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TERRITÓRIO DESCONTÍNUO PARADOXAL E PROSTITUIÇÃO NA VIVÊNCIA TRAVESTI DO SUL DO BRASIL

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TERRITÓRIO DESCONTÍNUO PARADOXAL E PROSTITUIÇÃO NA

VIVÊNCIA TRAVESTI DO SUL DO BRASIL

Marcio Jose Ornat1 Joseli Maria Silva2

Resumo: A presente discussão tem por objetivo compreender a relação entre a vivência travesti e a

instituição do território descontínuo paradoxal. Tal proposição foi construída a partir da análise de conteúdo de 22 entrevistas realizadas com travestis que atuam na atividade sexual, mais 7 entrevistas com pessoas atuantes em Ongs que contemplam o grupo de travestis. O universo total das falas foi sistematizado segundo 4 espacialidades discursivas que obtiveram diferentes intensidades de evocação: a casa (12% das evocações), cidade (5%), território intraurbano (22%) e território descontínuo (38%). Devido ao escopo da presente discussão, tratamos especificamente sobre o denominado 'território descontínuo da atividade de prostituição travesti'. As falas das travestis evidenciam que o território não é pré-existente, mas se faz na ação dos sujeitos que o vivenciam. Também, o poder que é componente fundamental na apropriação espacial é um feixe de tensionamento entre sujeitos que pode produzir diferentes posições móveis entre centro e margem das relações de poder. A multiescalaridade do fenômeno evidencia a posição móvel e indeterminada das relações, superando a noção de fixidez entre categorias, complexificando as relações entre os sujeitos e espaços.

Palavras-chave: Território descontínuo paradoxal. Vivência travesti. Prostituição.

Considerações iniciais

O presente texto tem por objetivo compreender a relação entre a vivência travesti3 e a instituição do território descontínuo paradoxal. Tal proposição foi construída no âmbito do Grupo de Estudos Territoriais, a partir da análise de conteúdo de um conjunto de vinte e duas entrevistas realizadas com travestis que atuam na atividade sexual, sendo que três delas foram realizadas na Espanha. Além destas, foram realizadas também sete entrevistas com pessoas atuantes em Organizações Não-governamentais (ONG) que contemplam o grupo de travestis. O universo total das falas4-5 foi sistematizado a partir quatro espacialidades discursivas que obtiveram diferentes intensidades de evocação no discurso do grupo. A 'casa', com 12% das evocações, 'cidade' com 5%,

1Universidade Estadual de Ponta Grossa / Grupo de Estudos Territoriais, Ponta Grossa, Brasil. geogenero@gmail.com 2Universidade Estadual de Ponta Grossa / Grupo de Estudos Territoriais, Ponta Grossa, Brasil.

joseli.genero@gmail.com

3 Com o objetivo de proteger a identidade das fontes, decidimos utilizar nomes de figuras femininas da mitologia grega

e romana. Além disso, é fundamental destacar que o termo será empregado no feminino para respeitar a identificação de gênero feminino que estas pessoas expressam, mesmo que seus corpos possuam genitália masculina.

423% das evocações discursivas deste universo foi desconsiderado por não constituir um eixo semântico.

5Todo o universo de entrevistas foi analisado segundo a proposta de Bardin (1977), cujo resultado produziu eixos

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'território intraurbano' com 22% e 'território descontínuo' com 38%. Este último percentual é o foco da presente discussão.

Para tanto, o presente texto está organizado em duas partes. Na primeira parte é realizada uma discussão sobre o uso do território descontínuo paradoxal como ferramenta compreensiva do fenômeno da prostituição travesti, a fim de encontrar suporte teórico-conceitual capaz de construir a inteligibilidade do fenômeno abordado. Na segunda parte são exploradas as conexões pessoais e territoriais que dão sentido à realidade vivenciada pelo grupo de travestis investigadas.

