CATÓLICA DE
BRASÍLIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU EM DIREITO,
Mestrado em Direito
A TV JUSTIÇA E O PAPEL DA TV PÚBLICA NA EFETIVAÇÃO DOS
TRATADOS
Autor: CARLOS EDUARDO MARTINS DA CUNHA
Orientador: Prof. Dr. Jorge Fontoura
A TV JUSTIÇA E O PAPEL DA TV PÚBLICA NA EFETIVAÇÃO DOS
TRATADOS
Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito do curso de pós-graduação strictu
sensu da Universidade Católica de
Brasília.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Fontoura
Dissertação defendida, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu, e aprovada, em de 31 de março de 2006, pela banca examinadora constituída por:
__________________________________________________ Prof. Dr. Jorge Luis Fontoura Nogueira
(Orientador)
__________________________________________________ Prof. Dr. Antônio de Moura Borges
(Examinador Interno)
_____________________________________________ Prof. Dr. Ministro Carlos Ayres Britto
(Examinador Externo)
Ao Professor JORGE FONTOURA,
Que ainda na graduação já ensinara os primeiros passos na senda do direito internacional, e agora se consolida como guia e mestre dedicado neste novo e importante salto;
Ao jornalista IPEMERY CUNHA,
Modelo de ética e dedicação profissional, pai extremoso e que deixa saudade;
À “D. Neném”, MARIA APARECIDA CUNHA,
Mãe dedicada e sorriso nas horas difíceis, agora usufruindo a companhia do “Seu Ipê”; À bela CLEUMA,
Companheira inseparável e amor incondicional;
Aos AMIGOS DA TV JUSTIÇA,
[...] treaty is like an incoming tide. It flows into the estuaries and up the rivers. It cannot be held back.
Lord Denning, no Caso Balmer versus
Bollinger S.A., 1974, C.401, House of
Abreviaturas Art. para artigo Id. para idem Ibid. para ibidem
Siglas
ABPITv – Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Televisão
ADPERJ - Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro AMAB – Associação dos Magistrados da Bahia
AMB – Associação dos Magistrados do Brasil ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações APAMAGIS – Associação Paulista de Magistrados APAJUFE – Associação Paranaense de Juízes Federais
AMPERJ – Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro CESUMAR – Centro Universitário de Maringá
C.F. – Constituição Federal
CFOAB – Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil COFINS –
IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa IELF – Instituto Educacional Luiz Flávio
MPF – Ministério Público Federal MPT – Ministério Público do Trabalho
PUC – Pontifícia Universidade Católica
Radiobras – Empresa Brasileira de Comunicação S.T.F. – Supremo Tribunal Federal
TJMG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJRS – Tribunal de Justiça do rio Grande do Sul TRF – Tribunal Regional Federal
TRT – Tribunal Regional do Trabalho TVJ – TV Justiça
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS viii
RESUMO x ABSTRACT xi INTRODUÇÃO 15
CAPÍTULO I 16
O TRATADO COMO FONTE FORMAL E MATERIAL DE DIREITO INTERNO 16 Conflito entre Tratado Internacional e Direito Interno: Estado e Soberania 16
Estado 17 Soberania 23
Teoria Dualista 29
Teoria Monista 30
A importância e a atualidade do tratado como elemento de segurança jurídica em um mundo globalizado
33
As deficiências da cultura jurídica brasileira em relação ao direito das gentes e ao tratado
37
CAPÍTULO II 42
DIREITO DE ACESSO À INFORMAÇÃO 42
Formação do direito da comunicação 42
Liberdade de expressão: antecedentes históricos 44
Legislação de imprensa no Brasil 46
Da colônia ao império 46
República 48
Variantes teóricas e conceituais 55 Etapas modernas na evolução do conceito de acesso à justiça 56
Primeira onda 57
Segunda onda 58
Terceira Onda 59
Ações internas do Poder Judiciário para acesso à justiça, como estratégia de sobrevivência institucional
60
CAPÍTULO IV
A EXPERIÊNCIA DA TV JUSTIÇA Primórdios
62 62 62
Os modelos de gestão e de operação 67
Conteúdo e linha editorial 68
Telejornalismo 69 Julgamentos 71
Encenação de julgamentos 72
Entrevistas e Debates 73
CAPÍTULO V
PESQUISAS E COLETAS DE DADOS SOBRE A TV JUSTIÇA
73 73
Pesquisa qualitativa da TV Cultura 73
Forma de Produção e tipo de participação da TV Justiça com os programas de parceiros
Comunicação com o usuário e a imprensa especializada 82
Indicadores de impacto ou de transformação 83
Pesquisa Infojus 86
Consultor Jurídico 88
Opinião de advogados 91
95 95 95 99 CAPÍTULO VI
O TRATADO NA TV JUSTIÇA
A Valorização do Direito Internacional e a Demanda de Informação A Inserção da Temática dos Tratados na Programação da Tv Justiça
INTRODUÇÃO
Este trabalho aborda a efetividade dos tratados através da Tv Pública a partir do estudo de caso da Tv Justiça. Para começar, analisamos os antecedentes que formam o quadro que irá possibilitar a criação da emissora. Surge a questão: qual o contexto cultural em que ocorre a publicidade dos acordos internacionais que irão influenciar a vida dos cidadãos, muitas vezes sem que eles sequer tenham conhecimento desta influência?
Para o cidadão comum, o termo “tratado” soa como algo distante, referente ao universo da diplomacia, portanto um mundo à parte e com impacto nulo no cotidiano. Na verdade, no caso do Brasil, não apenas ao cidadão comum, mas também à parte significativa dos estudiosos do Direito é a realidade que se apresenta. “Décadas de autoritarismo, com a Constituição subjugada pelos atos institucionais, e mais que isso, solenemente ignorada e atropelada até por portarias de autarquias, fizeram com que no Brasil se relegasse a segundo plano os estudos constitucionais. Estes nunca davam aos aspectos relacionados com as relações internacionais o relevo merecido”.1
Mas por que os tratados internacionais deveriam ser objeto de maior preocupação do cidadão se é necessária e urgente a vigilância sobre o cumprimento de direitos fundamentais previstos na Constituição, não raro desprezados? Porque a influência destes acordos externos será direta no ordenamento jurídico nacional e, por conseguinte, na vida do indivíduo, como aponta o prefácio da obra citada de Cachapuz de Medeiros, assinada por Luiz Olavo Baptista: “Nos tratados, duas ordens jurídicas se entrelaçam: a internacional e a doméstica. Numa o aspecto que predomina é o contratual, noutra é o normativo. (...) O tratado implicando em obrigações para os súditos, fez com que estes passassem a exigir do soberano que os consultasse pois iriam pagar os custos da guerra ou da paz”(grifo nosso).2
1
Baptista, Luiz Olavo in Medeiros, Antônio Paulo Cachapuz de. O Poder de Celebrar Tratados – Competência dos poderes
constituídos para a celebração de tratados à luz do Direito Internacional, do Direito Comparado e do Direito Constitucional Brasileiro. Sérgio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre 1995. P. 09.
2
CAPÍTULO I
O TRATADO COMO FONTE FORMAL E MATERIAL DE DIREITO INTERNO
1. Conflito entre Tratado Internacional e Direito Interno: Estado e Soberania
No mundo moderno, os tratados continuaram implicando em obrigações; senão para os súditos, para os cidadãos. Isso passou a ser objeto de estudo sistemático a partir do fim do século XIX, embora a preocupação com o tema exista a aproximadamente “quatro séculos, desde quando, aliás, o aforismo International law is part of the law of the land, passou a informar a jurisprudência dos tribunais de presas inglesas”.3
À parte a consciência dos indivíduos sobre os efeitos das negociações e das assinaturas de acordos entre representantes diplomáticos e chefes de Estado, perguntas surgiram na definição de parâmetros para elaborar tratados, em particular no que referiu Luiz Olavo Baptista, ao falar sobre duas ordens jurídicas que se entrelaçam. Mirtô Fraga aponta algumas: “O Direito Internacional e o direito interno de cada Estado são duas ordens jurídicas distintas ou são aspectos do mesmo Direito? Se forem duas ordens distintas, emanando de fontes diversas, com estruturas diferentes, haveria relação entre elas? Poderia haver conflito entre suas normas? (...) qual deles teria prevalência: o interno ou o internacional?”4 Voltaremos a estas questões logo mais. Antes, é preciso repassar dois vocábulos para o entendimento delas: Estado e soberania. Da formulação teórica desses conceitos se dá a discussão.
