a presença de degredados ocupando funções militares ali também parece ter sido expressiva, uma vez que constituição das forças militares esbarrava na resistência da população ao serviço militar, já que isto significaria péssimas condições de vida, com soldados sujeitos à violência dos oficiais e soldos atrasados. Dessa forma, uma das alternativas encontradas pela Coroa foi utilizar criminosos, malfeitores e vagabundos na defesa de seus territórios (POSSAMAI, op.cit., 162).

Enquanto muitos dos soldados que chegaram ao extremo sul parecem ter se tornado militares somente em função de seu envio para a Colônia do Sacramento, a

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análise da trajetória de Salvador Brochado de Mendonça oferece algumas peculiaridades interessantes para a análise do degredo. Isto deve-se ao fato de que, ao ser condenado ao degredo no início da década de 1730 ele já vinha servindo como soldado na guarnição do Rio de Janeiro (AHU-ACL-N-RJ- 2279). Em julho de 1733 o degredado chegou à Colônia para cumprir sua pena, que foi estabelecida em cinco anos, o que significa que qualquer que tenha sido o seu crime, não foi considerado grave (AHU-ACL-N- Colônia do Sacramento e Rio da Prata – 463).

Outro dado relevante da trajetória de Salvador Brochado é que, diferentemente de muitos homens cujo recrutamento para servir com soldado significava uma verdadeira condenação, este degredado conseguiu construir uma carreira militar, o que se verifica por meio das diversas promoções que recebeu enquanto esteve servindo em Sacramento. Ainda em 1733, portanto no primeiro dos seus cinco anos de condenação, passou de soldado para cabo de esquadra (AHU-ACL-N- Colônia do Sacramento e Rio da Prata – 463). Em 1739, um ano após o término dos cinco anos previstos para seu degredo, Salvador Brochado passa de cabo de esquadra para sargento supra (AHU-ACL-N- Colônia do Sacramento e Rio da Prata – 2279). Este dado é interessante, pois apesar de sua condenação já ter sido cumprida, e, portanto, o condenado estar livre para deixar a localidade para onde havia sido enviado, demonstra que Salvador Brochado continuou na região. Outros documentos de datas posteriores comprovam a continuidade do militar na praça, demonstrando que mesmo livre para retornar ao Rio de Janeiro, preferiu se estabelecer no Prata. Exemplos disto são uma nova promoção, em 1744, para sargento do número e, o fato de que na lista de moradores da praça datada de 1749, o “sargento Salvador Brochado” possuir um escravo, o que aponta para o fato do militar que iniciou sua carreira como degredado ter conseguido reunir alguns recursos durante sua trajetória em Sacramento.

No caso de Salvador Brochado de Mendonça o degredo não parece ter significado uma mácula terrível ou uma interrupção destrutiva em sua vida, uma vez que sua expulsão do Rio de Janeiro e envio forçado para a Colônia do Sacramento parece ter se transformado em uma oportunidade da construção de uma carreira marcada pela ascensão na hierarquia militar. Alguns documentos de autoridades do período atestam as suas qualidades, considerado zeloso, bem comportado e merecedor pelo

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governador Antônio Pedro de Vasconcelos e recebendo elogios por seus sua participação “em toda a guerra daquela Praça, principiando a mostrar seu préstimo e zelo com que servia na reedificação dos baluartes e muralhas desta, trabalhando pessoalmente e fazendo trabalhar aos [de]mais...” (AHU-ACL-N-RJ- 2279).

Sua trajetória prosseguiu com sua nomeação para alferes, desta vez para a Ilha de Santa Catarina, em 1752. No mesmo ano ele solicita que “se levante a nota que tiver em seu assento pelo crime por que foi degredado para a praça da Nova Colônia do Sacramento e se lhe passe fé de oficio do tempo em que serviu naquela praça, visto ter cumprido a pena e ter continuado no serviço real”, demonstrando a sua preocupação com que o cumprimento de sua pena fosse reconhecido, bem como sua continuidade nas forças militares coloniais, mesmo passada mais de uma década desde o fim de sua condenação. A última informação que se tem de Salvador Brochado data de 1753, quando ele recebe mais uma promoção, alcançando o posto de tenente e retornando a Colônia do Sacramento.

