PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
DIREITOS AUTORAIS E COMPARTILHAMENTO EM
REDE:
novos rumos da propriedade intelectual no ciberespaço
Luisa Marques Barreto
Luisa Marques Barreto
DIREITOS AUTORAIS E COMPARTILHAMENTO EM
REDE:
novos rumos da propriedade intelectual no ciberespaço
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de MESTRE em
Comunicação e
Semiótica
, sob a orientação da Profª Doutora,
Christine Greiner
.
Banca Examinadora
…...
…...
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...07
CAPÍTULO 1: NOVOS RUMOS DA PROPRIEDADE INTELECTUAL...13
1.1. O Conceito de Imunidade...18
1.2. O Próprio...23
1.3. O Comum...29
CAPÍTULO 2: A CONSTRUÇÃO DO AUTOR NO CIBERESPAÇO...36
2.1. Tipos de Autorias...41
2.2. Cultura Livre ou Cultura Comum?...47
2.3. Capitalismo Cognitivo: como pensar a propriedade intelectual no ciberespaço...53
2.4. Novas Formas de Remuneração e Relação...60
CAPÍTULO 3: DIREITOS AUTORAIS HOJE...65
CONCLUSÃO...77
RESUMO
Esta pesquisa trata do impacto causado pela aproximação entre produtores e receptores na produção
cultural no ciberespaço, que afetou diretamente o status do autor e o modo como ele se constrói na
sociedade. A digitalização dos produtos culturais e o compartilhamento em rede desestabilizaram
três categorias fundamentais que sustentam os direitos autorais: o autor, a propriedade e o trabalho.
O objetivo desta pesquisa é apresentar algumas mudanças epistemológicas em relação a noção de
propriedade intelectual enquanto fonte de remuneração autoral. Tais mudanças afetam de maneira
significativa os modos como as obras se comunicam com o público. Isso porque, dentre outros
fatores relacionados, o controle sobre a reprodução das obras imateriais torna-se cada vez mais
complexo e ineficiente. O problema desta pesquisa reside no fato de que tanto a função-autor como
o papel do usuário foram radicalmente alterados, impactando o modo como circulam os discursos e
a produção cultural. O tema será estudado sob dois ângulos de análise: do ponto de vista do sistema
jurídico e das estruturas de poder relacionadas a indústria cultural; e da cultura. Apresentamos
debates sobre propriedade intelectual (Virno 2003, Hardt & Negri 2005 e Gorz 2005), cultura livre
(Lessig 2004, 2009; e Lemos 2005, 2010, 2011); a função-autor (Foucault, 1969) e o conceito de
paradigma da imunização desenvolvido por Roberto Esposito (2005, 2010). Os estudos divulgados
durante o período da consulta pública aberta pelo Ministério da Cultura em 2007 pelos grupos
acadêmicos ligados a FGV, USP e UFSC, constituíram ainda a base para compreendermos, no
âmbito jurídico, quais são as alterações propostas para reforma da lei de direitos autorais brasileira,
9.610/98. O resultado da pesquisa foi uma atualização de discussões nem sempre correlacionadas e
que, analisadas sistemicamente, apontam para mudanças significativas nos modos de se pensar as
novas relações entre autoria, obra e público nas redes cognitivas do ciberespaço.
ABSTRACT
This research is about the impact caused by the proximity between producers and receivers in the context of cyberspace cultural production. This phenomenon has directly affected author status and the way it is constructed in society. The digitalization of cultural products and the network sharing have destabilized three fundamental categories that holds the copyright: the author, the property and the labor. The purpose of this research is to introduce some changes regarding the epistemological notion of intellectual property as a remuneration copyright source. These changes affect significantly the ways in which the works communicate with public. This is a relevant thing why among other related factors, the control over the intangible works reproduction becomes increasingly more complex and inefficient. The problem of this research resides in the fact that both, the author-function as the user's role, has been radically altered impacting the way the discourses and the cultural production circulates. The theme will be studied from two angles of analysis: from the standpoint of the legal system and power structures related of cultural industry, and from culture. We will introduce debates regarding intellectual property (Virno 2003, Hardt & Negri 2005, Gorz 2005), free culture (Lessig 2004, 2009, 2005; and Lemos, 2005, 2010, 2011); author-function (Foucault, 1969) and the concept of immunization paradigm developed by Roberto Esposito (2005, 2010). The studies published during the period of open public consultation by the Culture Ministry in 2007 by the academic groups linked to the FGV, USP and UFSC still formed the basis for understanding in the legal field which are the proposed changes to the copyright Brazilian reform law, 9.610/98. The research result was an update of discussions that are not always correlated and when are systematically analyzed can show significant changes in the ways of thinking the new relationship between author, work and public in the cognitive networks of cyberspace.
INTRODUÇÃO
O direito autoral no ciberespaço deixou de ser um assunto que diz respeito somente aos autores para
ser discutido em diversos campos sociais, como a comunicação, filosofia, educação, artes, direito,
sociedade, economia da informação, entre outros. Embora existam pontos em comum dentro desses
campos ainda existe um impasse em relação ao status social do autor, principalmente no que se
refere ao direito de remuneração. A aproximação entre produtores e receptores de conteúdo impõe
questionamentos sobre a arte enquanto forma de trabalho, portanto sobre a propriedade intelectual,
pilar de sustentação do direito patrimonial do autor e sobre o controle do acesso à informação.
A hipótese desta dissertação é a de que embora o trabalho artístico e intelectual seja essencialmente
imaterial, ele ainda é uma forma de produção cultural profissionalizada. A única forma de garantir a
função social da propriedade, assim como o direito ao acesso a informação e cultura, e os direitos
patrimoniais do autor é através da articulação público e privado; a partir da redução do monopólio
exercido pelos autores e produtores enquanto limitadores da circulação da cultura, e da criação de
novas formas de domínio público.
A noção de propriedade intelectual não leva em conta o caráter coletivo da criação e não reconhece
a imitação e a cópia como princípios fundamentais da cultura e da história. O que proponho neste
trabalho é a criação de um modelo interpretativo para os direitos autorais que considere a própria
ambivalência público-privado inerente à criação autoral enquanto articulação, não como oposição.
A segunda hipótese é que o trabalho artístico e intelectual tornou-se cada vez mais autônomo e
independente. São os próprios autores que criam para si estratégias de sobrevivência e de
divulgação do seu trabalho usando a Internet como ferramenta. Este fenômeno faz ressurgir a
discussão sobre a criação de uma estrutura pública para a cultura, pois mesmo que o trabalho
autoral seja cada vez mais independente, em algum momento ele depende de incentivos públicos
que ofereçam outras oportunidades de trabalho e rendimento.
No aspecto jurídico, a criação de licenças públicas ajudaria a construir uma nova forma de domínio
público, a partir da garantia de alguns fundamentos já desenvolvidos no âmbito do software livre e
das licenças públicas gerais, como a abertura de códigos a fim de que se mantenham sempre
acessíveis a todos, e abertos à livre execução, modificação e redistribuição. As novas formas de
de estudo as ações da ONG Creative Commons1, que desde 2001 oferece novas licenças voltadas
aos conteúdos digitais.
O direito autoral é uma proteção jurídica de caráter híbrido que engloba os direitos morais de
personalidade e autenticidade impressos em uma obra e os direitos patrimoniais de obtenção de
lucro a partir da sua reprodução. Essa dualidade aparece na tênue distinção entre os termos direito
de autor e direito autoral, direitos autorais e copyright2, melhor traduzido do inglês como direito de
cópia. O direito de autor diz respeito ao ramo jurídico que assegura no âmbito do direito civil os
direitos da pessoa, já a maior amplitude do termo direito autoral parece englobar ao processo de
criação seus mecanismos de difusão e comunicação, incluindo os direitos conexos dos intérpretes,
executantes, dos produtores3 e das empresas de radiodifusão. Direito de cópia refere-se claramente
aos direitos dos editores4.
