Ano 33 | # 671 www.livrariabonijuris.com.br
Humanista,
DEMASIADO
humanista
humanista
Homem de seu tempo, o professor e advogado René Dotti viveu e lutou por
ideais que estão no cerne da democracia. Confrontado com a injustiça e os
ataques à liberdade de expressão, respondeu com a única arma que conhecia:
a da lei. Em sua profi ssão conheceu as teorias e dominou as técnicas, mas foi
acima de tudo uma alma humana a tocar outra alma humana
SEPARATA #3
René Dotti
1934-2021
SEP
ARA
TA #3 – RENÉ DOTTI
E
m princípio de pretensões modestas, a separata em
homenagem ao professor René Ariel Dotti ganhou as
dimensões de uma iniciativa ambiciosa. O que era um
caderno de volume diminuto, que seguiria anexado à Revista
Bonijuris e destinado somente aos assinantes,
metamorfoseou-se em uma brochura de 130 páginas com cinco mil exemplares.
A morte do professor, em fevereiro de 2021, aos 86 anos,
moveu as placas tectônicas do direito. De pronto, juristas
de todo o país acolheram o convite para escrever artigos em
sua memória. Ministros e ex-ministros do STF, advogados,
doutrinadores, professores. Muito deles ostentam em seu
currículo o privilégio de dividir com ele a mesa de reuniões,
a banca de direito, suas aulas na universidade ou mesmo o
tribunal do júri, onde exibia conhecimento jurídico invejável
e talento teatral.
O empenho da equipe envolvida durante seis meses neste
projeto deve ser laureado. Cada detalhe foi considerado,
esculpido, trazido às minúcias. Da capa à entrevista – que é
inédita e uma das últimas que René Dotti concedeu. Dotti
foi apaixonado pelo cinema, pela poesia, pela escrita, pela
dramaturgia, pela modernidade, pelos livros, pela advocacia,
pela família, pela vida. E é esta em especial que a Editora
Bonijuris, juntamente com o leitor, gostaria de celebrar.
ANO 33
|
# 671
REVISTA
4 SEPARATA #3 I REVISTA BONIJURIS I ANO 33 I EDIÇÃO 671
APRESENTAÇÃO
3
Digno, íntegro, humano
ARTIGOS DE CAPA
8
O MENINO DO AHÚ DE BAIXO
Marcus Gomes
12
O DIA EM QUE RENÉ VIU O
ZEPPELIN NO CÉU
Marcus Gomes16
O LEITOR SUBVERSIVO E O
TEATRO DO ABSURDO
Marcus GomesMEMORIAL
20
RENÉ ARIEL DOTTI, MESTRE DE
TODOS
Clèmerson Merlin Clève
22
PAIXÃO LÚCIDA PELO ENSINO E
PELA ADVOCACIA
Rogéria Dotti
26
NO ÍNTIMO DO ADVOGADO
ESTAVA O JORNALISTA
Julio Brotto
30
A VIDA DESENHADA PELA
COMUNICAÇÃO
Ana Carolina de Camargo Clève
32
RENÉ DOTTI E A DEFESA DO
EXERCÍCIO DA ADVOCACIA
Carlos Alberto Farracha de Castro
36
PROFESSOR, JURISTA, ADVOGADO
E UM IDEALISTA GENEROSO
Miguel Reale Júnior
42
UM EL CID CONTEMPORÂNEO
Ives Gandra da Silva Martins
44
COMPROMISSO COM A
LIBERDADE E A ÉTICA
Gilberto Giacoia
46
ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO: O LEGADO DE DOTTI
Marco Aurélio Mello
50
AO MESTRE RENÉ, COM CARINHO
Anita Zippin
52
RENÉ DOTTI: UM HOMEM QUE
ENCHEU O CORAÇÃO
Luiz Edson Fachin
54
RENÉ DOTTI NÃO ERAM UM,
ERAM TANTOS
Luiz Fernando Casagrande Pereira
56
JURISTA EMPRESTOU SEU
TALENTO À CULTURA
Luciana Casagrande Pereira
58
RENÉ DOTTI, UM HOMEM DE
ORDEM
Cássio Lisandro Telles
60
UM BREVE DIÁLOGO IMAGINÁRIO,
VERDADEIRO
Hélio Gomes Coelho Júnior
64
SIM, RENÉ VIVEU A VIDA EM
PLENITUDE
Tarcísio Araújo Kroetz
66
O HUMANISMO EM RENÉ ARIEL
DOTTI
Zulmar Fachin
68
PROLIK E DOTTI: A HISTÓRIA DE
UMA AMIZADE
José Machado de Oliveira, Heloisa Guarita Souza, Flávio Zanetti de Oliveira
DOUTRINA
74
“EFETIVIDADE” EM PROGRAMAS
DE COMPLIANCE?