O território descontínuo paradoxal na experiência travesti

O território6 é um importante foco de interesse da Geografia, notadamente na área política, vinculado à noção de fronteiras do Estado-nação, conforme afirmam Wastl-Walter e Staeheli (2004). Nagar (2004) e Martin (2004) trazem para o debate científico a relação entre territórios e sua conexão com as práticas sociais em que ocorre a imposição de ideias de um indivíduo ou grupo sobre outros, tendo como base o estabelecimento de diferenças entre as pessoas. Souza (1995), por sua vez, constrói seu fundamento sobre as relações de poder na constituição do território a partir de 'quem' manda e influencia e 'como' manda e influencia o espaço. Contudo, a sexualidade não foi ainda suficientemente explorada em sua relação com o espaço e tampouco com o território.

Nesse sentido, a atividade de prostituição travesti é um fenômeno que pode ser compreendido por meio do território, na medida em que ela é extremamente hierarquizada e que se produz em tensionamentos constantes entre os sujeitos que fazem parte do desenvolvimento desse exercício.

Os espaços intraurbanos apropriados por travestis não se esgotam em si mesmos. Eles dependem da mobilidade que as travestis realizam entre diferentes municípios para oferecer aos clientes 'novidades', o que gera curiosidade e desejo. A rentabilidade da atividade da prostituição na atualidade se faz pela alta rotatividade das prostitutas que ao chegar em um local, conseguem atrair maior quantidade de clientes, cuja fantasia é vivenciar novas experiências sexuais. Os fluxos da mobilidade travesti entre os vários territórios de prostituição conformam uma configuração que Souza (1995) chama de território descontínuo.

Os elementos fronteira, os excluídos (outsiders) e incluídos (insiders), como visto em Souza (1995) e Wastl-Walter e Staeheli (2004), não podem ser susceptíveis de apenas uma interpretação. Toda configuração depende de 'qual é o ponto de partida' ou da mirada com que se constrói a

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inteligibilidade do fenômeno. Assim, uma mesma realidade, dependendo da posição de quem observa, pode compor diferentes configurações entre fronteira, insider e outsider ou seja, variados territórios.

O exercício do poder nesta lógica relacional se dá no controle dos elementos que constituem as redes de pessoalidade e os códigos morais da atividade de prostituição travesti. Entretanto, o poder aqui considerado não está organizado em uma oposição entre dominados e dominadores. O poder considerado nesta discussão baseia-se em Foucault (1988) quem considera que o poder é uma correlação múltipla de forças que nunca se esgotam e são inseparáveis do domínio onde elas são exercidas.

Assim, o poder exercido não concebe a oposição insider/outsider em um território, isso porque eles são interdependentes, só existem, um em relação ao outro. As noções de poder de Michel Foucault foram fundantes da proposta de Rose (1993). Esta geógrafa desafia a ideia dual e oposicional de constituição de territórios. Ela cria o conceito de 'espaço paradoxal' para evidenciar a multiplicidade e a plurilocalidade dos sujeitos permanentemente tensionados em relações de poder que podem estar na situação de centro e/ou margem da configuração territorial, dependendo do perfil de relação que se estabeleça. Para Rose (1993) as pessoas ocupam simultaneamente polos de centro de margem de relações de poder a partir das mais variadas possibilidades espaciais e isso depende da posição do sujeito que olha o fenômeno.

A sugestão de simultaneidade de posições e de interdependência do par relacional

insider/outsider é de grande potencialidade para a compreensão da dinâmica da prostituição

travesti, notadamente porque a discussão faz o esforço de adotar o ponto de vista das pessoas envolvidas na referida atividade. Assim, a proposição conceitual aqui estabelecida é de que o território descontínuo paradoxal define-se por ser um espaço produzido discursivamente, simultaneamente conectado/desconectado, instituído por difusas e instáveis relações de poder, exercidas de forma multiescalar, gerando assim, a plurilocalização dos diversos sujeitos que reivindicam para si o direito ao espaço.

Categorias discursivas instituidoras do território descontínuo paradoxal na vivência travesti

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%, 'fatores estratégicos de deslocamento' com 17,1 %, 'fatores de controle do território da prostituição com 35,5%.

