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Trajetórias de mulheres negras líderes de movimentos sociais em Araraquara SP: estratégias sociais na construção do modo de vida

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Academic year: 2018

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA

DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

MARIA APARECIDA SILVA

TRAJETÓRIAS DE MULHERES NEGRAS LÍDERES DE

MOVIMENTOS SOCIAIS EM ARARAQUARA-SP:

ESTRATÉGIAS SOCIAIS NA CONSTRUÇÃO DE MODO DE

VIDA

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TRAJETÓRIAS DE MULHERES NEGRAS LÍDERES DE

MOVIMENTOS SOCIAIS DE ARARAQUARA-SP: ESTRATÉGIAS

SOCIAIS NA CONSTRUÇÃO DE MODOS DE VIDA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação Brasileira.

Orientador: Prof. Dr. Henrique Cunha Júnior

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Lecturis salutem

Ficha Catalográfica elaborada por

Telma Regina Abreu Camboim – Bibliotecária – CRB-3/593

tregina@ufc.br

Biblioteca de Ciências Humanas – UFC

S581t Silva, Maria Aparecida.

Trajetórias de mulheres negras líderes de movimentos sociais de Araraquara-SP [manuscrito] : estratégias sociais na construção de modos de vida / por Maria Aparecida Silva. – 2011.

185f. : il. ; 31 cm.

Cópia de computador (printout(s)).

Tese(Doutorado) – Universidade Federal do Ceará,Faculdadee Educação,Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira,Fortaleza(CE), 19/04/2011.

Orientação: Prof. Dr. Henrique Antunes Cunha Júnior. Inclui bibliografia.

1-NEGRAS – ARARAQUARA(SP). 2-NEGRAS – IDENTIDADE RACIAL – ARARAQUARA(SP). 3-MOVIMENTOS SOCIAIS – ARARAQUARA(SP). 4-MULHERES – ARARAQUARA(SP) –

ATIVIDADES POLÍTICAS.5-PARTICIPAÇÃO SOCIAL – ARARAQUARA(SP). 6-MULHERES –

EDUCAÇÃO – ARARAQUARA(SP).I-Cunha Júnior, Henrique Antunes, orientador. II.Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira.III-Título.

CDD(22ª ed.) 305.4889608161

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TRAJETÓRIAS DE MULHERES NEGRAS LÍDERES DE MOVIMENTOS SOCIAIS DE ARARAQUARA-SP: ESTRATÉGIAS SOCIAIS NA CONSTRUÇÃO DE MODOS

DE VIDA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Educação Brasileira.

Defesa em: 19 de abril de 2011

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________ Prof. Dr. Henrique Antunes Cunha Júnior – UFC

(Orientador)

_____________________________________________________ Profª. Drª Damiana Pereira Miranda - UFBA

_____________________________________________________ Profª. Drª. Joselina da Silva – UFC

(Examinadora)

_____________________________________________________ Profª. Drª. Ana Beatriz Sousa Gomes – UFPI

(Examinadora Externa)

_____________________________________________________ Profª. Drª. Maria Zelma de Araújo Madeira – UECE

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As Iabás pela energia e bençãos ao fechar este ciclo.

Ao meu filho Husani Yau, pela sua cumplicidade. Que os ensinamentos e experiências das mulheres negras que foram e que se fazem presente em sua vida sempre contribua na sua formação para não ser um homem machista e sexista.

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sempre torcendo por mim.

Ao Prof. orientador Dr. Henrique Cunha Júnior, pela amizade, pelo incentivo constante, a qual tenho imenso respeito e admiração.

A CAPES pelo apoio a pesquisa.

As mulheres negras interlocutoras que pacientemente contribuíram com seus relatos para este trabalho que visibiliza e demarca o quanto as sua vivencias e experiencias tem uma dimensão valorosas para a compreensão dos movimentos sociais negros.

As Prof. Dr.ª Joselina da Silva, Rosa Maria Barros Ribeiro, Sandra Pettit, Kelma Socorro Lopes e Maria Zelma de Araújo Madeira pelas contribuições significativas nos exames de qualificações. E agora juntamente com Ana Beatriz Sousa Gomes e Damiana Pereira Miranda que aceitaram o convite para participar da banca.

Aos amigos da família Salvador e a querida amiga Valquíria Pereira Tenório que tem acompanhado de perto minha trajetória.

Aos amigos que fiz nesses anos na estadia em Fortaleza e que extrapola a amizade acadêmica: Piedade Lino Videira, Iraneide Soares, Cícera Nunes, Fátima Aparecida Silva e Ivan Costa Lima.

As amigas inseparáveis: Aparecida de Oliveira Brandão, Ana Maria Ferreira e Nadir Sabino pelas palavras de apoio e estímulo.

A Maria Nazaré Salvador, amiga, comadre e irmã de fé sempre presente, caminhando junto todos estes anos, dividindo sua energia positiva, os ensinamentos e a sabedoria. O meu carinho.

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Que viagem mais longa candonga Ouvindo o batuque das ondas Compasso de um coração de pássaro

No fundo do cativeiro É o semba do mundo calunga Batendo samba em meu peito

Kaô Kabiecilê Kaô Okê arô oke

Quem me pariu foi o ventre de um navio Quem me ouviu foi o vento no vazio

Do ventre escuro de um porão Vou baixar o seu terreiro Epa raio, machado, trovão

Epa justiça de guerreiro Ê semba ê ê Samba á o Batuque das ondas Nas noites mais longas

Me ensinou a cantar Ê semba ê ê Samba á Dor é o lugar mais fundo

É o umbigo do mundo É o fundo do mar No balanço das ondas

Okê aro

Me ensinou a bater seu tambor Ê semba ê ê Samba á No escuro porão eu vi o clarão

Do giro do mundo Que noite mais funda calunga

...

eu faço a lua brilhar o esplendor e clarão luar de luanda em meu coração

umbigo da cor abrigo da dor

a primeira umbigada massemba yáyá massemba é o samba que dá

Vou aprender a ler Pra ensinar os meu camaradas!

Vou aprender a ler Pra ensinar os meu camaradas!

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Esta tese versa sobre as experiências de mulheres negras participantes do movimento social negro, organizadoras de eventos culturais e ou freqüentadoras de espaço de maioria afrodescendente moradoras de dois bairros da cidade de Araraquara, interior de São Paulo, a saber: o Santana e a Vila Xavier. A investigação é qualitativa e procede a partir da década de 1970 a 2010 com o recurso metodológico da história oral tendo como ferramenta para a coleta de dados a entrevista, com depoimentos de 21 mulheres negras que resultou na reconstrução de seus espaços de sociabilidade, no envolvimento na comunidade de maioria afrodescendente, na representação da educação e da escola e no significado dos espaços de atuação em suas vidas. A finalidade é verificar, desvelar e perceber nas experiências dessas mulheres negras as estratégias sociais elaboradas na construção de modos de vida que contribuíram no fortalecimento da identidade, formação e atuação nos movimentos sociais negros. Estas preocupações surgem como uma forma de ampliar a compreensão de como esse contingente se encontra perante a sociedade que tem definido seus papéis sociais. Papéis, aliás, que acabam sendo, de alguma forma, impostos e absorvidos sutilmente como a maneira através das quais as relações sociais são mantidas. A abordagem está fundamentada em três eixos de discussões: gênero, étnicorracial e movimento social negro. Como a pesquisa é com mulheres, é inegável enfrentar as diferenças percebidas como relação de poder entre os sexos e são mulheres negras, o que possibilita a discussão étnicorracial, percebendo as discriminações, as particularidades e singularidades e também o movimento social negro na perspectiva de encaminhamento à formação e empoderamento na condição de liderança. Visibilizá-las significa tirá-las das margens que aparece na sociedade, e construir outra história.