3
Fraga, Mirtô O Conflito entre Tratado Internacional e Norma de Direito Interno: Estudo Analítico da Situação do Tratado
na Ordem Jurídica Brasileira. 1a ed. Rio de Janeiro. Forense. 1998. P. 04.
4
2. Estado
Fundamento moderno da elaboração dos tratados é o conceito de Estado. Rezek define os atores envolvidos neste processo: “As partes, em todo tratado, são necessariamente pessoas jurídicas de direito internacional público: tanto significa dizer os Estados soberanos – aos quais se equipara (...) a Santa Sé – e as organizações internacionais. Não tem personalidade jurídica de direito das gentes, e carecem, assim, por inteiro, de capacidade para celebrar tratados, as empresas privadas, pouco importando sua dimensão econômica e sua eventual multinacionalidade” - (grifo do autor).5
Relevante observar o papel das organizações internacionais neste quadro com limitações específicas. Cachapuz de Medeiros, com base em Cançado Trindade, afirma que “hoje, está assentado que as organizações possuem personalidade internacional e, portanto, capacidade para celebrar tratados, mas essa capacidade é limitada pelos propósitos e funções das próprias organizações, previstas em seus respectivos tratados constitutivos, ou nas decisões de seus órgãos, uma vez que os referidos tratados não podem tudo prever”.6 E completa, desta vez com base em Felipe H. Paolillo: “Os Estados, sujeitos primordiais do Direito Internacional, podem celebrar tratados de toda índole, enquanto as organizações só podem celebrar aqueles tratados que forem necessários para a consecução das suas finalidades específicas”.7
Visto isso, necessita-se trabalhar a definição de Estado. O conceito pode ser repassado de forma direta, como algo plenamente estabelecido: “Estado é uma organização destinada a manter, pela aplicação do Direito, as condições existenciais da sociedade, que ao
5
Rezek, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 2a ed. São Paulo. Saraiva. 1991. P. 18.
6
Medeiros, Antônio Paulo Cachapuz de. O Poder de Celebrar Tratados – Competência dos Poderes Constituídos para a
Celebração de Tratados à Luz do Direito Internacional, do Direito Comparado e do Direito Constitucional Brasileiro.
Sérgio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre 1995. P. 190.
7
Estado cumpre assegurar”.8 Mas para Ernst Wolfgang Boeckenfoerde, citado por Pierangelo Schiera, em obra organizada por Bobbio, a questão pode ser mais complexa. Analisando o Estado Moderno, conclui que “o conceito de ‘Estado’ não é um conceito universal, mas serve apenas para indicar e descrever uma forma de ordenamento político surgida na Europa a partir do século XIII até os fins do século XVIII ou inícios do XIX, na base de pressupostos e motivos específicos da história européia e que após esse período se estendeu (...) a todo o mundo civilizado”.9 É uma idéia que ocupa a mente de quem lida com filosofia política desde a antiguidade. Com mais exatidão, na referência cultural do Ocidente, desde a Grécia antiga com o surgimento das primeiras cidades-Estado. Antes, ainda, segundo a concepção elaborada por Jorge Miranda, temos as denominadas sociedades políticas pré-estaduais, “sociedades historicamente antecedentes da formação do Estado, ainda que não inelutavelmente conducentes à passagem a Estado: são, entre outras, a família patriarcal, o clã e a tribo, a gens
romana, a fratria grega, a gentilidade ibérica, o senhorio feudal”10.
Já na pólis grega, chegamos a uma situação que gerará paradigmas ao estudo das organizações políticas (a começar pela raiz do próprio termo). “Por Pólis se entende uma cidade autônoma e soberana, cujo quadro institucional é caracterizado por uma ou várias magistraturas, por um conselho e por uma assembléia de cidadãos (politai)”11. Podemos persistir com o autor, para verificar que o paradigma superou a geografia como base do conceito moderno de Estado:
A noção assim antecipada, em cuja formulação entram categorias jurídicas de algum
modo estranhas ao espírito grego, é na realidade fruto de um processo de abstração
8
Maluf, Sahid. Teoria Geral do Estado. 19a ed. rev. e atualizada. Saraiva. São Paulo. 1988. P. 17.
9
Boeckenfoerde, Ernst Wolfgang, citado por Schiera, Pierangelo in Bobbio, Norberto, Matteucci, Nicola e Pasquino,
Gianfranco; Vários Colaboradores. Dicionário de Política. 5a ed. Editora Universidade de Brasília. São Paulo. 2000. P 425.
10
Miranda, Jorge, Manual de Direito Constitucional -Preliminares: O Estado e os Sistemas Constitucionais. Tomo I, 6a ed. Coimbra. Coimbra 1997. P 45.
11
Bonini, Roberto, in Bobbio, Norberto, Matteucci, Nicola e Pasquino, Gianfranco; Vários Colaboradores. Dicionário de
de situações históricas assaz diversas entre si. Basta dizer que, falando da Pólis
grega, podemos nos referir quer aos regimes oligárquicos (típicos dos séculos
VIII-VI, mas verificáveis também nos séculos posteriores), quer aos regimes
democráticos que se encontram a partir mais ou menos do século VI. Por outro lado,
o fenômeno da cidade–Estado não se esgota no mundo grego, isto é, no território da
Hélade e nas regiões colonizadas pelos gregos tanto no Oriente como no Ocidente,
tais como a Magna Grécia. Cidade-Estado é, de fato, em suas origens e mesmo
depois por longo tempo, a própria Roma. 12
Antes de “desembarcarmos” efetivamente em Roma na viagem ao conceito de Estado, é preciso visitar Platão e Aristóteles na Grécia Antiga. O primeiro aborda as diversas constituições bem como as formas de governo em diversas obras, particularmente em “A República”. Segundo Bobbio, Platão faz “uma descrição da república ideal, que tem por objetivo a realização da justiça entendida como atribuição a cada um da obrigação que lhe cabe, de acordo com as próprias aptidões”. 13 É com diálogos entre dois interlocutores que ele expõe as formas de governo: “Destas, porém, reserva duas para constituição ideal e quatro para as formas reais que se afastam, em grau maior ou menor, da forma ideal” 14. Considera ideais a aristocracia e a monarquia; reais, a tirania, a democracia, a oligarquia e a timocracia.
Aristóteles tem na Política a exposição clássica das formas de governo: “Aqui também Aristóteles parece ter fixado em definitivo algumas categorias fundamentais que nós, seus pósteros, continuamos a empregar no esforço de compreender a realidade”. 15
12
Idem.
13
Bobbio, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. 8a edição. Editora Universidade de Brasília. Brasília. 1995. p 45.
14
Idem. P. 57. O termo “politia” seria uma definição genérica do que também é chamado de “timocracia”, citada antes em referência a Platão. Segundo Bobbio “a estranheza terminológica é o uso de politia para indicar a constituição caracterizada pelo governo de muitos, e bom. Estranheza porque (...) politia (termo que traduz ‘politeia’ sem traduzi-lo) significa ‘constituição’ – é, portanto um termo genérico, não específico. Hoje quando queremos usar uma palavra grega para indicar o governo de muitos dizemos ‘poliarquia’ (é o que faz, por exemplo, o cientista político Robert Dahl para denominar a democracia pluralística dos Estados Unidos da América)” (idem). “Timocracia”, segundo Bobbio, seria um termo impróprio.