A categoria discursiva 'fatores motivacionais de deslocamento' foi constituída dos seguintes elementos: motivos financeiros (33%), a manutenção da novidade (21%), a transformação do corpo (12%), a fuga de espacialidades (12%) e a busca de ampliação de relacionamentos (12%)7. As travestis justificam sua alta mobilidade espacial pelas vantagens econômicas, tanto nos deslocamentos realizados entre cidades brasileiras, como para outros países e entre cidades no exterior. Elas apontam que tal deslocamento é possibilitado pela figura da cafetina que centraliza as relações com as travestis, ao mesmo tempo que estabelece ligações com outras cafetinas. Esta conexão entre as cafetinas estabelecem uma rede que funda códigos morais próprios a serem seguidos por todos os membros do grupo que quer permanecer em determinada localidade.

Há uma interdependência entre a cafetina e as travestis. As cafetinas necessitam que as travestis realizem trabalho sexual intensivo, já que em geral, ficam com um percentual dos ganhos da travesti. Por outro lado, a travesti necessita da capacidade da cafetina em lhe colocar em diferentes localidades em curtos espaços de tempo. A travesti, portanto, precisa da indicação positiva que uma cafetina pode fazer a outra em diferentes cidades. A mobilidade espacial está relacionada com a demanda de serviços sexuais, já que 'ser nova' no local é uma vantagem junto aos clientes. Assim, tanto as cafetinas como as travestis possuem grande interesse em aumentar a rotatividade da 'novidade' em diferentes locais. Para que isso ocorra, as cafetinas estabelecem uma rede de pessoas capazes de estabelecer as trocas necessárias.

A rotatividade entre locais de prostituição, geralmente em diferentes municípios é um elemento fundamental a ser considerado, dentro da categoria discursiva 'fatores motivacionais de deslocamento'. As travestis devem ser vistas com desejo e isso está relacionado diretamente à serem algo ainda a ser conhecido e descoberto, invocando a fantasia do corpo, como argumenta Pile (1996) e Binnie (2001).

O acesso a tecnologias de transformação do corpo também fez parte do discurso das travestis que foi agrupado na categoria discursiva 'fatores motivacionais de deslocamento'. O deslocamento constante faz com que elas aumentem seus rendimentos, permitindo o acesso às tecnologias de transformação corporal como plásticas, colocação de próteses e até mesmo a injeção de silicone industrial. A necessidade constante de atingir o ideal de feminilidade que corresponda ao

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seu conforto psicológico e social envolve grandes somas de dinheiro e assim o deslocamento está conectado com o aumento de ganhos e as conquistas das formas corporais desejadas.

A 'fuga' de espacialidades ocorre vinculada ao preconceito da família e de suas relações de proximidade. Ela também se realiza quando a travesti está sendo ameaçada ou sofreu alguma violência ou corre risco de morte. A 'ampliação de relacionamentos' é um elemento componente da categoria discursiva 'fatores motivacionais de deslocamento' e está atrelado à necessidade de estender sua rede de conhecimento de pessoas, principalmente aquelas que podem viabilizar seu deslocamento.

A extensão de relacionamentos é uma tática fundamental que lhes garante uma série de vantagens como ser indicada para uma vaga em casa de uma cafetina por uma amiga, ter local onde ficar quando realiza o deslocamento e obter proteção frente às demais travestis. Quanto mais uma travesti amplia suas redes de relacionamento, com mais facilidade ela desenvolve seus deslocamentos, constituindo as densas redes de pessoalidade das quais necessitam. A opção de 'para onde se deslocar' também está relacionada aos 'fatores espaciais de conectividade' que foi outra categoria discursiva identificada nas entrevistas realizadas com as travestis.

A categoria discursiva 'fatores espaciais de conectividade' foi formada pelos seguintes elementos: 'relação com a cafetinagem' (68%), a 'ajuda de travestis' (14%), a 'relação entre militância e cafetinagem' (8%) e a relação entre Ongs' (5%)8.