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neighbourhoods of Araraquara, state of São Paulo, named Santana and Vila Xavier, who take part in the Black social movement, organizing cultural events or who attend a mainly afro-Brazilian environment. This research is qualitative and starts in the 1970s and ends 2010. Interviews were used as a methodological tool to collect the data featuring orally handed down history. Based on the interviews with 21 black women, their social environment, their insertion into the mainly afro-Brazilian community, the importance of education and schooling, and the significance of their areas of influence and action were reconstructed. The aim of this research is to verify, unveil and understand the social strategies elaborated by these women based on their experience by constructing a way of life that contributes to the strengthening of their identity, their development and performance in the Black social movement. These concerns arise as a way to broaden the comprehension of how this part of the population is perceived by a society that has defined its social roles. Roles that are in a sort of way subtly imposed and absorbed as a mean, by which social relationships are built and maintained. The approach is based on three main points of discussion: gender, ethnic-racial and black

social movement. As the research is focused on women it‟s inconceivable not to address

the differences such as the relationship of power between sexes, and given they are black women, the ethnic-racial discussion about discrimination, particularities and singularities is possible but also the black social movement as a path to education, training and empowerment as a leader. Making them visible is to rescue them from the margins of society and to build a new history.

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Esta tesis trata de las experiencias de mujeres negras que participan del movimiento social negro, organizan eventos culturales y o frecuentan espacios, en mayoría afrodescendientes, habitantes de dos barrios de la ciudad de Araraquara, pueblo de São Paulo: Santana y Vila Xavier. La investigación es cualitativa y procede a partir da la década de 1970 a 2010 con el recurso metodológico de la historia oral y utiliza para la colecta de datos la entrevista, con depoimientos de 21 mujeres negras que ha resultado en la reconstrucción de sus espacios de sociabilidad, su participación en la comunidad de mayoría afrodescendiente, en la representación de la educación y de la escuela y en el significado de los espacios de acción en sus vidas. La finalidad es verificar, desvelar y percibir en las experiencias de esas mujeres negras las estrategias sociales elaboradas en la construcción de modos de vida que han contribuido en el fortalecimiento de la identidad, formación y actuación en los movimientos sociales negros. Estas preocupaciones surgen como una forma de ampliar la comprensión de como ese contingente se encuentra ante la sociedad que ha determinado sus roles sociales que acaban por ser de algún modo, impuestos y absorbidos sutilmente como una manera a través de las cuales las relaciones sociales se mantienen. El abordaje se fundamenta en tres ejes de discusiones: género, étnico-racial y movimiento social negro. Como la investigación se desarrolla con mujeres, se hace innegable enfrentar las diferencias percibidas con relación de poder entre los sexos y son mujeres negras, lo que posibilita la discusión étnico-racial, percibiendo los prejuicios, las particularidades y peculiaridades y además el movimiento social negro en la perspectiva de encaminamiento la formación y apoderamiento en la condición de liderazgo. Visiblizarlas significa quitarlas de los márgenes en que aparecen en la sociedad, y construir una otra historia.

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CECAN- Centro de Estudos e Arte Negra CERU – Centro de Estudos Rurais e Urbano

EDUCAFRO – Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes EFLAC – Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe

EJA – Educação de Jovens e Adultos

FECONEZU – Festival Comunitário Negro Zumbi

GANA – Grupo de Arte e Divulgação da Cultura Negra de Araraquara GT – Grupo de trabalho

JONESCO – Jovens Negros Conscientes LDB – Lei de Diretrizes e Base

MDB – Movimento Democrático Brasileiro MNU- Movimento Negro Unificado

ONG FONTE – Organização Governamental Frente Organizada para Temática Étnica OFA- Ocupação Função Atividade

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo QUILOMBOHOJE- Literatura Afro Contemporânea UEL – Universidade Estadual de Londrina

UFC- universidade Federal do Ceará

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Figura 1 – Recordação escolar ... 53

Figura 2 – Ensaio da peça “Negros que Riem” do grupo GANA ... 66

Figura 3 –Ensaio da peça “Negros que Riem” do grupo GANA ... 66

Figura 4 –Ensaio da peça “Negros que Riem” do grupo GANA ... 67

Figura 5 – Encontro de Mulheres Negras ... 84

Figura 6 – Seminário de Mulheres Negras ... 84

Figura 7 – Apresentação teatral no FECONEZU de 1978... 85

Figura 8 – Abertura do Encontro de Mulheres Negras ... 88

Figura 9 – Oficina de Mulheres Negras... 88

Figura 10 – Família negra ... 107

Figura 11 – Família negra ... 107

Figura 12 – Família negra ... 108

Figura 13 – Atividade do grupo GANA – Manhãs de recreio ... 121

Figura 14 – Atividade do grupo GANA – Manhãs de recreio ... 122

Figura 15 – Atividade do grupo GANA – Manhãs de recreio ... 122

Figura 16 – Atividade do grupo GANA – Manhãs de recreio ... 123

Figura 17 – Cidades onde aconteceram as edições do FECONEZU ... 125

Figura 18 – Cartaz FECONEZU 2000 (Araraquara-SP) ... 127

Figura 19 – Jornal O Imparcial, Araraquara, 13 de maio de 1998 ... 130

Figura 20 – Atividade carnavalesca na Escola de Samba Estrela da Vila Santana ... 131

Figura 21 – Encontro afrodescendente – Feijoada da Maria ... 131

Figura 22 – Encontro afrodescendente – Feijoada da Maria ... 132

Figura 23 – Encontro afrodescendente – Feijoada da Maria ... 132

Figura 24 – Nova geração de trançadeiras... 133

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 15

2 O SENTIDO DE PESQUISAR ... 24

2.1 O revelar da pesquisa ... 24

2.2 Panorama da cidade de Araraquara-SP ... 29

2.3 Desdobramento teórico-metodológico ... 36

2.4 Perfil biográfico das entrevistadas da pesquisa ... 38

3 MULHER NEGRA: IDENTIDADE, MEMÓRIA E PARTICIPAÇÃO ... 45

3.1 Referência familiar ... 45

3.2 A militância ... 57

3.3 Trajetória docente ... 62

4 MOVIMENTOS DE GÊNERO E POPULAÇÃO NEGRA ... 69

4.1 Um olhar sobre as relações de gênero ... 69

4.2 Nós mulheres negras: organização e liderança ... 75

5 MULHERES NEGRAS: SOCIALIZAÇÃO E RELAÇÕES DE PODER ... 89

5.1 O que nos une: ativismo e experiências sociais ... 89

5.2 Relações de poder e população negra ... 96

6 HISTÓRIAS DAS MULHERES NEGRAS ATIVISTA DE ARARAQUARA ... 105

6.1 Caminhos de sociabilidade ... 105

6.2 O percurso ativista ... 116

7 REPRESENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA ESCOLA PARA AS MULHERES NEGRAS PESQUISADAS DE ARARAQUARA ... 134

7.1 Educação e escola: uma abordagem crítica ... 134

7.2 A representação da educação e da escola no cotidiano de mulheres negras ... 147

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REFERÊNCIAS ... 156

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1 INTRODUÇÃO

Esta tese tem como tema as mulheres negras e aborda suas experiências enquanto participantes do movimento social negro, organizadoras de eventos culturais para afrodescendentes e/ou freqüentadoras de espaços de maioria afrodescendente, a partir da década de 1970 a 2010, em dois bairros da cidade de Araraquara-SP: Santana e Vila Xavier.

Realizar este trabalho partindo do marco temporal da década de 1970 com mulheres negras significa demarcar que sua atuação política é construída antes, durante e depois do período histórico da ditadura militar no país, e também dar visibilidade a estas pessoas que dedicaram um período de suas vidas a desenvolver e organizar atividades para afrodescendentes. Esse foi o sentido encontrado para evidenciá-las, uma forma de reconhecimento pela contribuição de formação em nível individual e coletivo de uma geração. Encaminhar este estudo nessa perspectiva é acreditar que a trajetória de experiências dessas mulheres negras é uma consciência política elaborada enquanto sujeito social no cotidiano, isto é, nas práticas, nas ações que representam as bases históricas e sociais para compreender a dimensão da existência do conflito social que envolve os grupos sociais afrodescendentes e eurodescendentes.

