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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
DIOGO MELO DE OLIVEIRA
TERMO INCIAL PARA O REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL DEVIDO AO ENCERRAMENTO IRREGULAR DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
DIOGO MELO DE OLIVEIRA
TERMO INCIAL PARA O REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL DEVIDO AO ENCERRAMENTO IRREGULAR DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE EM DIREITO TRIBUTÁRIO, sob a orientação do Professor Doutor Paulo de Barros Carvalho.
SÃO PAULO
3 Banca Examinadora
____________________________________________
____________________________________________
4 AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha esposa, Kesla, com quem, desde os tempos de
namoro em Olinda, dividi a mesa em estudos paralelos. A ela porque juntos
soubemos compreender e ser compreendidos e, assim, lutar pelos nossos tão
árduos objetivos sem jamais deixarmos de cuidar um do outro. Conciliamos
lazer e estudos, responsabilidades e sonhos, o eu e o nós.
Aos meus filhos, Caio e Mateus, eles que são a razão maior para
tudo, porque me ensinaram o mais sublime amor, enchendo-me de novos
sonhos e de forças para todos os desafios.
Aos meus pais, Darlan e Regina, que, com amor e dedicação,
conseguiram me passar os mais importantes valores que julgo nutrir. Devo-lhes
gratidão eterna pela formação que me proporcionaram e pela fé e confiança
que em mim sempre depositaram.
Às minhas irmãs, Nathália e Déborah, sempre prestativas e
carinhosas com minha família, agradeço pelo incentivo e pela vibração. Aos
meus sogros, Vicente Válter e Maria de Fátima, pelo carinho com que me
receberam, pela amizade e pela torcida.
A toda minha imensa família, tios, primos, afilhados, sobrinhos
amigos e cunhados, porque sempre acreditaram em mim. A todos vocês que
deixei em Recife, Caruaru e Olinda e cuja saudade é combustível para meu
regresso.
Agradeço ao IBET-SP por ter me posto em contato com um sério
método de estudo do direito, abrindo-me o horizonte e novas perspectivas
científicas e profissionais.
Às professoras Daniele Souto Rodrigues e Rosana Oleinik
Pasinato, porque foram as primeiras e maiores incentivadoras desta aventura.
Agradeço, ainda, por ser sempre lembrado.
Ao Professor Luciano de Almeida, meu primeiro professor
seminarista no IBET, de quem fui assistente por um semestre na turma das
quintas à noite no COGEAE/PUC-SP. Obrigado pela generosidade e pelo
5
À Professora Fabiana Del Padre Tomé, pelas brilhantes lições,
pelos debates em sala de aula, por estar sempre à disposição e pelo incentivo
à docência.
Obrigado, ainda, ao Professor Robson Maia, sempre respeitoso
com as opiniões dos alunos, à Professora Elizabeth Nasar Carrazza, uma lição
de simplicidade e humildade, e a Lucas Galvão de Britto pelo compartilhamento
de material, pela atenção e pelos profícuos debates.
Aos colegas da Procuradoria da Fazenda Nacional, Rafael,
Marcos André, João Guilherme, John, Vinícius, e todos aqueles que me
ouviram, fizeram diversas sugestões e apresentaram oposições e
concordâncias.
Agradecimento que estendo aos colegas do mestrado na PUC e
do grupo de estudos, pelas sempre interessantes discussões em sala de aula e
pela amizade extensiva para além dela.
Agradeço à PUC por me dar a honra de agregar ao currículo os
estudos realizados em tão respeitosa instituição.
Dedico especial agradecimento ao Professor Paulo de Barros
Carvalho, por seu cavalheirismo, seu exemplo de dedicação, pela atenção
despendida e pelas lições e debates, tanto no ambiente da PUC quanto no
grupo de estudos. Como seu aluno, agradeço pela obra que continua
6 RESUMO
A proposta da presente pesquisa é estabelecer o termo inicial do
prazo para o redirecionamento da execução fiscal contra os sócios, gerentes
ou administradores responsáveis pelo encerramento irregular da sociedade
empresarial.
O estudo é feito a partir da perspectiva de que as realidades são
construídas dentro de um sistema pela operação linguística que lhe confere
unidade. No caso do direito, é a norma jurídica que cria as relações e os fatos
jurídicos, o que reclama o ato de aplicação, por meio do qual se reconhece o
preenchimento dos critérios eleitos por uma norma jurídica geral e abstrata.
A partir da constatação de que o tributo não pode derivar de ato
ilícito e de que o encerramento irregular se configura como uma infração à lei, é
definido o fundamento legal para a responsabilidade, com a delimitação dos
critérios estabelecidos na norma jurídica, a fim de proceder a uma análise do
fato jurídico que lhe dá causa e da nova relação jurídica formada.
Investiga-se a incidência da norma jurídica sob um prisma lógico,
ressaltando a necessidade do ato de aplicação da norma para a construção
dos fatos jurídicos e criação das relações jurídicas.
Pretende-se, ao final, definir o prazo de que dispõe o Fisco para a
constituição do fato infracional e criação da relação jurídica dele derivada, bem
como fixar o termo inicial do referido prazo.
7 ABSTRACT
The purpose of this research is to establish the initial deadline for
the redirection of tax lien against shareholders, managers or responsible for the
abnormal termination of corporate society administrators.
The study is done from the perspective of the realities are
constructed within a system by linguistic operation that gives it unity. In the case
of law, is the legal rule establishing relations and legal facts, which calls for
implementing the act, by which one recognizes the fulfillment of the criteria
elected by a general and abstract legal norm.
After noting that the tax cannot derive from tort and that the
abnormal termination is configured as a violation of the law, is defined the legal
basis for liability, defining the criteria established in the rule of law in order to
undertake an analysis of the legal fact that gives you cause and the new legal
relationship formed.
Investigates the impact of the legal rule under a logical
perspective, emphasizing the necessity of the act of applying the rule for the
construction of legal facts and creation of legal relations.
The expects is, in the end, fix the time available to the tax
authorities for the establishment of the fact infraction and constitution of the
legal relationship derived therefrom, as well as fixing the initial period has
expired.