A 'relação com a cafetinagem' é, sem dúvida, elemento hegemônico de formação desta categoria discursiva. As travestis se referiram ao elemento de cafetinagem9 com os seguintes sentidos: importância da cafetina nas relações de poder de cada local, necessidade de existência da casa de cafetinas e as intensas relações entre cafetinas de diferentes locais.

As táticas estabelecidas na relação entre cafetina-travestis significam possibilidade de existência para ambas, já que, em geral, as cafetinas de travestis são travestis mais velhas, ou raras vezes, mulheres. Para atingir a centralidade das redes de pessoalidade e tornar-se uma cafetina há um longo caminho a ser percorrido e suas principais funções na organização e manutenção das redes de prostituição estão relacionadas à viabilização de deslocamentos, indicando uma travesti para outra cafetina de outra localidade, algumas vezes, adiantando recursos financeiros para depois

8Os demais percentuais estavam relacionados a 'repressão policial e cafetinagem', a 'ajuda de travestis e cafetinas', a

'cidade industrial' e os 'bons relacionamentos familiares como elementos de não conectividade espacial'.

9A cafetinagem, segundo a lei 12.015 de 2009 é sinônimo de lenocínio que é a prática da exploração sexual, segundo

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cobrar somas ainda maiores, maternagem10, proteção, mas também coerção e violência para manutenção das regras impostas.

As cafetinas se constituem no grupo com um papel ambíguo de exploração, mas também de proteção e acolhimento. As falas das travestis não trazem significados pejorativos em relação às cafetinas, mas de elementos positivos. Assim, ao contrário do que se imagina, as cafetinas figuram como algo positivo na existência das travestis, pelo acolhimento, por lhes possibilitar ganho financeiro, mas também por oferecer certos serviços para a transformação do corpo em um ambiente exclusivo, sem que elas precisem se expor em outros locais da cidade, nos quais, poderiam sofrer preconceito. Esses serviços exclusivos oferecidos são mais caros do que o comércio convencional e além disso, quando financiados pelas cafetinas, acabam sendo adquiridos por valores ainda maiores.

A atividade de cafetinagem é o principal elemento da categoria discursiva 'fatores espaciais de conectividade'. Elas se constituem como nós de uma rede de pessoalidade que funciona mediante códigos morais do grupo e possibilita os fluxos intensos de travestis.

Devido o fato das travestis constituírem um grupo que vive na informalidade, as relações pessoais são de grande importância e, sendo assim, elas consideram um fator fundamental o fato de receberem ajuda de outras travestis para efetuar seus deslocamentos, com 14% das evocações. O fato de conhecer um grande número de outras travestis provoca uma ampliação da capacidade de acessar outros locais. Todavia, diferentemente da característica de fixidez que a cafetina apresenta, as travestis, em constante deslocamento apresenta uma possibilidade fluida de conexão.

A categoria 'fatores espaciais de conectividade' também tem como elementos constituidores a 'relação entre militância e cafetinagem' e a 'relação entre Ongs'. Do fato das travestis sobreviverem majoritariamente da atividade comercial sexual e ainda lutarem politicamente por direitos humanos estabelece-se um interessante imbricamento entre as instituições de organização civil que militam pelos direitos LGBT e as redes de pessoalidade de cafetinas e travestis.

A mesma cafetina que estrutura a prostituição travesti pode ser uma importante militante política na luta por direitos humanos e cidadãos. Assim, é impossível separar os contatos que possibilitam a prostituição, daqueles em que as travestis se reúnem para atuação política. Assim, a atuação política das travestis possibilitam a ampliação de sua rede de relações no país imbricando ações de legalidade e ilegalidade em sua existência.

10A palavra 'maternagem' é a construção da relação entre uma figura materna e filial, sem, no entanto, compreender o

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Pode-se afirmar que os discursos das travestis que constituíram a categoria discursiva 'fatores espaciais de conectividade' evidenciam que a conexão entre diferentes locais realizado por meio de fluxos de travestis possui como elemento fundamental as relações de pessoalidade em torno da cafetinagem.