Os direitos autorais podem ser interpretados a partir de três aspectos principais: o autor, a
propriedade e o comum. Duas questões importantes cercam o autor, a forma como ele foi construído
na sociedade alterou-se drasticamente, os pilares que o sustentavam: o direito de personalidade e o
de propriedade. Os direitos morais que protegem a criação e o autor em caso de uso indevido,
plágio, alteração da obra sem autorização, entre outros aspectos, estão ligados ao reconhecimento
do autor enquanto figura fechada em si mesma. O direito de propriedade ainda é reconhecido como
tal, mas com a digitalização dos produtos culturais na Internet fica cada vez mais difícil criar uma
forma de remuneração autoral voltada para a rede. A construção de uma cultura comum ou de uma
nova forma de domínio público onde seria permitido se apropriar e alterar os conteúdos digitais de
uma forma mais livre esbarra nas outras duas categorias: o autor e a propriedade.
Com o surgimento da Internet e com a evolução do padrão World Wide Web e mais recentemente
com a arquitetura peer-to-peer5, a produção cultural antes majoritariamente vinculada aos seus
suportes físicos foi sequenciada em códigos transmitidos por computador. A digitalização
1 ONG sem fins lucrativos, criada por Lawrence Lessig, que oferece outras formas de licenciamento para obras
artísticas e intelectuais. As licenças Creative Commons são mais flexíveis e mais ajustadas a uma política de compartilhamento, que enxerga a propriedade intelectual como bem coletivo.
2
Nos Estados Unidos é mais comum o uso do termo direitos de cópia, ou copyright. No Brasil usamos mais a expressão direitos autorais.
3 Título I, Disposições Preliminares, Artigo 5º, inciso XII – produtor: a pessoa física ou jurídica que toma a iniciativa
e tem a responsabilidade econômica da primeira fixação do fonograma ou da obra audiovisual, qualquer que seja a natureza do suporte utilizado. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral/lei-961098-consolidada/>.
4 Título I, Disposições Preliminares, Artigo 5º, inciso XI – editor: a pessoa física ou jurídica à qual se atribui o direito
exclusivo de reprodução da obra e o dever de divulgá-la, nos limites previstos no contrato de edição. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral/lei-961098-consolidada/>.
desestabilizou a forma como produzimos e disseminamos os produtos culturais e com isso a
propriedade intelectual relacionada aos direitos autorais. Nessa avalanche de transformações
trazidas com o desenvolvimento do ciberespaço todas as categorias do trabalho foram sendo
consequentemente alteradas, passando a adquirir aspectos cada mais comunicativos e colaborativos.
Algumas dessas categorias sofreram um impacto especialmente maior, desconstruindo toda sua
prática e sua função social, como é o caso do trabalho artístico e intelectual.
A construção do autor no sistema capitalista desenvolveu-se sob uma lógica compensatória. Para
remunerar o criador e ao mesmo tempo os produtores e editores seria preciso desenvolver um
sistema de partilha recrutado das vendas de produtos físicos; depois das execuções ao vivo e das
transmissões em rádio e televisão. Para que o consumidor não ficasse com poder de uso total,
inclusive com o poder de revender um produto comprado, medidas de restrição tecnológicas
passaram a ser incutidas nas mídias (fita cassete, DAT, CD, DVD) para impedir a proliferação das
cópias caseiras permitidas pelos aparelhos de gravação cada vez mais velozmente aperfeiçoados.
Há 20 anos uma primeira emenda foi aderida à lei de copyright americana abrindo uma série de
precedentes jurídicos. A instituição da Audio Home Recording Act, AHRA, em 1992, é um marco
na história dos direitos autorais, pois foi a primeira vez que a Internet passou a ser vista como um
risco para as indústrias culturais. Ao mesmo tempo que o Congresso liberava a produção de
aparelhos que permitiam a gravação de formatos digitais por empresas como a Sony e a Phillips,
criava medidas de restrição tecnológica que impediam a cópia perfeita por parte dos consumidores.
Após esse evento novas formas de compensação foram criadas e novas emendas foram sendo
agregadas à constituição como a Digital Millennium Copyright Act (DMCA), de 1998, medida
criada para impedir o desenvolvimento de tecnologias reversas sobre os dispositivos de controle de
cópia incutidos nas mídias.
No final de 2011 e início de 2012, ou seja, quase 20 anos depois da primeira emenda à lei de
copyright, os projetos de lei Stop Online Piracy Act (SOPA) e a Preventing Real Online Threats to
Economic Creativity and Theft of Intellectual Property Act (PIPA) tentaram mais uma vez controlar
a pirataria no mundo e as formas de reprodução relacionadas ao ambiente digital e físico, mas foram
barradas no congresso por conta da reação massiva de empresas como Facebook, Twitter, Google,
Amazon, entre outras.
entradas, liberando algumas funções6 antes reservadas aos produtores culturais considerados como
criadores legítimos, em contraposição à produção amadora e popular, e como figuras apartadas do
seu público. O impacto do sistema peer-to-peer na rede conduziu à realização de novos enlaces até
que o receptor passou a ser também emissor e produtor de conteúdo. Essa aproximação entre
produtores e receptores expandiu a cultura amadora e os princípio da cultura livre7, com menos
travas à circulação de produtos culturais.
A relação que constrói o autor na sociedade é de nova natureza, já sofreu o impacto do surgimento
de um novo meio e deve ser repensada em toda sua estrutura, partindo da difusão de conteúdos
digitais e de todas as ações que decorrem disso, como o download legal, a apropriação, a
modificação e a criação de novas hipermídias; passando pelas leis, pelas instituições supranacionais
que regulam os direitos de autor e de cópia no mundo, assim como pela pragmática do trabalho
artístico e intelectual, afetado principalmente no que diz respeito às formas de distribuição e de
remuneração.
Para lidar com a complexidade dessa cadeia produtiva tratarei a cultura como o cenário de onde
emerge a dinâmica que se estabelece entre autor-mercado-público, dinâmica essa já não mais tão
delimitada em categorias definidas, como “o autor”, “o mercado”, “o público” - todas essas esferas
estão sofrendo um processo constante de mudança, hibridação e de ambivalência, pois os
produtores estão deslocados nessa cadeia produtiva e não ocupam mais as mesmas funções, como é
o caso do autor e dos intermediários com direitos conexos sobre os autores, como os editores e
produtores.
O ciberespaço suscita a criação de novas práticas e de novas relações baseadas no desenvolvimento
de um sistema de produção cultural diferente, adaptado a um novo meio, onde a propriedade
intelectual torna-se mais flexível e onde o direito patrimonial do autor equilibra-se com essas novas
práticas e com o direito fundamental de acesso a cultura.
6 O termo função está sendo usado aqui na linha do proposto por Foucault em relação ao conceito de função-autor,
que será melhor analisado no capítulo 2 desta dissertação, ou seja, o modo como determinados discursos são criados e difundidos na sociedade. Os discursos podem ou não ser portadores de função-autor. Foucault exemplifica: um texto anônimo escrito na rua terá no máximo um redator, mas não um autor. Isso quer dizer que algumas formas de produção cultural são desprovidas de função autoral, enquanto outras assumem posição de destaque, como a do escritor e a do compositor, por exemplo.