8 Lista de abreviaturas
ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade
AgRg Agravo Regimental
Ag Agravo
CC Código Civil
CF Constituição Federal
CTN Código tributário Nacional
DJe Diário de Justiça Eletrônico
EDcl Embargos de Declaração
ICMS Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços
IR Imposto sobre a Renda
LEF Lei de Execuções Fiscais
LSA Lei das Sociedades Anônimas
Min. Ministro
Rel. Relator
RE Recurso Extraordinário
REsp Recurso Especial
RMIT Regra-matriz de Incidência Tributária
STJ Superior Tribunal de Justiça
STF Supremos Tribunal Federal
9 SUMÁRIO
Introdução... 11
Capítulo 1. Corte metodológico: a norma jurídica como operador do sistema de direito positivo... 16
1.1. Noção de sistema coerente com a filosofia da linguagem... 16
1.2. O sistema do direito... 24
1.3. Norma jurídica, sanção e coercibilidade... 31
1.4. Estrutura lógica da norma jurídica: a regra-matriz de incidência... 42
1.5. Construtivismo: do texto à norma... 45
Capítulo 2. Da responsabilidade decorrente do encerramento irregular da sociedade empresária... 51
2.1. Breve análise da jurisprudência do STJ... 51
2.2. O encerramento irregular como antecedente da norma de responsabilidade... 54
2.3. O consequente da norma: relação jurídica entre o Fisco e o responsável... 61
2.3.1. Considerações sobre a relação jurídica... 61
2.3.2. Os distintos elementos das relações jurídicas tributárias e das decorrentes de infração à lei... 66
2.3.3. A sujeição passiva tributária... 68
2.3.4. A sujeição passiva frente à materialidade eleita pela CF... 75
2.3.5. A sujeição passiva frente ao conceito constitucional de tributo 77 2.3.6. A responsabilidade de terceiros... 80
2.3.7. Caráter sancionatório latu sensu da responsabilidade prevista no art. 135 do CTN... 88
Capítulo 3. Fixação do termo inicial do prazo para a responsabilização pelo encerramento irregular... 94
10
partir da citação da pessoa jurídica... 94
3.1.1. Pelas disparidades entre as origens do tributo e da infração... 94
3.1.2. Pela inatingibilidade do crédito em decorrência da aplicação do §4º do art. 40 da LEF... 98
3.2. Da inaplicabilidade da teoria da actio nata... 102
3.2.1. Exposição da tese fazendária... 102
3.2.2. Inexistência de pretensão anterior ao ato de aplicação... 105
3.2.3. Ato de aplicação: subsunção e implicação... 109
3.2.4. Importância das provas da infração à lei para a constituição do fato jurídico... 112
3.3. Natureza decadencial do prazo para constituir o fato jurídico... 119
3.4. Possibilidade de constituição do fato jurídico pelo juiz... 126
3.5. O termo inicial do prazo decadencial... 132
Conclusão... 136
11 Introdução
O presente estudo tem a pretensão de propor uma solução
coerente com premissas científicas previamente estabelecidas para definição
do termo a quo do prazo de que dispõe a Fazenda Pública para exigir do
diretor, gerente ou representante de pessoa jurídica de direito privado o
pagamento da prestação pecuniária equivalente ao tributo devido pela
sociedade empresarial fechada sem a observância do procedimento
legalmente previsto.
A preocupação em testilha ganhou vulto com o crescente número
de decisões acolhendo a tese de que o direito de requerer ao juiz o
redirecionamento da execução fiscal estaria fulminado pela prescrição
intercorrente em virtude do decurso do prazo de cinco anos entre a citação da
pessoa jurídica e o pedido da exequente dirigido ao juiz com a finalidade de
incluir os sócios, administradores ou gerentes no polo passivo da execução
fiscal (EDcl no AgRg no Ag 1272349/SP; REsp 975.691/RS).
Essa discussão ocorre porque, não raras vezes, o crédito
tributário é constituído tão somente em face da sociedade empresária e, pois, a
execução fiscal contra ela é proposta. No curso da execução fiscal, contudo, é
constatada a paralisação irregular das atividades empresariais.
É prática contumaz no Brasil, de fato, que as sociedades
empresárias encerrarem suas atividades sem o atendimento dos trâmites
legais e sem a liquidação de seus passivos.
Deparando-se com esta constatação, o Fisco pode requerer ao
Juiz o redirecionamento da execução fiscal em face dos sócios, gerentes ou
administradores da sociedade irregularmente extinta.
Diante deste quadro, algumas dúvidas são suscitadas: Há
fundamento legal para o pedido de redirecionamento? Qual?; Há prazo
preclusivo para que a exequente requeira ao juízo o redirecionamento da
execução fiscal? Qual é a norma que impõe tal prazo? Trata-se de prazo
prescricional ou decadencial? O prazo para o pedido de redirecionamento flui
12
perante a pessoa jurídica? Qual é o termo inicial para a contagem do referido
prazo?
Percebe-se que vem sendo aplicada pela jurisprudência a tese
segundo a qual o Fisco/exequente deve requerer ao juiz o redirecionamento da
execução fiscal no prazo de cinco anos a contar da citação da pessoa jurídica,
ainda que a dissolução irregular seja posterior à citação e ainda que não tenha
havido inércia por parte do Fisco, conforme ficou assentado no acórdão
proferido no já citado EDcl no AgRg no Ag 1272349/SP.
A referida questão está sendo discutida em recurso repetitivo,
com o intuito de pacificar o entendimento, no REsp no. 1.201.993/SP, de
relatoria do Min, Herman Benjamin, afetado à 1ª. Seção do Superior Tribunal
de Justiça, nos termos do artigo 543-C do Código de Processo Civil e
Resolução no. 08/STJ.
A fim de propor respostas a essas perguntas, procuraremos
estabelecer o tipo de relação jurídica formada entre o Fisco e o representante
da sociedade empresária, perquirindo qual o fato jurídico ao qual a legislação
atribui tal consequência. Com isso, buscaremos traçar as linhas distintivas
entre esta relação jurídica e aquela de índole tributária travada entre o Fisco e
a pessoa jurídica.
Percebida a distinção, será possível avançar para a análise do
prazo de que dispõe a Fazenda para promover a responsabilização dos
representantes da pessoa jurídica irregularmente dissipada, fixando a natureza
deste prazo e o termo inicial de sua fluência.
A metodologia empregada será o Construtivismo
lógico-semântico, como uma postura epistemológica que defende a intervenção do
sujeito na conformação do objeto do conhecimento1.
A Filosofia se baseou, por muitos séculos, na ideia de que a
linguagem seria um instrumento de representação da realidade. Partia do
pressuposto de que havia um “objeto em si”, cujo conhecimento se daria por
meio da linguagem, que serviria de mero instrumento para representar o objeto.
1
13
Essa concepção filosófica foi alterada a partir de um movimento,
denominado giro-linguístico, que colocou a linguagem como o centro do
conhecimento, e não mero instrumento.
Partiremos da ideia de inexistência do “objeto em si” a ser
descoberto pelo homem por meio da linguagem. Com a adoção dessa
concepção filosófica, tomaremos a realidade como aquela conhecida por meio
da linguagem.
Não aceitamos a existência de uma verdade absoluta e, com esta
perspectiva, apartarmo-nos das posições ontológicas, que pressupõem uma
essência no objeto a ser descoberta pelo sujeito. O método utilizado, ao revés,
não concebe que o conhecimento prescinda da figura do sujeito e dos valores
na construção de sentidos.
Empregaremos a metodologia da lógica a fim simplificar a
compreensão dos elementos e garantir a coerência das relações formais da
linguagem, sem descuidar da influência do culturalismo, pelo reconhecimento
de que o homem confere sentido à norma jurídica a partir do contexto em que
está inserido, influenciado por seus horizontes axiológicos.
Tendo por objeto o direito positivo, a análise não perderá de vista
que o conhecimento é a representação intelectual de um objeto feita pelo ser
humano, que lhe atribui significado, dele tomando consciência. Portanto, o ato
de conhecimento é que constitui a realidade conhecida. O homem, com seu
intelecto, constrói o objeto e o conhecimento sobre esse objeto, no que é
influenciado pelo contexto em que se insere.
Para conhecer, entretanto, não basta a representação; é preciso
saber verter proposições sobre o objeto. É necessária a objetivação
(enunciação) para se verificar o conhecimento, afinal, "só podemos ter acesso
às coisas objetivas do mundo pela informação, por meio do que os outros
dizem e, certamente, do que nós dizemos"2.