III. Gabriel Theodoro de Sá

O último dos três degredados analisados esteve em Colônia do Sacramento no período final de domínio lusitano na praça. Após o fim do cerco espanhol à localidade, entre 1735 e 1737, houve um período de reaproximação entre as duas Coroas. No entanto, em 1761 os conflitos entre Portugal e Espanha fizeram-se sentir novamente no Prata, quando o governador de Buenos Aires toma temporariamente Sacramento. Com a continuidade dos portugueses na praça, a perda definitiva da praça para os espanhóis se dá em 1777 após a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso.

Gabriel Theodoro de Sá era português. Em 1744 foi degredado por toda a vida para Angola, o que demonstra a grande gravidade do delito que teria cometido. Ao chegar ao seu destino para cumprir sua pena, continuou cometendo ilicitudes e após furtar as firmas de ministros no Tribunal da Relação recebeu a pena corporal de açoitamento (AHU- CS- 513). A documentação não é clara sobre como Gabriel deixou Angola e foi parar na Colônia do Sacramento, mas entre as possibilidades previstas pela

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legislação está a da pena original, que em seu caso foi degredo perpétuo para Angola, ser comutada, por meio da alteração do destino ou tempo da pena a ser cumprida.

De qualquer modo, o fato é que a partir de 1751 pode-se verificar a sua presença na América Portuguesa, na Colônia do Sacramento. O degredado é descrito por autoridades coloniais como um “rábula”, espécie de advogado sem formação na área, e parte dos seus muitos delitos aos quais as autoridades fazem referência parecem ter ligação com esta atividade (AHU- CS-513).

As fontes paroquiais trazem uma série de informações sobre Gabriel Theodoro que apontam para as possibilidades de um degredado se inserir na comunidade para onde era enviado. Nos registros de batismos de escravos de Colônia do Sacramento presentes no Arquivo da Cúria Metropolitana no Rio de Janeiro Gabriel é mencionado por ocasião do batismo de nove escravos entre 1756 e 1773, filhos de quatro escravas de sua propriedade (ACMRJ – Colônia do Sacramento – 4º Livro de batismos de escravos). Este dado fornece um indício importante sobre a sua condição social, já que revela que detinha certas posses.

São também as fontes paroquiais que revelam que Gabriel constituiu família, casando-se com Inácia da Silva, com quem teve pelo menos seis filhos. A partir das informações contidas nos registros de batismos de livres sobre seus filhos, nascidos entre 1751 e 1758 é possível obter algumas informações importantes sobre as relações que ele estabeleceu em sua trajetória na Colônia do Sacramento. Joaquina, a primeira entre seus filhos listados no livro, teve como padrinho Manuel Botelho de Lacerda, mestre de campo e juiz da Alfândega da Colônia. Outros dois filhos. Luís e José foram apadrinhados pelo governador de Colônia, Luis Garcia de Bivar.(KUHN, 2011: 9) As relações de compadrio com figuras importantes da localidade, bem como o envolvimento de tais figuras com o contrabando no Rio da Prata são indícios importantes para investigar tanto com quem Gabriel Theodoro se relacionava como com que tipo de atividades ele estava envolvido.

Em 1759 Gabriel realizou um pedido para continuar a residir em Colônia do Sacramento, o que demonstra que sua pena de degredo já havia sido cumprida. Sobre este pedido, Gomes Freire de Andrade relatou a Luis Garcia de Bivar que:

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estava para me falar Gabriel Theodoro e me vinha apresentar uma ordem para residir nessa praça [...] e eu visse uma sentença da relação; diz que a seu favor. E referia ao mesmo tempo sua mulher apresentado outro exemplar a V.S.. Pareceu-me não perder tempo em ver o dito requerimento e lhe assegurei, se o fizesse para a sua família sair dessa para outro presídio [...]. Não sei o rumo que leva, mas vai certo que de mim não obterá mais que o desengano que lhe dei, de ser impossível permitir sua residência em essa praça. (ANRJ, Colônia do Sacramento, códice 94, vol. 5, fl.78v)

De fato a negativa da permissão de residência percebe-se pela ausência, por mais de seis anos, de Gabriel nos registros relativos a Colônia do Sacramento. Sua saída de Colônia parece ter se dado em 1760, quando o governador Fonseca relata que, com objetivo de encontrar aquele “inquietador do sossego” fez correr a notícia de que “muito precisava aquele homem, tão jurídico e ciente em Leis, para me ajudar ao despacho” e quando o encontrou, mandou prender ele e a mulher, “instruída em suas cavilações”, que foram mandados para a Ilha de São Gabriel para que embarcassem para algum navio que estivesse de partida para o Rio de Janeiro (AHU-CS-513). Este dado é interessante porque aponta para existência de múltiplas formas de expulsão territorial, que não necessariamente envolveram uma acusação e julgamento que tenham resultado em uma condenação ao degredo. Neste caso parece que Gabriel e sua mulher foram presos e expulsos de por conta de suas atividades ilícitas sem que, no entanto, tenham sido oficialmente degredados.