7 Embora contenha autores proprietários de suas obras, a cultura livre deve ao mesmo tempo garantir o direito de
acesso a cultura e a informação. A propriedade intelectual vai perdendo sua função de monopólio, onde só os autores e os que lhe são conexos podem usufruir dos rendimentos gerados por uma criação autoral, e cada vez mais exige-se que os benefícios da produção cultural sejam repartidos com todos, através da legalização do compartilhamento, por exemplo. Para alguns autores como Hardt, Negri e Murizio Lazzarato os produtores e receptores não estão
Como não poderia deixar de ser, a relação autor-mercado-público atua a partir do choque constante
de interesses que, a princípio, vai do individual ao coletivo, por meio das estruturas consolidadas de
poder. A princípio, pois, como veremos no desenvolvimento desta pesquisa, a própria dinâmica do
trabalho imaterial desde o surgimento da cultura digital tende a hibridizar a figura do produtor e do
receptor, muitas vezes aglutinando também a figura intermediária das indústrias culturais8. O
problema a que nos deparamos agora é que, com a mudança estrutural da cadeia produtiva que gera
produtos imateriais para um modelo de interação horizontal, as estratégias que antes funcionavam
para o controle dos direitos autorais diluem-se com a viralização das obras no plano virtual.
Esta pesquisa foi estruturada da seguinte forma, os dois primeiros capítulos visam dar uma visão
geral dos problemas que cercam os direitos autorais hoje em seus aspectos políticos, econômicos,
sociais, culturais e categoriais, como no caso da propriedade, do trabalho e do valor; fundamentais
para compreendermos as transformações estruturais que desestabilizaram todo o resto. A questão da
produção do comum defendida por Virno, Hardt, Negri e Gorz é a base teórica que sustenta a
hipótese geral de que é preciso pensar os direitos autorais fora da lógica da propriedade intelectual.
O terceiro capítulo foi construído a partir dos documentos gerados pelos grupos de pesquisa da USP,
FGV e UFSC, após as consultas públicas geradas para discussão sobre a alteração da lei de direitos
autorais no Brasil, e de matérias de jornal.
Para pensar o conceito de propriedade, a ideia de imunização trazida por Roberto Esposito nos
ajudará a pensar a ambivalência que constitui o próprio e o comum, o privado e o público, e a
articulação entre esses dois polos. Imunidade é uma expressão que refere-se primeiramente ao
âmbito do sistema jurídico, como dispositivo artificial de regulação da sociedade. No caso dos
direitos autorais veremos como ao mesmo tempo a lei pode restringir ou garantir o acesso a cultura,
ou se tornar marginal frente ao potencial dos códigos enquanto princípio de regulação das trocas no
ciberespaço.
A teoria dos memes, do zoólogo, etólogo e evolucionista queniano, Richard Dawkins, traz um
campo complementar para essa pesquisa no que diz respeito aos mecanismos de imitação e
reprodução da transmissão cultural e seu modo de difusão. Veremos com os memes podem ser
compreendidos dentro do campo da semiótica, enquanto parte do processo de semiose, e em que
aspecto a analogia semântica entre gene e meme pode nos ajudar a compreender as novas formas de
difusão cultural e de compartilhamento de conteúdos digitais que estabelecemos hoje na Internet.
8 Usarei o temo indústrias culturais para dar conta das diversas indústrias que tem como base os direitos autorais e de
As novas formas de produção cultural serão discutidas a partir do conceito de cultura livre
(LESSIG, 2004) e de negócios abertos (LEMOS e MIZUKAMI, 2008). A exposição sobre o
tecnobrega relaciona-se com os novos modelos de negócios criados a partir do conceito de
commons sociais e que, neste caso específico, figuram como alternativa de produção na área
musical pensada fora da lógica dos direitos autorais. As discussões sobre capitalismo cognitivo e
trabalho imaterial servirão para contextualizar os aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos
CAPÍTULO I
NOVOS RUMOS DA PROPRIEDADE INTELECTUAL
Os direitos autorais são um sistema de proteção jurídico voltado ao autor e aos que lhe são
conexos9, que garante a remuneração autoral por meio da venda de produtos (CD, DVD, livros), das
execuções públicas e transmissões televisivas e radiofônicas, e o direito exclusivo de cópia pelos
reprodutores. O problema com o qual nos deparamos agora é que a lei brasileira, de 1998, não
compreende os conteúdos digitais e as formas de produção artísticas e intelectuais na Internet.
Os bens culturais quando desvinculados de seus suportes não podem ser equiparados às mercadorias
em seu sentido convencional. Desta forma, a ideia de propriedade intelectual na qual se baseia todo
o sistema de copyright e de direitos autorais é desestabilizada. Ao mesmo tempo, a única forma de
valorar um produto digital e impor-lhe restrições é através da limitação à difusão e ao livre acesso,
caso se mantenha a lógica do todos os direitos reservados e as relações de propriedade estabelecidas
política, cultural e economicamente.
Outra questão fundamental diretamente ligada aos direitos autorais diz respeito às transformações
do trabalho no contexto do pós-fordismo10 que, no caso do trabalho artístico e intelectual, é afetado
em suas últimas consequências pelos processos comunicacionais do ciberespaço. Autores como
Virno (2003), Gorz (2005), Hardt e Negri (2005) têm em comum o fato de discutirem exatamente as
transformações do trabalho, no que diz respeito a politização e a comunicação, e a sua transposição
em trabalho imaterial, ou biopolítico11.
Trabalho imaterial e trabalho biopolítico são expressões que muitas vezes aparecem como
sinônimas na exposição desses autores, porém, com algumas variações interpretativas. Para Paolo
Virno, a preponderância do trabalho imaterial - no pós-fordismo trabalho comunicativo, afetivo,
9 Produtores, editores, intérpretes e executantes.
10 Modo de produção capitalista organizado em linhas de produção e na segmentação do trabalho visando a produção e
o consumo em massa e o lucro. O paradigma do fordismo é a indústria automobilística, pois foi a partir do surgimento da Ford e de seu sistema de funcionamento que a organização da indústria de massa foi sendo levada para quase todas as formas de trabalho durante o século XX.
11 Para Hardt e Negri (2005), o trabalho imaterial tende a ser hegemônico e a impor seu modelo de produção a todas as
intelectual e político - está diretamente relacionada a totalização da potência humana enquanto
força de trabalho que ainda é subsumida pelo capital, pelas estruturas hierárquicas de poder e pelas
normas da empresa capitalista. Mas como o trabalho imaterial tem uma natureza ambivalente, ele
também estaria carregado de traços de autonomia e politização, principalmente por seu caráter
dinâmico, comunicativo e colaborativo; características que incorrem na proposição das novas
formas de esfera pública e democracia não-representativas que existem enquanto potência da
multidão12.
Para Michael Hardt e Antonio Negri trabalho imaterial é aquele que cria não somente produtos
materiais, mas bens imateriais, como o conhecimento, informação, comunicação, relação e afeto. O
trabalho imaterial, por produzir essencialmente relações que alteram a própria sociabilidade, ele
seria também biopolítico, ou seja, pertence a um campo onde as categorias políticas, econômicas,
sociais, culturais tornam-se cada vez mais justapostas e misturadas. Gorz usa a expressão capital
imaterial, intelectual ou capital humano aproximando-se mais da definição de Paolo Virno em
relação ao trabalho imaterial como totalização das capacidades intelectuais, linguísticas e afetivas
humanas. Em todos os autores citados o modo de geração de valor do capitalismo pós-fordista
desloca-se do tempo de produção, do trabalho objetivo, para o trabalho inventivo e comunicacional,
simbólico e estético, ou seja, o trabalho imaterial.