O conhecimento, pois, se dá com a construção e a relação de
juízos, emitidos proposicionalmente, o que o vincula à linguagem. Não se
conhece o objeto em si, mas as proposições que o descrevem.
2
14
Neste sentido, o conhecimento é um redutor de complexidades,
na medida em que não se apreende o objeto em si, mas a seleção de
propriedades intelectualmente produzida e posta em linguagem. Não se
concebe o conhecimento pleno do objeto em si, pois só é possível falar em
conhecimento pleno por meio da linguagem, já que somente por ela o ser
humano tem acesso à realidade.
Tomando, a partir de KANT3, as noções de tempo e espaço como condições a priori de todo conhecimento, temos por imprescindível o corte no
tempo e no espaço para definição do sistema de referência, pois os objetos só
têm significado quando se conhece sua posição em relação a outros
elementos. Destarte, o sistema de referência se apresenta como o modelo em
dentro do qual o objeto é conhecido, na medida em que pode ser relacionado a
outros elementos conhecidos desse sistema de referência.
O estudo será realizado à luz dos textos de direito positivo,
procurando conferir legitimidade ao discurso e primando pela coerência com as
premissas adotadas. A análise do direito positivo será feita de acordo com o
modelo lógico-formal proposto e, atentando às feições semântica e pragmática
da linguagem, far-se-á a análise das posições doutrinárias e jurisprudenciais
acerca dos temas tratados.
No capítulo I, procuraremos definir o direito positivo como sistema
para encontrar o seu código-diferença, que lhe confere unidade e autonomia
formal (fechamento operacional).
Voltaremos as atenções, então, para o operador do sistema
jurídico, a norma jurídica, fixando-lhe um conceito e atentando para sua
compostura formal, analisando sua estrutura lógica e ressaltando o caminho
para a construção do sentido semântico que preenchem as variáveis lógicas da
norma.
Será viável, então, buscar o fundamento legal e construir a norma
jurídica que regula a conduta objeto do estudo – qual seja, o encerramento
irregular da sociedade empresária – e fixa as consequências para o seu
descumprimento. Ocupar-nos-emos desse mister no capítulo II, onde
3
15
analisaremos a legislação acerca do tema, bem como a trilha da jurisprudência
pátria hodierna e as teses doutrinárias nos mais diversos sentidos.
Usaremos a estrutura sintática da norma jurídica de esteio lógico
para a construção da norma de que nos ocupamos, sem olvidar dos conteúdos
semânticos dos enunciados a partir dos quais se dará a construção desse
juízo.
Construída a norma jurídica que regula a conduta que nos
interessa, partiremos, no capítulo III, para enfrentar o tema mais específico,
concernente ao prazo para o redirecionamento da execução fiscal. Exporemos
a tese defendida pela Fazenda Pública, bem como aquela que lhe é contrária e
que tem encontrado eco na jurisprudência de nossa Corte de Uniformização de
Jurisprudência.
Expostas as interpretações encontradas na doutrina e na
jurisprudência, proporemos a nossa solução para a questão do prazo em
análise, a partir do reconhecimento de que a responsabilidade do
representante da pessoa jurídica fechada irregularmente decorre da incidência
de uma norma diversa da norma tributária, o que reclama um ato de fala
próprio que aplique essa norma, fazendo-a incidir.
Analisaremos a aptidão da certidão do oficial de justiça para
provar o fato jurídico e criar a realidade jurídica a partir da qual se pode cogitar
o pedido de redirecionamento.
Buscaremos encontrar o fundamento legal para a duração do
prazo de que dispõe o Fisco para buscar o redirecionamento da execução
fiscal, bem como fixar o instituto jurídico ao qual se amolda o referido prazo,
definindo-lhe o termo inicial, a fim de propor a solução que nos parece
16 1. Corte metodológico: a norma jurídica como operador do sistema de direito positivo
1.1. Noção de sistema coerente com a filosofia da linguagem
Tomamos o conhecimento como um seletor de propriedades, um
redutor de complexidades, e, por isso, temos que a sustentabilidade de uma
proposição só pode ser aferida em relação ao sistema de referência que lhe
serve de modelo. Esta é a razão pela qual o presente trabalho principia por
delimitar em relação ao que as propostas interpretativas serão aqui
enunciadas.
Pretendemos propor uma interpretação lastreada nas normas
jurídicas vigentes no sistema jurídico brasileiro, que, embora não tenha a
pretensão de pôr fim à celeuma jurisprudencial, possa contribuir com a
discussão acerca do marco inicial do prazo para o redirecionamento da
execução fiscal em face dos responsáveis pelo encerramento irregular da
sociedade empresária.
O intuito da presente pesquisa não é propor uma solução de lege
ferenda para a questão, mas estudar o direito vigente e propor uma construção
interpretativa coerente. Nossas observações serão efetuadas em relação às
normas jurídicas vigentes. Eis o nosso sistema de referência: as normas que
formam o sistema de direito positivo brasileiro atual. O tempo é o atual, o
espaço é o território brasileiro e os objetos são as normas vigentes neste
espaço e neste tempo.
Antes, porém, é imprescindível definir as noções de sistema de
direito positivo e de norma jurídica com as quais pretendemos realizar nosso
estudo, bem como definir as bases metodológicas de nossa investigação,
lastreada que está numa perspectiva construtivista.
Não é desconhecida a possibilidade de se travar o conhecimento
com determinado objeto a partir de perspectivas diversas, a depender dos
17
diversos conceitos para “sistema de direito” e “norma jurídica”. Daí a imperiosa
necessidade de determinação dos critérios da nossa análise.
A expressão “sistema” remete a noções correntes de que seria: (i)
um conjunto de princípios verdadeiros ou falsos, donde se deduzem
conclusões coordenadas entre si; (ii) corpo de normas ou regras, entrelaçadas
numa concatenação lógica; (iii) conjunto ou combinação de coisas ou partes de
modo a formarem um todo complexo ou unitário; (iv) agrupamento de partes
coordenadas, dependentes umas das outras; etc.
Por essa razão, segundo PAULO DE BARROS CARVALHO4, sistema, em seu significado de base, é o objeto formado por porções que se
vinculam sob um princípio unitário ou como a composição de partes orientadas
por um vetor comum, ou seja, um conjunto de elementos relacionados entre si
e aglutinados perante uma referência.
Nas palavras de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, o sistema
é:
“[...] um conjunto de objetos e seus atributos (repertório do sistema), mais as relações entre eles, conforme certas regras (estrutura do sistema). Os objetos são os componentes do sistema, especificados pelos seus atributos, e as relações dão o sentido de coesão ao sistema. Normas são entendidas como discursos, portanto, interações em que alguém dá a entender a outrem alguma coisa [...]. Os sistemas normativos têm por objeto estas unidades discursivas que chamamos normas” 5.
MARCELO NEVES, citado por PAULO DE BARROS
CARVALHO6, propõe uma classificação dos sistemas em Reais e Proposicionais. Aqueles seriam os sistemas do mundo físico ou social,
governados pelo princípio da causalidade física, ao passo que esses seriam os
sistemas de proposições linguísticas, subdivididos em Nomológicos (objetos
ideais, como a matemática e lógica) e Nomoempíricos, descritivos como as
ciências ou prescritivos, que regulam condutas, como o direito.
4
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário – Fundamentos Jurídicos da Incidência. 9ª ed. São Paulo: Saraiva 2012, pp. 67-70.