15
Classificando em formas de governo puras e degeneradas, estabelece uma hierarquia na qual insere a monarquia, a democracia e a aristocracia na primeira categoria; enquanto na segunda (e pior) classificação a tirania, a demagogia e a oligarquia. Ainda para Bobbio, existe uma ordem hierárquica aceita por Aristóteles, que não difere da estabelecida por Platão: “O critério da hierarquia é o mesmo: a forma pior é a degeneração da forma melhor, de modo que as degenerações das formas que seguem a melhor são cada vez menos graves. Com base nesse critério, a ordem hierárquica das seis formas é a seguinte: monarquia, aristocracia, politia, democracia, oligarquia, tirania”. 16
Chega-se a Roma por meio de Políbio, grego de nascimento, deportado à época da conquista da Grécia pelos romanos. Era um historiador, não um filósofo – ao contrário de Platão e Aristóteles – mas Bobbio entende que o Livro VI da “História” de Políbio “é um texto de autoridade não menor do que a de Platão e Aristóteles”. 17 Para Bobbio, nesta obra Políbio analisa detalhadamente a Constituição Romana, “redigindo um pequeno tratado de direito publico romano, no qual descreveu as várias funções públicas (os cônsules, o Senado, os tribunos, a organização militar, etc.)”.18 O legado de Roma para as instituições modernas é por demais conhecido: “Desenvolveram os romanos noções importantes como a do poder político supremo e uno, a divisão de direito público e privado, quando reconheceram a separação entre o poder político estatal e o poder privado do cidadão, com a atribuição de direitos a todos esses e também aos estrangeiros. O conceito de cidadania foi ampliado e superou o Estado Oriental, de base territorial e o Grego de caráter pessoal. Houve a evolução dos conceitos de Estado Político e Social”19.
16
Idem. P. 57.
17
Ibidem. P. 66.
18
Idem.
19
Taquary, Eneida Orbage de Britto. O impacto jurídico do Estatuto de Roma sobre o Sistema Normativo Brasileiro.
Ainda na idade antiga, durante o domínio romano na região da Palestina é que surge um fator que irá mudar não apenas concepções como a própria história. Segundo Jorge Miranda, “o Cristianismo viria a abalar as principais concepções sociais romanas e os próprios alicerces de Cidade antiga, ao reconhecer à pessoa uma nova posição dentro da comunidade política e ao contestar o caráter sagrado do Imperador” 20. Miranda observa a continuidade deste processo de mudança já na idade média, de maneira integrada a outros fatores de ordem histórica. “As concepções jurídico-políticas romanas apagam-se diante das concepções cristãs e germânicas, embora quanto a estas, mais nuns sítios do que noutros (mais na Europa central do que na Península Ibérica, por exemplo” 21. Sendo o período do feudalismo, não se pode falar anda em conceito de Estado: “Após a Idade Média, a idéia do Estado como representante de uma comunidade étnica, cultural ou lingüística distinta deu origem à nação estado no lugar do principado feudal”22 . No medievo, Jorge Miranda fala em
pretenso Estado medieval:
Nestas circunstâncias, o poder privatiza-se. Em vez do conceito de imperium vem o
de dominium em conexão com os princípios da família e da propriedade: investidura
hereditária, direito de primogenitura, inalienabilidade do domínio territorial. Mais
que em ‘forma de Estado’ patrimonial deve falar-se em ordenamento jurídico sob
regime patrimonial. É a concepção patrimonial do poder, a qual, transformada,
acabaria por subsistir quase até ao constitucionalismo.23
20
Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional -Preliminares: O Estado e os Sistemas Constitucionais. Tomo I, 6a ed. Coimbra. Coimbra 1997. p 58.
21
Idem. P. 59.
22
Rohmann, Chris. O Livro das Idéias: Pensadores, Teorias e Conceitos que Formam Nossa Visão de Mundo. Campus. Rio
de Janeiro. 2000. p 139. Um pouco mais do registro histórico do período medieval será abordado posteriormente, na análise do tema “soberania”.
23
Desde então o conceito evoluiu, passando pela fase do absolutismo monárquico, em que o poder é a vontade do rei (“L’état c’est moi”): “Segundo Jorge Miranda é costumeira a divisão do Estado Absoluto em dois: um dotado de soberania e outro não, denominado Fisco e que interage com os particulares. Também estabelece duas fases da monarquia: a monarquia de direito divino, porque o rei é escolhido por Deus e possui autoridade com fundamento religioso, e a monarquia do despotismo esclarecido, influenciada pelo Iluminismo, onde o Estado representa a realização do interesse público, por intermédio de seus órgãos ou funcionários”. 24 Jorge Miranda é ainda referido pela autora em fato que muito importa ao presente estudo: os privilégios feudais são substituídos pela igualdade de acesso ao poder na passagem do poder feudal para o capitalista. É a gradativa ascensão da burguesia com poder econômico, embora com reduzido poder político. Justifica-se filosoficamente com as correntes de Locke, Kant, Montesquieu e Rosseau. É a evolução do Estado de Polícia para o Constitucional, “o que se opera radicalmente com os movimentos sociais, econômicos, culturais e políticos da época, como a Revolução Industrial e a Francesa. No Estado Constitucional ou de Direito o poder político passa a ser exercido por muitos, em nome da coletividade. A soberania é expressão da vontade nacional. O Estado executa as leis em benefício de todos e não de alguns. Tem sua base de sustentação na Constituição, que passa a ser o instrumento técnico jurídico de limitação de poder e da forma de exercê-lo, tratando os antigos súditos como cidadãos, com direitos e obrigações”.25
Jorge Miranda caracteriza o Estado Moderno Europeu através de características que considera muito próprias: Estado Nacional passa a corresponder, como já diz o nome, à nação ou a uma comunidade histórica de cultura; a secularização ou laicidade é elemento básico: o
24
Taquary, Eneida Orbage de Britto. O impacto jurídico do Estatuto de Roma sobre o Sistema Normativo Brasileiro.
Dissertação apresentada no Curso de Direito Internacional Público da Universidade Católica de Brasília. Orientador: Prof. Dr. Antônio de Moura Borges; Co-orientador: Profª. Drª. Flavia Piovesan; Examinador Externo: Prof. Dr. José R. Couto Rossini Corrêa; Examinador Interno: Prof. Dr. Maurin Almeida Falcão. Ano: 2004. P. 256.
25
Estado sem fundamentação religiosa , “o temporal e o espiritual se afirmam esferas distintas e a comunidade já não tem por base a religião” 26
Pode-se conceber o Estado Moderno contextualizado em tempo e espaço, ou seja, não numa percepção universal, como dito por Pierangelo Schiera. Retornando ao autor, o Estado Moderno europeu “aparece como uma forma de organização do poder historicamente determinada e, enquanto tal, caracterizada por conotações que a tornam peculiar e diversa de outras formas, historicamente também determinadas e interiormente homogêneas, de organização de poder”27. Esta específica forma teria como diferencial “progressiva centralização do poder segundo uma instância sempre mais ampla, que termina por compreender o âmbito completo das relações políticas”28. Completa-se, então, o raciocínio: “Deste processo, fundado por sua vez sobre a concomitante afirmação do princípio da territorialidade da obrigação política e sobre a progressiva aquisição da impessoalidade do comando político, através da evolução do conceito de officium, nascem os traços essenciais de uma nova forma de organização política: precisamente o Estado Moderno”29.
3. Soberania
Supremacia. O significado literal da palavra não exprime corretamente o alcance de um conceito fundamental para teorias políticas de variados matizes e invocado de diferentes formas, por diversas nações: a soberania.
Embora modernamente, o conceito de soberania “adolesce” e amadurece a partir do século XVI, conjuntamente ao de Estado. Sua gênese vai mais longe: “O conceito de
26
Miranda, Jorge Manual de Direito Constitucional, tomo I, Preliminares – O Estado e os Sistemas Constitucionais. 6a ed. Coimbra. 1997. P. 63.
27
Schiera, Pierangelo in Bobbio, Norberto, Matteucci, Nicola e Pasquino, Gianfranco; Vários Colaboradores. Dicionário de
Política. 5a ed. Editora Universidade de Brasília. São Paulo. 2000. P 426.
28
Idem.
29
soberania apesar de inexistente entre os povos antigos tinha sua tradução expressa pela independência ou auto-suficiência de um Estado, pois o fim de toda a Cidade Estado era a autarquia (auto-suficiência)”30. Orbage cita Celso A. Mello para provar que o instituto da soberania existia na prática, na medida em que era corrente enviar representantes diplomáticos e utilizar a arbitragem para a solução de conflitos “e até mesmo a celebração de tratados com cláusulas justas para ambas as partes, expressando a igualdade de poder, e logo jurídica”31.