Esses autores encontram-se em três pontos cruciais: partem da decadência do conceito de povo e da
emergência de uma nova forma de pensar a multidão para ressaltar que, mesmo mantendo seus
traços de singularidade os muitos podem unir-se em torno de objetivos comuns a fim de criar uma
nova forma de democracia (Hardt & Negri, 2005), de esfera pública ou de governo
não-representativo (Virno, 2003). O conceito de singularidade aproxima-se do de autonomia e a
multidão passa a ser vista enquanto potência política, não somente como força de trabalho.
O primeiro ponto diz respeito ao conceito hobbesiano de povo, polo oposto da noção espinosista de
multidão, enquanto a multidão constitui-se como multiplicidade de singularidades que não
convergem em uma unidade ou que não transferem completamente seus direitos para a tutela do
Estado centralizador moderno. A ideia de povo está mais voltada para um corpo político ordenado e
coeso, regulado pelas normas e regras estipulados pelo poder; a diferenciação entre povo e multidão
tem início com a formação do Estado moderno europeu no século XVII.
12 Articulação política e social que consiste numa pluralidade de indivíduos que se organizam em torno dos assuntos
Sob o guarda-chuva do conceito de multidão encontram-se uma gama de fenômenos relacionados
ao modo atual de produção capitalista pós-fordista, às transformações do trabalho e a crise do
Estado moderno. A multidão é a articulação política e social de uma pluralidade de indivíduos em
torno dos assuntos comuns que se constitui através do intelecto público, ou general intellect13. Sua
forma de vida se dá por meio da constituição de redes de relações afetivas e comunicativas no
âmbito do trabalho e da vida sendo perpassada, em sua maior parte, pelas redes tecnológicas de
comunicação e pelas novas mídias.
A linguagem, a comunicação e os sentidos, portanto, aquilo que os homens têm em comum, são as
bases de toda interação humana, logo, são categorias do âmbito do comum, do coletivo e do
público. Essas categorias não podem mais ser compreendidas como dissociadas de seus supostos
antagonistas: o particular, o individual e o privado.
O conflito que reside na relação um-muitos aparece hoje na sociedade de várias maneiras e é
analisada pelos autores usados nessa pesquisa, Paolo Virno, Michael Hardt e Antonio Negri,
principalmente no que diz respeito às transformações do trabalho e da formação da subjetividade no
pós-fordismo. Esta pesquisa é específica quanto ao trabalho imaterial de tipo artístico e com
enfoque na questão da propriedade intelectual e dos direitos autorais, fundamentais para a discussão
sobre o acesso ao conhecimento e a informação.
O segundo ponto é que a emergência da multidão tem como pano de fundo as transformações do
trabalho, classificadas pelos autores como pós-fordismo, e o desenvolvimento do ciberespaço. De
modo resumido, o trabalho industrial teria perdido preponderância sobre o aumento qualitativo do
trabalho imaterial, dentro e fora da indústria. Trabalho imaterial não significa que seja somente
abstrato, intelectual, mas acima de tudo comunicativo e afetivo. Essas características, por sua vez,
eram vistas na tradição política aristotélica como parte da política (práxis), portanto como
modalidade distinta do intelecto (ou vida da mente) e do trabalho (poiesis). Porém, no trabalho
imaterial pós-fordista essas características tornaram-se o fundamento do próprio trabalho14.
13 Na definição de Karl Marx general intellect ou intelecto geral é o conjunto dos conhecimentos em geral, dos saberes
e da ciência, no qual se ampara o sistema de produção social. Para os teóricos do capitalismo cognitivo pós-fordista, que também falam de multidão, trabalho imaterial e biopolítico, estamos num estágio onde o capitalismo reuniu todas as capacidades humanas em torno do funcionamento do capital, de modo diferente do sistema fordista. Isso se dá através da publicização do pensamento por meio da comunicação e das formas colaborativas de trabalho
intensificadas pelas novas mídias. Essa característica do trabalho imaterial pós-fordista extrapola os limites da empresa e do trabalho formal assalariado e passa a ser o centro gravitacional do sistema de produção e das formas de vida na atualidade, podendo também constituir-se como forma de resistência ao próprio capital e ao Estado
representativo.
14
O terceiro ponto leva em conta o fato de que essa transformação irreversível é o reflexo de um
processo de hibridação das categorias políticas modernas, antes separadas. Ou seja, se o trabalho
imaterial vem se tornando hegemônico (Hardt & Negri, 2005), comunicativo e político (Virno,
2003), não existiria mais barreiras entre trabalho e política - resultando num processo contínuo de
resistência de diversos grupos trabalhistas, étnicos ou de gênero; no aumento da autonomia ou na
criação de novas formas de trabalho e práxis.
Outro processo nítido de justaposição encontra-se na esfera do público e do privado, ainda mais
quando falamos em ciberespaço. A hibridação, por ser constituída de elementos contrários, não pode
deixar de ser ambivalente; ao mesmo tempo em que se busca o comum, o indivíduo vê-se ameaçado
em relação ao esfacelamento das categorias que antes significavam estabilidade e sobrevivência,
como por exemplo, o trabalho e a propriedade.
Aproximadamente desde o fim do século XX, início do XXI, as entidades supranacionais15 que
regulam os direitos autorais no mudo começaram a tomar arbitrariamente medidas de proteção
contra a aquisição de bens protegidos por direitos autorais. Essas entidades, juntamente com as
indústrias culturais, na tentativa de não perder seu filão de mercado, e combatendo as iniciativas
voltadas para o compartilhamento, trouxeram a público a fratura interna que desestruturava a lógica
sobre a qual organizaram-se as indústrias culturais.
O trabalho artístico e intelectual é intrinsecamente imaterial. É virtuoso, pressupõe a existência de
um público, não pode ser quantificado em horas produzidas e o valor de seu produto final
permanece sempre indeterminado. Virno faz uma comparação entre o trabalho de tipo servil, como
o das babás e faxineiras, por exemplo, e o trabalho de um músico ou bailarino; em ambos, a
separar o tempo do trabalho, do tempo da produção; do tempo da vida e do lazer. Nesse processo de unificação é que o trabalho imaterial absorveria características políticas e intelectuais, a partir da constante exteriorização do
pensamento em atividade coletiva, colaborativa e, portanto, pública.
15 Os primeiros acordos de proteção da produção intelectual entre países datam do início do século XIX. ONGs como
finalidade do trabalho encontra-se em sua própria atividade, não tem um resultado final
determinado. Para Hannah Arendt, a arte que não produz obra possui grande afinidade com a
política, pois está sempre em constante processo de mutação (é diferente a cada
execução/apresentação) e porque acontece a partir da relação com os outros, sendo indispensável a
construção de um “espaço de estrutura pública” (ARENDT apud VIRNO, 2003: 23-26). Portanto,
toda ação política é virtuosa e performática, logo, todo virtuosismo é também político.
Desde o surgimento do copyright no início do século XVIII até os dias de hoje, no entanto, a
propriedade intelectual figura como um importante dispositivo imunológico16. Sua finalidade é
equilibrar os interesses particulares dos autores e dos que lhe são conexos, e do público consumidor,
através das restrições jurídicas e de medidas tecnológicas compensatórias17 que evitem a cópia
desenfreada de produtos culturais. Assim como os suportes foram desmaterializados e as
informações18 puderam fluir no ciberespaço, o processo de desmaterialização da propriedade
culminou num problema profundamente ambivalente e aporético. Se aquilo que antes era uma
mercadoria (livro, CD, DVD) transformou-se em um conjunto de zeros e uns transferíveis
indiscriminadamente na rede a um custo ínfimo, qual o motivo de continuarmos pagando por
unidades infinitamente reproduzidas de bens culturais?