5
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. – 3 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 1997, pp. 140-141.
6
18
Não aderimos à classificação proposta pelo ilustre professor
pernambucano, pois, adeptos que somos da Filosofia da Linguagem, não
podemos pensar em um sistema real, não proposicional, existente
independentemente da linguagem. Neste sentido, os sistemas sociais são, em
nosso entender, também proposicionais.
Aderir às ideias da Filosofia da Linguagem significa encarar o
objeto a ser estudo como uma construção da linguagem e não como algo a ser
descoberto, afastando-nos da perspectiva (da filosofia da consciência) de que a
verdade seria a conformação da proposição com o objeto a que se refere
(verdade por correspondência).
Na medida em que o objeto do conhecimento é a linguagem, e
não a coisa em si, a verdade é, sob a perspectiva do positivismo lógico, o valor
atribuído a uma proposição que se encontra conforme o modelo adotado, seu
sistema de referência.
JOÃO MAURÍCIO ADEODATO explica que:
“Os eventos, tais como entendidos aqui, constituem aquelas nebulosas que o senso comum chama de realidade, os objetos e acontecimentos do mundo real, aparentemente externos aos seres humanos. Os sujeitos são confrontados com esses eventos e não conseguem entender-se uniformemente a respeito deles. Os relatos linguísticos que os humanos constroem sobre eles são comumente chamados de ‘fatos’, cuja ‘veracidade’ vai depender de acordos também construídos. [...] para lidar com essas diferentes apreensões do meio eventual os seres humanos desenvolveram a linguagem, o intermédio entre as ideias de razão, o mundo real e os outros seres humanos”7.
Destarte:
“o critério da verdade das proposições linguísticas não consiste no seu confronto com dados ou experiências imediatas, mas apenas no seu confronto com outras proposições linguísticas, dentro do sistema universal da linguagem científica” 8.
7
ADEODATO, João Maurício Leitão. Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011, pp. 36-37.
8
19
Justamente por isso, a linguagem é autorreferente, já que se
reporta sempre a outra linguagem, e não ao objeto ou fato que descreve. Nas
palavras de PAULO DE BARROS CARVALHO:
“Segundo os padrões da moderna Ciência da Interpretação, o sujeito do conhecimento não ‘extrai’ ou ‘descobre’ o sentido que se achava oculto no texto. Ele o ‘constrói’ em função de sua ideologia e, principalmente, dentro dos limites de seu ‘mundo’, vale dizer, do seu universo de linguagem” 9.
Essa é a perspectiva de VILÉM FLUSSER10, para quem o nosso pensamento tem como matéria-prima, primordialmente, as palavras e, além
delas, os dados brutos fornecidos pelos nossos sentidos, os quais, ao fim,
serão articulados pelo intelecto em palavras.
O professor PAULO DE BARROS CARVALHO, ao comentar a
obra de FLUSSER, afirma: “aquilo que nos chega por meio dos sentidos
(intuição sensível), e que chamamos de ‘realidade’, é dado bruto, que se torna
real apenas no contexto da língua, única responsável pelo seu aparecimento”11. É dizer, nosso intelecto não apreende os dados brutos,
simboliza-os em palavras. Só a elas se reporta. E o faz através de símbolsimboliza-os que
compõem a língua, entendida como o conjunto de frases percebidas e
perceptíveis ligadas entre si de acordo com regras pré-estabelecidas.
Conforme SAUSSURE12, a língua é um sistema de signos e regras para seu uso, que servem a uma comunidade linguística, ou seja, como
um código aceito por certo grupo social, possuindo um conjunto de convenções
necessárias, enquanto a fala é o ato individual através do qual a língua se
manifesta; é o ato que põe a língua em ação.
9
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 5ª ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 197.
10
FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. 3ª ed., São Paulo: Annablume, 2007, pp. 39-83. 11
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 5ª ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 170.
12
20
A partir das lições de GUIBOURG, GIGLIANI e GUARINONI13, tomamos um símbolo como um fenômeno que nossa mente relaciona com
outro fenômeno, de forma arbitrária, contrariamente a signos não simbólicos,
cuja relação de causa e efeito é natural, a exemplo da febre como sinal de
doença.
Com esta perspectiva, a linguagem se compõe de símbolos
ordenados em estrutura mais ou menos orgânica e com certa função. Qualquer
linguagem é parte de um processo de comunicação, no qual aparece uma
mensagem composta por signos que possuem significação.
A organização de palavras, quando realizada dentro do intelecto,
denomina-se pensamento. A frase é o caráter objetivo dessa organização de
palavras. A correção ou não da frase vai depender, respectivamente, da
obediência ou não às regras de organização das palavras da língua de que
fazem parte.
A língua possui, para além das regras de organização das
palavras, regras para as relações entre as frases. De tal modo, a verdade de
uma frase vai depender da obediência às regras de relacionamento das frases.
Com a adoção dessa perspectiva, rejeitamos a “verdade
absoluta”, que pressupõe uma correspondência entre a frase e o dado bruto
observado. Em suma, o cognoscível se limita ao que pode ser articulado em
palavras, pois o intelecto sempre a elas se reportará e sempre a partir delas. “O
intelecto é, portanto, produto e produtor da língua, ‘pensa’.”14.
O que transforma o dado bruto em palavras é a possibilidade de
conversação, viabilizado pela língua. Aos dados brutos, só há reação
fisiológica. A partir da apreensão de palavras, forma-se o intelecto, que viabiliza
o agrupamento de palavras e a consequente compreensão.
A recepção do dado bruto leva o intelecto a traduzi-lo em
palavras, apreende-las, reagrupa-las, compreendendo-as para, em seguida,
expressá-las. É a “fenomenalização” do pensamento, por meio da qual a
palavra, uma vez expressa, passa a ser dado bruto, participando da
“conversação”.
13
GUIBOURG, Ricardo A.; GIGLIANI, ALEJANDRO M.; GUARINONI, RICARDO V. Introducción al conocimiento científico. Buenos Aires: Eudeba, 2000, pp. 17-20.
14
21
Esse processo cíclico leva ao enriquecimento da língua, que é o
instrumento para o intelecto compreender as palavras, as quais, uma vez
expressas, passam a ser dado bruto para novas interpretações e construções.
Firmada a premissa de que o conhecimento é limitado pela
linguagem, é possível utilizá-la sob o ponto de vista de um referencial em
comum para sistematizar o conhecimento e, dessa forma, compreender a
sociedade (e o direito) como um sistema com código próprio.
Essa é a orientação da teoria dos sistemas sociais proposta por
NIKLAS LUHMANN15, que, percebendo que todas aquelas noções correntes de sistema não definem qual é a unidade da operação que designa o sistema,
propõe uma definição voltada a especificar essa operação.
Define o sistema, a partir de um paradoxo de base, como a
diferença entre o sistema e o meio. O sistema é, para ele, a diferença que se
produz constantemente, a partir de um único tipo de operação.
Para LUHMANN, a linguagem se realiza na medida em que
estabelece distinções, independentemente de correspondência com a
“realidade” circundante. A linguagem traz a diferença e esta conduz toda a
realidade do processo de comunicação.
Isto é, a linguagem pressupõe algo exterior (a “realidade”), mas,
para o processo de comunicação, “a diferença contida na própria estrutura da
linguagem é a decisiva e tal diferença está intimamente ligada ao problema da
referência, ou seja, àquilo sobre o qual se pretende falar”16.