Ao final da idade antiga, marcado pelo declínio do Império Romano, a organização política européia caracterizou-se pela divisão das diversas tribos bárbaras espalhadas pelo continente, chefiadas por príncipes e militares. O maior, senão único elemento de coesão, era o cristianismo, para o qual a Europa, sob domínio romano, havia-se convertido, a partir de Constantino. “A igreja cristã de Roma – dita católica, universal – assumiu a tarefa de unir os povos cristãos, posto que sobre a Terra, conforme seus preceitos, deveria haver um só pastor e um só rebanho”32 – (grifo do autor). ). A ascensão de Carlos Magno, Rei dos Francos, como Imperador do Ocidente, ocorreu no natal do ano 800, como parte dos planos de unificar o continente: “Sucessor do Império Carolíngio, o Santo Império Romano-Germânico pretendeu exercer ascendência sobre todos os reinos cristãos, ficando em igualdade com o Pontificado Romano, na medida em que sustentou a idéia de que o governo do mundo cristão deveria ser dividido entre um mestre supremo espiritual, o Papa, e um mestre supremo secular, o Imperador”33. Esta pretensão do Sacro Império levou a disputas de poder entre o imperador e o papa, e entre o imperador, reis e senhores feudais. “Em conseqüência de tantas querelas, foi
30
Taquary, Eneida Orbage de Britto. O impacto jurídico do Estatuto de Roma sobre o Sistema Normativo Brasileiro.
Dissertação apresentada no Curso de Direito Internacional Público da Universidade Católica de Brasília. Orientador: Prof. Dr. Antônio de Moura Borges; Co-orientador: Profª. Drª. Flavia Piovesan; Examinador Externo: Prof. Dr. José R. Couto Rossini Corrêa; Examinador Interno: Prof. Dr. Maurin Almeida Falcão. Ano: 2004. P. 258.
31
Idem. p. 259. Sobre tratados antigos, vide nota p. 35, nota 62.
32
Medeiros, Antônio Paulo Cachapuz de. O Poder de Celebrar Tratados – Competência dos Poderes Constituídos para a
Celebração de Tratados à Luz do Direito Internacional, do Direito Comparado e do Direito Constitucional Brasileiro.
Sérgio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre 1995. P. 25.
33
se formando na Europa o conceito de soberania, esgrimido inicialmente pelos Reis da França, para impor sua autoridade sobre os barões feudais no âmbito interno do Estado francês, bem como alcançar sua emancipação da tutela do Santo Império e do Pontificado Romano no âmbito externo”34.
Cachapuz explica que no fim do século XV, com o enfraquecimento do papado pela reforma protestante, simultaneamente às derrocadas do feudalismo e do Sacro Império, o poder dos reis foi vitorioso. “Os publicistas da época proclamaram que cada Rei era Imperador no seu Reino, com absoluta soberania dispondo de autoridade suprema no interior e independência de qualquer outro poder, secular ou espiritual, no exterior”35. A partir deste momento, o poder real se fortaleceu. Os príncipes europeus impuseram políticas centralizadoras e consolidaram o absolutismo monárquico, que chegou ao auge na França de Luís XIV, por excelência, o soberano histórico. O primeiro entendimento de soberania como
supremacia “associava-se, de início, à doutrina do absolutismo. Em seus Seis Livros da República (1576), Jean Bodin definiu soberania como o poder absoluto de criar lei, e concedia esse poder ao monarca, cuja autoridade suprema sobre os súditos só era limitada pelas leis de Deus”36.
A participação de Thomas Hobbes é fundamental. Leciona Luigi Ferrajoli que Hobbes afirmou em De Cive (“Do cidadão”): “devemos dizer que este é uma única pessoa, cuja vontade, em virtude dos pactos contraídos reciprocamente por muitos indivíduos, deve ser considerada como vontade de todos aqueles indivíduos; e, portanto, pode servir-se das forças e dos haveres individuais para a paz e para a defesa comum”37.
34
Ibidem. P. 26.
35
Idem.
36
Rohmann, Chris. O Livro das Idéias: pensadores, teorias e conceitos que formam nossa visão de mundo. Campus. Rio de
Janeiro. 2000. P. 368.
37
Ferrajoli, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. 1 ed. Martins Fontes. São Paulo.
Ao procurar uma definição de Estado, Hobbes encontra seu conceito de soberania. A essência do Estado é como “uma pessoa de cujos atos, uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora. Em razão dessa união, o Estado poderá usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum”. E completa: “Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos”38. (grifo na obra).
Embora qualificando o Estado detentor de soberania como um “Leviatã” – referentemente ao monstro bíblico “que deveria combater monstros mais hediondos”39, para a todo custo evitar a guerra e a anarquia – Hobbes procura o sentido de pacto da “multidão” para conceder este poder ao agente estatal, logo à abertura de “Dos Direitos dos Soberanos por Instituição”: “Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concorda e pactua, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele
como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens”.40
Arthur Machado Paupério, deriva o vocábulo do latim super omnia de superanus ou
supremitas, “significando o caráter dos domínios que não pertencem senão de Deus”41. Nicola
38
Hobbes de Malmesbury, Thomas. Leviatã. Nova Cultural. São Paulo. 2000. P. 144
39
Taquary, Eneida Orbage de Britto. O impacto jurídico do Estatuto de Roma sobre o Sistema Normativo Brasileiro.
Dissertação apresentada no Curso de Direito Internacional Público da Universidade Católica de Brasília. Orientador: Prof. Dr. Antônio de Moura Borges; Co-orientador: Profª. Drª. Flavia Piovesan; Examinador Externo: Prof. Dr. José R. Couto Rossini Corrêa; Examinador Interno: Prof. Dr. Maurin Almeida Falcão. Ano: 2004. P. 271.
40
Hobbes de Malmesbury, Thomas. Leviatã. Nova Cultural. São Paulo. 2000. P.145.
41
Paupério, Arthur Machado. Teoria Democrática do Poder; Teoria Democrática da Soberania. 3 ed. Forense. Rio de
Matteucci aponta os termos summa potestas, summum imperium “e principalmente – nas doutrinas teocráticas de Egídio Romano Colonna, posteriormente assumidas pelos leigos para sustentar o poder político - plenitudo potestatis, contra a qual se insurgirão as teorias conciliares e as reivindicações das categorias e dos Estados”42.
Pode-se trabalhar o conceito em sentido lato e estrito. No primeiro caso, Matteucci analisou que “o conceito político-jurídico de Soberania indica o poder de mando de última instância numa sociedade política e, conseqüentemente, a diferença entre esta e as demais associações humanas em cuja organização não se encontra este poder supremo, exclusivo e não derivado. Este conceito está, pois, intimamente ligado ao de poder político: de fato a soberania pretende ser a racionalização jurídica do poder, no sentido da transformação da força em poder legítimo, do poder de fato em poder de direito”43. O termo “soberano” (não o conceito de soberania) é também usado no medievo. A palavra “indicava apenas uma posição de proeminência, isto é, a posição daquele que era superior num bem definido sistema hierárquico; por isso até os barões eram soberanos em suas baronias”44.
Matteucci confirma, ao abordar o moderno sentido estrito de soberania, que esta concepção aparece juntamente com o conceito de Estado no fim do século XVI; nesta acepção restrita, um indicativo do poder estatal na plenitude, como elemento exclusivo e sujeito único da política, intimamente ligado à ordem absolutista que passava a caracterizar o momento.
“Trata-se do conceito político-jurídico que possibilita o Estado moderno, mediante
sua lógica absolutista interna, impor-se à organização medieval do poder, baseada,
por um lado, nas categorias e nos Estados, e, por outro, nas duas grandes
coordenadas universalistas representadas pelo papado e pelo império: isto ocorre em
42
Matteucci, Nicola in Bobbio, Norberto; Matteucci, Nicola e Pasquino, Gianfranco; Vários Colaboradores. Dicionário de
Política. 5a ed. Editora Universidade de Brasília. São Paulo. 2000. p. 1181.