A desmaterialização dos suportes levou às últimas consequências a dicotomia público-privado, de
onde surgem as questões mais importantes sobre a propriedade da cultura e do saber, e sobre o
status dos autores na sociedade da informação.
Quero ressaltar aqui que, no contexto desta dissertação, é completamente inconcebível classificar os
autores como categoria privilegiada. O dispositivo imunológico do copyright visa proteger os que se
beneficiam da reprodução massificada de uns poucos que sustentam a indústria cultural, enquanto
que os direitos autorais garantem uma porcentagem financeira advinda da venda de um produto, da
reprodução e da execução nos meios analógicos ou da apresentação pública para o autor. Com a
16 Essa expressão refere-se ao conceito de imunidade desenvolvido por Roberto Esposito (2005, 2010) e que será
melhor analisado adiante. Imunidade é para o autor a articulação entre os dois polos constitutivos da relação que liga vida e poder, o lado destrutivo e conservativo da biopolítica.
17
A gestão de direitos autorais, GDD, ou Digital Rights Management, DRM, são tecnologias inseridas nos dispositivos tecnológicos ou codificadas digitalmente para impedir determinados tipos de uso não permitidos pelos provedores de conteúdo aos usuários, assim como a cópia perfeita e ilimitada e a interoperabilidade entre aparelhos. Empresas como Apple, Microsoft e Amazon usam digital rights management.
18 O termo informação será utilizado aqui no sentido estabelecido tradicionalmente pela Teoria da Informação, ou seja,
digitalização dos produtos artísticos e intelectuais, temos ao menos duas linhas de pensamento a
serem seguidas: ou o controle se tornará imprescindível e as tecnologias se aperfeiçoarão para que o
copyright seja controlado com perfeição no ciberespaço, ou nos propomos a pensar além da
propriedade como forma exclusiva de geração de valor para os produtos culturais.
1.1. O Conceito de Imunidade
Quanto mais tivermos obras proprietárias mais difícil será manter o acesso a cultura, a educação e a
informação disponíveis. Essa lógica pode ser analisada à luz do conceito de paradigma da
imunização de Roberto Esposito. Em linguagem jurídica o termo imunidade remete ao significado
de isenção, despojamento em relação a obrigações comuns e responsabilidades; também refere-se
ao dispositivo jurídico artificial que conserva a vida, portanto que protege a comunidade19. Ao
mesmo tempo, as categorias políticas da modernidade (soberania, propriedade e liberdade) são
formas linguísticas e institucionais perpassadas pela lógica imunitária para preservar a vida dos
riscos trazidos pela comunidade.
Deste modo, a imunidade pode ser vista como poder de conservação da vida ou, no seu viés
negativo, como proteção negativa da vida, quando para conservá-la usa de mecanismos que a
precariza, devasta, ou mesmo suprime. Em relação aos direitos de copyright, em que medida a
propriedade intelectual torna o autor imunizado? Isso acontece?
No caso dos direitos autorais, motivo dessa dissertação, a imunidade encontra-se na relação entre
propriedade e sociedade e em como as restrições jurídicas podem ao mesmo tempo proteger o autor
e prejudicar a sociedade, ou vice-versa, no que diz respeito a difusão cultural, pois o aumento da
propriedade de uns, nesse caso, reduz a possibilidade de acesso à informação por parte dos não
proprietários.
A metáfora da imunidade em seu sentido médico remonta ao mecanismo da vacina e sua dualidade
intrínseca, para imunizar o corpo através da vacinação é preciso injetar pequenos fragmentos
daquilo que se quer combater, a fim de estimular a produção de anticorpos. O principal exemplo de
dispositivo imunológico é o ordenamento jurídico, que ao mesmo tempo em que é visto como
aparelho de defesa da sociedade - impondo as regras a serem seguidas e predispondo as medidas
19
reparatórias - também é por meio dele que se delibera indiscriminadamente, deixando de proteger a
vida ou os interesses comuns.
Esposito, ao analisar as nuances entre biopoder e biopotência relaciona os polos contrários do
poder, de preservar e devastar ao mesmo tempo a vida, através do conceito de imunidade. O radical
latino munus significa estar ligado pela mesma lei e pelas mesmas obrigações; o contrário de
munus, ou seja, immunis, seria a isenção desse compromisso social, de relação de obrigação entre os
indivíduos. O termo latino immunitas - que origina a palavra imunidade - está diretamente ligado
numa simetria contrastante (ESPOSITO, 2010), à sua forma positiva, ao termo communitas, que
origina a palavra comunidade. A comunidade seria então o resultado do religamento dos laços
perdidos através da imunização.
[…] se a communitas é aquela relação que, vinculando os seus membros a um objetivo de doação recíproca, põe em perigo a identidade individual, a immunitas é a condição de dispensa dessas obrigações e por conseguinte de defesa ante os seus esforços expropriatórios […] imune é o “não ser” ou o “não ter” nada em comum (ESPOSITO, 2010: 80-81, grifo nosso).
A imunização enquanto articulação entre vida e política, bios e nomos, é um modus operandi que
contaminou todas as categorias políticas da modernidade: propriedade, liberdade e soberania. A
teoria política clássica, baseada na ideia de povo, reserva ao Estado o monopólio das decisões
sociais e do controle biopolítico por meio de ações administrativas, disciplinares e jurídicas,
pressupondo em sua dinâmica o despojamento dos assuntos sociais e coletivos por parte dos
indivíduos que os entregam ao poder que os representa.
É possível traçar três linhas de pensamento para essa questão. Poderíamos considerar que um artista
massificado pode se tornar imune ao ser privilegiado pelo mercado, ao ter todos os suportes
midiáticos a seu favor, pelas empresas ou mesmo pelo poder público. A segunda linha é
diametralmente oposta a primeira. O artista sem privilégios só consegue se imunizar contra o
mercado, que determina o sucesso de uns em contrapartida ao dos outros, quando cria estratégias
próprias de geração de valor ou através da ligação que ele mesmo desenvolve com seu público, de
modo direto e independente. A terceira linha diz respeito ao aspecto social: para que o acesso a
informação seja garantido, o dispositivo da propriedade deve ser flexibilizado.
Mas contra o que o artista precisa proteger-se, contra o mercado, o público, o acesso, ou contra a
A teoria dos memes, criada por Richard Dawkins20, baseia-se no entendimento de que a dinâmica
cultural pode ser compreendida analogamente às leis da vida. A partir desse princípio, o autor
estabelece um elo de ligação entre gene e meme - palavra originalmente advinda de “mimeme”, que
segundo sua raiz etimológica grega significa imitação. Para deixar clara a conexão entre gene e
meme, Dawkins encurtou a palavra “mimeme”, a fim de que soasse como gene.
Na genética humana os genes são compreendidos como unidades de replicação de informações
transmitidas hereditariamente, a partir dos preceitos da fidelidade de cópia, fecundidade e
longevidade. Sua capacidade de duplicação faz com que o DNA das espécies existentes persista ao
longo dos anos. Os memes, considerados por Dawkins como unidades de replicação cultural
funcionariam de modo análogo a seleção natural, onde o “meme egoísta”21 sobressai em meio a um
“fundo de memes”22. Nesse caso, o ambiente cultural atua como o caldo primitivo, onde unidades
de replicação (os memes) movimentam-se de cérebro em cérebro e, atualmente, de computador a
computador.
