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O conceito de gênero surgiu no contexto anglo-saxão, passando a ser utilizado no sentido de caracterizar uma relação. Foram as feministas de diferentes tendências políticas nas suas diversas formas de manifestações para assegurar direitos a mulheres, que deram visibilidade a essa discussão em termos epistemológico e teórico. O recorte analítico ganhou espaço gradativamente, e as feministas realizaram análises consistentes nos campos da sociologia, da história, da literatura e da educação.

Os estudos de gênero estão ligados à história do movimento feminista contemporâneo, que além da denúncia da opressão, das preocupações sociais e políticas, colocam em pauta a discussão das problemáticas que envolvem o gênero. Por isso, a busca pela igualdade de gênero que se faz através do reconhecimento das disparidades que afetam as

mulheres em relação aos homens, sentidas no âmbito familiar, social, econômico, político e cultural, tem sido a caminhada das mulheres para sua eliminação. É necessário falar em igualdade para ampliar as discussões que envolvem direitos, a compreensão conceitual do gênero e contextualizar as mudanças e práticas do movimento de mulheres na contemporaneidade. Isso significa ampliar para conseguir visibilidade.

A invisibilidade e a marginalidade a que estava submetida a figura da mulher ao longo da história foi o que impulsionou o movimento feminista, dando-lhe fôlego para re- significar essas concepções e reivindicar mudanças mais efetivas para as mulheres. É preciso notar que essa invisibilidade – produzida a partir de múltiplos discursos que caracterizam a esfera do privado, o mundo doméstico, como o “verdadeiro” universo da mulher – já vinha sendo gradativamente rompida por algumas mulheres. Sem dúvida, desde muito tempo, as mulheres das classes trabalhadoras e camponesas exerciam atividades fora do lar, nas fábricas, nas oficinas e nas lavouras (LOURO, 2007).

Embora a literatura de gênero aborde as mulheres em geral e as mudanças ocorridas quando estas começaram a sair do espaço privado para público, cabe ressaltar que esta não é a experiência de parte das mulheres negras brasileiras que também já estavam no espaço público como domésticas, vendedoras ambulantes, quituteiras e cozinheiras. Nos estudos sobre gênero, uma das tendências mais promissoras indica que devemos pensar o feminino não como uma essência natural, mas como sendo constituído em consonância com uma estrutura que só pode ser compreendida se for contextualizada e se forem consideradas outras categorias classificatórias como classe, raça e etnia (PRAXEDES, 2003).

As mudanças em nível sociais e políticos decorrentes do processo de democratização no país, desencadeadas na década de 1970, possibilitaram que mulheres começassem a ocupar o espaço público e a construir uma identidade de movimento político, estruturando cada vez mais o movimento feminista e suas repercussões defendidas em prol das mulheres em diferentes culturas e sociedades do mundo.

Carneiro (2003a) apresenta um panorama do movimento de mulheres no Brasil, que é respeitado e referência internacional. Tem um peso enquanto movimento social e significativa representação nos órgãos de decisão, um ganho que viabilizam propostas específicas às mulheres. Em sua trajetória o movimento de mulheres destaca-se pelas decisivas contribuições no processo de democratização do Estado com importantes inovações no campo das políticas públicas. Exemplo considerável é a criação dos Conselhos da

Condição Feminina, preocupação com as políticas públicas de promoção da igualdade de gênero e combate a discriminação contra as mulheres.

Outras lutas também ganharam visibilidade, como contra a violência doméstica e sexual – que passou a ser uma discussão do espaço público –, e a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos.

O movimento feminista criticou as desigualdades no mercado de trabalho, e cabe salientar que teve uma identificação com as lutas vinculadas aos direitos humanos, uma necessidade de formação de novos atores políticos que busquem por novos direitos, novos espaços para reivindicações e que obtenham o reconhecimento legal da sociedade; além das lutas pela anistia, por creche, legalização do aborto e tantas outras.

No entanto, o movimento feminista em sua trajetória não conseguiu perceber as diferenças e desigualdades no seu universo, pois outras violências que perpassam a vida de mulheres, em especial de mulheres negras, não ecoaram, mas foram ressaltadas veementemente a ponto de exigir um novo posicionamento das feministas, que pouco refletiu sobre a situação da mulher negra. Depois de duro embate é que repercutiram propostas dos interesses de mulheres negras.