E essa autorreferência da linguagem é supedâneo para a teoria
dos sistemas proposta por LUHMANN, pois ele nota que a unidade do sistema
é conferida pela operação que o diferencia do meio, tendo a capacidade de ser
autorreferente, quer dizer, de articular as operações anteriores com as
subsequentes.
O meio é dotado de maior complexidade que o sistema, pois
oferece uma maior possibilidade de acontecimentos, de relações e de
processos do que os que o sistema pode aceitar, processar ou legitimar17.
15
LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas / Niklas Luhmann; tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
16
Op. Cit., p. 82. 17
22
Segundo LUHMANN, o sistema se diferencia do meio que o cerca
e que lhe é indiferente, irritando-se com as complexidades encontradas e
selecionando aquelas que serão incorporadas ao sistema por meio do seu
operador. É precisamente essa operação de seleção que dá unidade ao
sistema, pois é esse o traço que o distingue do meio que o cerca.
A operação que reproduz a diferença entre o sistema social e o
meio é a comunicação. É através dela que algo que está no meio pode vir a ter
significado para o sistema, a partir do momento em que este possa conectar o
acontecimento do meio à comunicação. Por meio dela, aliás, o sistema faz a
seleção do que lhe interessa, excluindo todo o resto.
A partir dos ensinamentos de SPENCER BROWN, LUHMANN18 afirma que a comunicação reduz a complexidade pela seleção de
possibilidades do ambiente, pois o sistema opera do lado de dentro da forma e
o meio fica do lado de fora, ou seja, mantem-se indiferente.
Ao afirmar que o sistema é autopoiético, pretende deixar claro que
ele regula seu funcionamento e produz seus próprios elementos. Isso não
significa que subsista por si só, afinal, pra se diferenciar pressupõe a existência
do meio.
A comunicação pressupõe três operações seletivas: a informação,
o ato de comunicar e o ato de compreender (ou não, pois reconhece que, por
meio da comunicação, partilha-se uma mensagem, não se transmite, pois não
se exige consenso).
Portanto, a comunicação não pode prescindir de um ato de fala.
Segundo MANFREDO OLIVEIRA, lastreado na obra de J. L. AUSTIN, “o ato de
fala, mesmo o mais simples, é uma realidade complexa, possui muitas
dimensões. [...] Cada procedimento linguístico é um tipo de ação humana” 19. Segundo esse autor, falar e dizer são atos inseparáveis. Os atos
de fala são ações humanas que constituem a linguagem e esta é que constitui
a realidade.
18
Op. Cit., pp. 84-91. 19
23
Neste sentido, “os atos de fala são as unidades fundamentais da
comunicação linguística”20. Isto é, a linguagem é o meio para o conhecimento da realidade através da comunicação e os atos de fala são as ações humanas
necessárias à comunicação.
Não se pode deixar de perceber que, com a comunicação, ainda
que a mensagem não seja compreendida da mesma forma que foi pretendida
pelo emissor, haverá socialização, pois houve interação de ao menos dois
sistemas psíquicos – o que gera dupla contingência (um em relação ao outro) e
estruturas de expectativas (delimitação do âmbito de possibilidades de seleção
mútua).
Importa notar, ainda, que o sistema é operativamente fechado
porque usa a comunicação como único meio de operar. Neste sentido,
sintaticamente, o sistema possui uma estrutura lógica, um modo de operar
próprio que lhe confere unidade.
A possibilidade de irritação com o meio e a realização da seleção
de propriedades dá a demonstração da abertura cognitiva do sistema, que se
mostra semanticamente aberto para a seleção, realizada pelo acoplamento
estrutural, o canal de irritação.
O conceito de acoplamento estrutural, proveniente de
MATURANA, conforme leciona LUHMANN21, parte do pressuposto de que o meio não pode contribuir com a determinação dos estados internos do sistema,
mas somente no plano da destruição. Portanto, o meio não interfere, por suas
próprias estruturas, no que ocorre no sistema. A autopoiese garante o
fechamento operacional do sistema, que se determina apenas por seu próprio
código operador.
O sistema faz um corte seletivo sobre o meio através do
acoplamento estrutural, que lhe permite manter a indiferença em relação a uma
parte do meio, aproveitando outra parte.
Destarte, o acoplamento estrutural "se trata de um pequeno
espectro de seleção de efeitos possíveis sobre o sistema"22 e "tem se tornado
20
Op. Cit., p. 175. 21
LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas / Niklas Luhmann; tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 130.
22
24
possível mediante a linguagem"23, que exclui umas possibilidades e absorve outras.
LUHMANN reconhece que o consenso é improvável e, portanto,
percebe que a comunicação também o é. Por isso, precisa ampliar suas
possibilidades de êxito, o que faz por meio da linguagem, dos meios de
comunicação e dos meios simbólicos generalizados (dinheiro, poder, amor,
etc.), que são aquisições evolutivas.
Embora a complexidade do ambiente seja sempre maior, a
diferenciação efetuada pelo sistema seleciona propriedades e as inclui no
sistema, aumentando sua complexidade interna e, assim, sua própria
capacidade de efetuar novas diferenciações, o que implica mudança na
estrutura e, pois, evolução.
Essa noção de sistema proposta pelo sociólogo alemão permite
reconhecer um sistema a partir de seu código próprio, seu operador, aquilo que
o diferencia de todo o resto.
E é a comunicação que diferencia a sociedade dos indivíduos e
suas consciências, formando o sistema social, dentro do qual foram
desenvolvidos pelo processo evolutivo espécies de comunicações próprias,
que possuem especificidades capazes de lhes conferir autonomia sistêmica.
Dentre esses subsistemas, por ser objeto de nosso estudo,
importa-nos o direito, razão pela qual devemos nos ocupar de defini-lo,
encontrando o operador que o diferencia do meio.
1.2. Sistema do direito
Tratamos o direito como um sistema, ainda que parte da doutrina
estabeleça uma distinção entre ordenamento e sistema. Segundo esta linha de
raciocínio o direito positivo não possuiria a homogeneidade necessária para ser
considerado sistema. O ordenamento seria o conjunto de enunciados
prescritivos contidos no texto bruto, dotados de heterogeneidade em função
23
25
das distintas condições em que produzidos, enquanto sistema seria o resultado
do labor interpretativo e organizacional do cientista, que apresentaria a
estrutura e afastaria as ambiguidades e contradições.
Esse é o sentido da proposta de GREGÓRIO ROBLES, citado por
AURORA TOMAZINI24, que percebe o direito positivo, enquanto conjunto de textos prescritivos brutos, como um ordenamento, deixando a expressão
“sistema” para se referir ao resultado da elaboração doutrinária ou científica
realizada com base no ordenamento, que serve como ponto de partida para o
cientista. O direito só seria sistema na ciência. O direito positivo em si mesmo
seria ordenamento.
Para ROBLES25, a relação entre sistema e ordenamento é “em espiral” e produzida ao longo do tempo, pois o sistema é produzido a partir do
ordenamento, mas passa a influenciar a confecção de um novo ordenamento,
sobre o qual se produz um novo sistema e assim sucessivamente.
Não partilhamos dessa concepção, pois entendemos que a
Ciência do Direito é uma metalinguagem, que utiliza o discurso descritivo,
produzindo linguagem científica acerca de outra linguagem, qual seja, a
linguagem jurídica do direito positivo. O objeto da Ciência do Direito é, pois, o
direito positivo.