A explicação da importância da década de 1970 está no fato deste ser um período marcado pelo regime militar iniciado na década de 1960, por mudanças consideráveis sobre os movimentos negros, e também evidenciado pelo forte desenvolvimento industrial e da industrialização do país. Nas palavras de Habert (1992) a década de 1970 foi de repressões e o Estado ditatorial impôs um clima de terror em nome da “Segurança Nacional” e do “combate à subversão comunista”, estendendo um manto de violência e de prepotência que recobriu as

mais amplas camadas da população. Considerado o período mais fechado e mais autoritário do regime militar, pois espalhava um clima de medo, insegurança e intranqüilidade que se entranhava no cotidiano, principalmente daqueles para quem a liberdade e os direitos nunca chegaram. As resistências reapareceram ou surgiram de várias formas de organização, da luta armada ao cenário das ruas tomadas por manifestações de protestos e reivindicações específicas e gerais, sinal de que o regime militar não conseguiu o silêncio total dos movimentos sociais na construção social e política deste país.

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1980, os afrodescendentes que impregnaram suas atividades expressivas de um protesto e uma condenação explícita da situação dos negros na sociedade brasileira foram frequentemente censurados em termos formais e informais, por elites que viam tais acusações como uma afronta ao caráter nacional (HANCHARD, 2001). Mesmo emersa a este período conflituoso, as mulheres negras araraquarenses iniciam uma nova fase dos movimentos sociais negros. As décadas de 1970 e 1980 são consideradas por alguns pesquisadores como um período de renovação conceitual nos movimentos sociais negros, dentro da ótica dos movimentos de consciência negra (CUNHA JÚNIOR, 2003; PEREIRA, 2000). Dentre as depoentes participantes desta pesquisa, encontramos depoimentos que demarcam esta transição da década de 1970:

Ainda no final dos anos 70, eu comecei a participar das discussões de temática racial. Final dos anos 70, em 1976 a gente começou com um grupo aqui em Araraquara, um grupo da arte e divulgação cultura negra (GANA)1. Então, foi uma fase realmente muito, muitíssimo rica, vem à tona essa questão do orgulho de ser negro. A participação em peças teatrais, a elaboração de peças relacionadas à questão do negro, a participação em atividades de grupos, a interação com grupos de outras cidades – de São Carlos, Ribeirão, São Paulo, Limeira – e culmina, toda essa discussão, com o primeiro grande evento que envolvia, não só Araraquara, mas grupos de cidades do interior de São Paulo, que foi o FECONEZU2 (Festival Comunitário Negro Zumbi), o resultado do trabalho que os grupos desenvolviam durante o ano todo. (Nazaré).

A participação no movimento negro começou no final da década de 70, foi muito intensa, de corpo e alma. Porque era a fase do vigor total, do espírito e também do corpo. Tinha a questão do estudo, tinha a questão profissional, mas o foco mesmo era a atuação no movimento negro; fazia com que a gente tivesse uma dedicação muito grande pra tudo que estivesse relacionado com o movimento negro. Eu digo que coloquei, assim, todos os esforços que eu pude, sentimentos e dedicação – e as coisas que acreditava serem, não sei se certas, mas que eu fosse contribuir, o que eu pudesse fazer pra contribuir –, eles foram canalizados para o movimento negro. E, paralelamente, atuava em outros movimentos também sociais. (Neusa).

Esses depoimentos explicitam desejo, necessidade e concretização de uma posição política que se concentra no interior paulista na década de 1970, mais especificamente em algumas cidades localizadas na região central do Estado de São Paulo, como Araraquara. Mostram uma organização com base na consciência de negritude, isto é, o orgulho de ser negro, orgulho da cultura e das tradições afro-brasileiras (BERND, 1988), que desencadeia

1 O Grupo de Arte e Divulgação da Cultura Negra (GANA) criado em 1976, referência para o ativismo

de mulheres negras pesquisadas.

2 O Festival Comunitário Negro Zumbi (FECONEZU) surgiu em 1978. Trata-se de uma reunião anual de

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primeiramente o fortalecimento local, com a criação do grupo já em 1976, realizando atividades culturais, e depois ampliando a forma política de atuar através da construção coletiva, que é o FECONEZU, em 1978. Essas atitudes nos levam a pensar que negros e negras na cidade de Araraquara têm um respaldo ativista de gerações passadas, conseqüentemente de décadas anteriores, que refletiu na geração da década de 1970 – aquela que reagiu aos enfrentamentos raciais e construiu estratégias sociais como a formação de espaços afrodescendentes, resultando na fomentação intensa da discussão étnico-racial.

A década de 1970 para a população negra e para os movimentos negros é relevante por nela ter se iniciado um conjunto de transformações políticas sociais que prepararam os movimentos atuais, como os das cotas para negros nas universidades brasileiras, as ações afirmativas do Estado brasileiro e a implantação da lei nº 10.639/03 sobre a obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura Africana e Afrodescendentes. O cenário da ditadura militar implicou na reorganização dos movimentos políticos, promovendo mudanças nas atitudes dos movimentos sociais. Uma das mudanças foi a abertura de movimentos políticos de esquerda para a participação dos movimentos negros. Outra mudança foi a posição da igreja católica porque, existia um movimento intenso de parte da igreja para as causas sociais, dentre elas as causas defendidas pelos movimentos negros. Estas novas posturas e novos embates entre os grupos sociais resultaram nas mudanças de atitudes dos movimentos negros, explicando em certa projeção a transição da década de 1970 e as renovações dos movimentos de consciência negra.

No período de 1900 a 1970, surgiram inúmeros movimentos negros e associações negras nas cidades do interior de São Paulo. Várias destas associações realizaram nas décadas de 1920 e 1930, forte movimento de educação e de identidade da população negra. Muitos destes clubes negros do interior paulista tinham ligações com os ferroviários e produziam através das ferrovias um circuito de interação. Além disso, diversas cidades tinham irmandades religiosas de pretos3 e grupos de congada4, moçambiques5 e marujadas6

3 As irmandades religiosas de pretos são instituições que agregam a população de origem africana no

Brasil e que se organizaram de maneira autônoma para gerenciar seus negócios. A mais famosa delas é a de Nossa Senhora do Rosário. Sobre este assunto consultar Quintão (2002).

4 A congada é uma dança de manifestação cultural e religiosa de origem africana mais especificamente

do país do Congo, que representa o cortejo de coroação aos Reis de Congo. É acompanhado de cantigas de inspiração religiosas, cavalgadas, levantamento de mastro e música. Em algumas regiões do Brasil a festividade ocorre especialmente no mês de outubro quando se comemora a festa para Nossa Senhora do Rosário.

5 De origem africana é uma dança que tem nomes religiosos.

6 É uma dança de origem africana, que se manifesta para Louvar São Benedito. Essa dança difere de

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realizando um “catolicismo de preto” que tinha um forte sentido de reforço da identidade

negra.

As ferrovias estavam em crise a partir dos anos de 1950, a qual se estendeu até 1970, quando muito da rede ferroviária foi extinta ou teve suas funções reduzidas. Esta redução das ferrovias tem influência direta sobre a organização da população negra do interior paulista no sentido de diluição dos laços entre cidades, enfraquecendo os clubes negros e os movimentos associativistas.