Conforme a abordagem de Carneiro (2003b) quem aponta a necessidade de outro olhar para outras opressões com alteração de perspectiva é o movimento de mulheres negras sobre o ideário e práticas feminista no Brasil que não eram contempladas no movimento negro e nem no movimento feminista.

No Brasil, como em outros países, a discussão de gênero está associada ao movimento feminista e ao surgimento dos estudos sobre gênero. O termo “gênero” começou a ser utilizado no Brasil no final dos anos 1980, com o objetivo de compreender o gênero como constituinte da identidade do indivíduo e mais, não tomar o termo gênero, significando sexualidade.

O feminismo desenvolveu-se com força e organização que pareciam lhe garantir continuidade. Esse movimento, a partir de 1980, toma novo direcionamento, enveredando para a formação de um novo conceito, o de gênero. Ao voltar-se para si próprio, as estudiosas do feminismo de modo geral – Carneiro (2003), Hooks (1995), Bento (2005), Saffioti (1995), Scott (1990), Butler (2003), entre outras – tentaram construir um conceito de gênero desvinculado do sexo, que se referia à identidade biológica de uma pessoa. Gênero é construção social do sujeito masculino ou feminino.

As relações de gênero, como relações de poder, buscam se afirmar na dominação do homem sobre a mulher e sua superioridade em relação a ela. E que explica as diferenças sociais internas às classes. Senão, como explicar as diferenças nos indicadores de empregabilidade e o grau de instrução baixo que são oferecidos às mulheres, em comparação aos homens.

O desafio de romper o esquema binário, em que o masculino e o feminino se constroem na oposição um ao outro, tem sido desafiante para o movimento feminista, que se propõe a desmontar um esquema construído numa lógica patriarcal que dificulta a percepção e construção de mundo de outras formas. Algumas das estudiosas do feminismo, a exemplo de Scott (1990), se apropriam de teorizações pós-estruturalistas da desconstrução, para pensar as relações de gênero.

Se a categoria gênero traz à tona o que de relacional há entre o masculino e o feminino; se a mulher deixa de ser observada isoladamente e passa a ser compreendida como participante de um tecido social em que interage com o homem; se o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, ele é também “[...] o primeiro modo de dar significado às relações de poder.” (SCOTT, 1990, p. 7). Na verdade, em se tratando de mulheres negras, talvez fosse mais indicado dizer ser o gênero um primeiro modo, já que dificilmente a cor da pele poderá ser abstraída.

Atribui-se às relações de gênero um caráter sociocultural, pois legitimam e edificam as relações sociais, articuladas pelo poder através de símbolos, metáforas que formulam subjetivamente o ser masculino e o ser feminino. Nessa construção subjetiva, o indivíduo estabelece representações acerca dos papéis do homem e da mulher, inicialmente na família, mas, também, na escola e, ao entrar em contato com o sistema simbólico, o incorpora, contribuindo para a sua disseminação entre os demais indivíduos e instituições sociais.

Nas sociedades ocidentais, a produção social e reprodução da existência implicam na representação dos gêneros, masculino e feminino, que se constrói socialmente com base na diferença sexual. Esta construção social funciona como um dispositivo que é utilizado para coagir tanto mulher como homem no que tange às oportunidades.

Essas sociedades criam modo de ser homem e de ser mulher e essas ideias culturais se colocam como empenho de cada sexo, revestido de proibições simbólicas que regulamentam a existência humana, interferindo nas atividades e na conduta que não se restringe somente ao individual, mas também na organização da vida social.

Para Bourdieu (1999), a divisão do mundo baseada nas diferenças biológicas atua na organização social tanto no que se refere ao espaço, tempo e divisão social do trabalho, como também nas estruturas cognitivas inscritas nos corpos e nas mentes como o habitus. Para este autor, o habitus é um conjunto de relações históricas “depositadas” nos corpos individuais sobre a forma de esquemas mentais e corporais de percepção, apreciação e ação. Esses esquemas são de gênero, e por sua vez, engendram gênero.

As relações sociais são permeadas pela dinâmica da construção dos gêneros que marca o social, o político, o religioso e o cotidiano na desigual distribuição de responsabilidade nas sociedades. A desigualdade está pautada no estabelecimento de atribuições sociais aos gêneros.

