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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO NATÁLIA FERREIRA CARUSO UM ESTUDO SOBRE O GROTESCO NA PEÇA WOYZECK, DE GEORG BÜCHNER

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

NATÁLIA FERREIRA CARUSO

UM ESTUDO SOBRE O GROTESCO NA PEÇA WOYZECK, DE GEORG BÜCHNER

RIO DE JANEIRO 2019

(2)

Natália Ferreira Caruso

UM ESTUDO SOBRE O GROTESCO NA PEÇA WOYZECK, DE GEORG BÜCHNER

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Artes da Cena.

Orientadora: Prof.ª. Dr.ª. Carmem Gadelha

Rio de Janeiro 2019

(3)

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.

CE82e

Caruso, Natália Ferreira

Um estudo sobre o grotesco na peça Woyzeck de Georg Büchner / Natália Ferreira Caruso. -- Rio de Janeiro, 2019.

97 f.

Orientadora: Carmem Gadelha.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, 2019.

1. Woyzeck. 2. Barroco. 3. Ciências Humanas. 4. Grotesco. 5. Bode Expiatório. I. Gadelha, Carmem, orient. II. Título.

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Natália Ferreira Caruso

UM ESTUDO SOBRE O GROTESCO NA PEÇA WOYZECK, DE GEORG BÜCHNER

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Artes da Cena.

Aprovada em

_____________________________________________

(Orientadora: Prof.ª. Doutora Carmem Cinyra Gadelha Pereira - UFRJ)

_____________________________________________ (Prof.ª Doutora Elizabeth Motta Jacob - UFRJ)

_____________________________________________ (Prof.ª Doutora Ieda Tucherman - UFRJ)

_____________________________________________ (Prof.ª Doutora Sonia Salcedo del Castillo - FUNARTE)

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Dedico este trabalho à memória do meu amigo e ator Phelipe Moraes, falecido no dia 5 de setembro de 2017.

Aqueles que me têm muito amor Não sabem o que sinto e o que sou… Não sabem que passou, um dia, a Dor À minha porta e, nesse dia, entrou (ESPANCA, Florbela, Sem Remédio).

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço à minha família: à minha tia e madrinha, Andrea Lúcia Ferreira, que com a sua generosidade tornava os dias mais saborosos; à minha mãe, Cláudia Lúcia Ferreira, por me fazer sorrir quando os dias eram amargos; ao meu avô, Severiano de Assis Ferreira, que compartilhava comigo suas cervejas ao redor da mesa da cozinha; à minha avó, Sonia Ferreira de Assis, que foi a maior incentivadora do meu mestrado; e, por último, à minha cachorra, Flor, que com seu amor incondicional me trazia descanso e diversão.

Agradeço ao meu companheiro, Hudson Lucas Marques Martins, por sempre me ajudar a continuar o meu trabalho e a minha pesquisa.

Agradeço à minha orientadora, Carmem Gadelha, por toda a paciência e por sempre trazer pensamentos interessantes, compartilhando a sua sabedoria.

Agradeço a todos os membros e antigos membros do PPGAC, em especial às professoras Elisabeth Jacob e Sonia Salcedo e à funcionária Marlene Cardoso, que sempre se mostraram disponíveis.

Agradeço aos professores da minha Alma mater, PUC-RIO, onde me graduei. Em especial aos mestres Alessandra Vannucci, Fabio Ferreira e Jefferson Miranda.

Agradeço a leitura atenta e cuidadosa da minha dissertação ao professor, poeta e amigo Thiago Ponce.

Agradeço a todos os meus amigos de caminhada no PPGAC, em especial Laís Serra e Pedro Freitas, pelas risadas e desesperos compartilhados.

Agradeço aos meus amigos do trabalho, Carlos Alexandre, Isabel Oliveira, Líliam Corrêa e Walter Raleigh, por me apoiarem.

Agradeço aos meus amigos de caminhada na vida, que embora não os veja com frequência, estão sempre ao meu lado. Em especial essas três mulheres inspiradoras: Bruna Cataldi, Lais Carvalho e Mari Oliveira.

Agradeço às pessoas que sempre se lembram de mim em suas orações e em seus afetos: um agradecimento especial para a minha madrinha, Elsa; para o meu avô postiço, Seu Elói; para a amiga-mãe, Raquel Nascimento e para a minha tia-avó, Maria Cristina.

Agradeço à equipe que tornou possível a montagem de Woyzeck no Parque das Ruínas e que acreditou no meu trabalho: Carmen Laveau, Marina Nogueira, Paula Lom, Phelipe Moraes e Raphael Aguiar.

Agradeço a todos os artistas que me atravessaram e me atravessam.

(7)

RESUMO

CARUSO, Natália Ferreira. Um estudo sobre o grotesco na peça Woyzeck, de Georg

Büchner. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) - Escola de

Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019

Esta dissertação fornece uma construção do pensamento a respeito da dramaturgia Woyzeck, de Georg Büchner. Foram revisitados dois temas que apareciam de forma relevante no texto. O primeiro deles, a respeito da localização histórica, a fundação das ciências humanas, acontecimento que influenciou a dramaturgia. O segundo tema está ligado ao estilo artístico utilizado, o Barroco, que com suas nuances garantiu os contornos desformes de Woyzeck. Essas duas temáticas formam um caráter grotesco na dramaturgia, um grotesco crítico, que utiliza o “Bode Expiatório” como forma de revelar o caráter normativo e maniqueísta da sociedade até a contemporaneidade.