Também as irmandades religiosas negras sofreram severo ataque pela Igreja Católica no sentido de extingui-las e submetê-las às cúrias metropolitanas e ao Vaticano. Antes, muitas dessas irmandades eram independentes da estrutura da Igreja Católica. O ataque às irmandades e ao catolicismo de preto trouxe forças de desarticulação de coletivos negros pelo interior do Estado e entre os estados.

Há também que se mencionar os fatores da industrialização do Estado que produziu um fluxo migratório do interior para a capital e cidades no seu entorno. Esta migração reduziu ainda os laços comunitários. Por fim, a ditadura militar teve influência no processo de associativismo negro, quando os membros socialistas ficaram temerosos das consequências da sua militância, e reduziram suas ações. O ativismo negro nos sindicatos como dos portuários na cidade de Santos-SP sofreu também grandes golpes com a ditadura militar. Em Santos, os movimentos em torno dos negros elegeram o Dr. Esmeraldo Tarquínio como prefeito da cidade em 1967, mas ele não chegou a assumir, pois foi cassado pela ditadura militar, ficando impedido de fazer política por 10 anos (LUCIO, 2006).

O final da década de 1960 dava sinais de que os movimentos negros estariam em extinção. Na verdade, o que ocorreu nesse período foi uma transformação quanto às abordagens dos problemas sociais. O racismo antinegro foi fortemente enfocado como determinante da condição social da população negra no período pós-abolição. Em 1971 foi fundado em Porto Alegre-RS o Grupo Palmares, que inaugurou uma fase de consciência negra, tendo como referência o quilombo dos Palmares. O dia 20 de novembro passou a ser símbolo dessa nova fase. O marco deste período foi a criação de novos grupos do movimento negro fora das antigas associações. Em 1974, foi fundado na Bahia o Ilê Aiyê, que tem muita repercussão pelo país. No Estado de São Paulo, em 1975, foi criada a Federação das Entidades Negras do Estado de São Paulo; dois importantes congressos foram realizados entre

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1975 e 1976 entre os grupos dos movimentos negros de São Paulo e do Rio de Janeiro (CUNHA JÚNIOR, 1992, 2003; MOTTA, 1978).

A década também impulsionou os movimentos de jornalismo negro, de teatro e dança e de literatura negros. Em 1978 houve a fundação do QUILOMBHOJE, que edita anualmente os Cadernos Negros. No ano de 1978 foi realizado o ato público de protesto nas escadarias do Teatro Municipal da cidade de São Paulo. Este ato teve grande repercussão nos jornais, e dele resultou a fundação do Movimento Unificado contra o Racismo, que em 1979 tornou-se o Movimento Negro Unificado contra o Racismo (MNU). Também em 1978 iniciou-se na cidade da Araraquara o Festival Comunitário Negro Zumbi (FECONEZU), que contou com a presença de mais de mil pessoas na cidade. Em Araraquara se tinha fundado o Grupo de Divulgação da Arte e Cultura Negra (Grupo GANA), em 1976.

Por estas razões, a década de 1970 pode ser considerada um marco inicial de transformações que explicam os movimentos negros da atualidade. Este foi um período de mudança do pensamento negro no Brasil (PEREIRA, 2000; CUNHA JÚNIOR, 1992), e tal mudança foi denominada de movimento de consciência negra e inclui diversos fatores, dentre os quais destaco no processo de mudança de mentalidades os seguintes:

a) a população negra é vista pelo movimento como maioria da população brasileira;

b) a população negra é pensada pelos movimentos como fator importante da história do Brasil. Pretende-se nesta perspectiva pensar através dos quilombos. Portanto, a inclusão de Palmares como símbolo foi fundamental;

c) o racismo antinegro é pensado como fator e produção da desigualdade social sobre a população negra;

d) o socialismo é pensado conjuntamente com as culturas negras.

Nesse sentido é que tomamos esta década para início dos estudos desta tese, com o escopo de apresentar a trajetória de mulheres negras de 1970 a 2010, a partir dos vários elementos de sua constituição enquanto ser humano, como sua socialização e sociabilidade, sua formação e seu envolvimento para mudança social junto ao grupo de maioria negra.

O que me fez desenvolver este trabalho foi ter, juntamente com algumas dessas mulheres negras, vivenciado os mesmos momentos de ativismo com a mesma intensidade7. É um tema intencional, na medida de querer compreender a trajetória de meus pares como uma

7 É por esse motivo que por muitas vezes uso a pessoa do discurso “nós”, pois me incluo nas situações

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troca de experiências para ampliar o repertório de respostas para nossas vidas. É diante deste interesse pela temática relacionada a mulheres negras, que no mestrado em Sociologia desenvolvi a dissertação intitulada Mulheres negras adolescentes no ensino médio: discriminação e desafio (SILVA, 2005), realizada na cidade de Araraquara-SP em duas escolas públicas e em uma escola de cooperativa de funcionários públicos. Já naquele momento, a discussão acerca do significado de ser mulher e negra que perpassa as questões étnico-raciais e de gênero era evidenciada para demonstrar como o projeto de vida de adolescentes negras se insere em um emaranhado de sutilezas discriminatórias que podem ser um dos impedimentos para projetar-se para além do ensino médio.

Na dissertação, busquei perceber se as mulheres negras adolescentes tinham um projeto de vida e se a educação escolar era prioridade para concretização deste; chegando às seguintes constatações sobre as jovens que participaram da pesquisa: as situações negativas econômicas e sociais não minimizaram a sua autoestima positiva; colocam-se dispostas às mudanças que pretendem fazer em suas vidas quando pensam em um projeto de vida voltado para a escolarização, para a instrução e o aperfeiçoamento após o ensino médio; sinalizam uma insatisfação da atual situação em que vivem e não querem repetir a mesma trajetória de suas famílias que em sua maioria não teve as mesmas chances, mas que hoje são suas aliadas, procurando participar de sua vida escolar; se colocam com disposição de questionar a posição que se atribui às mulheres negras de inferioridade na sociedade. Enfim, as adolescentes negras têm explícito que têm um grande desafio, e a resistência está na sua autoestima positiva e na construção de um projeto de vida.

Na pesquisa de dissertação, e agora na tese, a problemática que envolve a etnia-raça8 e gênero permanece como referência-problema para o contingente de mulheres negras, mas que através de modo de vida, seja na adolescência ou na fase adulta, elaboraram no decorrer de sua trajetória estratégias de luta, um canal de superação aos obstáculos quando pensam num projeto de vida ou se colocam num ativismo em prol de uma causa com base na afirmação da identidade negra, como é o caso da história de mulheres negras araraquarenses que retrato neste trabalho.

No desenvolvimento desta pesquisa fui percebendo a pouca bibliografia que retrata a população negra da cidade de Araraquara-SP – tal fato ocorreu também com Silva (2003), Tenório (2005) e Salvador (2006), em suas pesquisas, tendo como referência a população

8 Utilizarei no decorrer desta tese os termos etnia-raça e étnico-racial, uma forma de uso por perpassar

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negra araraquarense. A solução encontrada foi recorrer ao que se tem produzido sobre Araraquara, nas recentes pesquisas realizadas pelas pesquisadoras citadas anteriormente, porém pouco foi encontrado. Apenas informações esparsas, reduzidas, relacionadas ao período da escravidão. No pouco encontrado, a população negra é apenas figurante na história construída sobre Araraquara (TENÓRIO, 2005); isso não foi impedimento para delinear aqui a trajetória de mulheres negras.

Nesta tese utilizei diversas obras centralizadas numa perspectiva crítica para compreender como mulheres negras se tornaram agentes históricos da população negra araraquarense. Entre essas obras estão as de Carneiro e Santos (1985) – ícones referenciais na abordagem no que tange às especificidades e singularidades da mulher negra; e Scott (1990) –

estudiosa da questão de gênero enquanto relação de poder. Nessas concepções, a relação de gênero deve ser compreendida a partir de um contexto histórico que se interliga aos estudos de Munanga (1996a) com a discussão de identidade que perpassa a definição de si, autodefinição e a definição dos outros, identidade atribuída e reforçado pelo trabalho de Hall (1987) na concepção da identidade formada na interação entre o eu e a sociedade, que nos dá condições de entender o processo de conscientização que foi desencadeado por essas mulheres negras.