Alexandre Knopfholz, Gustavo Britta Scandelari
80
INDISPONIBILIDADE DE BENS E A
DURAÇÃO DO PROCESSO
Francisco Zardo, André Meerholz, Pedro Gallotti
84
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E
DIREITO AO ESQUECIMENTO
René Dotti (In memoriam), Laís Bergstein
88
FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA: O
VALOR JURÍDICO DO AFETO
Fernanda Pederneiras, Diana Karam Geara, Thais Precoma Guimarães
92
REFLEXÕES À LUZ DO
PENSAMENTO DE RENÉ DOTTI
Raphaella Benetti da Cunha Rios
96
REFUNDAÇÃO DO PROCESSO
PENAL NA DIREÇÃO DO SISTEMA
ACUSATÓRIO
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
102
NOTA SOBRE A INTERPRETAÇÃO E
APLICAÇÃO DO DIREITO
Eros Grau
108
O PAPEL ESSENCIAL DO PROCESSO
NA DEMOCRACIA
Felipe Martins Pinto
ENTREVISTA
114
“QUERO SER LEMBRADO COMO
ADVOGADO. MINHA VIDA É O
DIREITO”
René Ariel Dotti
FRASES
122 RENÉ DOTTI DE A a Z
Marcus Gomes (pesquisa e edição)
CAI O PANO
130
RENÉ DEIXOU O TEATRO, MAS O
TEATRO NUNCA O DEIXOU
Ary Fontoura
80 SEPARATA #3 I REVISTA BONIJURIS I ANO 33 I EDIÇÃO 671
DOUTRINA JURÍDICA
Francisco Zardo ADVOGADO E PROFESSOR DE DIREITO
André Meerholz ADVOGADO
Pedro Gallotti ADVOGADO
INDISPONIBILIDADE DE BENS E
A DURAÇÃO DO PROCESSO
René Dotti sempre abordava a necessidade de se
escrever artigo denunciando os excessos nas ações de
improbidade administrativa. É o que fazemos agora
E
m 2007, um cliente procurou a área de direito administrativo do escritório para defendê-lo em uma ação de impro-bidade administrativa. Era uma figura humana notável. Professor de econo-mia, articulista e servidor público de grande capacidade e prestígio. Na ação, o Ministério Público pedia a devolução de quase R$ 6 mi-lhões. O motivo: na qualidade de presidente de uma instituição pública, o cliente assinou, após aprovação unânime do conselho, contrato de prestação de serviços com empresa estatal de tecnologia. Segundo o promotor de justiça, a contratação deveria ter sido precedida de licita-ção, embora a Lei de Licitações expressamente a dispensasse (art. 24, viii e xvi). Afinal, o que motivou a criação da estatal contratada foi exa-tamente a prestação de serviços de tecnologia para os demais órgãos da administração.Apesar de não haver nenhuma evidência ou alegação de desvio de recursos em proveito próprio – o valor foi integralmente destinado à estatal contratada –, o mp requereu a
indis-ponibilidade de bens. O juiz deferiu-a, eis que, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o risco de dilapidação patrimonial é presumido. E, assim, todos os imóveis, veículos e contas bancárias do cliente foram bloqueados.
Os veículos envelheceram. O cliente, que no final do ano costumava fazer longas viagens de carro com a esposa, abandonou o hábito. Em 2014, o juiz proferiu sentença de improcedên-cia, decidindo que a contratação fora regular. O Ministério Público não recorreu, o que reforça o descabimento da pretensão inicial. E, então, após sete anos de bloqueio, os bens foram liberados.
Irresignado com a situação de flagrante in-justiça narrada – que se repete cotidianamente nas ações de improbidade administrativa Bra-sil afora –, o professor René Dotti sempre falava da necessidade de escrevermos um artigo con-junto denunciando esses excessos.
Mas, como disse Guimarães Rosa, “o correr da vida embrulha tudo”1. Felizmente, muitos
outros artigos e trabalhos conjuntos foram de-senvolvidos com o professor René ao longo de
Francisco Zardo, André Meerholz e Pedro Gallotti DOUTRINA JURÍDICA
tantos anos. Este, porém, ficou por ser escrito. Agora o fazemos, em homenagem póstuma, mas com a doce e acolhedora sensação de que, dada a intensidade de sua vida e do seu legado, a qualquer momento receberemos um e-mail ou uma ligação dele, entusiasmado com este es-boço à espera de seu toque magistral.