Exemplos de memes são melodias, idéias, "slogans", modas do vestuário, maneiras de fazer potes ou de construir arcos. Da mesma forma como os genes se propagam no "fundo" pulando de corpo para corpo através dos espermatozóides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes propagam-se no "fundo" de memes pulando de cérebro para cérebro por meio de um processo que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação. Se um cientista ouve ou lê uma idéia boa ele a transmite a seus colegas e alunos. É por imitação, em um sentido amplo, que os memes podem replicar-se. Mas, da mesma maneira como nem todos os genes que podem se replicar têm sucesso em fazê-lo, da mesma forma alguns memes são mais bem sucedidos no "fundo" do que outros. Isto é análogo à seleção natural (DAWKINS, 2007: 124-125).
A rede de computadores e seu formato de comunicação horizontal e ramificado configura um
ambiente armazenador de um volume de informações e dados incalculável. Assim como no caldo
primitivo23, ou no “fundo” de genes, a rede será vista aqui como uma ponte de ligação entre
computadores e pessoas, e que serve como ambiente favorável para a multiplicação de unidades de
imitação e cópia, ou seja, os memes.
20
Zoólogo, etólogo e evolucionista nascido no Quênia.
21
Para Dawkins todo gene é egoísta, pois para que seja replicado e sobreviva em meio a seleção natural, ele deve descartar os genes defeituosos ou com características obsoletas para a perpetuação da espécie. Do mesmo modo, o meme também age por princípios egoístas e sobressai em meio aos outros quanto mais for difundido.
22 O fundo de genes é o conjunto total de genes de uma população ou espécie, logo, o fundo de memes é o conjunto de
unidades de replicação cultural, por exemplo: a música, a arquitetura, a moda, entre outros aspectos da cultura que são transmitidos por meio da imitação, da cópia, ou da divulgação de um saber especializado.
23
A partir de um processo que se assemelha ao da viralização, os memes propagam-se sem controle,
sem previsão. O mais interessante nessa teoria, e que se adequa às discussões sobre a propriedade
intelectual, é que os replicadores, sejam moléculas, genes ou memes, que conseguem perdurar ou
gerar mais replicações são aqueles que estabelecem “envoltórios”, que criam “máquinas de
sobrevivência” (DAWKINS, 2007). A diferença do modelo da indústria cultural para o do
ciberespaço, no entanto, é que a Internet oferece mais possibilidades de autonomia e produção de
um trabalho independe, onde os artistas conseguem atingir com mais facilidade o público com a
viralização espontânea do seu produto, da sua imagem e dos seus conteúdos, podendo até mesmo
dispensar os mecanismos da indústria cultural e do copyright.
Na dinâmica dos direitos autorais, o retorno financeiro da venda ou replicação de um bem cultural
em meios de comunicação, para ser suficiente necessita da viralização do conteúdo até que se atinja
o máximo de pessoas possível. Como na seleção natural, o grupo minoritário sempre estará em
defasagem, pois a reprodução de seu produto é escassa dentro da sociedade e do “fundo de memes”.
Em contrapartida, o grupo majoritário sobressai do todo e coloniza não só a maior fatia do mercado,
como cria uma colônia monopolista. Essa dinâmica sempre favorecerá os que já tem visibilidade no
contexto cultural ou que são imunes, ou seja, que forem isentos de responsabilidades para o com o
todo, tendo somente seus interesses garantidos. Nesse sistema, quem ganha são as empresas
(gravadoras, editoras, arrecadadoras) e os artistas mais conhecidos.
Uma dinâmica que busque ser mais igualitária exige a presença ativa do autor em todo o processo,
principalmente no que diz respeito ao licenciamento de obras. Se o “sucesso” de uma obra depende
do número de multiplicações é mais conveniente para o artista liberar a sua reprodução - a fim de se
tornar mais conhecido - e restringir, de acordo com seus interesses, os tipos de uso.
A propriedade intelectual, ao ser entendida como estratégia de proteção imunológica, onde apenas
são garantidas as ações do criador inicial não pode ser aplicada a um processo cultural que se dá em
rede. A capacidade de apropriação dos bens culturais por parte do receptor, de inoculação e
resposta, torna o fluxo cultural coletivo, sendo muito difícil identificar propriedade em sujeitos que
são produtores e receptores ao mesmo tempo. O que importa é considerar a inserção do consumidor
no ciclo produção-reprodução-consumo e o seu papel ativo no processo. É precisamente nesse
ponto que a teoria dos memes pode ser relacionada ao trabalho imaterial. A replicação cultural não
acontece somente nas trocas, mas efetiva-se à medida que desenvolvem-se técnicas de reprodução,
A teoria de Dawkins foi bastante revisitada e criticada principalmente por conta do uso metafórico
que associa a ideia de gene com a de meme e por causar um certo estranhamento entre os leitores
que não atentaram para o fato de se tratar de uma analogia.
Terrence Deacon, da Universidade de Boston, não despreza a construção do conceito de Dawkins,
mas tenta afastar as possíveis contradições existentes nessa cruzamento entre biologia e cultura.
Para Deacon, os memes não são apenas unidades de replicação de informação transmitidas pela
cultura, o ato da replicação seria apenas uma parte de um processo maior e mais complexo. Deacon
compreende da conceituação de Dawkins que o significante “meme” propõe vantagens explicativas
para fenômenos menos identificados pelo ponto de vista da cultura, mas que ao mesmo tempo é
similar ao conceito de signo desenvolvido dentro do contexto da teoria semiótica.
Assim como o signo está sempre em movimento, o meme também é dinâmico. A memética
colabora com a semiótica na medida em que chama atenção para o processo de replicação. O meme
que perdura é o que se mostra mais eficiente para replicar e se adaptar, mas não necessariamente é o
melhor. As relações sociais, políticas e econômicas implicadas nas formações culturais são
determinantes para o processo de semiose por meio do qual o meme é difundido.
Essa dinâmica entre os aspectos culturais e individuais que envolvem a transmissão de memes entre
os indivíduos sociais pode ser pensada também à luz do conceito de singularidade, proposto por
Virno (2003). Os indivíduos seriam formados por um processo de singularização incompleto, que
nunca culmina na formação de um sujeito acabado, que não se transforma ao longo do tempo.
O princípio de individuação que forma uma subjetividade acontece em uma zona intermediária
entre a realidade pré-individual, constituída pelo fundo biológico característico da espécia humana,
e pelos memes/signos em movimento - órgãos físicos e sensoriais, percepção - e pela língua,
mecanismo de comunicação desenvolvido ao longo dos séculos, artefato que forma as relações
interpsíquicas. Não se trata de transitar de maneira imprópria entre diferentes níveis de descrição do
vivo (da célula às relações de poder), mas sim de reconhecer processos de mediação que
caracterizam os sistemas complexos (organismo, organizações sociais, políticas, etc).
Virno discorre sobre a noção marxista de general intellect como a partitura da multidão, atividade
virtuosa por meio da qual as pessoas comunicam-se e trocam informações e conhecimentos.
Retomando a ideia de meme, se os memes são unidades informacionais24 trocadas entre humanos e
máquinas e que dificilmente podem ser enclausuradas após sua exteriorização, o fundo de memes
seria o próprio intelecto geral, a cultura, tudo aquilo que compartilhamos.
Sendo a arte uma forma de trabalho, portanto de sustento, seria legítimo pensarmos uma forma de
remuneração artística capturada das comunicações e da viralização das ideias, dos memes? Uma
forma de remuneração que pudesse ser retirada de um fundo comum? Para isso seria preciso
analisar a possibilidade de criação de uma estrutura pública para a cultura, da regulação estatal e da
criação de políticas públicas, portanto da concretização de um fundo nacional de cultura. Essa é
uma tarefa da multidão ou do Estado, ou de ambos?
1.2. O Próprio
A propriedade enquanto categoria estrutural da modernidade, portanto do capitalismo, é
fundamentada em dois pontos principais: o trabalho e o comum. O trabalho por ser a operação que
transforma a natureza em algo próprio, e o comum, por ser o antagonista do próprio, tudo aquilo
que compartilhamos e usufruímos conjuntamente.