Às obras citadas acrescento as reflexões sobre memória coletiva de Halbwachs (2006), associado ao conceito de tempo, pois segundo ele, a memória encontra amparo no passado vivido e é preservada no grupo. Além disso, vale ressaltar o trabalho de Bosi (1994) que entende a memória como o refazer, reconstruir as experiências do passado. Com estes referenciais bibliográficos e outras a que me reportarei ao longo desta tese, foi possível detectar que a trajetória de experiências das mulheres negras ativistas pesquisadas contribui nas histórias individuais e coletivas e memória da população negra araraquarense. Tendo estes autores como âncora, dou início à apresentação desta pesquisa.

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No terceiro capítulo – Mulher negra: identidade, memória e participação

discorro sobre a narrativa da própria experiência formadora, mergulhada nas recordações, nas vivências, nas experiências, no significado e importância para a vida. Assim, demarco cada lugar e tempo na família, na militância e na profissão, numa releitura do aprendido na singularidade dos processos que nortearam a minha formação; exponho minha trajetória porque acredito ser importante identificar de que lugar eu falo.

No quarto capítulo – Movimentos de gênero e população negra – discuto a literatura e outras fontes sobre gênero e diversidade estrutural. Através de uma revisão e discussão dessa literatura, focalizo o entendimento das relações de gênero e como este é mais uma agravante quando relacionado à população negra, em especial à mulher negra, e qual é sua leitura neste contexto. A preocupação neste capítulo é apresentar os estudos sobre gênero com a junção étnico-racial, para demonstrar a constituição de uma relação de poder.

No quinto capítulo – Mulheres negras: socialização e relação de poder trago o aporte explicativo do processo de socialização na construção da identidade para afirmação da vida social, e estabeleço uma discussão pelo viés da relação de poder a partir das discriminações que permeiam este processo de interação.

No sexto capítulo – Histórias das mulheres negras ativistas de Araraquara

procuro mostrar a trajetória das mulheres negras nas décadas de 1970 a 2010, tendo como referência seus espaços de sociabilidades e o percurso ativista através das estratégias de envolvimento, organização e o quanto este processo as identificam como lideranças. As narrativas de suas experiências extrapolam o individual/subjetivo, os cenários da memória social, contribuindo para demonstrar a identidade negra em Araraquara.

Com o sétimocapítulo – Representação da educação e da escola para as mulheres negras pesquisadas de Araraquara– discuto arepresentação da educação e da escola como um dos espaços de socialização, e principalmente como perspectiva de futuro vinculado à

ideia de “garantia de sucesso”; abordo ainda a inter-relação desta com a família enquanto mantenedora da cultura e de valores, e a utilização da formação para superação das diversas formas de discriminações.

No transcorrer dos capítulos anuncio e analiso os depoimentos das entrevistadas, e realizo uma discussão dos conceitos apresentados, aprofundando a metodologia utilizada neste estudo.

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(25)

2 O SENTIDO DE PESQUISAR

O compromisso com a população negra em especial com a mulher negra é o que me conduz a esta pesquisa.

Maria Aparecida Silva

2.1 O revelar da pesquisa

Esta tese é resultado da pesquisa sobre mulheres negras ativista da cidade de Araraquara, localizada no interior paulista, moradoras de dois bairros: o Santana e a Vila Xavier. Estes bairros são apontados como de moradia da população negra de Araraquara. Dentro dos conceitos atuais de Afrodescendência e espaço urbano, podem ser considerados de maioria afrodescendente (CUNHA JÚNIOR; RAMOS, 2007). Esta investigação teve como finalidade compreender as experiências de mulheres negras envolvidas com o movimento social negro, organizadoras de eventos para afrodescendentes, e/ou freqüentadoras de espaço de maioria afrodescendente. Para alcançar minhas pretensões estive em contato com essas mulheres negras ativistas para saber sobre as várias formas de atuação junto à população negra. Neste capítulo demarco o campo da pesquisa – mulheres negras –, trago e enfatizo a importância do referencial teórico-metodológico, e exponho o perfil das entrevistadas neste estudo.

A investigação teve como objetivo verificar e analisar a trajetória de vida e memória feminina negra de Araraquara-SP, através do diagnóstico da linha temporal, a partir da década de 1970 até 2010 – período de referência do surgimento dos movimentos sociais negros na cidade, e também início do ativismo de algumas informantes que continuam nos dias atuais desenvolvendo atividades – culturais e políticas – junto a afrodescendentes.

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como espaço e caminho a trilhar para efetivação de mudança social e, com isso, perceber se obtiveram uma formação cultural de destaque entre os afrodescendentes araraquarenses, e finalmente compreender as superações frente às discriminações, preconceitos e racismo.

A tese tem uma abordagem qualitativa. Meu interesse é com a história, a fim de compreender os fatos numa determinada periodização, relacionando-os ao ativismo de mulheres negras araraquarenses, como um arquivo da memória feminina negra, no sentido de revelar significância de suas experiências militantes, isso por considerá-las relevantes na medida em que suas narrativas contam situações adversas que irão compor o cenário de uma história que não é encontrada na história oficial sobre a população negra.

A metodologia é de base afrodescendente, isso implica dizer que traz como acréscimo o fato de o pesquisador conhecer as culturas afrodescendentes e a história dos afrodescendentes. Ou seja, que além de parte do ambiente, ele também é parte da cultura e das visões de mundo. O pesquisador não vai aprender sobre uma cultura ou modo de vida que não lhe é familiar, do qual ele não comungava anteriormente à pesquisa com problemas e valores sociais. Na Afrodescendência, os pesquisadores não trabalham com respeito à “cultura do outro”, mas trabalham dentro da sua própria cultura e com problemas que afetam sua própria

existência. Diante disso, é que tomo as mulheres negras araraquarenses como sujeito desta tese, por acompanhar parte de suas trajetórias.

Pensar sobre mulher negra no contexto proposto por esta investigação significa, apontar as superações que se apresentam diante deste sujeito que na sociedade brasileira presencia as mais variadas formas de discriminações. Elas são guerreiras que resistem e organizam-se para os enfrentamentos do cotidiano; encontram barreiras que dificultam sua inserção social, mas que não as impedem de propor mudanças diante das desigualdades sociais da população negra. A superação está no fato de criarem e participarem dos movimentos sociais negros, sendo sua atuação cada vez mais expressiva.

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[…] a identidade pode ser definida como um processo de construção de sentido, como fonte de sentido, de experiência, mas um processo com seu sentido construído a partir de um conjunto coerente de atributos considerados prioritários em relação às outras fontes. Esses atributos podem ser históricos, geográficos, biológicos, sociais, culturais, religiosos e até filosóficos. (MUNANGA, 2002, p. 15).

A história oral, com o suporte da memória das informantes, foi o recurso escolhido para mostrar esse objeto de pesquisa, pois dá voz à subjetividade (QUEIROZ, 1988), contida nas narrativas das mulheres negras como elementos de identidade negra – expressa num modo de vida próprio, específico e singular – que tecem a forma de organização familiar e a relação social. Assim, falo de narrativas contidas num ambiente de maioria afrodescendente, integradas com formas de expressões de cultura negra. Trata-se de uma vivência de negritude brasileira. Portanto, utilizar a história oral privilegiada pela entrevista foi oportuno para compreender suas experiências. Conforme Queiroz (1988) as experiências podem ser individuais ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade.