43
Idem. P. 1179.
44
decorrência de uma notável necessidade de unificação e concentração de poder, cuja
finalidade seria reunir numa única instância o monopólio da força num determinado
território e sobre uma determinada população, e, com isso, realizar no Estado a
máxima unidade e coesão política”45.
Historicamente, o debate em torno dos conceitos de soberania e de Estado perpassou os séculos, nos contextos políticos da expansão ultramarina ibérica, dos tratados de Tordesilhas e de Utrecht (1713), que para preservar o equilíbrio de poder entre as monarquias européias preservou a independência e a autonomia das nações. Assim como, a posteriori, no advento da Revolução Francesa, da Revolução Industrial, a Convenção de Filadélfia e a Constituição Norte-Americana, o neocolonialismo, as guerras mundiais do século XX e – no século XXI – o fenômeno da globalização.
Neste momento histórico, Estado e soberania são vocábulos de sentido confirmado, mas que passam por crise quando vistos como modelos. Para Matteucci “a plenitude do poder estatal se encontra em seu ocaso; trata-se de um fenômeno que não pode ser ignorado. Com isto, porém, não desaparece o poder, desaparece apenas uma determinada forma de organização do poder, que deve seu ponto de força no conceito político-jurídico de Soberania”46. Para o autor, “estando este supremo poder de direito em via de extinção, faz-se necessário agora, mediante uma leitura atenta dos fenômenos políticos que estão ocorrendo, proceder a uma nova síntese político-jurídica capaz de racionalizar e disciplinar juridicamente as novas formas de poder, as novas ‘autoridades’ que estão surgindo”47.
45
Idem.
46
Matteucci, Nicola in Bobbio, Norberto; Matteucci, Nicola e Pasquino, Gianfranco; Vários Colaboradores. Dicionário de
Política. 5a ed. Editora Universidade de Brasília. São Paulo. 2000. p. 1187.
47
Revendo a discussão de Mirtô Fraga sobre os limites entre Direito Internacional e Direito Interno, formaram-se a Teoria Dualista e a Teoria Monista.
4. Teoria Dualista
Volkerrecht und Landesrecht é o nome do primeiro estudo sistemático da teoria dualista, de autoria de Heinrich Triepel, em 1899. Para Triepel, analisa Eneida Orbage Taquary com base em Celso de Mello, “a ordem jurídica interna e internacional são totalmente independentes e não possuem áreas em comum, devido a três fatores: as relações sociais, onde admite ser o Estado o único sujeito de direito internacional; as fontes do direito interno são a vontade do próprio Estado, enquanto no direito internacional é a vontade coletiva dos Estados, e por fim a estrutura jurídica da ordem interna está vinculada à subordinação, enquanto a internacional, à cooperação. Portanto é um sistema paritário”48. Fraga cita Marotta Rangel para sintetizar as principais afirmações da teoria dualista:
Cisão rigorosa entre a ordem jurídica interna e a internacional, a tal ponto que se
nega a possibilidade de conflito entre ambas. Vontade de um só ou de vários
Estados como fundamento respectivo dessas ordens: relação de subordinação na
primeira e de coordenação na segunda. Distinguem-nas, outrossim, relações,
sujeitos, fontes e estruturas diversas. Constituem-se como ‘duas esferas, quando
muito tangentes, mas, jamais secantes’. Como conseqüência da separação das duas
ordens: validade de normas internas contrárias ao Direito das Gentes;
impossibilidade de que ordem jurídica possa determinar a validade das normas de
outra ordem; inadmissibilidade da norma internacional no direito interno;
necessidade de transformação da norma internacional para integrar-se no direito
interno, inocorrência de primazia de uma ordem sobre outra, por constituírem ‘dois
48
Taquary, Eneida Orbage de Britto. O impacto jurídico do Estatuto de Roma sobre o Sistema Normativo Brasileiro.
círculos que estão em contacto (sic) íntimo mas que não se sobrepõem jamais’.
Separam-se nitidamente, pois, o Estado e a ordem jurídica internacional - (grifo do
autor). 49
Citemos Rezek: “Para os autores dualistas – dentre os quais se destacaram neste século Carl Heinrich Triepel, na Alemanha, e Dionísio Anzilotti, na Itália -, o direito internacional e o direito interno de cada Estado são sistemas rigorosamente independentes e distintos, de tal modo que a validade jurídica de uma norma interna não se condiciona à sua sintonia com a ordem internacional”50.
5. Teoria Monista
A outra corrente teórica que discorre sobre o tema, a monista, surgiu como oposição aos pontos de vista da teoria dualista - em 1914 chamada teoria “pluralista” por Alfred Verdross (Eneida Orbage apud Celso Albuquerque de Mello)51. Se na dualista (pluralista) há dois sistemas independentes (direito internacional e direito interno), na teoria monista há uma única ordem jurídica a englobá-los. Expõe Mirtô Fraga:
“para o monismo, a ordem jurídica internacional e a interna fazem parte de um único
sistema, havendo equiparação entre sujeitos, fontes, objeto e estrutura das duas
ordens, que se comunicam e se interpenetram. A teoria monista foi construída sob o
princípio da subordinação, em razão do qual todas as normas jurídicas se acham
subordinadas entre si, numa ordem rigorosamente hierárquica. Imediatidade das
normas internacionais em relação ao direito interno, divergência de grau e não de
49
Rangel, Vicente Marotta. Os Conflitos entre o Direito Interno e os Tratados Internacionais in Fraga, Mirtô. ob. cit. p. 6.
50
Rezek, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 2ed. São Paulo. Saraiva. 1991. p. 04. Sobre a
referência “neste século”, trata-se de publicação de 1991.
51
Taquary, Eneida Orbage de Britto. O impacto jurídico do Estatuto de Roma sobre o Sistema Normativo Brasileiro.
essência entre um e outro ramo do Direito, opção imperiosa por uma das ordens
conflitantes são, também, pontos doutrinários do monismo”52- (grifo do autor).
Internamente, esta teoria tem duas correntes de pensamento divergentes sobre qual ordenamento jurídico tem prevalência sobre o outro: ora o direito internacional sobre o ordenamento jurídico interno, ou o contrário. Francisco Rezek as explica detalhadamente, nominando-as internacionalista e nacionalista. “Uma sustenta a unicidade da ordem jurídica sob o primado do direito internacional, a que se ajustariam todas as ordens internas. Outra apregoa o primado do direito nacional de cada Estado soberano, sob cuja ótica a adoção dos preceitos do direito internacional reponta como uma faculdade discricionária”53.
Na corrente internacionalista, o monismo encontra sua origem na Escola de Viena, particularmente em Hans Kelsen. Ficou conhecida como monismo radical
“porque Kelsen inadmitia sequer o conflito entre normas que compunham a ordem
interna e a ordem internacional. Foi moderado por Verdross dando ensejo ao
monismo moderado que propugnava a unidade do sistema jurídico interno e
internacional, ainda que ocorrendo o conflito de leis, com a predominância do
Direito Internacional, pois se uma norma interna contraria a internacional deve ser
repelida, inclusive com a responsabilização internacional, não sendo, o contrário,
verdade”54.
Muito se escreveu sobre este debate. De acordo com Rezek, nenhuma das teorias está invulnerável à crítica. Destaca que cada proposição poderia ser considerada nos respectivos
52
Fraga, Mirtô O Conflito entre Tratado Internacional e Norma de Direito Interno: Estudo Analítico da Situação do Tratado
na Ordem Jurídica Brasileira. 1a ed. Rio de Janeiro. Forense. 1998. P. 07.
53
Rezek, José Francisco. Ob. Cit. P. 05.