1. A PROBABILIDADE DO DIREITO
Ao decidir o tema repetitivo 701, o Superior Tri-bunal de Justiça fixou a tese de que o perigo de dano nas ações de improbidade administrativa é presumido:
É possível a decretação da indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbida-de Administrativa, quando ausente (ou não Improbida- demonstra-da) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapi-dação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro.22
No entanto, a decretação da indisponibili-dade de bens não prescinde de “elementos que evidenciem a probabilidade do direito”, como prevê o art. 300 do Código de Processo Civil ao dispor sobre a tutela de urgência. Segundo decidiu o stj, “o magistrado possui o dever/po-der de, fundamentadamente, decretar a indis-ponibilidade de bens do demandado, quando presentes fortes indícios da prática de atos de improbidade administrativa”3.
Ausentes fortes indícios de improbidade ad-ministrativa, como no caso demonstrado, a indis-ponibilidade de bens não pode ser decretada. E, mesmo que o seja, a quantia bloqueada deve ser compatível com o valor da provável condenação.
Não se pode submeter uma pessoa física a indisponibilidade em quantia correspondente a todo o valor do contrato celebrado entre pes-soas jurídicas se não houver indícios de desvio de recursos para proveito próprio. Sendo incon-troverso que os pagamentos foram destinados integralmente à empresa estatal contratada, em caso de procedência da ação, quando muito caberia a ela a devolução, não obstante a juris-prudência do stj entender que “a restituição dos valores recebidos por serviços prestados, ainda que maculados por ilegalidade, importa em enriquecimento ilícito da Administração”4.
Portanto, ao decretar a indisponibilidade de bens, é essencial que o magistrado avalie
indivi-Análise sem compromisso
41 99966 0834
41 3324 8888
b r a y t i h . c o m . b r
Braytih
Assessoria
Documental
Imobiliária
b r a y t i h . c o m . b r
Venda
Locação
Avaliação extrajudicial
Administração e
regularização de imóveis
Análise sem compromisso
41 99966 0834
41 3324 8888
Francisco Zardo, André Meerholz e Pedro Gallotti DOUTRINA JURÍDICA
tantos anos. Este, porém, ficou por ser escrito. Agora o fazemos, em homenagem póstuma, mas com a doce e acolhedora sensação de que, dada a intensidade de sua vida e do seu legado, a qualquer momento receberemos um e-mail ou uma ligação dele, entusiasmado com este es-boço à espera de seu toque magistral.
1. A PROBABILIDADE DO DIREITO
Ao decidir o tema repetitivo 701, o Superior Tri-bunal de Justiça fixou a tese de que o perigo de dano nas ações de improbidade administrativa é presumido:
É possível a decretação da indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbida-de Administrativa, quando ausente (ou não Improbida- demonstra-da) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapi-dação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro.22
No entanto, a decretação da indisponibili-dade de bens não prescinde de “elementos que evidenciem a probabilidade do direito”, como prevê o art. 300 do Código de Processo Civil ao dispor sobre a tutela de urgência. Segundo decidiu o stj, “o magistrado possui o dever/po-der de, fundamentadamente, decretar a indis-ponibilidade de bens do demandado, quando presentes fortes indícios da prática de atos de improbidade administrativa”3.
Ausentes fortes indícios de improbidade ad-ministrativa, como no caso demonstrado, a indis-ponibilidade de bens não pode ser decretada. E, mesmo que o seja, a quantia bloqueada deve ser compatível com o valor da provável condenação.
Não se pode submeter uma pessoa física a indisponibilidade em quantia correspondente a todo o valor do contrato celebrado entre pes-soas jurídicas se não houver indícios de desvio de recursos para proveito próprio. Sendo incon-troverso que os pagamentos foram destinados integralmente à empresa estatal contratada, em caso de procedência da ação, quando muito caberia a ela a devolução, não obstante a juris-prudência do stj entender que “a restituição dos valores recebidos por serviços prestados, ainda que maculados por ilegalidade, importa em enriquecimento ilícito da Administração”4.
Portanto, ao decretar a indisponibilidade de bens, é essencial que o magistrado avalie
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INDISPONIBILIDADE DE BENS E A DURAÇÃO DO PROCESSO
82 SEPARATA #3 I REVISTA BONIJURIS I ANO 33 I EDIÇÃO 671
dualmente os indícios de improbidade e a pro-babilidade do direito, bloqueando o patrimônio de cada um dos acusados conforme sua partici-pação e provável condenação.