O discurso das travestis também constituiu a categoria discursiva 'fatores estratégicos de deslocamento' na significação do território descontínuo paradoxal. Para se deslocarem entre localidades, a fim de melhorar seu rendimento, é necessário dominar algumas importantes estratégias. Os elementos que constituíram esta categoria discursiva foram: 'auxílio de travestis' com 45%, 29% de evocações que constituíram o elemento 'auxílio da cafetinagem' e a 'obediência à conveniência' estabelecida nos grupos de travestis com 17%. 11.

A análise das entrevistas evidencia uma forte inter-relação entre as travestis e a cafetinagem. Como argumentado anteriormente, em geral a cafetinagem de travestis não é realizada por homens ou mulheres, mas por travestis. É importante lembrar que há um longo caminho a ser percorrido para que uma travesti se torne uma cafetina ou 'proprietária de pensão'. Em geral as cafetinas são ex-prostitutas, que ao conseguir algum montante financeiro, realizam práticas que as tornam cafetinas. Esse processo cria uma espécie de cumplicidade entre elas pois como ex-prostituta, a cafetina conhece a vida de uma travesti e esta projeta-se no futuro com o sonho de tornar-se uma cafetina.

O elemento 'auxílio de travestis' está vinculado às recomendações que se pautam pelo afeto da amizade entre elas, ou ainda por meio de amigas de amigas que realizam uma indicação de colocação junto às cafetinas. Utilizar o nome de uma travesti com prestígio entre as demais pode ser um grande auxílio no exercício da prostituição. Assim, a posição central da travesti utilizada como referência nas relações de poder das quais ela faz parte é a chave de entrada para determinadas espacialidades. O aval de travestis mais velhas, ou das madrinhas, repeitadas pelos membros da rede também podem servir de importante fator estratégico que possibilita deslocamentos espaciais.

Outro elemento importante que constitui a categoria discursiva 'fatores estratégicos de deslocamento' é o auxílio das cafetinas ou cafetões. Embora o auxílio entre travestis seja um elemento estratégico no deslocamento espacial, ele é mais expressivo na escala nacional. Quando se trata da escala internacional, a figura da cafetinagem aparece com maior intensidade, apesar de serem também bastante importantes na escala nacional. As estratégias de deslocamentos internacionais ocorre com o empréstimo em somas em dinheiro, adiantamentos para compra de

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passagens aéreas e preparação de documentação, bem como facilitações de entrada em países da Europa, em geral, Itália, Espanha e Portugal. A dívida contraída é cobrada posteriormente com valores que muitas vezes ultrapassam o dobro daquilo que foi emprestado.

Outro elemento componente da categoria 'fatores estratégicos de deslocamento' é o que Mayol (1996) chama de conveniência. As relações entre cafetinagem e travestis são reguladas por um conjunto de valores e práticas instituidores de comportamentos que possibilitam a manutenção das travestis nas redes de pessoalidade e, assim, colher as vantagens ou desvantagens nas relações de poder instituídas. Saber manusear com habilidade as relações interpessoais, reconhecendo as conveniências e as hierarquias do grupo são estratégias fundamentais para ampliação de vantagens no estabelecimento de atividades de prostituição.

Os 'fatores de controle do território descontínuo' constitui a categoria discursiva mais evocada pelo discurso das travestis na instituição do território da prostituição. Esta categoria discursiva tem como elementos fundantes a cafetinagem com 29,2% das evocações, a relação entre travestis com 26,1%, o deslocamento espacial com 25% e a conveniência com 19,7%. A instituição do território nunca está plena e acabada, pelo contrário, está permanentemente em processo e, justamente por isso, os fatores de controle são acionados para que o poder mantenha-se centralizado em determinados sujeitos. O controle envolve o poder que se estabelece nas relações interdependentes, desiguais, móveis e intrínsecas às travestis e cafetinas.