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ABSTRACT

CARUSO, Natália Ferreira. Um estudo sobre o grotesco na peça Woyzeck, de Georg

Büchner. Rio de Janeiro, 2019. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) - Escola de

Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019

This dissertation is a construction of the mind and thought of dramaturgy Woyzeck by Georg Büchner. Topics that are relevant within Woyzeck have been revisited. The first of them, a respect for historical location, a foundation of the human sciences, as well as knowledge about science, dramaturgy. The second theme is the artistic style used, the Baroque, which with its nuances guaranteed the deformed contours of Woyzeck. The two forms form a grotesque of dramaturgy, a grotesque critic, the use of the Scapegoat as a way of revealing the normative and Manichean character of the society until the contemporaneity. Keywords: Woyzeck. Baroque.Human sciences. Grotesque. Scapegoat.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...12

CAPÍTULO I – O MODERNO EM WOYZECK...….17

1.1) O Humanismo...…17

Este subcapítulo tem como principal objetivo dissertar sobre as questões que envolvem o Humanismo e o Anti-Humanismo. Embasada por Foucault e por Althusser (em sua leitura do marxismo), discorrerei sobre o Humanismo.

1.2) Essência e vazio... 20

A partir de autores como Rosenfeld, Stuart Hall e Irene Aron, abordarei conceitos subjetivos, como os de essência e vazio, considerando que há uma ontologia do devir. Esses conceitos aparecem de forma clara na dramaturgia Woyzeck. Discuti-los se torna algo valoroso em minha pesquisa, levando em conta que o Humanismo moderno acredita em uma essência do humano e repercute a sensação de solidão exposta nas ruas das cidades em formação.

1.3) A questão da civilização...…. 22

Bauman e Freud escreveram sobre a questão do mal-estar causado pela sociedade. Neste capítulo, recorrerei aos dois autores e, a partir de trechos da dramaturgia de Büchner, abordarei as motivações desse estado de mal-estar civilizacional e sobre o tipo de natureza ao qual o homem deve se adequar dentro da civilização. Se no subcapítulo anterior vimos que há uma norma civilizacional a guiar as pessoas, neste subcapítulo vemos o que a civilização quer repelir das mais diversas formas. Evocando os escritos de Sabato Magaldi e Foucault, disserto um pouco sobre o instinto animal. A sociedade moderna não tolera aquilo que escapa da sua ordem civilizacional, e, por esse aspecto, falarei da noção de higiene incutida nos modelos modernos, recorrendo também aos escritos da autora Mary Douglas.

1.4) O desenvolvimento psíquico na nova episteme...…... 28

Trabalharei neste ponto a noção de construção do EU, exposta por Freud, e, através de Sabato Magaldi, estudarei a aplicação dessa construção em Woyzeck. O mundo externo, na dramaturgia de Büchner, atua de forma eficaz na trajetória da personagem.

1.5) O panóptico... 30

Este subcapítulo se baseia nos postulados de Foucault para explicar o conceito de vigilância na modernidade, observando como o controle dos corpos esteva estritamente ligado

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à arquitetura cunhada de panóptica. A partir dos conceitos de Vigiar e Punir e da tese sobre o trabalho em Woyzeck, de Tércio Loureiro Redondo, neste tópico abordarei as questões que envolvem a mudança de perspectiva diante do novo tipo de trabalho inaugurado na modernidade das máquinas, o trabalho fabril. Além disso, comentarei sobre o tipo de disciplina, formulada no panóptico, que foi substituindo a punição espetacular. Referindo-me a Deleuze, Rosenfeld e Foucault, dissertarei sobre o quão punitivo é um Estado de vigilância constante: mesmo que o Estado seja severo em sua prevenção ao indigesto, a punição civil é austera e faz com que o infrator (ou o louco, ou o servente) viva em uma situação marginal, por ser indigesto dentro da sociedade.

1.6) O moderno no texto... 34

Peter Szondi e Irene Aron, dentre outros teóricos, serão abordados neste último tópico para tratar da modernidade não somente no conteúdo do texto Woyzeck, mas também em sua dramaturgia.

CAPÍTULO II – O BARROCO-TRÁGICO EM WOYZECK... 39

2.1) A passagem para o Barroco...…....39 Antes de adentrarmos na temática do Barroco, é preciso apurar o que antecedeu o

movimento. Por isso, neste subcapítulo estudaremos os movimentos e tendências anteriores ao Barroco, o Renascimento e o Maneirismo, e como estes o influenciaram.

2.2) O Barroco e o Barroco Danubiano...…...40

Diferenciar a época Barroca do estilo barroco se torna essencial para abrirmos a discussão do que é o Barroco. Acionando os escritos de autores como Maravall e Tarpié, seguimos o capítulo descrevendo o Barroco histórico. O que ele é e a sua localização são algumas das perguntas que tentaremos discutir neste tópico. Outra parte do capítulo se destina a verificar a concepção de Alemanha imbricada no período Barroco e a aderência do Barroco nesta localidade.

