UMA BREVÍSSIMA REFLEXÃO SOBRE VALORES NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL
Mirella Paiva e Flora Tucci
“O conhecimento dos valores de uma pessoa nos deveria permitir predizer como ela se comportará em situações experimentais e em situações da vida real”
(Rokeach, 1973, p. 122).
As discussões acerca dos valores pessoais e organizacionais são muito frequentes nos dias atuais, mas suas raízes podem ser encontradas na Grécia Antiga, por meio dos debates sobre as virtudes. A Ética das Virtudes é a corrente filosófica que trata das virtudes ou valores do homem e tem como seu primeiro expoente e maior referência Aristóteles. Evidentemente, não se pretende, aqui, realizar um aprofundamento sobre a Ética das Virtudes, mas sim mostrar como algumas questões atuais na área organizacional são pensadas, de alguma forma, desde a antiguidade.
Virtude, segundo Aristóteles, é uma disposição de fazer o bem. A virtude não é algo puramente inato e somente pode ser adquirida por meio dos processos de socialização e aprendizagem, pela experiência e pela prática. Embora o ser humano seja dotado de um potencial para o desenvolvimento das virtudes, elas não estão prontas desde o seu nascimento e, como todo potencial, é preciso que o indivíduo esteja inserido em um ambiente que permita que esse potencial possa vir a ser real. Nesse sentido, o ambiente social e as relações interpessoais desempenham um papel crucial, sobretudo aquelas nas quais o indivíduo interage com a figura de um bom mestre, um professor, que possa lhe ensinar e despertar as virtudes.
Atualmente, o caráter interacionista encontrada em Aristóteles é também identificado nas pesquisas teóricas e empíricas sobre os valores humanos. As concepções mais recentes sobre o tema compreendem que os valores constituem representações cognitivas das necessidades humanas, sendo que a diferença entre eles está na motivação que eles expressam. Nessa perspectiva, uma das abordagens psicossociológicas mais amplamente reconhecida é a Teoria de Valores Humanos Básicos de Shalom Schwartz (2006).
Para Schwartz (2001, p. 55) os valores são “critérios ou metas que transcendem situações específicas, que são ordenados por sua importância e que servem como princípios que guiam a vida do indivíduo”. Eles representam as exigências universais do ser humano, constituídas por: “1) necessidades biológicas do organismo, 2) necessidades sociais relativas à regulação das interações interpessoais, e 3) necessidades sócio-institucionais referentes à sobrevivência e bem-estar dos grupos” (SCHWARTZ, 2001, p. 55).
Para que essas necessidades sejam satisfeitas e para que o indivíduo possa lidar adequadamente com a realidade e suas demandas, ele deve aprender a reconhecê-las, como também aprender comportamentos apropriados para a sua satisfação. Esse processo se dá mediante a socialização do indivíduo e, portanto, é definido culturalmente. Ao longo do seu desenvolvimento, o indivíduo aprende a traduzir suas necessidades em valores específicos, sob a forma de metas conscientes, atendendo às demandas universais do organismo, das interações e do grupo.
De acordo com o modelo teórico de Schwartz, dessas necessidades universais básicas do ser humano, derivam dez tipos motivacionais, expressos por valores diferentes, que influenciam a conduta do indivíduo, e geram consequências psicológicas, práticas e sociais específicas, conforme descrito na Tabela 11. Alguns desses valores, que representam motivações específicas, enfatizam os interesses individuais (poder, realização, hedonismo, estimulação e autodeterminação), outros os interesses coletivos (tradição, conformidade e benevolência) e também mistos (segurança e universalismo).
1As pesquisas de Schwartz foram conduzidas em cerca de 70 países e até 2002 já havia incluído 210 amostras em países de todos os continentes, totalizando 64.271 participantes
(SCHWARTZ, 2005).
Fonte: Schwartz (1996)
A importância e a prioridade dada a cada um desses valores com suas motivações subjacentes é o que diferencia indivíduos ou grupos, bem como o que dá origem à compatibilidade ou ao conflito intra e/ou interpessoal. Por um lado, Universalismo e Benevolência prezam pela Autotranscendência, isto é, valores que se sobrepõe ao próprio indivíduo e estão em oposição aos valores de Autopromoção (Poder, Realização e Hedonismo). Por outro lado, o Hedonismo, a Estimulação e a Autodeterminação seriam valores que promovem a Abertura à Mudança, enquanto Tradição, Conformidade e Segurança, conduzem à conservação.
Uma aproximação à compreensão dos valores em contexto organizacional
Toda organização ou empresa possui um conjunto de crenças, tradições, rotinas, valores, tabus que definem a sua própria identidade e servem como um guia para as ações de seus integrantes. Em outras palavras, as organizações têm a sua própria cultura, e esta constitui um fator determinante do desempenho dos seus colaboradores, do clima organizacional e da produtividade da empresa.
Esses valores expressam os interesses e necessidades individuais e de grupo, funcionam como um filtro pelo qual as pessoas conhecem e interpretam a realidade organizacional, julgam e justificam o seu próprio comportamento e o de outros, além de
contribuírem para a manutenção e integridade do sistema organizacional. Nesse sentido, os valores orientam a existência da organização e guiam o comportamento dos seus membros, definindo formas de agir, pensar e julgar.