Para Izquierdo (1994), o espaço social do gênero é diferente no que tange à produção da existência e se coloca em duas esferas: a esfera da sobrevivência (doméstica) e a esfera da transcendência (público). Cada uma destas esferas constitui o espaço social de um dos gêneros, a esfera doméstica própria do gênero feminino, e a esfera pública, do masculino. Cabe ressaltar que esta lógica não se aplica, por exemplo, à sociedade brasileira antes da abolição, porque o espaço público dos mercados eram dominados pelas mulheres, e no continente africano ainda o é. Isso vem reforçar que a concepção de gênero se faz presente nas sociedades, mas cada uma com suas particularidades e especificidades.

As relações de gênero se situam num sistema de hierarquia que produz relação de poder marcada por obediências e desigualdades em que estão presentes conflitos, tensões, negociações, alianças, seja na manutenção dos poderes masculinos, seja na luta das mulheres pela ampliação e busca de poder.

Nesse contexto, Scott (1990) integra gênero ao patriarcado, ao machismo, e à psicanálise para explicar a subordinação da mulher e a dominação dos homens. A autora analisa o gênero como elemento das relações sociais, e como o primeiro modo de demonstrar poder a partir de quatro dimensões inter-relacionadas: simbólica, organizacional, normativa e subjetiva, fundamentando suas abordagens nos seguintes eixos teóricos:

As relações de gênero possuem uma dinâmica própria, mas também se articulam com outras formas de dominação e desigualdades sociais (raça, etnia e classe); a perspectiva de gênero permite entender as relações sociais entre homens e mulheres, o que pressupõe mudanças e permanências, desconstruções, reconstruções de elementos simbólicos, imagens, prática, comportamentos, normas, valores e representações; a categoria de gênero reforça o estudo da história social, ao mostrar que as relações sociais referências de que as pessoas dispõem, de maneira particular, em suas

relações concretas com o mundo. Homens e mulheres elaboram combinações e arranjos de acordo com as necessidades concretas de suas vidas. (SCOTT, 1990, p. 10).

A relação de gênero serve para refletir as relações sociais, enquanto relações reguladoras, e reforça as desigualdades entre homens e mulheres, perpassando a sexualidade feminina centrada na reprodução vista como responsabilidade atribuída à mulher – divisão sexual do trabalho que as coloca em inferioridade ao trabalho masculino –; o espaço público acaba por ser liderado por homens e a elas o espaço doméstico, sem contar as dificuldades para se fazer valer o direito à cidadania. De acordo com Prá (2004, p. 47):

[...] o termo divisão sexual do trabalho é acionado pelo feminismo para examinar a construção sociocultural que sustenta a dicotomia entre o público e privado. Essa divisão, fruto de processo histórico sedimentado com o passar dos séculos, delega esferas distintas de competência para os dois sexos e restringe, radicalmente, o âmbito de influência das mulheres à família, ao lar, ao doméstico. A esfera pública, considerada da razão, portanto competência masculina e a esfera privada, dita da natureza, identificada como feminina.

Às mulheres, portanto, se atribui o espaço doméstico que não é valorizado na sociedade, deixando-as com menos acesso à educação, à informação, à formação profissional, ao espaço público e ao não reconhecimento de sua cidadania. As mulheres se veem prejudicadas, mesmo sendo elas trabalhadoras e, na sua maioria, chefes de família.

Diante desta situação existe uma reação organizada e política do grupo social de mulheres que investe em mudanças na estrutura da sociedade brasileira, e há um número significativo de mulheres ingressando no mercado de trabalho, porém, as desigualdades ainda permanecem. Em geral, as mulheres ganham menos que os homens em todos os campos, e têm menos acesso a cargos diretivos, principalmente a mulher negra (CARNEIRO, 2003a; SILVA, 2003; PRAXEDES, 2003; ).

A desigualdade de gênero é estrutural e se estabelece nos âmbitos social e cultural, estando presente no cotidiano, e sendo reproduzida por instituições sociais como escola, família, igreja, entre outros, além de perpassar a classe social, etnia-raça, geração, com a finalidade de manutenção do poder. O que ocorre com a mulheres negras pesquisadas é que elas procuram romper esta lógica ao realizarem as mais diversificadas atividades junto aos afrodescendentes.

considerados nesta tese como estratégias sociais que sinalizam suas trajetórias de organização e liderança.