A implicação prática desta distinção é que a linguagem prescritiva
do direito positivo compõe um sistema próprio e não pode ser alterado pelo
discurso descritivo da ciência do direito.
Nesta trilha, PAULO DE BARROS CARVALHO não faz distinção
entre ordenamento e sistema, pois não aceita que só a ciência do direito seja
capaz de produzir sistema, afinal, direito positivo e ciência do direito são corpos
de linguagem distintos, que não se misturam. O direito positivo tem linguagem
prescritiva, que serve de objeto para a ciência do direito, sobrelinguagem
descritiva acerca do direito posto.
Neste sentido:
24
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-Semântico. 3ª ed. São Paulo: Noeses, 2013, pp. 647-649.
25
26
“Qualquer que seja o tecido de linguagem de que tratamos, terá ele, necessariamente, aquele mínimo de racionalidade inerente às entidades lógicas, de que o ser sistema é uma das formas. [...] o material bruto dos comandos legislados, mesmo antes de receber o tratamento hermenêutico do cientista dogmático, já se afirma como expressão linguística de um ato de fala, inserido num contexto comunicacional”26.
Com efeito, a partir da teoria dos sistemas acolhida no presente
estudo, para ser um subsistema do sistema social é necessário desempenhar
funções específicas a partir de um código próprio, ou seja, de um fenômeno
comunicacional dotado de característica específica que o distinga dos demais.
O direito positivo é, portanto, um subsistema social porque é um
sistema comunicacional dotado de características próprias que lhe confere
unidade. Encontrar a função específica que o direito exerce dentro do sistema
social se mostra imprescindível para reconhecer sua autonomia sistêmica.
Conforme já tivemos a oportunidade de afirmar, o próprio
LUHMANN reconhece que a comunicação é improvável, mas forma estruturas
de expectativa pela delimitação do âmbito de possibilidades de seleção mútua
entre os sistemas psíquicos que interagem.
As expectativas normativas buscam a manutenção, entretanto, há
sempre a possibilidade de frustração dessas expectativas. Por isso, a
sociedade evoluiu para criação de generalização de expectativas normativas a
partir da sanção, dos procedimentos e dos programas condicionais de decisão
(se/então).
Neste sentido, as normas funcionam como forma de estruturação
temporal das expectativas a fim de neutralizar as condutas desviantes.
Se o sistema social é operado pela comunicação, o Direito é tido
como um “universo de comunicação que tem em particular duas
características: evoluiu no sentido de cumprir uma função muito específica; e
estende-se a toda a sociedade-mundo”27.
26
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário – Fundamentos Jurídicos da Incidência. 9ª ed. São Paulo: Saraiva 2012, p. 76.
27
27
Percebe-se, destarte, a função específica do direito (neutralizar
condutas desviantes) e a forma de comunicação específica que lhe confere
unidade operacional (a norma jurídica).
Tanto que PAULO DE BARROS CARVALHO28 toma o direito posto como objeto cultural, formado por um conjunto de prescrições jurídicas
em determinadas coordenadas de tempo e espaço, cujo objetivo é regular
condutas intersubjetivas em direção aos valores que a sociedade quer ver
realizados.
Neste particular, sobreleva notar que o Direito ganha contornos de
autonomia sistêmica, na medida em que opera com uma espécie de
comunicação que lhe confere particularidade, um código próprio, qual seja, a
norma jurídica, por meio da qual se diferencia dos demais sistemas.
O que diferencia o direito do meio, conferindo identidade do
subsistema, é a operação, a comunicação jurídica (orientada pelo código
binário lícito/ilícito e com função específica de neutralizar condutas desviantes).
Dessa forma é que o sistema jurídico se diferencia de outros
sistemas – como, por exemplo, o social, o político e o econômico –
selecionando propriedades dos eventos ali produzidos para ingressarem no
sistema jurídico através do código que lhe é próprio, isto é, a norma jurídica.
Sem essa operação, tudo aquilo permanecerá indiferente ao sistema jurídico.
Essa autonomia sistêmica confere ao direito o encerramento
operacional, já que opera dentro dos seus limites, bastando, para tanto,
perceber que, por mais que o direito estimule a conduta humana, jamais lhe
tocará, afinal, “não se transita, livremente, sem solução de continuidade, do
dever-ser para o mundo do ser”29.
A figura da curva assintótica30, utilizada pelos semióticos, serve para ilustrar esse fechamento operacional. Trata-se de uma curva tal que a
linha dos signos jamais encosta na coordenada dos objetos. Ou seja, por mais
que se fale e escreve acerca de um objeto, essa possiblidade nunca se
esgotará. O objeto dinâmico nunca se encontra com o imediato.
28
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário – Fundamentos Jurídicos da Incidência. 9ª ed. São Paulo: Saraiva 2012, pp. 26-27.
29
Op. Cit., p. 32. 30
28
O mesmo ocorre entre o direito e a conduta humana que pretende
regular. São realidades distintas. A conduta humana é objeto para a linguagem
jurídica e, por isso, jamais se encontram ou cruzam. A forma específica com
que opera o direito não tem a capacidade de produzir alterações na conduta
humana, pois esta opera com outro tipo de código, que não a norma jurídica.
A norma, neste sentido, mostra-se como meio que estimula o
sistema psíquico num determinado sentido a partir da estipulação de licitude ou
ilicitude para a conduta.
Não se pode deixar de perceber, todavia, que o fechamento do
direito é de cunho estritamente operacional, sintático. Cognitivamente, o
sistema é aberto às irritações do meio, permitindo-se, de tal modo, que o direito
realize a seleção dos valores que buscará assegurar.
Resta, pois, perceber como se dá essa operação de seleção, quer
dizer, como se produz essa comunicação específica chamada norma jurídica.
O sistema jurídico é autopoiético porque é autorreferente e
autorregulado. Por isso, ele mesmo prevê como se reproduz e estabelece as
regras para ingresso de novos elementos (norma jurídica).
A homogeneidade de ingresso da norma jurídica no sistema é
percebida por TÁREK MOUSSALLEM:
“sendo o sistema de direito positivo dotado de unidade, o seu processo de produção é homogêneo [...] porque é regido por um núcleo normativo originário, ou seja, um conjunto de normas que instituem os órgãos básicos e os procedimentos de produção normativa no interior do sistema” 31.
Portanto, a partir das regras previstas pelo próprio sistema, é
possível produzir uma nova comunicação que, por preencher os pressupostos
formais estabelecidos pelas normas jurídicas relativas desta espécie de
conduta (de inserção de novas normas), cria novas normas jurídicas.
Essa é, portanto, a operação de seleção feita pelo sistema jurídico
para ingresso de nova norma em seu interior: uma operação de comunicação
31
29
produzida no sistema social que preenche as formalidades exigidas pelo
sistema jurídico.
Trata-se, portanto, de produção de um fato social
(comunicacional) que atende aos pressupostos exigidos pelo sistema jurídico
para fazer ingressar neste um novo elemento.
A corroborar com o caráter de fato social do ato que insere norma
jurídica no sistema, mais uma vez citemos TÁREK MOUSSALLEM: “Na
atividade de produção normativa não há ainda norma jurídica, logo não há se
falar em fato jurídico produtor de normas” 32.