Se o casal chegou de fato ao Rio de Janeiro não é possível saber, no entanto a documentação informa sobre a sua presença na Ilha de Santa Catarina no período, onde continuou a cometer ilicitudes:

sendo homem tão revoltoso que até na Ilha de Santa Catarina de apresentou a Camara com uma provisão falsa em nome de Vossa Real Majestade, e dizendo na mesma que a Vossa real majestade o tinha dispensado dos anos de estudo na universidade de Coimbra, e constituído bacharel formado para que pudesse advogar em qualquer parte o que com efeito aqui está fazendo, por faculdade que lhe foi prometida. (AHU- CS-1767).

Após esta ausência, em que Gabriel Teodoro parece ter estado na Ilha de Santa Catarina, seu nome volta a aparecer nos registros de Colônia em 1766, permanecendo lá pelo menos até 1753. Neste seu período final na localidade o rábula parece ter seguido com as atividades que realizava antes de ter sua permanência negada e ser expulso, uma vez que segue aparecendo como proprietário de escravos nos registros de batismos. Embora não se saiba o que motivou, após a sua expulsão, que lhe fosse permitido

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retornar a viver na região, o fato é que o português degredado inicialmente para Angola e que posteriormente passou a viver na Colônia do Sacramento parece ter se estabelecido ali, constituindo família, possuindo escravos, tendo relações de compadrio com autoridades e outras figuras importantes da praça e sendo conhecido pelo seu domínio das leis. E mais do que isto, a continuidade de suas práticas ilícitas e o conhecimento destas pelas autoridades não o impediram de dar seguimento a sua trajetória de vida nas diferentes partes do Império Português para onde havia sido enviado.

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Ainda que as tentativas de reconstituir as trajetórias de degredados apresentem muitas lacunas, acabam oferecendo interessantes possibilidades de análise sobre a prática do degredo do Império Português. Ao se aproximar de três histórias específicas que tiveram suas vidas marcadas pela condenação ao degredo é possível realizar uma comparação com os registros que apresentam os degredados de forma mais genérica, normalmente como massas de pessoas pouco qualificadas e muito problemáticas para as autoridades coloniais. Quando nos aproximamos das histórias de Gregório Gomes Henriques, Salvador Brochado de Mendonça e Gabriel Theodoro de Sá é possível contemplar especificidades a prática do degredo que dificilmente seriam visíveis em descrições mais amplas sobre o tema.

Embora não seja possível saber até que ponto estes três casos representam a maioria dos degredados que estiveram na Colônia do Sacramento durante o século XVIII, suas histórias de vida possuem informações muito ricas para se compreender como o sistema de degredo praticado pelo Império Português afetava a vida dos seus condenados, ainda que nem todos os degredados tivessem possuído escravos, constituído famílias, ascendido na carreira militar ou tido uma formação especializada valorizada pela Coroa. Suas trajetórias de vida são capazes de fornecer informações de que nem sempre ser um degredado pode ser tomado como sinônimo de ser um miserável ou vagabundo, e que embora o fato de alguém ter sido expulso do local onde vive e enviado forçadamente para uma região às vezes muito distante marcasse sua vida

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não significava necessariamente a interrupção de suas trajetórias e nem a impossibilidade de se inserir na sociedade.

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Luis Ferrand de. A Colônia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1973.

CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista – A Vida e a Construção da

Cidade da Invasão Francesa até a Chegada a Corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar

Editor, 2004.

GAMA, Carlos Eduardo de Medeiros. A Real Academia Militar do Rio de Janeiro e a dimensão transcolonial da cultura militar portuguesa (1810-1822). Anais do

XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, 2011.

KUHN, Fábio. Os interesses do Governador: Luis Garcia de Bivar e os negociantes da Praça da Colônia do Sacramento (1749- 1760). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.

POSSAMAI, Paulo César. A vida quotidiana na colônia do Sacramento : (1715-1735). Lisboa : Ed. Livros do Brasil, 2006.

PRADO, Fabrício. A Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa no século XVIII. Porto Alegre: F.P.P., 2002

RIBEIRO, Dulcyene Maria. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes, matemática e ensino da engenharia militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 117

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