2.3) Woyzeck, Büchner e o homem Barroco... 43

Tomando o Barroco histórico como ponto de partida, analisamos como o homem que vivia nesse período agia e se comportava. A partir dessas características, refletimos sobre a personagem Woyzeck e o dramaturgo Büchner em seus contextos sociopolíticos.

2.4) A leitura do mundo Barroco...45

Se o homem Barroco tinha um tipo de comportamento analisável, é porque existiam fontes que padronizavam seu comportamento. O mundo que o homem Barroco se encontrava

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era de muita conflitualidade. Entender esse mundo e quem o dominava é importante para contextualizarmos certas escolhas de Büchner na dramaturgia.

2.5) A literatura Barroca...….48

É importante entendermos que Woyzeck, antes de ter uma função teatral, é literatura, dramaturgia. Apoiados nos estudos de Victor Aguiar e Silva, analisaremos a literatura Barroca e Woyzeck. A funcionalidade do texto como objeto Barroco será considerada neste tópico.

2.6) O jogo, o teatro e o Barroco...50

O último subcapítulo tem como objetivo tecer uma relação entre o teatro, o jogo e o Barroco, observando como a alegoria permeia esses contextos ao criar uma atmosfera única, muitas vezes alienante. Será Woyzeck uma peça alienante? Ser Barroco e crítico simultaneamente parece ser o grande conflito de Büchner a ser explorado.

CAPÍTULO III – O GROTESCO EM WOYZECK... 54

3.1) A origem do grotesco ...54

O capítulo expõe a origem do termo grotesco, levando em consideração as nuances que envolvem essa estética. Afinal, estamos tratando de uma estética ou de uma palavra do imaginário popular? Esta é uma questão em relação a sua origem. Tendo como principal bibliografia Wolfgang Kayser, apontaremos caminhos possíveis para o entendimento do conceito.

3.2) A história do diabo e do monstro...…..57

Figuras como as do monstro e do diabo sempre participaram do imaginário popular. De antemão, essas imagens causam em nós um sentimento ruim, pois provocam o grotesco em nós. Porém o quão necessárias são essas imagens para haver uma restauração da ordem? O quão a própria Igreja Católica se utilizou do grotesco para se promover? Autores como Kayser e José Gil nos fazem compreender melhor os elementos utilizados no e a partir do grotesco.

3.3) O belo e o feio...60

A associação do grotesco com a feiura é recorrente, já que ambos causam um desarado ao olho. A feiura, assim como a beleza, tem uma história e aspectos que são importantes para o pensamento moderno, como a duplicidade entre sombra e luz, grotesco e sublime e feio e belo. Mas o feio só existe em relação ao belo? E a arte torna belo o feio? Recorrendo a Umberto Eco e Victor Hugo, tentaremos apontar caminhos para elucidar essas questões.

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3.4) O rir grotesco e o medo grotesco...63

Ao realizar a leitura do livro de Minois, abriu-se uma questão muito pertinente ao trabalho: o grotesco provoca quais sentimentos, o de rir ou de temer? O riso e o medo aparecem juntos em muitos casos. Mas o que realmente torna essas reações únicas, é que elas expressam a mentalidade de uma época e tornam analisável o pensamento da mesma.

CONCLUSÃO... 73

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 77

(13)

INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como objeto de análise a peça teatral Woyzeck, de Georg Büchner. A partir do referido texto, abordarei assuntos que envolvem o imaginário da peça e a sua relação com o mundo que a cercava, fazendo indagações sobre suas possíveis, ou impossíveis, relações com o nosso mundo contemporâneo. O caminho que é possível apontar para uma pertinência, em Woyzeck, em nosso ambiente contemporâneo, é a presença da figura do bode-expiatório. René Girard (2015), em sua teoria mimética, explica a formação dessa figura presente em vários contextos na humanidade e a sua perpetuação ao longo dos séculos.

A peça Woyzeck conta a história de um soldado que precisa sustentar a sua mulher, Marie, com a qual não é casado religiosamente, e seu filho bebê. Woyzeck se coloca à disposição da personagem Doutor como cobaia para experimentos: um deles consiste em a personagem comer três ervilhas por dia. A conduta de Woyzeck, muitas vezes, não vai ao encontro das normas morais da sociedade em que ele está inserido, fazendo com que o soldado tenha desavenças com o seu superior, o Capitão, e até com o próprio Doutor. A personagem, em alguns momentos da peça, tem alucinações, que são provocadas pela sua dieta de ervilhas, e elabora teorias de conspiração que partilha com seu amigo, Andres. Marie, por outro lado, fica preocupada com a situação delicada de Woyzeck, colocando-se em uma situação de fragilidade ao se envolver com um soldado superior ao seu marido, o Tambor-Mor, suboficial vaidoso e aproveitador. Woyzeck fica sabendo pelo Capitão da traição de Marie com Tambor-Mor, e, em um ato de heroicidade, já que resolve ser agente da ação, briga com Tambor-Mor, mas acaba perdendo a luta. Sentindo-se humilhado, ele deixa seu testamento com Andres e chama Marie para um passeio. Esta, sentindo-se culpada e ameaçada, aceita passear com Woyzeck, mas, ao final do passeio, o soldado esfaqueia Marie, matando-a. Woyzeck volta para o bar local, mas está sujo de sangue. Acuado pelas pessoas que percebem os vestígios do crime, ele tenta fugir, porém acaba afogando-se em um lago.1