Para Delgado (2006), a importância da história oral está no fato desta ser um procedimento integrado a uma metodologia que privilegia a realização de entrevistas e depoimentos com pessoas que participaram de processos históricos ou testemunharam acontecimentos no âmbito da vida privada e coletiva. Dessa forma, inscreve-se entre os diferentes procedimentos do método qualitativo.

Ao discutir sobre história oral, Alberti (2004) afirma que se trata de um estudo de acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, conjunturas entre outros, à luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou os testemunharam.

De acordo com Pollak (1989), a história oral ressalta a importância de memórias subterrâneas. Do ponto de vista deste autor, percebemos que a memória é concebida em oposição, memória oficial versus memória subterrânea; por isso que ao visibilizar a histórias

de mulheres negras ativistas busquei me valer da “memória subterrânea” desse grupo que não é único, mas de grupos marginalizados, ou seja, a memória dos dominados que permanece guardada pelos indivíduos e famílias. A memória possibilita a narrativa de acontecimentos vivenciados pessoalmente ou oportuniza a pessoa fazer parte das lembranças pela vivencia com os verdadeiros participantes ou outros narradores.

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coletiva, uma junção de elementos considerados como uma memória emprestada, ou seja, lembranças não limitadas à nossa vivência, que viriam de outros tempos, dos livros, das histórias ouvidas dos avós. À medida que trazem as lembranças dos acontecimentos vividos, as mulheres negras abrem um leque de situações, lugares e pessoas que são referência em sua trajetória.

Quero destacar que o meu referencial teórico não se reduz a uma única abordagem, e sim a um intercruzamento de teóricos(as) no campo da educação, da sociologia e antropologia que fazem análises do contexto sócio-histórico-cultural em que racismo, exclusão e desigualdades se fazem presentes. Dessa forma, caminhei nos seguintes eixos de discussões: etnia/raça, conceitos de negritude e identidade, afrodescendência, e gênero.

Para Munanga (1996a) a identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico, sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) tem funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra os inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos. Tomar o conceito de identidade apresentado pelo autor é pertinente porque este dá condições de perceber o quanto tal conceito é defendido pelas mulheres negras pesquisadas como um fortalecimento de conscientização e valorização, isto é, o resgate da cultura e da ancestralidade – elementos compreendidos e de compreensão da população negra.

Para Hall (1987), a identidade se forma no processo de “interação” entre o eu e a

sociedade; esta comunicação é a relação que se estabelece entre o mundo pessoal e privado, quer dizer que a identidade é algo construído no social e cultural.

Para ampliar as reflexões feitas até aqui, de acordo com Taylor (2000), o reconhecimento pode ter uma relação com a identidade, na medida em que é algo a ser compreendido a partir de respostas a questões como: quem somos? Quais nossas características fundamentais como seres humanos? Mas apresenta também duas faces: uma que pode ser muitas vezes tomada com uma forma de menosprezar o indivíduo e a outra, a de uma visão distorcida deste. Partindo dessas possibilidades, as consequências do não-reconhecimento ou não-reconhecimento errôneo, podem causar danos ao ser uma forma de pressão, aprisionando alguém numa modalidade de ser falsa, distorcida e redutora.

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Afrodescendência com base na história e nos processos de formação de identidade afrodescendente, levando em consideração o espaço urbano enquanto território de maioria afrodescendentes, possuidor de uma arquitetura própria sem o planejamento de políticas públicas, uma pobreza que demarca as desigualdades sociais e se junta a esses elementos o racismo estrutural delimitador de possibilidades de vida da população negra.

É interessante observar que a autor nos apresenta um panorama do que também encontramos na formação dos bairros parte deste estudo, quando as entrevistadas colocam que um número significativo de afrodescendentes foram mudando-se para as periferias da cidade, onde construíram suas moradias.

Passando à definição da categoria de gênero, temos seguinte afirmação de Scott (1990, p. 7):

Se a categoria gênero traz à tona o que de relacional há entre o masculino e o feminino, se a mulher deixa de ser observada isoladamente e passa a ser compreendida como participante de um tecido social em que interage com o homem, se gênero é um elemento constituído de relações fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, ele é também, o primeiro modo de dar significado as relações de poder.

Em relação à mulher negra, a relação de poder se coloca nas representações que esta tem no imaginário coletivo que de certa forma é inibidor de oportunidades sociais, econômicas e culturais. Neste estudo apresentamos os estereótipos a ela atribuídos como parte do processo de restrições sociais vivenciadas pelas mulheres negras participantes desta pesquisa.

De acordo com Carneiro (2003b, p. 4):

A consciência de que a identidade de gênero não se desloca naturalmente em solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no interior do próprio movimento feminista, as contradições e as desigualdades que o racismo e a discriminação racial produzem entre as mulheres, particularmente entre as negras e brancas no Brasil. O mesmo se pode dizer em relação à solidariedade de gênero intragrupo racial que conduziu as mulheres negras a exigirem que a dimensão de gênero se instituísse como elemento estruturante das desigualdades raciais na agenda dos movimentos negros.

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Nas entrevistas realizadas em sua maioria nas casas das pesquisadas, solicitei às mulheres negras que pontuassem acontecimentos relacionados à juventude, à inserção no movimento social negro, os caminhos de sua formação, à sua perspectiva social e à representação do bairro. Foram descritos os modos de vida e as histórias de mulheres negras com as interferências e problemas causados pelo racismo, além das estratégias desenvolvidas por elas como produção de uma vida melhor que inclui a eliminação das discriminações, sobretudo o encaminhamento à superação.

Nesta tese, as questões que apresento a seguir foram pontos de partida para o problema em investigação. Sendo assim, parto de alguns pressupostos que se impõem à discussão e aprofundamento: existem demarcadores de modos de vida nas diferentes décadas propostas; a perspectiva de mudança social colocam essas mulheres enquanto agentes de histórias particulares e coletivas inseridas nas histórias da população negra e dos movimentos negros. É a partir desses pressupostos que inicio esta pesquisa para tentar compreender a pluralidade do ativismo dessas mulheres negras em Araraquara.

Para poder visibilizar o envolvimento destas mulheres negras, apresento a cidade de Araraquara na sua constituição, demarcando principalmente a formação populacional em termos da sua distribuição racial, e como a população negra está inserida no contexto social, político e econômico da cidade.

2.2 Panorama da cidade de Araraquara-SP

Como lócus da pesquisa escolhi o município de Araraquara9, cidade do interior paulista, conhecida como a Morada do Sol, localizada a 237 km da capital, na região central do Estado de São Paulo, fundada no final do século XVIII, em 1790, por Pedro José Neto. No início de sua formação era um povoado isolado de difícil acesso, mas local de circulação de viajantes para comercialização, e contava com uma produção de subsistência e a utilização do trabalho escravo. Sua população era formada basicamente por fazendeiros e negros e negras escravizados em quantidade reduzida, isso devido a uma economia de subsistência. Ao tornar-se vila, passou a ter autonomia para iniciar uma vida política na região.

9 Araraquara foi antiga Freguesia de São Bento de Araraquara, antes de se tornar vila ou cidade. Para

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As atividades econômicas e comerciais de Araraquara foram formadas, primeiramente, com o cultivo da cana-de-açúcar e, posteriormente, com a cultura do café que se expandia pelo oeste paulista, em substituição à economia de subsistência, o que aumentou o número de escravos, sendo alguns deles oriundos das regiões das minas e do Nordeste. A cafeicultura dominou todo o município timidamente até o início do século XIX, período demarcado pela mão de obra escrava, que naquele momento era significativa.

O café exerceu maior expansão e elevação de produção com a construção da Estrada de Ferro, elevando a cidade a uma posição de destaque no Estado. É uma conjuntura de pleno processo de desenvolvimento durante mais de um século. No mesmo período houve mudanças profundas em suas características socioeconômicas, principalmente no que diz respeito ao perfil da mão de obra empregada na grande plantação. O que houve foi a chegada do imigrante, especificamente do italiano. Tratava-se, de fato, da substituição da mão de obra escrava para o trabalho livre.