O modo de produção do direito é, pois, essa atividade de
enunciação, fato social (comunicacional) que se amolda ao antecedente da
norma que regula o ingresso de novas normas.
Devido à possibilidade de inclusão de novas normas jurídicas no
sistema de direito positivo, TÁREK MOUSSALEM também distingue sistema e
ordenamento, embora utilize critério diverso daquele de ROBLES. Para TÁREK
MOUSSALEM33, o sistema seria o conjunto de enunciados prescritivos e normas jurídicas estaticamente consideradas, enquanto o ordenamento teria
um sentido dinâmico, ou seja, uma sequência temporal de sistemas do direito
positivo (conjunto de conjuntos de normas que se sucedem temporalmente).
Não seguimos a distinção, pois o próprio conceito de sistema aqui
acolhido pressupõe a dinâmica da comunicação. É dizer, não concebemos uma
"sequência temporal" de sistemas, mas um sistema que pode, a qualquer
instante, ampliar sua complexidade pela inserção de novo elemento em seu
interior, bastando, para tanto, que uma nova atividade de seleção de
propriedades do meio seja realizada através do código próprio.
Por essa razão, a produção de uma nova norma jurídica aumenta
a complexidade do sistema de direito positivo, ampliando as combinações entre
as normas e suas relações, gerando, consequentemente, novas possibilidades
de interpretações e decisões.
Neste sentido:
32
Op. Cit., p. 139. 33
30
"O sistema opera de maneira seletiva [...]: sempre há outras possibilidades que podem ser selecionadas [...]. Precisamente porque o sistema seleciona uma ordem, ele se torna complexo, já que se obriga a fazer uma seleção da relação entre seus elementos. Do ponto de vista formal, o conceito de complexidade fica, assim, caracterizada como aumento quantitativo dos elementos: com o aumento do número de elementos que devem permanecer unidos no sistema, cresce em proporção geométrica o número das possíveis relações"34.
Diante das normas já inseridas no sistema, o aplicador do direito
decidirá quais julga aplicáveis ao caso concreto. E o fará de acordo com outras
normas que regulam a nulidade, a revogação, a eficácia, regras para soluções
de aparentes antinomias, conflitos de lei no tempo e no espaço, etc.
Sob a perspectiva temporal, não se trata de sucessão de
sistemas, mas de um sistema tão rico e complexo que requer a análise das
normas existentes em seu interior para aferição das relações que guardam
entre si e consequente definição de quais devem se aplicar, de acordo com os
critérios estabelecidos por outras normas do próprio sistema.
Destarte, mesmo numa análise estática do sistema, será
necessário perquirir todo o conjunto de elementos que o compõem, fazendo as
combinações possíveis, para se chegar a uma conclusão da norma a ser
aplicada.
Realizaremos, por isso, um estudo a partir de uma perspectiva
dinâmica do sistema de direito positivo, que se reproduz a todo instante,
sempre através de sua operação, cuja produção é regulada pelo próprio
sistema. Com essa postura, damos primazia ao ato de aplicação do direito, por
meio do qual a norma incide, constituindo fatos jurídicos e relações jurídicas.
O direito positivo, então, caracteriza-se como subsistema social
por ter atingido esse grau evolutivo, na medida em que visa a regular as
condutas intersubjetivas e, para tanto, utiliza um corpo de linguagem próprio,
que descreve uma situação hipotética para a qual prescreve uma
consequência. Esse corpo de linguagem próprio é que lhe dá unidade
34
31
sistêmica. É o elemento unificador do sistema de direito positivo: a norma
jurídica.
1.3. Norma jurídica, sanção e coercibilidade
Lastreados nas premissas fixadas até aqui, notamos que o direito
só evolui por meio de normas jurídicas. Só elas são aptas a inserir novas
realidades no sistema jurídico. A norma jurídica é a operação que realiza a
diferença entre o que é jurídico e o meio ao qual se mantém indiferente.
É por meio dessa operação que se selecionam caracteres dos
fatos sociais para constituir os fatos jurídicos. Com essa perspectiva, para que
um fato social venha a ter relevância jurídica, é imprescindível que sobre ele se
realize uma seleção de propriedades através de uma norma jurídica. A rigor, o
fato jurídico não coincide com o fato social: é constituído a partir de uma
seleção de caracteres do fato social.
Um exemplo vale para esclarecer o fenômeno. O ato de
lançamento tributário do imposto de renda reconhece que o sujeito auferiu
renda e, por isso, deve pagar o imposto à União. Trata-se de uma mera
seleção de aspectos do fato social, muito mais complexo, ao qual o direito
tributário se mantém indiferente.
Como aquela renda foi auferida, de onde provém, o quanto o
sujeito trabalhou, que repercussões isso tem em suas relações sociais e
familiares, nada disso importa ao aplicador da norma tributária. Eventualmente,
o direito pode se preocupar com aquele fato sob outras perspectivas (penais,
trabalhistas, etc), mas apenas enquanto reconhecer adequação de
determinados aspectos do fato às prescrições de outras normas jurídicas.
A complexidade do fato social será sempre maior que o recorte
nele produzido pela norma jurídica para criar o fato jurídico, visto que resta
32
Essa explanação tem a deliberada intenção de demonstrar que o
fato jurídico só existirá na medida (e no instante) em que o direito reconhecer o
preenchimento dos pressupostos previstos pelo próprio sistema.
Ora, o sistema é autopoiético e, por isso, regula a forma de
ingresso de novos elementos em seu interior. São as normas jurídicas (gerais e
abstratas) que preveem que notas o aplicador do direito deve reconhecer nos
fatos sociais para fazer ingressar no sistema um fato jurídico novo.
A inclusão de um fato jurídico no sistema só poderá ser feita por
meio de seu operador: a norma jurídica, uma forma de comunicação social (e,
portanto, linguística) que possui formalidades e funções específicas a ponto de
lhe conferir unidade sistêmica.
A imprescindibilidade do ato comunicacional é o traço que
pretendemos sobrelevar.
Sendo assim, a circunstância de uma sociedade empresária
encerrar suas atividades não tem qualquer significado para o direito enquanto
não for descrita como um fato jurídico, por meio de um ato de aplicação de uma
norma jurídica.
Essa seleção de propriedades não é realizada de forma arbitrária
pelo aplicador. Os caracteres que interessam ao sistema jurídico devem estar
previstos em normas gerais e abstratas. É dizer, a norma jurídica a ser aplicada
tem de existir anterior e abstratamente, descrevendo aquela circunstância
hipotética como apta a irradiar efeitos jurídicos.
Portanto, para redirecionar uma execução fiscal contra o
responsável pelo encerramento irregular de uma sociedade empresária, é
necessário encontrar o fundamento para esse dever de pagar. É preciso que
essa responsabilidade decorra da construção de uma norma jurídica que a
preveja.