A pesquisa surgiu a partir da constatação de uma proliferação de sentidos, misturando a dramaturgia, a contemporaneidade e a história. Esta mistura surgiu primeiramente em um estado intuitivo: algo em Woyzeck parecia refletir nossas relações contemporâneas. O grotesco dos corpos errantes dentro da sociedade foi um percurso teórico escolhido por mim para poder conduzir Woyzeck a uma leitura contemporânea. Auxiliada por Multidão, de Negri e Hardt (2014), persigo o caminho do monstro e do grotesco contemporâneo e as suas consonâncias e

1 Várias versões foram escritas pelo autor, mas utilizarei essa versão por ser a mais completa, contemplando

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dissonâncias com a personagem Woyzeck. O que eu nomeio por proliferação de sentidos, Deleuze e Guattari (2011) chamam de rizoma. Os autores propõem esse pensamento rizomático, que se distingue do pensamento cartesiano e arbóreo, cruzando um eixo vertical com um horizontal (coordenadas e abscissas; ou paradigma e sintagma, para citar Chomsky). Pensar o modelo cartesiano é como pensar em uma árvore que tem o tronco como abscissa e os galhos como coordenada. O rizoma, proposto no livro Mil Platôs, é um pensamento expandido, horizontal, conectivo, múltiplo e heterogêneo, com capacidade de promover rupturas e continuar ampliando-se (incluindo nele próprio a condição de árvore). Segundo Deleuze e Guattari, “o rizoma é uma antigenealogia”. Este, um conceito dos próprios autores, é uma forma emancipada de pensamento, que oferece a liberdade para começar e terminar o pensamento de qualquer território. Em outros termos, é uma cartografia de pensamentos, na qual se tem total liberdade, inclusive para adicionar novos platôs. A noção de rizoma de Deleuze e Guattari é emprestada pela botânica, pois o rizoma é uma estrutura presente em algumas plantas que conseguem ramificar-se em vários ambientes. Sendo assim, não ignoramos a analogia com o modelo arbóreo, porém, acrescentamos a ele raízes, folhas e animais.

Na perspectiva de rizoma considerada nesta pesquisa, enxergo três árvores relativas ao aspecto moderno, ao barroco e ao grotesco. O que interligaria essas três árvores? Arrisco-me a dizer que a tragicidade agencia rizomatizações com elas: há vespas, numa visão contemporânea, que espalham sementes, e há, ainda, o bode expiatório, como galhos e os troncos dessas árvores que se entrelaçam. Uma pergunta que tento responder é: O que faz esse rizoma?

O primeiro passo para a resposta sugere uma pesquisa histórica. A modernidade e a peça Woyzeck estão ambientadas no século XIX. Foucault (2000) explica como a nova episteme moderna, que surge na passagem entre os séculos XVIII/XIX, rompe com a episteme clássica da representação, colocando o homem como sujeito e objeto de saber. Se nos saberes clássicos o homem está designado como um ser que ordena, na episteme moderna esse mesmo homem é colocado em perspectiva de análise e é compreendido na nova episteme como um objeto de estudo na biologia, na economia, na história e na filologia – âmbito das recém-criadas ciências humanas. Foucault (2000), ao analisar o quadro Las niñas, de Velásquez, localiza parte de sua atenção nos espelhos que compõem o quadro, e este espelhamento atravessa o que podemos chamar de espaço de representação clássica. Ele coloca em cena o que está oculto, no caso dos quadros, a figura dos reis. Em um contexto mais amplo, esta analogia parece apontar o limiar entre a era da representação e a era moderna,

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pois o que se constrói na modernidade é um homem-modelo, um homem voltado para as ciências, inclusive aquelas que tentam circunscrevê-lo.

Por outro lado, a imbricação iluminismo/romantismo acentua a estética barroca fortemente enraizada nas expressões populares, ligada a um passado medieval de festas, a uma inversão de papéis e às mais diferentes formas de alegoria relacionadas a um tipo de carnaval. Walter Benjamin (2013), em A origem do drama trágico alemão, escreve sobre um barroco que conta com o papel da alegoria em seu funcionamento, por assim dizer, como representação: “A atitude não polêmica é uma característica marcante do barroco no seu conjunto. Cada um procura, por mais possível e ainda que siga sua própria voz, dar a impressão de que segue os passos dos mestres que venera e das autoridades consagradas” (BENJAMIN, 2013, p. 105). Nesta frase é possível perceber que o Barroco é, em sua substância, uma alegoria2, e, por isso, ele só pode sugerir algo, jamais estabelecer contornos precisos e definitivos. Também devemos nos ater ao que Benjamin relembrar: nos primórdios do período da modernidade, aconteceu uma Reforma na Igreja e uma Contrarreforma.