O coronelismo esteve fortemente presente em Araraquara. Era uma forma de mandonismo que tirava sua força e reforçava seu poder de uma base econômica proveniente das relações de poder que exerciam influência nessa região. O coronelismo possibilitou a manutenção de uma estrutura econômica, social e política profundamente hierarquizada por muitos anos.

A produção cafeeira em Araraquara possibilitou, portanto, a representação, a formação e ascensão de uma elite de coronéis. A partir da ascensão do café e a expansão da estrada de ferro, Araraquara iniciou um crescimento populacional considerável no período de 1885 a 1897, com a chegada do imigrante europeu, mudando seu perfil “racial”. De acordo

com Silva (2003, p. 90):

A Estrada de Ferro permitiu, portanto, que uma grande quantidade de imigrantes se instalasse nas cidades ao longo de seu percurso. Os imigrantes absorveram, então, as melhores oportunidades de trabalho, tanto nas fazendas de café quanto em outras atividades. Com isso, aos pretos e aos pardos recém-libertos e pobres restaram apenas as posições marginais da economia, que floresciam nos pólos urbanos, ao longo da Estrada.

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A produção do café e o povoamento através da imigração, associados à abolição da escravatura, são fatores de conflitos, na medida em que tornou presente um elevado grau de desigualdades nas relações sociais e nas relações do trabalho. Ainda conforme Silva (2003, p. 92-93):

Se por um lado os imigrantes e demais brancos ascendiam social e economicamente, por outro os pretos e pardos, foram entregues à própria sorte, no período pós-Abolição, ocupando as atividades residuais da economia araraquarense, e sujeitos às mais variadas formas de violência. O controle exercido sobre suas condutas tornou-se rigoroso e exigia a submissão à ordem estabelecida pela oligarquia cafeeira dominante.

Cabe ressaltar que a frase utilizada para expressar a situação da população negra de

“entregue à própria sorte” não espelha o período pós-abolição. A população negra, não foi

“entregue à própria sorte”, mais que isto aconteceu: existiram políticas públicas de

desqualificação social. A população negra, foi vitimada por vários tipos de violência social, como a perseguição dos lócus de concentração de população negra, as estreitas vigilâncias

policiais e os processos de desmoralização pública. “Abandonados à própria sorte” não

caracteriza a violência do racismo antinegro e nem o baixo desempenho social e econômico presente nesta população porque trata-se de um fato estrutural da sociedade brasileira.

Essa situação de desigualdades presenciada em Araraquara criou espaços de convívios para brancos e para negros como forma de segregação e violência e uma imagem negativa de Araraquara perante o Estado. Como forma de minimizar as situações de violências daí decorrentes, procurou-se através de investimentos na área urbana, educacional e cultural, voltar as atenções para o desenvolvimento da cidade. Nesse momento de transformação é que a instrução escolar assumiu uma dimensão significativa. Como explica Souza (2003, p. 53):

Construíram o Ginásio Municipal, a Escola de Agrimensura, Escola de Artes e Ofícios, Escola Profissional Feminina, Escola técnica de Comércio, Colégio Progresso. E mais: Escola de Belas Artes, Conservatório Musical, Escola de Farmácia e Odontologia, Clube Araraquarense, Asilo, União Operária e a Fábrica de Laticínios.

Houve certa melhoria nas condições de vida da população negra percebida a partir da segunda metade do século XX, as separações sociais e culturais existiram fortemente, o

footing10identificado na cidade é o demarcador destas situações, o que proporcionou a criação

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de espaços de sociabilidade próprios (TENÓRIO, 2004).

O município tem hoje 189.637 habitantes, sendo que 173.569 dessa população está concentrada na zona urbana, e 8.902 na zona rural. Quanto a sua distribuição por sexo, tem-se: 88.742 homens residentes, e 93.729 mulheres residentes, de acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2000 (PNUD/IPEA/UNESP/FCLAr).

Araraquara é hoje considerada uma cidade moderna – modernidade que se construiu ao longo dos anos. Sua economia esteve baseada primeiramente na cana-de-açúcar, e depois no cultivo da laranja, que conta também com uma grande produtividade, o suficiente para abastecer a região, o país e atender o comércio exterior.

Em Araraquara a população negra é percebida enquanto escravizada, trabalhador doméstico e, posteriormente, como trabalhador assalariado com remuneração precária. Esta é a cidade onde gerações passadas de negras e negros sofreram vários tipos de discriminações e dificuldades sociais, que foram minimizadas através de um coletivo, na construção de seus próprios espaços de resistências. Hoje é palco de atuação destas mulheres negras, que confirmam também formas de resistências que, juntamente com os seus, ao longo de suas trajetórias, se empenharam na construção de movimentos negros, ações, interferências e políticas. São mulheres negras moradoras de dois bairros da cidade: o Santana e a Vila Xavier.

O bairro do Santana, do surgimento ao que é hoje pode ser apresentado a partir de uma antiga moradora, uma das entrevistadas para a pesquisa:

O Santana só tinha mato e tinha, eu acho, três casas, uma era dos crentes. Em cima faziam o culto e embaixo só rolava o samba. Poucos moradores. A luz era muito fraquinha. Aí passou o asfalto, depois foi passando o ônibus e o bairro foi crescendo. Então, foi isso. Santana começou da igreja pra cá. A igreja foi construída no terreno doado pela esposa do Chico Ferreira, ela se chamava Ana. Ela doou o terreno para a construção da Igreja de Santana e eu ajudei muito na construção dessa igreja. Ali se ergueu um barraco, um barracão, que era o início da igreja de Santana e depois veio o lançamento da pedra. Falavam que era um bairro muito perigoso e que aqui não se morava, se escondia. E ele ficou um bairro muito bom, e até que ele não é muito longe do centro. Hoje o Santana cresceu muito, é bom, sossegado. Tinha um pastor, pastor Euzébio, um negro que se destacou muito. Ele era daqui de Santana. Aqui o espaço da comunidade negra se estendeu. Aqui no Santana eu moro pra cima do 16, bem para cima, e do 16 para lá mora muito negro. (Cléia).

O bairro do Santana já foi composto por uma maioria significativa de

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afrodescendentes, e à medida que o progresso chegou juntamente com a urbanização, boa parte do bairro tornou-se central, ou seja, passou a fazer parte da área considerada o centro da cidade, elevando o custo de vida e assim parte de seus moradores foram residir na periferia. De acordo com Cunha Júnior (2007), a modernização vem acompanhada da expulsão dos negros e pobres dos centros das cidades e as políticas urbanas como forma da produção da desigualdade contra os afrodescendentes é um agravante. Esta situação fica explícita no depoimento da entrevistada:

Bom, meu bairro, no passado, o Santana, era um bairro assim que tinha muitos negros, um número significativo de negros, e era considerado um bairro periferia da cidade. Hoje esses negros foram empurrados mais pra periferia. Então são poucos que conseguiram resistir, por conta da – vamos dizer – da urbanização. Então, os negros hoje estão mais ainda na periferia. É um pouco contraditório, porque ao mesmo tempo que você fala em avanço, ainda o negro está. Uma parcela significativa está na periferia da cidade. Hoje, no bairro, especificamente nesse local, negros assim, têm muito pouco. Afastando um pouquinho mais do local em que eu moro, que é o centro, vamos dizer do Santana, há poucos negros que moram mais na periferia, mas que estão lutando, estão estudando, estão tentando fazer uma faculdade. E vejo que não estão naquela condição em que os pais estavam, que eram ou apanhadores de laranjas ou empregadas domésticas. Estão numa outra condição. Não digo patamar elevado, mas saíram daquela condição. (Nazaré).