54
Taquary, Eneida Orbage de Britto. O impacto jurídico do Estatuto de Roma sobre o Sistema Normativo Brasileiro.
méritos, “se admitíssemos que procuram descrever o mesmo fenômeno visto de diferentes ângulos”. Continuemos com o autor:
Os dualistas, com efeito, enfatizam a diversidade das fontes de produção das normas
jurídicas, lembrando sempre os limites de validade de todo direito nacional, e
observando que a norma do direito das gentes não opera no interior de qualquer
Estado senão quando este, havendo-a aceito, promove-lhe a introdução no plano
doméstico. Os monistas kelsenianos voltam-se para a perspectiva ideal de que se
instaure um dia a ordem única, e denunciam, desde logo, a luz da realidade, o erro
da idéia de que o Estado soberano tenha podido outrora, ou possa hoje, sobreviver
numa situação de hostilidade ou indiferença frente ao conjunto de princípios e
normas que compõem o direito das gentes. Os monistas da linha nacionalista dão
relevo especial à soberania de cada Estado e à descentralização da sociedade
internacional. Propendem, dessarte, ao culto da constituição, estimando que no seu
texto, ao qual nenhum outro pode sobrepor-se na hora presente, há de encontrar-se
notícia do exato grau de prestígio a ser atribuído às normas internacionais escritas e
costumeiras (grifo do autor)55.
Registra a posição brasileira no debate, que embora poucos autores se comprometam doutrinariamente com o monismo nacionalista, “não menos certo é que essa idéia norteia as convicções judiciárias em inúmeros países do ocidente – incluídos o Brasil e os Estados Unidos da América –, quando os tribunais enfrentam o problema do conflito dentre normas de direito internacional e de direito interno”56.
55
Rezek, José Francisco. ob. cit. P. 05.
56
6. A importância e a atualidade do tratado como elemento de segurança
jurídica em um mundo globalizado
Sob o enfoque das “revoluções científicas” tratadas por Thomas Kuhn, pode-se dizer que este é um momento de crise, no qual o paradigma dominante passa por um processo de questionamento, até ser superado ou substituído por outro57. Matteucci, como visto, expõe que as atuais formas de organização de poder estatal estão em fase de mudança de modelo. Mesmo ao enfrentarmos uma crise que discute o próprio papel do Estado, os tratados continuam instrumento em pleno vigor, influenciam a vida de milhões de pessoas. Tomando os conceitos basilares analisados, continua válida a definição de tratado como todo acordo formal e escrito concluído entre dois ou mais sujeitos de direito internacional público, destinado a produzir efeitos jurídicos interpartes. Desdobra-se numa sucessão de fases que se completam para se tornar ato jurídico perfeito; por isso, trata-se de ato jurídico complexo.
Num mundo em transformação, que clama por segurança jurídica, reforça-se uma
característica basilar do tratado acima mencionada: a formalidade, ato jurídico formal que se
exprime com precisão em tempo e espaço, define de forma clara seu teor, o local de sua
celebração e a data em que foi firmado. É sempre por escrito, como estabelecido na
Convenção de Viena58.
57
Em seu livro “A estrutura das Revoluções Científicas”, de 1962, Thomas Kuhn estabelece que o conceito tradicional de
conhecimento científico é fundamentado em “paradigmas predominantes”. Chris Rohman explica (O livro das idéias:
pensadores, teorias e conceitos que formam nossa visão de mundo. Rio de Janeiro, Campus. 2000. pp. 302/303) são “teorias aceitas que expressam e confirmam certas opiniões estabelecidas. (...) O progresso científico, segundo Kuhn, não é incremental, mas progride em estágios via mudança de paradigma, quando um paradigma é superado e substituído por outro”. Por esta análise do pensamento kuhniano existe “um período de instabilidade, ou de ‘ciência revolucionária’, no qual os velhos e os novos paradigmas competem pela aceitação. A adoção definitiva de um novo paradigma promove o progresso científico porque proporciona uma plataforma para novos métodos de pesquisa”.
58
Se há proporção inversa entre o conhecimento do tema pelo cidadão médio (e até por profissionais do direito) e a extensão dos efeitos históricos dos tratados na vida de súditos e cidadãos, os efeitos da época de globalização e corrida tecnológica multiplicam suas conseqüências: “A notória exaustão dos estudos positivistas, em um mundo minimizado pela tecnologia e pela instantaneidade da informação, leva à esterilidade do estudo bastante em si dos ordenamentos jurídicos nacionais”59.
O fenômeno da globalização tem origem econômica, com efeitos no universo jurídico. Celso de Mello vai até esta raiz de mercado para procurando definir a palavra globalização:
“Ela significa a integração econômica da sociedade internacional realizada pelas empresas comerciais, ou se quisermos, pelas empresas transnacionais. Uma
definição mais completa é fornecida por Helmut Hesse: ‘Globalização da economia
significa que as fronteiras entre os países perdem sua importância, quando se trata
de decisões sobre investimentos, produção, oferta, procura e financiamentos. (...) as
conseqüências são uma rede cada vez mais densa de entrelaçamentos das economias
nacionais, uma crescente internacionalização da produção, no sentido de que os
diferentes componentes de um produto final possam ser manufaturados em
diferentes países’” 60.
Luiz Fernando Coelho conclui sobre os efeitos das demandas deste mercado globalizado no mundo jurídico: “o fenômeno da globalização, que, articulada com o crescente domínio da informática em todos os setores, está levando as nações do mundo a uma unificação de seus direitos positivos, com vistas a estereotipar os modelos econômicos das
59
Fontoura, Jorge. O Comparatismo Jurídico e a inteligência do Direito na Obra de Anna Maria Villela in Fontoura, Jorge
(org.) Revista de Informação Legislativa - Estudos em Homenagem a Anna Maria Villela. Edição Comemorativa dos 40
anos. Senado Federal. Subsecretaria de Edições Técnicas. Abril-junho/2004 – nº 162. P. 05.
60
Mello, Celso de D. Albuquerque (Coord.). Anuário: Direito e Globalização. A Soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
nações, a pretexto de facilitar o intercâmbio internacional de pessoas, bens e serviços”61. Em tempos de mudanças tão significativas, para que exista a segurança jurídica necessária à aplicação dos tratados surge outro elemento básico para a sua existência: o princípio do Pacta Sunt Servanda.
Rezek aponta que, de uma perspectiva histórica, o tratado é parte fundamental do direito das gentes, sendo que até o início do século passado apresentava “uma consistência costumeira, assentada, entretanto, sobre certos princípios gerais, notadamente o pacta sunt servanda e o da boa fé”62. Ou seja, os tratados têm como elemento fundamental obrigatoriedade de cumprimento pelas partes que o assinam. As relações internacionais são estruturadas com base no fundamento da soberania. Modernamente, o processo de formação dos tratados é regulado pela Convenção de Viena (1969), assinada, mas até hoje não ratificada pelo Brasil.“Note-se que apesar do Brasil não ter ratificado a Convenção de Viena, em suas relações internacionais, vem adotando o princípio, garantindo segurança jurídica aos atos praticados na esfera internacional”63. Tal dispositivo prevê que a aplicação dos termos previstos nos tratados só se aplica aos Estados-Partes, os que de maneira expressa se tornaram signatários do documento. O texto da Convenção de Viena demonstra o acolhimento do princípio, conforme seu artigo 26, Seção 1, parte III, que diz, verbis: “Pacta sunt servanda -
Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”64.
61
Coelho, Luiz Fernando. O Renascimento do Direito Comparado in Fontoura, Jorge (org.) Revista de Informação
Legislativa - Estudos em Homenagem a Anna Maria Villela. Edição Comemorativa dos 40 anos. Senado Federal. Subsecretaria de Edições Técnicas. Abril-junho/2004 – nº. 162. P.257.
62
Rezek, José Francisco. op. cit. p. 11. À mesma página, o autor faz referência ao primeiro registro seguro de um tratado bilateral: “o que se refere à paz entre Hatusil III, rei dos hititas, e Ramsés II, faraó egípcio da XIXa dinastia . Esse tratado, ponto fim à guerra nas terras sírias, num momento situado entre 1280 e 1272 a.C., dispôs sobre paz perpétua entre os dois reinos, aliança contra inimigos comuns, comércio , migrações e extradição”.
63
Taquary, Eneida Orbage de Britto. O impacto jurídico do Estatuto de Roma sobre o Sistema Normativo Brasileiro.