Assim, dedico algum tempo desta pesquisa ao período do século XIX. Em outro fluxo, aplico também o estudo sobre os monstros, que, sendo parte do grotesco e tendo afinidades com o barroco e seus formatos alegóricos, configuram uma face humana. De acordo com José Gil (2006), se a modernidade se empenhava em estudar o homem, o monstro já existia em relatos de Santo Agostinho. O monstro sempre foi motivo para questionamentos e definições desde a Idade Média, a percepção do monstro como o ocultamento daquilo que inquieta e, de algum modo, compõe e assombra a natureza do homem é, de fato, instigante. Por outro lado, o monstro pode nos inquietar, sendo um sinal de um mau presságio. Ao retornar às questões etimológicas da palavra “monstro”, é possível perceber que ela está, numa via negativa, relacionada à “ensinar um determinado comportamento, prescrever a via a seguir” (GIL, 2006, p. 73). O monstro é, ademais, o que se mostra, uma exibição em excesso; ele é mostração e de-monstração.

Em meio a essas revisões conceituais e vocabulares, mais uma pergunta ecoa em minha pesquisa: como articulá-la aos temas citados e à arte contemporânea? Considerando o devir deleuziano, para tentar entender essa questão fronteiriça em que vivemos, somos modernos? Somos pós-modernos? Ser pós-moderno não é um desdobramento do moderno? Será que a minha pesquisa, pautada na modernidade, ecoa na pós-modernidade? Não somos

2 A alegoria a que me refiro se distancia da ideia de alegoria romântica, que tem como função, segundo

Benjamin (2013), simbolizar algo. Interessa nesta dissertação o aspecto alegórico característico do próprio Barroco, ou seja, a alegoria como forma de compreensão da estética Barroca.

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mais modernos, o humano sofre alterações constantes e não se identifica mais com o projeto humanista. Por outro lado, permanecem aspectos de resistência às mudanças do que foi dado como natural e universal no homem. “Hoje, Frankenstein é da família”, escreveram Hardt e Negri (2014). O corpo humano na pós-modernidade se acostumou com próteses, com costuras e com manipulações, o que torna o monstro um não-monstro. O sistema capitalista transformou o monstro em mercadoria: ser monstro, ser metamorfose, tornou-se rentável, devido ao leque de manipulações que podemos fazer em nossos corpos. Ao lermos Hardt e Negri (2014), entendemos também que o monstro não é mais um corpo único e sim vários corpos. O monstro é multidão. Para os autores, a multidão é a junção de um grupo de pessoas heterogêneas, que, como o capitalismo não consegue absorver, não se consegue controlar.

A figura do monstro não é mais uma figura grotesca, ela foi absorvida pelo capitalismo, colocando em questão a identidade do humano e a noção de “natural”. O monstro habita agora zonas de fronteira figuradas pelas hibridizações. É pensável que grotesco, diante do capital, nomeie todo aquele (aquilo) que não consegue uma acumulação de bens por seu esforço de trabalho.

Algumas das formas de grotesco e drama barroco (BENJAMIN, 2013) que me foram expostas em nossas vivências contemporâneas são as notícias relacionadas aos “justiceiros” que amarram os seus supostos vilões em postes nas ruas da cidade. Os vilões, na maioria dos casos, são assaltantes, aqueles que querem o produto sem ter tido o esforço do trabalho. Repudiados e marginalizados pela sociedade, ficam amarrados em lugares públicos para servirem de exemplo para os próximos.

Podemos alegar que encontramos esse monstro grotesco imbricado com o barroco trágico na resistência moderna do Álbum C, de Francisco Goya, por exemplo. Os desenhos do Álbum C representam cenas de pessoas que eram torturadas em praça pública. Se notarmos, a série de torturas desse álbum, mesmo sendo autônomas, mostra muito da vivência do próprio Goya. Os aspectos em comum entre a dramaturgia de Büchner e os desenhos de Goya me fazem achar que o Álbum C segue como uma espécie de ilustrações de Woyzeck. Por esse motivo, o Álbum C aparecerá como uma curiosidade dentro da própria pesquisa, a imagem virá exposta com a sua respectiva legenda da dramaturgia de Büchner. A figura do bode expiatório, que persiste em Büchner, é exposta também em Goya, desta forma sugerimos um entrecruzamento com o monstro.

A palavra “tragédia” remete-se ao bode (tragós) imolado em nome da purificação comunitária (SILVA, 2009). Os mecanismos de exclusão atuais continuam a fabricar monstros e bodes expiatórios. Isto remete às nossas ruas e suas produções de figurações.

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Lembrando que, dentro dessas convergências, há também divergências a abordar. Percebo que Woyzeck, as personagens de Goya e os vilões amarrados em postes se encontram na mesma esquina histórica.