A ser de outro modo, corre-se o risco de adotar medida desproporcional e que tende à inocuidade, ante a impossibilidade física de constringir valores que jamais ingressaram em determinado patrimônio.
2. A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO
O professor René Dotti sempre dizia que o ad-vogado é o primeiro juiz da causa. É o adad-vogado quem recebe a consulta do cliente e examina a viabilidade de se levar o caso ao Poder Judiciá-rio. Ele primeiro avaliava se a demanda era jus-ta para, então, buscar no direito positivo a base para a defesa da tese. O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, adota o mesmo procedimento: “Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer a dogmática para, encontra-do o indispensável apoio, formalizá-la”5.
Nesse exercício, com frequência, o professor René recordava a clareza do art. 75 do revogado Código Civil de 1916 (“a todo o direito correspon-de uma ação, que o assegura”), cujo espírito sub-siste no art. 5º, xxxv, da Constituição Federal de 1988 (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”).
O art. 7º da Lei 8.429/92 não prevê prazo de duração da indisponibilidade de bens. Mas, como advertiu Norberto Bobbio, o jurista “não deve ser somente um frio e destacado comen-tador das leis vigentes”6. A propósito dessa
ob-servação, o professor René afirmou no prefácio à sexta edição do seu Curso de Direito Penal: “Chama atenção a subserviência de inúmeros autores ao fetichismo do direito abstrato, con-cebendo normas legais como proclamações oti-mistas e encarando o homem, o mundo e a vida
com as lentes de Pangloss”7, em alusão ao
perso-nagem Cândido, de Voltaire, e seu mestre Pan-gloss, para quem “tudo está o melhor possível”8.
Ainda segundo René Dotti:
O papel reservado ao verdadeiro jurista jamais deve se traduzir no vício acaciano de repetir as palavras da lei sob a máscara da interpretação – a qual, aliás, não deve ser apenas literal (gramatical), mas uma composição que considere outros elementos: lógico, sistemático, histórico, sociológico, teleológico e comparativo, na medida em que um ou mais sejam necessários para se entender a voluntas legis. Em se tratando de exegese da norma em um Estado Democrático de Direito, o intér-prete tem, ainda, que trabalhar com o elemento crítico.99
Assim, ainda que o art. 7º da Lei de Improbi-dade não estabeleça um limite para a duração da indisponibilidade de bens, a Constituição Federal dispõe que “a todos, no âmbito judicial e adminis-trativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º, lxxviii). Portanto, é fora de dúvida que a indisponibilidade de bens pode ser afastada caso se estenda para além do prazo razoável, a ser avaliado em cada caso concreto.
Nesse sentido, recentemente, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça examinou uma ação cujos fatos ocorreram em 2004, o ajuizamento ocorreu em 2009 e, em 2020, o processo ainda es-tava fase de produção de provas. Neste caso, o stj concluiu que “há notório excesso de prazo apto a justificar a liberação dos bens dos demandados”:
Processo civil e administrativo. Agravo interno no re-curso especial. Ação civil pública por suposto ato de improbidade administrativa, com imputação baseada no art. 11 (ofensa a princípios administrativos) da Lei 8.429/92. Suposta ausência de prestação de contas pelo ex-prefeito de Moju/PA. Indisponibilidade de bens. Art. 7º, par. único da Lei 8.429/92. A decretação de in-disponibilidade de bens em improbidade administrativa dispensa demonstração de dilapidação ou de tentativa de dilapidação do patrimônio para a configuração do periculum in mora. Precedente: Resp 1.366.721/BA, rel. p/ acórdão min. Og Fernandes, DJe 19.9.2014, julgado pelo rito do art. 543-c do CPC. Precedente, porém, não aplicável à espécie, tendo em vista a in-cidência dos princípios da razoabilidade e da propor-cionalidade, considerando-se o lapso temporal trans-corrido (5 anos) entre os atos ditos como ímprobos e a apresentação da inicial, tornando a constrição cautelar excessivamente onerosa. Em virtude das circunstâncias
O professor René Dotti sempre dizia que o ad vogado é o primeiro
juiz da causa. É o advogado quem recebe a consulta do cliente e
examina a viabilidade de se levar o caso ao Poder Judiciá rio
Francisco Zardo, André Meerholz e Pedro Gallotti DOUTRINA JURÍDICA
do caso, mostra-se ausente o próprio fumus boni juris. Agravo interno do MPF a que se nega provimento. [...]