Dissertação apresentada no Curso de Direito Internacional Público da Universidade Católica de Brasília. Orientador: Prof. Dr. Antônio de Moura Borges; Co-orientador: Profª. Drª. Flavia Piovesan; Examinador Externo: Prof. Dr. José R. Couto Rossini Corrêa; Examinador Interno: Prof. Dr. Maurin Almeida Falcão. Ano: 2004. P. 294.
64
Rezek, J.F. O Direito Internacional no Século XXI –Textos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2002.p. 69.
Piovesan entende que “tratados não podem criar obrigações aos Estados que com ele não consentiram, ao menos que preceitos constantes do tratado tenham sido incorporados pelo costume internacional”65. Outro fundamento sobre a obrigação de cumprimento das determinações dos tratados internacionais – sejam convenções, pactos, protocolos ou outras denominações – é o fato de eles gerarem obrigação de cumprimento pelos Estados soberanos que se tornaram signatários sem possibilidade de alegação, a posteriori, de incompatibilidade com os respectivos ordenamentos jurídicos internos. A Convenção de Viena proíbe apelar-se ao direito interno para não cumprir cláusula prevista em tratado internacional, conforme o art. 27:
Art. 27 - Direito Interno e observância de tratados.
Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o
inadimplemento de um tratado. Esta regra não prejudica o artigo 46.66
Já a referência ao art. 46 dá-se por se tratar de disposição do direito interno sobre competência para concluir tratados. Em princípio, essa invocação também é defesa, mas é prevista a possibilidade de se acarretar nulidade de tratados em caso de descumprimento de preceito fundamental. O texto diz, verbis:
Um Estado não pode invocar o fato de que seu consentimento em obrigar-se por um
tratado foi expresso em violação de uma disposição de seu direito interno sobre
competência para concluir tratados, a não ser que essa violação fosse manifesta e
dissesse respeito a uma norma de seu direito interno de importância fundamental.
65
Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4a ed. São Paulo. Max Limonad, 2000. P. 66
66
7. As deficiências da cultura jurídica brasileira em relação ao direito das
gentes e ao tratado
Os dispositivos abordados no item anterior, garantia de segurança jurídica num mundo em constante mudança, têm relevância no caso do Brasil. A prática relativa a tratados internacionais ratificada pela Constituição de 1988, é submeter o texto assinado ao Congresso Nacional, para posteriormente o Presidente da República promulgá-lo. Depois de publicado, o Decreto de Promulgação confere obrigatoriedade de cumprimento do tratado. A matéria é regulamentada pelos artigos 49, I e 84, VIII, da Constituição:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que
acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.67
Já no artigo 84, que trata das atribuições do Chefe do Executivo, o inciso VIII dspõe: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do
Congresso Nacional; ”.
Embora Cachapuz de Medeiros demonstre “a decepção dos juristas” com a redação constitucional – particularmente pelo artigo 49, inciso I – a exigência de aprovação do Congresso Nacional para todos os acordos nacionais é clara. Relembremos sobre a decepção: “Manoel Gonçalves Ferreira Filho constatou redação inadequada: José Sete Câmara, texto
67
confuso; Oscar Dias Corrêa, letra defeituosa. (...) A redação não foi das mais felizes, afirmou Celso de Albuquerque Mello; não prima pela clareza, concluiu Elcias Ferreira da Costa”68.
A razão para o descontentamento fica explícita no comentário de João Grandino Rodas, compilado por Cachapuz, pelo qual a redação “manteve-se fiel à nossa má tradição constitucional na matéria, não tendo nem mesmo incorporado ao texto os poucos avanços no Projeto de Constituição da Comissão de Sistematização”69. O prof. Cachapuz faz a seguinte análise sobre estas manifestações:
Os comentários divulgados pelos doutrinadores, a propósito dos artigos 49, I e 84,
VIII, demonstram que continuam existindo duas vertentes no pensamento jurídico
brasileiro sobe a interpretação das normas constitucionais relativas à competência
para celebrar tratados:
1 – a vertente doutrinária que se pronuncia pela compulsoriedade absoluta da
deliberação do Legislativo para todos os acordos internacionais celebrados pelo
Executivo;
2 – a vertente doutrinária que se pronuncia pela admissibilidade da celebração de
certos acordos internacionais unicamente pelo Executivo, sem aprovação
congressional.70
Analisa Cachapuz, reconhece-se a intenção manifesta no artigo 49, I, de acordo com a interpretação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “sujeitar a aprovação do Congresso
68
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Saraiva, São Paulo, 1992. v.2, p 21;
Câmara, José Sete. A conclusão dos Tratados Internacionais e o Direito Constitucional Brasileiro. Boletim da Sociedade
Brasileira de Direito Internacional, Brasília, 69/71: 74 1987-1989; Corrêa, Oscar Dias. A Constituição de 1988 –
Contribuição Crítica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p 122; Mello, Celso de Albuquerque. Direito Constitucional Internacional. Uma Introdução. Rio de Janeiro: Renovar. 1994. p. 277; Costa, Elcias Ferreira da.
Comentários Breves à Constituição Federal. Porto Alegre. Sérgio Antonio Fabris Editor, 1989. p 115 in Medeiros, Antônio Paulo Cachapuz de. Ob. cit. P. 382.
69
Rodas, João Grandino. Tratados Internacionais. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1991. p. 43 in Medeiros, Antônio Paulo
Cachapuz de. Ob. cit. P. 382.
70
Medeiros, Antônio Paulo Cachapuz de. O Poder de Celebrar Tratados – Competência dos Poderes Constituídos para a
Celebração de Tratados à Luz do Direito Internacional, do Direito Comparado e do Direito Constitucional Brasileiro.
Nacional todo ato internacional que acarrete encargo ou gravame para o patrimônio nacional, isto é, que traga ônus para o País”71. Relevante reproduzir mais detalhadamente a análise de Ferreira Filho, que remete à relação deste dispositivo com o artigo 84, VIII, fechando o ciclo complexo de incorporação dos tratados internacionais no ordenamento jurídico nacional. O tom crítico à redação constitucional também se faz presente:
A redação, inadequada, deste inciso, não importa em excluir, como parece, a
necessidade de aprovação, por parte do Congresso Nacional, de atos internacionais,
celebrados pelo Presidente da Republica, como tratados e convenções, que não
pesem diretamente sobre o patrimônio nacional. Cumpre lembrar que o artigo 84,
VIII, prevê tal aprovação, ‘referendo’ como diz.
Relativamente a atos internacionais, inclusive a tratados e a convenções, surge de
um ato complexo, onde se integram a vontade do Presidente da República, que os
celebra, e a do Congresso Nacional que os ratifica.
A exigência de ratificaçãodecorre da magna importância das matérias que são em
geral reguladas nos atos internacionais. Nestes se dispõe quase sempre sobre
assuntos que tocam de muito perto a existência e a independência da nação. Por isso,
convém que a representação nacional seja ouvida dizendo a última palavra, já que,
após a manifestação do Congresso Nacional, não mais cabe qualquer intervenção do
Executivo. 72
Na conclusão de “O Poder de Celebrar Tratados”, em que pesem as críticas ao texto constitucional, o autor faz coro com os demais juristas sobre a necessidade da participação direta do Legislativo na incorporação dos tratados internacionais. “Permitir que o Executivo possa assumir compromissos externos sem a intervenção do Legislativo é renunciar à soberania nacional e ao direito da Nação de controlar o seu próprio destino. Na grande
71
Idem.
72
maioria dos Países democráticos, a Constituição exige a convergência das vontades do Executivo e do Legislativo para a formação da vontade do Estado em obrigar-se por tratados”73.
Eneida Orbage Taquary chama a atenção para o fato de o processo não se encerrar neste ponto, já que “o tratado pode ser assinado e não aprovado pelo Congresso nacional ou não promulgado pelo Presidente da República, o que inviabiliza a sua observância por falta de incorporação legislativa”74. Isso não acontecendo, “o teor dos tratados é convertido em leis ou decretos, trazendo integralmente o conteúdo daqueles, para que possam ser adotados como lei nacional”75.