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CAPÍTULO I – O MODERNO EM WOYZECK

1.1) O Humanismo

Ao tentar indagar sobre a definição do humano na vida contemporânea, condição esta regida pelo status quo que define a noção de civilização, torna-se indispensável abordar a condição humana, questão indissociável do nascimento das Ciências Humanas na modernidade, marcada pela passagem do século XVIII para o XIX. Neste capítulo, tratarei não somente dessa condição humana,3 como também a associarei à versão escolhida da peça Woyzeck, que foi escrita até 1837, pois neste ano a morte de Georg Büchner havia marcado a finalização do texto. A peça, assim como a modernidade, é fragmentada, como se estivéssemos participando de flashes luminosos na aparição de cada personagem. O modelo humano criado por Büchner, ao retratar Woyzeck, é de suma pertinência para entendermos melhor as visões de Foucault e de outros pensadores da sociedade e do homem moderno.

O Humanismo,4 na passagem do século XVIII e XIX, conforme explicado por Foucault, sofre um reordenamento, que estimula o homem a se perceber como um objeto a ser estudado. Pela primeira vez dessa maneira, Foucault (2000) escreve sobre a episteme moderna que rompe com a episteme clássica da representação e coloca o homem como sujeito e objeto do saber. Se nos saberes clássicos o homem está designado como ser que ordena, na episteme moderna esse mesmo homem é colocado em perspectiva de análise e tomado como estudo na biologia, na economia, na história e na filologia.

Nem seria mais exato imaginar que a gramática geral tornou-se filologia, a história natural, biologia, e a análise de riquezas, economia política, porque todos esses modos de conhecimento retificaram seus métodos, se acercaram mais perto do seu objeto, racionalizaram os seus conceitos, escolheram melhores modelos de formalização – em suma, porque se teriam desprendido de sua pré-história por uma espécie de autoanálise da própria razão (FOUCAULT, 2000, p. 346).

A grande diferença entre a episteme moderna e a clássica é que esta trabalha pela representação, em formato cartesiano, em cruzamentos verticais e horizontais, como na própria geometria. O conhecimento de certas proporções (no caso da filosofia, conhecimento 3 É imprescindível ressaltar que o modelo humano descrito pelas Ciências Humanas foi revisitado e reavaliado diversas vezes entre o século XIX e o século XXI.

4 Embora exista uma convenção linguística para marcarmos com inicial maiúscula os termos que designam correntes filosóficas e períodos históricos, não há um consenso entre os autores e publicações. Por isso, nesta dissertação termos como “Humanismo”, “Anti-Humanismo” e “Barroco” aparecerão ora com iniciais maiúsculas – nos trechos que se referem ao desenvolvimento de minha escrita –, ora com iniciais minúsculas – preservando a escolha dos teóricos citados e articulados no desenvolvimento desses temas.

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de certos saberes) é suficiente para se chegar a uma construção (na filosofia, uma conclusão). Descartes parte do caminho do método, colocando a história de lado, com a certeza de que se seguirmos o método encontraremos a verdade. Foucault, ao analisar o quadro As meninas, de Velásquez, localiza parte da sua atenção no espelho que compõe o quadro. Este espelho5

atravessa o que podemos chamar de representação, pois coloca em cena o que está oculto, que, no caso do quadro, é a figura dos reis. Em um contexto mais amplo esse parece ser o limiar entre a era da representação e a modernidade instaurada na passagem dos séculos.

A importância que surge para entendermos Foucault, em um contexto büchneriano, existe pela visão que o filósofo tem sobre a própria modernidade, segundo a qual o humano começa a ser instaurado e observado, sendo jogado para fora das diretrizes da civilização tudo aquilo que não se encaixa. Acrescento ainda que o conceito de homem instaurado pelas ciências humanas é uma forma de pensar o homem enfraquecendo as suas vivências animalescas, conduzindo-o para fora da sua experiência animal. Nesse aspecto, encontramos Woyzeck, um homem moderno, mas que não pertence às novas diretrizes do que se pode entender como modernidade por estar próximo do que é primitivo, como veremos adiante. As Ciências Humanas, anunciadas e expostas por Foucault (2000), teriam como principal característica estudar o que é ser humano, colocando em evidência também o que não é considerado humano.

É interessante ressaltar que as Ciências Humanas se distinguiam do Humanismo, movimento surgido no Renascimento. A base filosófica do Humanismo entendia que o homem era constituído à imagem e semelhança de Deus e, por isso, deveria ser colocado em evidência, o que constituía um pensamento antropocêntrico. O Antropocentrismo tornou possível uma mudança estrutural nos estudos dentro das universidades já no século XIX, dando condições de emergirem pesquisas sobre o homem (Ciências Humanas). Embora o Humanismo e as Ciências Humanas sejam objetos de estudo diferenciados, a contribuição do primeiro para as Humanas é notória. Carlos Antônio Leite Brandão, nos seus estudos sobre o Humanismo e o Anti-Humanismo de Leon Battista Alberti, revela aspectos dessa filosofia e as suas causas:

5 Marcando a modernidade renascentista, existe um quadro que também se enquadra na figura da representação

de Jan van Eyck, Casal Arnolfini. Nele, o pintor usa o reflexo de um espelho pintado ao fundo, no qual se representa pintando, para servir como um “documento” da testemunha dele do casamento. Os objetivos presentes nessa pintura e os que aparecerem na de Velásquez parecem diferentes, se tomarmos como ponto de distinção o fato de que a temática de Velásquez era a representação.