4. Sem pretender afastar o precedente firmado por esta Corte Superior pelo rito do art. 543-C, entende-se que a hipótese vertente não comporta a indisponibili-dade dos bens dos Réus. O bloqueio de bens da parte Recorrente por todos os anos, desde 2009, quanto a fatos ocorridos em 2004, se mostraria inarredavelmen-te oneroso, violando a justa medida da razoabilidade, orientação jusfilosófica que deve permear a atividade do Magistrado.
5. Não se propõe o presente feito a estabelecer qual-quer divergência interpretativa nesta Corte Superior. Entende-se apenas que, num juízo tópico de ponde-ração, não deve incidir o precedente repetitivo ao fei-to em espeque, considerando-se as peculiaridades do caso, especialmente a temporal.
6. Cumpre assinalar que, em consulta ao feito principal neste mês de março de 2020, ainda não foi proferida sentença na origem (está em fase de especificação de provas), cuja ação, como dito, foi ajuizada em 2009, ou seja, há mais de uma década. Há notório excesso de prazo apto a justificar a liberação dos bens dos de-mandados.
7. Frente à quadra processual na origem ainda indefini-da e indefini-dado o lapso temporal sobejamente transcorrido, oblitera-se o próprio fumus boni juris como requisito es-sencial à concessão de medida patrimonial constritiva. 8. Agravo Interno do MPF a que se nega provimento.1010
No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Paraná revogou indisponibilidade de bens de-cretada há mais de 18 anos, sem que tenha se iniciado a fase instrutória do processo:
Agravo de instrumento. Indisponibilidade de bens decretada há mais de 18 (dezoito anos). Interposi-ção de agravo de instrumento. Preclusão das alega-ções de ausência de fundamentação e inexistência de fortes indícios da prática de atos de improbidade administrativa. Por outro lado, se faz necessária a aplicação do princípio da proporcionalidade, diante do extenso lapso temporal entre o seu deferimen-to, recebimento da inicial e ausência de início da fase instrutória até o presente momento. razoável duração do processo. Recurso conhecido e parcial-mente provido para revogar a medida excepcional dos agravantes e demais corréus (eficácia expansivo--subjetiva).1111
Como se infere desses precedentes, caso a indisponibilidade de bens se estenda além do prazo razoável, a ser avaliado à luz das peculia-ridades do caso concreto, é possível a sua revo-gação, por ofensa ao art. 5º, lxxviii, da Consti-tuição Federal.
***
Obrigado, professor René. Obrigado por muito. n NOTAS
1. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: ve-redas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Frontei-ra, 2001. p. 334.
2. STJ, 1ª Seção, REsp 1366721/BA, Rel.
p/ Acórdão Min. Og Fernandes, DJe 19.09.2014.
3. STJ, 2ª Turma, REsp 1734001/GO, rel. Min.
Herman Benjamin, DJe 17.12.2018.
4. STJ, 2ª Turma, AgInt no AREsp 1585674/
SP, rel. Min. Assusete Magalhães, DJe 10/06/2020.
5. STF, 2ª Turma, RE 111787, rel. p/ Acórdão
Min. Marco Aurélio, DJ 13/09/1991.
6. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo Penal; prefácio da 1a. ed. italiana, Norberto Bobbio. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 12.
7. DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal. 6. ed. (com a colaboração de Alexandre Knopfholz e Gustavo Britta Scandelari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
8. Voltaire. Contos. Trad. Roberto Domênico Proença. São Paulo: Nova Cultural, 2002. p. 148.
9. DOTTI. Op. cit.
10. STJ, 1ª. Turma, AgInt no REsp n. 1383216/
PA, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 28.05.2020.
11. TJPR, 5ª C. Cível, AI nº
0001600-74.2019.8.16.0000, rel. Des. Luiz Mateus de Lima, j. 10.03.2020.
Francisco Augusto Zardo Guedes. Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – ufpr. Pós-graduado em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Formado em Direito pela Universidade Federal do Paraná – ufpr. Professor em cursos de pós-graduação (llm) em Direito Administrativo na Universidade Positivo, Unibrasil e Faculdade de Direito da Federação das In-dústrias do Paraná – fiep.
André Meerholz. Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – ufpr. Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Especialista em Contabilidade e Finanças pela ufpr. Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba – unicuritiba. Formado em Economia pela Universidade Federal do Paraná – ufpr.
Pedro Henrique Gallotti Kenicke. Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – ufpr. Membro da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais – abrig. Membro da Comissão de Apoio à criação do Tribunal Regional Federal no Estado do Paraná.