A seleção de estratégias para solução de problemas, a comunicação, o estabelecimento das metas entre outros fenômenos organizacionais são exemplos de aspectos fortemente influenciados pelos valores de uma organização. Esses valores são, portanto, comunicados e transmitidos entre seus membros e para a sociedade constantemente, seja verbalmente ou por meio de suas ações. No Brasil, o professor e pesquisador Álvaro Tamayo tem enfatizado o estudo dos valores, tanto pessoais como organizacionais, com base na Teoria dos Valores de Schwartz.
Para esse autor, idealmente, os valores organizacionais devem estar coerentemente articulados aos valores da sociedade e aos valores de seus membros, de modo a garantir a realização da metas pessoais e organizacionais.Além disso, Tamayo argumenta que os valores organizacionais possuem certa correspondência aos valores pessoais. Gestores, colaboradores, parceiros, clientes e fornecedores levam consigo suas motivações e valores específicos para as organizações e estabelecem nelas e com elas relações mediadas por eles.
Nesse sentido, o autor compreende que é possível se pensar uma transposição das necessidades humanas para as organizações. Para Tamayo, os valores organizacionais têm como objetivo atender às três necessidades organizacionais: (a) a conciliação de interesses individuais e do grupo; (b) a necessidade de uma estrutura com a definição adequada de papéis, normas e regras para relações e organização do trabalho; e (c) o acordo entre interesses da organização e do ambiente social e natural.
Com base na realização de inúmeras pesquisas de cunho teórico e empírico, Tamayo defende que para atender aos problemas e demandas que lhes são peculiares, as organizações apresentam valores que se estabelecem em três dimensões bipolares:
Autonomia e Conservadorismo, Hierarquia e Igualitarismo e, ainda, Harmonia e Domínio. A compreensão de como esses valores são enfatizados e priorizados permite um maior entendimento da cultura organizacional. Cabe ressaltar que existe uma relação dinâmica entre essas dimensões, podendo haver compatibilidade e conflitos entre elas.
A primeira necessidade organizacional é o estabelecimento da natureza da relação entre indivíduo e grupo, o que dá origem à dimensão dos valores Conservadorismo e Autonomia. Quando a ênfase está no Conservadorismo, os
interesses do indivíduo não são vistos como diferentes dos do grupo e os valores primam pela manutenção do statu quo. Por outro lado, quando o foco está na Autonomia, os valores expressam aspectos de inovação e criatividade, o colaborador é visto como uma entidade autônoma e capaz de buscar seus próprios interesses. O autor define, ainda, que a Autonomia se subdivide em: (a) afetiva, quando expressa valores de estimulação e hedonismo e (b) Intelectual, quando traduz valores de autodeterminação como criatividade e curiosidade.
As formas de organização social das empresas, por sua vez, dão origem às dimensões Hierarquia e Igualitarismo. Organizações que valorizam a Hierarquia defendem a necessidade de alocações claras de papéis e recursos e valorizam a autoridade e o poder, enquanto que o Igualitarismo nas organizações leva à valorização dos interesses individuais em favor do bem-estar organizacional, à equidade e à responsabilidade.
No que se refere à relação entre as empresas e o ambiente social e natural, as organizações podem se caracterizar por valores das dimensões Domínio ou Harmonia.
Quando a ênfase está no Domínio, as organizações fomentam valores que geram controle e uma relação de exploração do meio ambiente físico e social, por meio do domínio da tecnologia e do conhecimento. Em contrapartida, no pólo Harmonia, os valores adotados pela organização privilegiam uma relação harmoniosa e equilibrada com o ambiente e outras organizações, a tolerância, a sustentabilidade e a proteção à natureza.
Em síntese, conhecer os valores de um indivíduo, grupo ou organização pode representar uma maior possibilidade de compreensão do seu comportamento, uma vez que os valores possuem uma motivação subjacente a cada um deles. Em um contexto organizacional, os valores manifestos ou latentes são elementos-chave para a assimilação do que se entende como sendo importante e desejado para a organização.
Aqui, a liderança ocupa um lugar essencial, uma vez que o líder forma e informa os seus colaboradores sobre os valores organizacionais, de forma consciente ou não, e exerce forte impacto sobre o desempenho do seu colaborador, sobretudo por exercer um papel de modelo. A relação entre o líder e o liderado é crucial para a transmissão apropriada dos valores organizacionais.
Outra questão relevante diz respeito ao papel do treinamento e das experiências de aprendizagem no desenvolvimento dos valores. Na compreensão de Aristóteles, o desenvolvimento da virtude vem da prática, da repetição e parece coerente que assim
também ocorra com os valores humanos e organizacionais. O espaço organizacional é também um espaço de formação, no qual não somente o conhecimento técnico é construído, mas também o comportamental, o que inclui a aprendizagem e internalização dos valores, crenças, emoções e das formas de relação priorizadas pelo contexto organizacional.
Para finalizar, ecoamos Peter Drucker que afirma: “O cenário social que temos mais destacado é a organização; (...) caberá a administração fazer com que os valores e aspirações dos indivíduos contribuam para o potencial e bom desempenho organizacional.”
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