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Para o humanista, não resta dúvida de que não existe transmissão hereditária da virtù e de que, portanto, é preciso adquiri-la ao longo da vida e manifestá-la através de atos por todos conhecidos e que sirvam à cidade e não apenas aos próprios interesses mesquinhos. O caminho para atingir esse patamar da existência é indicado pelo próprio jovem, que desde a infância se dedicou com afinco ao estudo das letras. […] Os studia humanitatis permitem, assim, aos homens ao mesmo tempo se vincular ao passado, no que ele teve de grandioso, e pensar sua época como algo a ser construído pela ação livre daqueles que forem capazes de grandes ações (Bignotto, 2001, p. 158 e 160 apud BRANDÃO, 2010, p. 5).

O que mais interessa na pesquisa de Brandão é que este considera o Anti-Humanismo uma força intrínseca ao Humanismo, como a própria Ciência Humana, e que simultaneamente serve de crítica para o mesmo, desde o Renascimento. É importante explicitar que a referência de Brandão é a esse contexto do Renascimento, pois há diferentes tipos de Humanismos que poderiam ser aqui citados. No Humanismo exposto por Brandão, retrata-se uma espécie de virtude que é transmitida entre as pessoas, sendo reconhecida e adquirida. No entanto, a modernidade no século XIX procura algo que possa ser reconhecido em qualquer tipo de ser humano, como se houvesse um ponto em que todos pudessem ser identificados como pertencentes ao que chamarei de civilização. Sobre tal aspecto, argumenta o autor:

O anti-humanismo foi contraído para o interior do século XV e visto como força constituinte do próprio renascimento. Melhor, talvez, é não mais considerarmos “humanismo” e “anti-humanismo” como dois momentos contrapostos sucessivos: para nós, “anti-humanismo” é a consciência crítica do próprio humanismo projetada sobre si e sobre os humanistas de seu tempo. (BRANDÃO, 2010, p. 2).

Começamos a ver, entretanto, uma relativização do que é a essência humana. Se, segundo Sartre, o Humanismo é aquilo que atribui ao homem uma característica específica, um tipo de essência, Marx, por sua vez, na leitura de Althusser, escapa da nova episteme baseada na Antropologia: atribui cientificidade e inaugura um pensamento histórico-social, o que gera uma quebra de paradigmas e introduz o que podemos citar novamente como “Anti-Humanismo”, só que agora em um contexto do século XX, não mais enxergando a essência do homem como algo ligado a Deus.

Não precisamos discutir aqui se Althusser estava total ou parcialmente certo ou inteiramente errado. O fato é que seu trabalho tenha sido amplamente criticado, seu “Anti-Humanismo” (isto é, um modo de pensar oposto às teorias que derivam seu raciocínio de alguma noção de essência universal do Homem, aloja em cada sujeito individual) teve impacto considerável sobre muitos ramos do pensamento moderno (HALL, 2006, p. 36).

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Ao citar o Anti-Humanismo marxista nesta dissertação, estou ressaltando que o Humanismo tinha um papel normativo do que seria uma essência humana, e que muitos, incluindo o protagonista Woyzeck, não correspondiam ao modelo imposto. Mesmo aqueles que estavam compreendidos dentro do modelo, como as demais personagens da peça, eram subordinados a uma vida “civilizada” – termo que será revisto adiante – para estarem dentro dos parâmetros impostos.

Fica evidente, portanto, que a abordagem defendida afasta-se de qualquer ponto de vista essencialista, universalista e normativo.

1.2) Essência e vazio

Ao falar sobre a sensação de vazio causada pela solidão do indivíduo, é importante

salientar que a ideia de identidade surgiu atrelada à noção do que é o sujeito, e o nascimento deste conhecimento é marcado pelo Iluminismo, período em que o homem se reconheceu como ser passível de dúvidas e de estudo.

A modernidade inaugura uma nova forma de pensar, a qual não é guiada pela tradição senão pela variação, o que faz com que o sujeito assuma posições distintas, desarticulando a memória tradicional. “As sociedades modernas, argumenta Laclau, não têm nenhum centro, nenhum princípio articulador ou organizador único e não se desenvolvem de acordo com o desdobramento de uma única ‘causa’ ou ‘lei’” (HALL, 2006, p. 16). Isto não impede, no entanto, que lembremos o eixo a partir do qual se articulam as “variações”: o modelo branco, europeu e masculino.

Hoje, entretanto, é possível afirmar que as instituições Estado e Igreja não são mais aquelas que organizam a sociedade. Na modernidade, nasceram novas formas de organização, como as indústrias, os sindicatos e outras religiões formadas após a Reforma e Contrarreforma da Igreja Católica. Esse formato de organização provoca, já no início do século XX, um sentido do indivíduo contra o mundo ou multidão6.