Para John Locke aquilo que é transformado a partir da natureza e, portanto, é apropriado por meio
do trabalho funde-se ao corpo do proprietário (LOCKE apud ESPOSITO, 2010). Sendo o corpo o
lugar primeiro da propriedade, trabalho e corpo, propriedade e identidade devem ser protegidos das
ameaças do mundo dado em comum. Deste modo, a propriedade pode ser interpretada de duas
maneiras. O indivíduo, ao possuir o próprio corpo, impõe um limite ao exterior, no âmbito moral e
jurídico, por exemplo, instaura-se que é proibido interromper a vida de alguém. Por outro lado,
podemos interpretar a propriedade em seu aspecto material: algo se torna minha propriedade a partir
do momento em que trabalhei para isso, em que ao me misturar à natureza, produzi algo meu e que,
portanto, ninguém pode pegar, roubar.
O capitalismo fundou-se sobre esta base, a operação que transforma o resultado do trabalho em
propriedade, logo, em sustento, embora não seja possível afirmar com exatidão que formas arcaicas
de propriedade não houvessem existido sobre a mesma dialética do próprio e do comum. Em
relação aos direitos autorais, no entanto, vemos surgir uma forma de propriedade sem possessão: o
valor da obra é determinado apesar da distância desta obra do corpo do artista, no caso das obras
materializadas em algum suporte. No caso das artes performáticas, sem obra ou produto final, não
existe resultado e sim ato, processo, execução. Onde reside, então, a propriedade sobre a criação?
Como fazer a operação que funde trabalho e corpo resultando em propriedade e sustento?
Essa manobra é feita, em parte, pelos direitos de autor, ou seja, pelo reconhecimento jurídico de
que, mesmo não produzindo uma obra, ou mesmo distante dela - quando existe enquanto
mercadoria - o autor é dela proprietário, estando ou não em algum suporte, como por exemplo no
caso da criação performática ou da execução que não culmina em gravação, física ou digital.
Duas questões abrem-se aqui: o trabalho artístico pressupõe a existência de um público, ele doa-se
para o público, põe uma obra no mundo ou a compartilha por meio da sua execução, tornando-se a
obra nesse momento ao mesmo tempo sua e do público. O trabalho artístico, individual, situa-se
numa zona intermediária entre o próprio ou particular e o comum, coletivo, compartilhável,
portanto, é por excelência ambivalente. A natureza ambivalente do trabalho artístico reflete na
questão do sustento e da propriedade por ser teoricamente improdutivo e de tipo servil.
A segunda questão é a seguinte: se o trabalho artístico e o próprio indivíduo situam-se numa zona
intermediária entre o comum e o próprio é legítimo defender, portanto, a existência de dispositivos
imunizadores que protejam ao menos o direito patrimonial sobre criações artísticas e intelectuais?
Lawrence Lessig, no livro The Code version 2.0, de 2009, defende duas teses essenciais: a de que o
ciberespaço deve ser regulado pelo Estado e a de que os códigos de programação determinarão o
modo como produzimos e difundimos cultura, assim como o modo como fazemos política e nos
relacionamos. Na visão de Lessig, o Estado é fundamental para que se proteja a liberdade dos
indivíduos e do mercado.
A regulação baseia-se em dois princípios fundamentais: identificação e autenticação. O aumento
dos cibercrimes, dos casos de pornografia e pedofilia na Internet, ataques às instituições e governos
têm reacendido o debate sobre o anonimato na rede e formas de controle. Umas das teses
defendidas nos Estados Unidos - e também no Brasil - é que os provedores de acesso devem reter
os dados dos usuários para que sejam analisados em caso de necessidade, assim como se faz com a
quebra de sigilo telefônico e bancário, em caso de suspeita. Deste modo, segundo Lessig, a rede
tende cada vez mais a se transformar num ambiente de controle, onde para acender a seus recursos,
seria preciso identificar-se continuamente por meio das tecnologias cada vez mais avançadas de
A teoria do homem invisível confere à lei e à constituição o direito de criar critérios de vigilância
para fiscalizar atitudes criminosas.
O homem invisível não teme o Estado. Sabe que sua natureza o coloca fora de seu alcance […] Sua história nos dá a chave para uma lição geral: se não se pode saber quem é alguém, onde está ou o que está fazendo, não se podem aplicar as regulações. Esse alguém poderá fazer o que quiser e o Estado se verá impotente para impedi-lo (LESSIG, 2009: 83).
Até o momento em que estamos tratando dos crimes que podem ser realizados através da rede,
dificilmente podemos negar que alguma forma de controle se faça necessária. Porém, quando o
assunto é a cultura e os direitos de autor, o argumento do homem que não pode ser invisível traz
sérias discussões sobre o grau de liberdade que teremos para consumir e produzir cultura.
A instituição de sistemas de confiança25 na Internet relacionados ao controle do copyright eliminaria
o anonimato na rede. A possibilidade do controle total em relação ao acesso e aos usos de uma obra
por parte dos autores exige a identificação e a recompilação de dados pelos provedores de conteúdo.
Por exemplo, se um jornal online optar por cobrar pelo acesso ao conteúdo, ou cobrar com base na
quantidade de acessos de cada usuário, ele precisaria desenvolver um sistema capaz de identificar
quantas vezes o leitor acede a uma matéria, se ele a copiou, enviou para alguém ou se recortou
pequenos trechos ou mesmo o texto inteiro. Da mesma forma, no caso da música, vídeo ou imagem,
o autor poderia controlar através da codificação26 todos os usos de sua obra, inclusive se foi criada
uma obra derivada a partir da original.
O sistema estabelecido pelo copyright assegura o direito exclusivo de cópia para editoras,
gravadoras e distribuidoras, reservando ao consumidor o direito de uso justo27 e a garantia de que
após determinado período de tempo os produtos culturais cairão em domínio público, podendo ser
utilizados por todos, sem prejuízo dos artistas. O direito de cópia nunca foi perfeitamente garantido
25 Sistemas de confiança são mecanismos de proteção construídos para reconhecer e identificar os usuários, os usos e
as práticas que estabelecem em rede. Sistemas de segurança trocam entre si protocolos de confiança, onde normas estabelecidas em contratos digitais são efetuadas pelo próprio sistema. Algumas formas de criptografia podem criar sistemas de confiança para bens protegidos por copyright o que impediria, por exemplo, que os usuários fizessem downloads ilimitados sem pagamento.
26 Algumas formas de proteção de direitos autorais na rede são: Criptografia, baseia-se em um código ou linguagem de
programação que cifra as informações a fim de garantir a autenticidade, a privacidade e a integridade dos conteúdos; a Assinatura Digital, ou subscrição, é um elemento interno de um documento digital cujo objetivo é garantir a identificação da autoria. A Certificação Digital garante a legalidade e a veracidade do documento, é um elemento interno com informações sobre identidade, nome e ID do usuário. Por fim, a Marca d' Água Digital é um selo, signo especial, timbragem que garante a autenticidade, a origem e o destino de um documento, e os direitos de uso, facilitando a reivindicação de propriedade em caso de necessidade (SOLA, 2002).
27 Em inglês, fair use, direito reservado ao usuário de fazer o que quiser com um produto protegido por copyright
pela lei, uma vez que quando compramos um livro ou um CD é impossível controlar como eles
serão utilizados. Na Internet, pelo contrário, o controle tende a tornar-se perfeito (LESSIG, 2009).