Afinal, um sujeito só possui uma posição jurídica, seja ela ativa ou
passiva, em decorrência da aplicação de uma norma jurídica. É dizer, toda
obrigação, permissão ou proibição deriva da aplicação de alguma norma
jurídica. É imperioso, pois, fixar a perspectiva com a qual nos referimos às
33
Para GREGÓRIO ROBLES35, a previsão de sanção não é um critério definidor das normas jurídicas, as quais são distintas entre si em virtude
da diversidade funcional e da configuração linguística, independentemente da
sanção. Com esteio nesses critérios, classifica as normas em:
(i) diretas de ação: que contemplam ações que podem ser
condutas ou não (regulam ou contemplam ação de maneira imediata) e que se
caracterizam linguisticamente pelo uso de modalidades verbais tipicamente
regulativas, como dever, poder, estar permitido, ter que, etc. Essas normas
podem ser:
(i.a) procedimentais: consistem em estabelecer a ação mesma,
criando uma realidade jurídica e usam a forma verbal “ter que”, no sentido de
estabelecer o que é necessário para criar uma realidade jurídica;
(i.b) potestativas: declaram que uma ação é lícita, autorizando-a
pelo uso do verbo “poder” no sentido de permissão;
(i.c) deônticas: exigem que uma ação seja devida, estabelecendo
deveres ou proibições.
Só estas últimas seriam normas de conduta e só ao
descumprimento destas se implicariam sanções, cabendo ao descumprimento
daquelas a consequente inexistência ou nulidade do ato.
Podem as deônticas ser divididas, ainda, em normas de conduta
propriamente dita, normas de decisão e normas de execução (só estas são
coativas).
(ii) indiretas de ação: que estabelecem pressupostos ou
condições para a existência das normas diretas e são linguisticamente
caracterizadas pelo verbo “ser”. Podem estabelecer os elementos temporais e
espaciais, os destinatários, as capacidades ou competências.
Portanto, para esse autor, as normas indiretas de ação não são
prescritivas, não têm caráter deôntico e usam a expressão linguística “ser”.
Considera as normas indiretas de ação como normas ônticas. Não regulam as
ações em si mesmas, apenas estabelecem pressupostos, condições ou
requisitos para as ações que serão reguladas pelas normas diretas de ação.
35
34
O autor espanhol defende que a reflexão acerca do Direito não
pode se centrar em seu elemento/unidade (a norma) analisado isoladamente e
deve ser analisado como um conjunto, que possui órgãos e procedimentos
estatais, o que o diferencia dos demais sistemas normativos.
Para ele, a norma jurídica se caracteriza não por seu caráter
sancionatório, mas por se tratar de uma ordem dada por uma autoridade
competente, independentemente de seu conteúdo.
Por isso, defende que é possível uma norma sem previsão de
sanção pelo seu descumprimento e que a sanção não é um requisito
imprescindível de toda norma.
RICARDO GUASTINI36 trabalha com as ideias de disposição e norma, demonstrando que as vê, ambas, como enunciados, sendo que a
disposição é um enunciado do discurso do texto normativo, enquanto a norma
é um enunciado da interpretação dada ao texto. É neste sentido que entende
que o documento normativo é um agregado de enunciados prescritivos,
embora também o seja a norma jurídica.
Para ele, documento normativo é o documento elaborado pela
autoridade competente, a que chama de “fonte do direito” para demonstrar que
este é o objeto ao qual o intérprete atribuirá os sentidos (significados). Nele,
documento normativo, contêm-se os enunciados prescritivos. Pode ser uma lei,
um contrato ou uma sentença, por exemplo.
À pretensão de buscar uma definição de norma jurídica coerente
com os pressupostos aqui fixados, importa reter a ideia do autor italiano de que
a norma jurídica é o enunciado da interpretação dada ao texto.
Já PAULO DE BARROS CARVALHO37 trata o enunciado prescritivo como os conteúdos significativos das frases do texto normativo,
usado com função pragmática de prescrever condutas (norma jurídica em
sentido amplo), diferenciando-os da norma jurídica (em sentido estrito), que é
uma significação construída a partir do texto normativo e estruturada conforme
juízo hipotético-condicional (com juízo deôntico-jurídico completo).
36
GUASTINI, Riccardo. Das fontes às Normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 37
35
Não compartilha com GUASTINI o sentido de “fonte do direito”,
pois considera que “a fonte do direito” é de onde emana a decisão que insere a
norma jurídica no sistema, ou seja, é a fonte de produção do direito, a própria
autoridade competente, e não o documento produzido.
Seja como for, o texto normativo é a base a ser interpretada e
expõe o enunciado prescritivo posto no sistema pela autoridade competente. A
norma jurídica é o juízo hipotético-condicional construído pelo intérprete a partir
do texto normativo, embora só possa entrar no processo comunicacional a
partir de sua enunciação (ato de fala), o que a torna, também, um enunciado
(produto do ato de fala).
Enunciado é, pois, tanto o objeto quanto o produto da
interpretação, sendo que ao produto, quando já formulado em forma de juízo
hipotético-condicional, dá-se o nome de norma.
A proposição jurídica, em sentido lógico, é um enunciado
interpretado sujeito aos valores “verdadeiro” ou “falso”. Quer dizer, não é,
necessariamente, a norma já em seu juízo hipotético-condicional, mas qualquer
significação enunciada com base na interpretação dada ao texto normativo.
Neste sentido, um enunciado pode conter várias proposições.
A própria norma é uma proposição complexa e prescritiva com
“dever-ser” neutro (implicacional) e formulada a partir da conjugação de outras
proposições, sendo uma descritiva, contida no antecedente da norma, e outra
prescritiva, contida no consequente e modalizada com um dos valores
permitido, proibido ou obrigatório.
Segundo HANS KELSEN38, o direito serve para impor ordens de conduta humana. Uma ordem é um sistema de normas cuja unidade é
constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o
fundamento de validade de uma ordem normativa é a norma fundamental.
O direito é uma ordem coativa porque reage com uma aplicação
mesmo contra a vontade do indivíduo que descumpre a ordem. Exige uma
determinada conduta humana na medida em que ligam à conduta oposta um
ato de coerção.
38
36
Para KELSEN, o fato de a sanção estatuída pelo direito poder ser
imposta ao indivíduo que descumpriu a ordem mesmo contra a sua vontade e,
em caso de resistência, mediante o emprego de força física é o critério decisivo
para distinguir o direito das demais ordens sociais.
A definição de direito pressuposta na norma fundamental tem
como consequência que só se pode considerar como juridicamente prescrita
uma conduta quando a conduta a ela oposta seja prevista como antecedente
de um ato coercitivo, razão pela qual defende que não é possível aceitar que
haja prescrição de conduta sem a respectiva sanção pelo descumprimento da
mesma.
Considera as normas de competência como normas não
autônomas, que apenas fixa os pressupostos para aplicação e execução dos
atos de coerção estatal.
Com esteio nas lições de KELSEN, PAULO DE BARROS
CARVALHO considera que todas aquelas normas que não contêm sanção são
apenas normas incompletas, pois “inexistem regras jurídicas sem as
correspondentes sanções, isto é, normas sancionatórias”39.
Expostas essas posições, seguiremos o presente estudo com a
perspectiva de que o sistema jurídico se diferencia dos demais pela norma
jurídica, entendida como ordem emanada de autoridade competente, segundo
estabelecido pelo próprio sistema, no bojo da qual há previsão de sanção pelo
descumprimento de seus comandos, com coerção estatal.
Todos os subsistemas prescritivos de condutas, que adquirem
autonomia por assumir a função específica de regular condutas intersubjetivas,
tais como o religioso, o moral ou o jurídico, estruturaram-se sob a forma de
implicação de uma consequência para o descumprimento de uma conduta.
Por rigor científico, é necessário delimitar o critério que distingue o
direito positivo desses outros sistemas prescritivos de conduta, conferindo-lhe
caráter jurídico.
39