Em termos culturais, a população negra do bairro do Santana sempre manteve a escola de samba Estrela do Santana, as festas familiares e alguns terreiros de Umbanda como espaços importantes de encontros afrodescendentes. O outro bairro que traz lembranças de transformação é a Vila Xavier:

Era um lugarejo bom, sabe? Era calmo, a gente vivia tranqüilamente. Quem morava mesmo eram os ferroviários, na esquina da Rui Barbosa, lá que morava essa família de pretos. O nome dele, acho que era Benedito; o meu irmão era muito amigo dele. Eles eram maquinistas. Aqui não tinha nada não, era muito pacato, era rodeado de mato. Depois que veio outras fábricas. Veio a Nestlé, a Jander Lopes, e, aí sim, nossa vida foi melhorando. E, aí sim, veio a igreja, a de Santo Antônio, e aí foi ficando mais bonita e virou uma matriz. E quando o ônibus começou a entrar na Vila, ele nem ia muito longe, ele ia até o São Benedito. (Nair).

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baile; Escola de Dança do Santo Antônio (em sua própria casa), tinha a escola de samba Anjos da Vila, e hoje tem um bloco carnavalesco Delicadas da Vila.

No carnaval, meu irmão, mais dois amigos – inclusive Paulinho, que é irmão de Maria –, eles criaram a Delicada da Vila, que até hoje é um marco aqui em Araraquara no carnaval. Todo mundo fica esperando as Delicadas. (Ângela).

Em sua tese, Lopes (2002) reconstrói a história do bairro Vila Xavier com uma multiplicidade de elementos identitários contidos em seus espaços de sociabilidade:

Na “Vila”, mora o contraditório, o variado, a mistura, a ambiguidade, a duplicidade. Uma enxurrada de deuses e demônios, um panteão de entidades ocupam as ruas, casas, bares, e outros templos. Bairro do feitiço, assim paramentado, encanta e aguça o mistério, exita a curiosidade, apavora e ao mesmo tempo atrai. Sob o reino do imaginário, sob o império das sombras que gestam a vivência, o receio transparece nas expressões faciais do rosto. O espanto sacode e transpira, o diferente parece à espreita. O não codificado, o indeterminado, o muito determinado, moram na “Vila”, o ebó – elemento simbólico – está presente em cada esquina. (LOPES, 2002, p. 78).

A escolha dos bairros Santana e Vila Xavier, justifica-se por serem uns dos primeiros bairros da cidade constituídos de uma população significativa de afrodescendentes, trabalhadores da antiga ferrovia, da construção civil, da área rural, e trabalhadores autônomos;

além do conhecimento da existência de uma “rivalidade” entre os dois bairros, desencadeada

pela questão de posição social e modo de vida. A partir dos depoimentos suas histórias e características se desenrolam confirmando minha justificativa:

(36)

cresceu muito devido ao nome, devido ao passado. O pessoal fala assim: “O errado morre, mas o erro permanece.” Então, o Santana foi um bairro muito visado por tudo de ruim, não desenvolveu muito, não cresceu, não ampliou, não abriu novos caminhos. A Vila não... Ela cresceu, ela se expandiu. O pessoal... Ela mudou. Então, a Vila Xavier já não tem essa fama. O pessoal da Vila já é diferente, não é discriminado. Mas o bairro do Santana, ele sofre discriminação. É assim na página policial. Assim ele já não tem nem comparação com a Vila, um bairro marcado no sentido bom. No pedaço que eu moro, entre Santana e o Laranjal, ele é muito visado, é assim... Olha, a gente faz uma festa e falam assim – faz no Santana –, o pessoal: “Ah, mas o Santana é longe.” Se você fala que é da 16 pra baixo, a pessoa já não vai porque tem medo. E hoje o Santana mudou muito, muito do que era há 10 anos atrás. Então, hoje, a pessoa que está lá no dia a dia percebe que teve essa mudança, mas quem está de fora continua olhando o Santana como há 20 anos atrás. Então, fica difícil você provar que o Santana mudou. E na Vila você não tem essa dificuldade de estar provando. Se você quer fazer uma coisa na Vila é diferente. Eu vejo essa diferença. (Valéria Fabiano).

Sim, existia uma certa rivalidade entre a Vila e o Santana, mesmo porque a Vila foi praticamente formada por funcionários da FEPASA, funcionários ferroviários, e o Santana tinha menos condições financeiras que a Vila. Se entre nós tivesse alguma menina meio escandalosa, então a gente falava: “Está parecendo as meninas do Santana”. Elas eram muito briguentas. Atualmente não. Depois de tudo que aprendemos nesse movimento, formação, tudo, existem pessoas mais instruídas, mais estudadas, e que têm essa perspectiva de uma vida melhor. Então agora já não tem mais esse tipo de diferença. (Ângela).

Ao falarem sobre aos bairros, as interlocutoras trazem um panorama que permite visibilizar as várias mudanças ocorridas no bairro. O bairro Santana teve uma mudança significativa no que se refere aos aspectos sociais e de urbanização, percebidas como sinal de desenvolvimento tanto em nível do aumento de moradias, como no que se refere à escolarização atual desta população negra. Por um lado o bairro adquiriu uma infra-estrutura significativa, por outro, não deixou de existir a periferia com as suas necessidades básicas de moradia digna. Nota-se que estas mudanças não foram suficiente para retirar a imagem de marginalidade do bairro. Esta situação deixa claro o quanto a população negra é atingida com a presença do racismo estrutural através das desigualdades sociais e que contribui para a rivalidade entre estes dois bairros. Já o bairro Vila Xavier é visto como modelo de expansão,

ascensão profissional, de um lugar “modelo”, “ideal” para morar. Os relatos sobre os bairros

reforçam um sistema desigual que reflete nas condições de vida social e econômica de uma parcela significativa da população negra.

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2.3 Desdobramento teórico-metodológico

A metodologia adotada privilegiou as falas das mulheres negras pesquisadas através das entrevistas por oferecer maior possibilidade de compreender as diversas experiências e situações que aparecem no decorrer dos depoimentos. O critério utilizado para a escolha dos sujeitos a serem entrevistados foi ser referência de atuação no contexto de organização social e política da população negra araraquarense. Desta forma, expuseram seus sentimentos, seus envolvimentos sociais e culturais, suas experiências com discriminações, preconceitos e racismo. O base que orientou a dinâmica dos depoimentos das mulheres negras foi a indagação sobre sua juventude, o movimento social negro, os fatos e lugares marcantes, a escola, a educação, a formação, as dificuldades e perspectivas. No momento dos depoimentos as lembranças afloram e muitas delas foram comuns às entrevistadas, mas cada uma com a sua particularidade de ter vivido. Para Bosi (1994, p. 55):

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.

Entre as falas e o ouvir dos relatos despontam várias categorias. Na interpretação dos dados colhidos considerei pertinente o diálogo com os conceitos de experiência, que surgem espontaneamente no ser social e refletem a sua relação com o mundo (TOMPSON, 1981), compreendido como condição a identidade étnico-racial individual e coletiva. Na análise dos dados adquiridos, a concepção Afrodescendência (CUNHA JÚNIOR, 2007) buscou evidenciar o significado das práticas identitárias na elaboração de estratégias sociais e modo de vida. Nesse caminho a identidade é ressaltada não como algo dado, mas construído por determinadas condições e elementos históricos e culturais, sua eficácia é tanto maior quanto mais estiver associada a uma dimensão emocional da vida social (ALBANO, 1999).

Imagem

Figura 1 –  Recordação escolar   Fonte: Arquivo pessoal.
Figura 3  – Ensaio da peça “Negros que Riem” do grupo GANA
Figura 4  – Ensaio da peça “Negros que Riem” do grupo GANA Fonte: Arquivo de Neuza Maria Luiz
Figura 5  –  Encontro de Mulheres Negras
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