No contexto da categoria discursiva 'fatores de controle do território descontínuo' a cafetinagem é o elemento principal. 'As chamadas 'proprietárias de pensão para travestis' alegam que organizaram suas atividades após ter passado algum tempo como prostitutas no exterior e com isso, adquirido os recursos necessários para os seus negócios. Assim, tornar-se uma travesti cafetina é algo que demanda um certo tempo de investimento e captação, não apenas de recursos financeiros, mas também manter uma forte rede de conhecimento de pessoas. Logicamente também existem cafetões homens e cafetinas mulheres. Contudo, a cafetina travesti é mais comum na organização do grupo.

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municípios. A periodicidade também marca as ações de controle do território entre cafetinas, pois nas temporadas de verão, por exemplo, há um fluxo que se destina ás áreas de veraneio.

Quando a atividade de prostituição ocorre na rua, as cafetinas se apropriam de determinados locais e cobram pela permanência das travestis. Aquelas que estão hospedadas em suas casas são nomeadas de 'filhas' e a violência se instaura na medida em que ocorre algum tipo de ameaça às suas 'filhas', à quem as cafetinas devem proteção, ou quando alguma travesti se nega a pagar por estar em um espaço apropriado pela cafetina.

Uma interessante forma de manter o controle do território da prostituição desenvolvido por determinadas cafetinas é a camuflagem de suas ações de cafetinagem sob a denominação de 'proprietárias de pensões para travestis'. Este último termo tem sido utilizado, notadamente por travestis que estão envolvidas nos movimentos políticos LGBT, pois a cafetinagem é algo criticado pela perspectiva de direitos humanos. Assim, para disfarçar a contradição de sua posição como militante de direitos humanos e sua prática de cafetinagem, o termo menos comprometedor foi criado.

A cafetinagem pode constituir uma justaposição de vários territórios na cidade e os limites de ação de cada cafetina são contratados tacitamente. As relações entre cafetinas para manutenção de controle do território da prostituição nem sempre são tranquilas. Alguns relatos de travestis evidenciam atos de violência entre elas, de delação à polícia, bem como de assassinatos. Enfim, a ação das 'proprietárias de pensões para travestis' ou cafetinas, potencializa a atividade da prostituição de forma paradoxal, envolvendo tanto a coação, como a proteção das travestis.

A relação entre as travestis é outro elemento na conformação da categoria discursiva 'fatores de controle do território descontínuo paradoxal', pois elas criam sólidos e resistentes laços identitários. Isso ocorre na medida em que compartilham as mesmas histórias de vida, sofrimento e discriminação, envolvendo o período da infância, adolescência e fase adulta. Apesar das travestis se reconhecerem como um grupo que compartilha muitos valores, a competição é uma marca acentuada de suas relações.

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O deslocamento espacial é outro elemento que compõe a categoria discursiva 'Fatores de controle do território descontínuo paradoxal'. As narrativas das travestis trazem o nome de noventa e oito cidades vivenciadas pelo grupo no desempenho da atividade da prostituição, incluindo cidades de outros países como Argentina, Itália e Espanha. Um elemento curioso a respeito das cidades relatadas nos processos de deslocamento é que 75% delas possuem população de até 490.000 habitantes, contrariando a ideia inicial de que as grandes cidades seriam seus destinos preferenciais. Além disso, é importante lembrar que a área de investigação é o sul do Brasil e, nesse sentido, é esperado que a maior parte das cidades citadas nos deslocamentos realizados estejam localizadas na referida região.

A organização das trajetórias de deslocamento relatadas pelas travestis entrevistadas evidenciou três tendências básicas12. A primeira destas tendências relaciona-se a conexões entre municípios sem a ocorrência de movimentos pendulares entre eles. A segunda tendência refere-se aos deslocamentos entre territórios intra-urbanos da prostituição travesti, agora constituídos pela existência de movimentos pendulares. A terceira e última tendência relaciona-se a existência de uma constituição transnacional de deslocamento na atividade da prostituição travesti.