Registre-se a discussão sobre a incorporação automática dos tratados que abrangem direitos humanos, apesar da previsão acima exposta de incorporação, mediante aprovação do Legislativo, bem como promulgação pelo Presidente da República. Flávia Piovesan afirma que a idéia da incorporação automática decorre da Constituição Federal, que no § 2º do artigo 5º, inscreve, verbis:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.76
73
Medeiros, Antônio Paulo Cachapuz de. O Poder de Celebrar Tratados – Competência dos Poderes Constituídos para a
Celebração de Tratados à Luz do Direito Internacional, do Direito Comparado e do Direito Constitucional Brasileiro.
Sérgio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre 1995. P. 476.
74
Taquary, Eneida Orbage de Britto. ob. cit. p. 295. Ainda à p. 296, ela constata que “a previsão da necessidade de exame do tratado pelo Executivo e Legislativo não é inovação da CF de 1988. Igualmente, havia previsão na Constituição de 1824, em seu capitulo II, referente ao PoderExecutivo, no ar.t 102, incisos VIII e IX, ao estabelecer como atribuição daquele Poder, a celebração de tratados que deveriam ser submetidos aa Assembléia Geral Dispositivo semelhante é encontrado nas Constituições nacionais posteriores”.
75
Idem. P. 296. Ela ainda cita exemplos desse procedimento: “a Lei nº 2.889, de 1º/10/56, a Lei de Genocídio, que retrata fielmente o teor da Convenção de Repressão ao Crime de Genocídio. Outro exemplo é o próprio Estatuto de Roma que foi convertido no Decreto nº 4.388, de 25/0/02, e aguarda o encaminhamento do Projeto do Grupo de Trabalho que irá tornar eficaz o Estatuto de Roma”. Relevante ainda o comentário sobre este procedimento, à p. 297: “Logo, no direito brasileiro, apesar de se apregoar a adoção da teoria monista, é necessário admitir-se que o regime de tratamento dispensado pelo legislador constituinte aos tratados denota que já uma forte tendência à teoria dualista (...).”
76
Para Piovesan, “a Carta de 1988 inova, assim, ao incluir dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário”. Assim, “a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Este processo de inclusão implica na incorporação pelo texto constitucional destes direitos”77. Por este entendimento, seria a atribuição aos direitos internacionais (em direitos humanos) de uma hierarquia especial e diferenciada, “qual seja, a hierarquia constitucional”. Tal discussão não se encontra encerrada, mas não requer abordagem mais profunda desse tema, porque não influencia diretamente as conclusões desta dissertação,.
Importa a conclusão de Salomão Almeida Barbosa, em estudo sobre o poder de celebrar tratados: “É indubitável que a democratização do exercício do poder político, bem como a necessidade de coexistência e cooperação com os demais membros da sociedade internacional, alterou os protagonistas das relações jurídicas internacionais, vale dizer, os Soberanos, pessoas de direito Internacional e, portanto, sujeitos capazes de celebrar tratados, foram substituídos pelos povos, esses constituídos em Estados juridicamente organizados, sendo certo que os Estados, no cenário internacional, agem em nome do povo: elemento basilar democrático”78. Exsurge a questão: como responder a esse mesmo povo – por meio de seus porta-vozes – ao que ocorre nas mesas de negociação diplomática e aos efeitos gerados por esses acordos? Como isso influenciará o desenvolvimento da cidadania?
A televisão pública exerce papel relevante neste processo. Este estudo busca soluções para estas questões.
77
Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4a ed. São Paulo. Max Limonad, 2000. P.
73.
78
CAPÍTULO II
DIREITOS DE ACESSO À INFORMAÇÃO
1. Formação do direito da comunicação
“Como o direito da comunicação seria uma página em construção, ainda muito dependente de outras disciplinas para o estabelecimento do interesse de sua inclusão como subsistema jurídico, importa, no contexto das fontes do direito da comunicação, fazer uma análise multidisciplinar da informação como substrato das comunicações intersubjetivas - da mensagem e dos meios de sua propagação (que são a infra-estrutura da comunicação)”79.
Essa afirmação de Marcos Alberto Bitelli indica os desafios pertinentes a um estudo que envolve direito e comunicação social. Trata-se de uma zona de confluência das duas atividades (ou ramos do conhecimento) com paradigmas próprios, não raramente conflitantes. Reforça-se porque se considera a perspectiva do direito internacional e sua inserção na visão de mundo habermasiana, além da interdisciplinaridade.
Nesta dissertação, o aspecto mais importante da formação de um direito da comunicação é “o uso da linguagem exteriorizada em diversas formas e suportes (meio ou
medium) e seus efeitos sobre o psicológico individual e o coletivo da pessoa humana. Vários estudos de psicologia social, ciências sociais, comunicação social e direito passam a deslocar seu campo objetal para este corte epistemológico, que é a formação (e a conformação) da consciência individual e da coletiva”80. Assim, direito e comunicação social atuam como ciências paralelas, sendo o direito da comunicação objeto de estudo em zona de confluência entre elas, embora “ainda muito dependente de outras disciplinas para o estabelecimento do
79
Bitelli, Marcos Alberto Sant’Anna. O Direito da Comunicação e da Comunicação Social. São Paulo. Editora Revista dos
Tribunais. 2004. P. 22.
80
interesse de sua inclusão como subsistema jurídico (...) “uma página em construção” 81. Isso não diminui o impacto da modernidade nas relações entre as áreas, nem a importância de seu estudo.
Bitelli reitera: O direito, que tem muitas de suas raízes dogmáticas pretéritas
calcadas na teoria da vontade e nos direitos individuais, teve que rever suas fontes e
assimilar novos conceitos, para positivá-los diante do fenômeno da coletivização
fermentado no período pós-Revolução Industrial.82 Todavia, a informação divulgada na fase pós-gutenberguiana adquiriu contornos mais difusos, coletivos, simultâneos.
Portanto, também para o direito se torna iminente a análise do direito de informar e
ser informado com estas novas cores83.
Tendo o mesmo autor como suporte constata-se o impacto da tecnologia, particularmente a partir do século XX, nas relações dos meios de comunicação e do sistema jurídico com a sociedade.
Certamente, após o surgimento e a evolução do rádio, e em seguida da radiodifusão
televisiva, com seus subprodutos como a CATV (televisão a cabo), o DTH (direct to
home) e mais recentemente o Webcast (difusão por internet), o direito precisou
minimizar todas as teorias de atos e negócios jurídicos baseados na ‘vontade’, se é
que ela existe, (...), após a análise dos efeitos da comunicação de massa sobre as
sociedades capitalistas”.84
81
Ibidem. P. 22.
82
Idem. P. 23
83
Ibidem.
84
2. Liberdade de expressão: antecedentes históricos
Embora o objeto deste estudo seja especificamente o meio televisivo público, o direito à informação no ocidente, em particular no Brasil, tem raízes na história da imprensa e no modo de produção capitalista. Para Nélson Werneck Sodré “por muitas razões, fáceis de demonstrar, a história da imprensa é a própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista”.85 Dá-se nesse processo uma luta pelo controle dos meios de difusão de idéias e de informações envolvendo pessoas e organizações de várias situações sociais, culturais e políticas, com conseqüentes diferenças de aspirações e interesses. “Ao lado dessas diferenças e correspondendo ainda à luta pelo referido controle, evolui a legislação reguladora da atividade de imprensa”86. Para o presente trabalho o raciocínio importa na constatação de que tal processo tem característica dialética “facilmente perceptível na influência que a difusão da imprensa exerce no comportamento das massas e dos indivíduos”87. O autor entende haver neste processo um traço característico que consiste na unidade e na uniformidade:
Em que pese tudo o que depende de barreiras nacionais, de barreiras lingüísticas, de
barreiras culturais – como a imprensa tem sido governada, em suas operações, pelas
regras gerais da ordem capitalista, particularmente em suas técnicas de produção e
de circulação – tudo conduz à uniformidade pela universalização de valores éticos e
culturais, como pela padronização do comportamento. As inovações técnicas, em
busca de mais ampla divulgação, acompanham e influem na tendência à
uniformidade” 88.
85
Sodré, Nélson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro. 1999. Mauad. P. 01.
86
Idem.
87
Ibidem.
88