Sendo assim, o controle dos códigos e o aperfeiçoamento das tecnologias de identificação podem
tomar dois caminhos opostos: a arquitetura dos códigos pode dar ao autor controle total sobre o
circuito percorrido por sua obra na rede, podendo ele delimitar todas as modalidades de uso. Outro
caminho possível é que o controle seja flexibilizado e novas licenças de uso sejam estipuladas pelo
próprio autor em conformidade com interesses coletivos e públicos.
Novamente o problema do privado e do público retorna suscitando as seguintes questões: o controle
total do autor sobre a obra tornaria o acesso a cultura limitado, o que dificilmente seria aceito pelos
usuários, já acostumados a baixar e alterar o que consomem na rede. Do lado do autor, não há
garantias de que a exacerbação da proteção e do controle lhe conferirá mais lucratividade. A
publicidade espontânea gerada pelos usuários e fãs é um fator que deve ser estudado com mais
atenção, pois a facilidade com que os artistas hoje comunicam-se com seu público auxilia na criação
de estratégias mais direcionadas às suas expectativas, como na produção de eventos físicos. A tese
de que o acesso ilimitado prejudica o autor é frágil e deve ser contraposta aos novos modelos de
produção e consumo ditado pelos usuários.
Lessig defende a aplicação de sistemas de confiança na rede, que permitam aos autores delimitar os
acessos e usos de sua obra assim como trocá-la por dinheiro. Além de advogado constitucionalista,
Lessig tem afinidade com o pensamento neoliberal. Para ele a propriedade é um direito e se o
ciberespaço não oferece uma estrutura física onde seja possível delimitar com exatidão os limites de
um propriedade, esses limites devem ser erguidos de qualquer forma, mesmo tratando-se de
produtos imateriais ou de custo ínfimo. Para isso é preciso tirar valor mesmo onde esse valor não se
afirma explicitamente, como no caso de ser dono de uma casa ou um carro, por exemplo, onde é
possível identificar e mensurar o valor de uma propriedade.
Prefiro pensar por outra via. Por que não descartar a cópia de produtos culturais como fonte de
riqueza e pensar em outra forma de sobrevivência? Não podemos mensurar qual tipo de valor o
trabalho artístico e intelectual tem para o criador ou para quem o consome, mas talvez seja preciso
deslocar o motivo da valoração, sair do pensamento que culmina numa obra para um pensamento
que valorize mais o processo. Se, como vimos, o trabalho imaterial artístico está intrinsecamente
ligado com a vida do artista, porque não pensar em instrumentos que garantam estabilidade e não
(arbitrária) de riqueza? Além do mais, pensar em mecanismos tecnológicos de controle e vigilância
em certo aspecto atesta contra o próprio argumento da cultura livre, defendido por Lessig no livro
anterior.
Faz sentido pensarmos em arquiteturas de controle para cibercrimes ou numa estrutura jurídica em
constante processo de transformação e que ao longo do tempo vá definindo as bases do ciberespaço
como ambiente democrático, de certa forma livre ou com direitos garantidos. Porém, o papel dos
indivíduos no processo de construção do ciberespaço não pode ser excluído.
A construção de uma propriedade sobre um bem imaterial/digital é a criação falaciosa de um objeto
e de um valor, pois a propriedade intelectual sobre um bem sem suporte visa transformar o bem em
um objeto, ao qual se atribui um valor. O direito de erguer propriedade no ciberespaço é legítimo,
pois é uma decisão que cabe ao autor, podendo ele atribuir o valor que quiser ao conteúdo que
disponibiliza, porém, a imperfeição natural do controle do copyright relacionado à mercadoria
garantia o uso justo e o equilíbrio entre os interesses privados e coletivos. Isso também ocorre no
ciberespaço, mas, segundo Lessig, os códigos podem aperfeiçoar o controle.
Para André Gorz a produção de conhecimento no capitalismo cognitivo28 tem um custo incerto,
indeterminado, não mais estritamente relacionado ao número de horas trabalhadas, como no
fordismo, e seu custo de reprodução tende a zero, principalmente quando estamos falando de
programas de computador e conteúdos digitais. A única forma de obter valor de troca a partir da
produção de um conhecimento ou informação seria a partir da limitação ao acesso e à capacidade de
cópia, imitação, reinvenção e apropriação.
O conhecimento abre então a perspectiva de uma evolução da economia em direção à economia da abundância; o que quer dizer, igualmente, em direção a uma economia em que a produção, requerendo cada vez menos trabalho imediato, distribui cada vez menos os meios de pagamento […] A economia da abundância tende por si só a uma economia da gratuidade; tende a formas de produção, de cooperação, de trocas e de consumo fundadas na reciprocidade e na partilha, assim como em novas moedas […]. O acesso e os meios de acesso ao conhecimento se tornam assim o desafio maior de um conflito central […]. Agora, vale a pena examinar mais proximamente como o conhecimento é transformado em capital imaterial, e como a valorização desse capital grandemente fictício é assegurada pela edificação de posições de monopólio (GORZ, 2005: 37-38).
Quando falamos sobre a propriedade de uma casa ou de um carro, por exemplo, podemos identificar
com facilidade a existência de um objeto que pertence a alguém. Podemos pensar também no caso
28
de uma praça, que pode ser proprietária ou pertencer ao poder público, mas que é usada por todos.
No caso do ciberespaço, a construção da propriedade pode se tornar uma proteção imunitária.
A criação de dispositivos tecnológicos amparados juridicamente para controlar o acesso e a cópia
baseia-se na crença da violação do direito de cópia, ou seja, do copyright. Essa perspectiva
compreende o compartilhamento indiscriminado como “roubo” do copyright e como prejuízo ao
autor que, por sua vez, deve ser compensado com a criação de dispositivos tecnológicos de controle
mais eficazes que a lei real. No entanto, a cópia no ciberespaço torna-se um princípio fundante,
inerente ao sistema peer-to-peer e a World Wide Web, ou seja, é impossível deslocar o alcance que a
lei tem no espaço real sem que aconteçam alterações específicas e voltadas para um novo meio.
Segundo Lessig, quando surgiu a tecnologia DAT, fomentadora da cópia indiscriminada de músicas
e arquivos de voz, a indústria compensou os artistas pela perda do controle sobre a exclusividade de
cópia por meio da criação de uma lei que impôs o pagamento de impostos aos produtores de fitas e
gravadores DAT. Além dessa medida, um sistema de gestão de cópias em série limitaria a produção
de cópias indefinidamente. Assim, por meio de uma combinação entre imposto e código a indústria
desenvolveu um sistema de compensação deslocando a geração de valor para outro lugar, os
produtores de fitas e gravadores, que deveriam responsabilizar-se pela proliferação da capacidade
de cópia que eles mesmos criaram.
No caso da Internet, a impossibilidade ainda maior de contenção das informações e das cópias
desloca ainda mais a geração de valor para um lugar ainda mais ilusório, ficcional. A construção de
uma propriedade em torno de um bem imaterial tem como finalidade retirar valor do próprio acesso.
Se um software pode controlar quantas vezes lemos um livro - se o copiamos, salvamos em um
arquivo ou se enviamos a um amigo, se criamos uma obra derivada a partir dele ou se usamos
algum trecho em algum lugar - pode também cobrar pelo acesso.
A imunização aqui se dá em duas frentes. Através de um sistema de controle cada vez mais
aprimorado que limita a funcionalidade da tecnologia e o potencial de cópia, os interesses privados
tendem a sobressair aos interesses coletivos. Em contrapartida, os usuários terão cada vez menos
capacidade de livre uso e acesso a informação.
Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, está reservado ao Congresso o poder de promover o
progresso da ciência e das artes aplicadas. A lei de copyright americana, assim como a de direitos