As possibilidades de deslocamentos em diferentes locais alcançando, inclusive, a escala internacional está estreitamente relacionada com a capacidade das travestis reconhecerem os códigos de conveniência acordados tacitamente pelo grupo na atividade de prostituição. Assim, a conveniência é um elemento componente da categoria discursiva 'Fatores de controle do território descontínuo paradoxal'. No contexto desta categoria discursiva, a conveniência, além de agregar vários elementos como já evidenciados nas demais categorias discursivas, há a intensidade dos atos de violência. No controle do território é fundamental evidenciar a força física e submeter os outros membros que fazem parte do grupo a fim de aumentar suas chances de acessar a centralidade das relações de poder da atividade de prostituição, ou seja, tornar-se uma cafetina.

Portanto, os elementos constituidores da categoria discursiva 'Fatores de controle do território descontínuo paradoxal na prostituição travesti' devem ser considerados em movimento constante, já que as relações de poder tensionam o posicionamento dos sujeito que conquistam maior ou menor centralidade no processo de controle territorial.

Considerações Finais

12As tendências não representam tipos ideais que podem ser utilizados para os deslocamentos de qualquer travesti, mas

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Esta discussão trouxe a inteligibilidade da relação entre a vivência travesti e a instituição do território descontínuo paradoxal. As evidências do trabalho de campo realizado são os elementos fundamentais para elaboração de uma avaliação das contribuições teóricas podem ser produzidas ao campo científico da Geografia.

Um importante postulado consagrado na Geografia para compreender a apropriação espacial como o 'território descontínuo' proposto por Souza (1995) foi aqui reafirmado. Isso porque a prostituição travesti se organiza em conexões de diferentes territórios intraurbanos localizados em diferentes municípios e até mesmo em escala nacional e internacional. A ideia de território descontínuo também é reafirmada na medida em que Souza (1995) evidencia que os limites ou fronteiras podem ser móveis e que os territórios se fazem em desfazem em diferentes temporalidades. Essas proposições também foram válidas na construção da inteligibilidade da atividade de prostituição travesti, pois são as ações travestis que configuram no tempo e espaço seus territórios que são extremamente móveis.

Contudo, a exploração do material empírico esclareceu a necessidade de agregar a ideia de 'paradoxo'. O paradoxo é aqui entendido como algo que se faz de forma surpreendente, não previsível, como nos termos de Rose (1993). A proposição é de pensar que a prostituição travesti pode ser analisada pelo que chamamos aqui de 'território descontínuo paradoxal'.

Esta pesquisa traz desafios aos geógrafos na medida em que supera a noção de fixidez, oposição dual entre categorias e complexifica as relações entre os sujeitos e seus espaços. O grupo de travestis em atividade comercial sexual está plurilocalizado na constituição do território pois é simultaneamente centro e margem das relações de poder e é sua posição paradoxal que evidencia sua resistência à sociedade heteronormativa que ao mesmo tempo a deseja e despreza.

Referências

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NAGAR, Richa. Mapping feminisms and difference: the debate over Mut’a in Tanzania. In: STAEHELI, Lynn; KOFMAN, Eleonore; PEAKE, Linda (Orgs.). Mapping women, making politics: feminist perspectives on political geography. New York: Routledge, 2004. p. 31-48.

PILE, Steve. The body and the city: psychoanalysis, space and subjetivity. New York: Routledge, 1996.

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Paradoxical discontinuous territory and prostitution in travesti living in Southern Brazil Abstract: The goal of this discussion is to understand the relation between travesti living and the

instauration of paradoxical discontinuous space. Such proposition has been constructed from the content analysis of 22 interviews with travestis which acted in sexual services and with 7 more interviews with people acting in NGOs concerned with the travestis group. The whole universe of speech was systematized according to 4 discursive spatialities that had different evocative intensities: house (12% evoking), city (5%), urban territory (22%) and discontinuous territory (38%). Due to the scope of the current discussion, we are concerned particularly with the referred discontinuous territory of travesti prostitution activity. The travestis speech shows that territory is not pre-existing, but is done by the everyday experiences of the group of travestis. Also that power, which is a key component in spatial appropriation, is a sheaf of tension among subjects which may produce various mobile positions of center and margin of power relations. The multiple scale of the phenomenon highlights how relations have a mobile and indeterminate position, thus surpassing the notion that conceives categories as something fixed and it shows how complex the relations among subjects and space are.

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