6 Gabriel Tarde, em seu livro A opinião e as massas, distingue a utilização dos conceitos de público e multidão

no século XIX e no início do século XX. O autor descreve a multidão como a junção de corpos em um mesmo espaço. Em contrapartida, o público é composto por pessoas com a mesma opinião, sem precisarem estar presentes no mesmo espaço. Tarde também escreve que uma multidão pode surgir através do público: “A multidão, grupo amorfo, surgido aparentemente por geração espontânea, é sempre subelevada, em realidade, por um corpo social do qual um membro lhe serve de fermento e lhe confere a sua cor” (TARDE, 2005, p. 33). Já para Negri e Hardt (2014), a multidão é composta por vários corpos distintos, tomando um caráter disforme e ameaçador para os que estão de fora. O “monstro multidão” não pode ser previsto, já que coopta diferentes indivíduos. Arrematando sua observação, os autores recorrem aos postulados de Spinoza sobre o corpo: “El cuerpo humano – escribe – se compone de um gran número de indivíduos de diferente naturaleza, cada uno de

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Rosenfeld descreve a sensação de vazio, intensamente ligada às questões alemãs em 1830. Neste período, assistimos alguns embates, como Iluminismo x Romantismo e burguesia x nobreza. Este “entre” algo e outro, em um mundo em que só se conheciam dois lados, era um lugar de vazio e de inadaptação. Rosenfeld, ao falar de Büchner, traz esse tom de não-lugar, já que “[…] a derrocada dos ideais e esperanças suscitou no jovem escritor uma sensação de vazio” (ROSENFELD, 1985, p. 78).

Em O teatro épico, quando se depara com a questão da solidão exposta na obra de Büchner, o teórico sublinha a diferença entre a solidão romântica, vivenciada em O sofrimento do jovem Werther, a solidão do gênio e a solidão expressa por Woyzeck, descrevendo-a como uma “[…] solidão da massa solitária, concebida como fato humano fundamental num mundo que, tendo deixado de ser um todo significativo de que todos participam, se transforma num caos absurdo em que cada qual permanece forçosamente isolado” (ROSENFELD, 1985, p.78 e 79).

Irene Aron ainda complementa essa discussão analisando que em Woyzeck:

A solidão do homem, não como simples atitude romântica, mas concebida como consequência inevitável da própria condição humana, num mundo que se tornou caótico e hostil a qualquer aproximação entre as pessoas, evidencia-se como mais um aspecto extremamente moderno da obra de Büchner (ARON, 1993, p. 154).

A ideia de público, exposta por Gabriel Tarde (2005) como aquilo que une pessoas com uma mesma opinião através de fronteiras (graças ao advento da imprensa), parece contribuir para esse estado solitário e isolado do homem, já que não é preciso estar necessariamente junto para fazer parte de um grupo. Nesse aspecto, para se ter opinião, precisa-se fazer parte de uma determinada classe social, já que o acesso à informação requer uma série de privilégios, dentre os quais, a alfabetização. Woyzeck, por não fazer parte da classe social privilegiada, não faz parte do que Tarde conceitua como “público”, estando fadado a ser multidão, gerando, em vez de opinião, revolta. Por estar à margem do estado civilizatório, não compreendendo o que as Ciências Humanas e o Humanismo indicam como essência humana, Woyzeck é a multidão de um homem só.

Rosenfeld (1977) aponta a questão da essência7, que é, como vimos anteriormente, muito cara ao Humanismo. Büchner parece brincar com a essência. Ele demonstra que, na verdade, somos o que somos e somos essencialmente nada. Portanto, pode-se recusar uma los cuales es de una gran complejidad, y sin embargo esa multitud de multitudes es capaz de actuar em común como um solo cuerpo. (SPINOZA apudHARDT; NEGRI, 2014, p. 225).

7 O Humanismo pode ser considerado como uma doutrinação que determina as diretrizes do que é a essência

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análise essencialista e evolucionista da vida. Esquematicamente, se somos essencialmente nada, o modelo humano ditado pelo Humanismo e pelas Ciências Humanas também nada significa. O conto que há dentro da dramaturgia, no qual se dá a voz da personagem secundária Avó, é uma síntese do que indica a peça:

Era uma vez uma pobre criança e ela não tinha nem pai e nem mãe, estavam todos mortos e não lhe restava ninguém no mundo. Todos mortos, e ela chorava dia e noite. E como não lhe restava ninguém na terra, ela quis ir para o céu, e a lua a olhava com muito carinho; e quando finalmente ela chegou à lua, esta não passava de um toco de madeira podre, e então a criança foi para o sol, e quando chegou ao sol, este era apenas um girassol murcho, e quando chegou as estrelas, elas eram pequenos mosquitos dourados que estavam espetados como o picanço espeta-os na ameixa brava, e quando ela quis voltar pra terra, a terra era uma vasilha entornada, e ela estava inteiramente só, e ela sentou-se e chorou, e continua sentada ali e está muito só (BÜCHNER, 2004, p. 259).

A observação de que o conto funciona como uma síntese temática da peça pode ser reforçada pela leitura de Irene Aron (1993). A autora, além de escrever sobre a essência e a importância da pequena narrativa para o drama, atenta que há um estilo mais anti-humanista do que humanista na escrita de Büchner.

Por intermédio desse conto, cristaliza-se uma parábola a respeito da solidão humana, na verdade, a essência da peça. Sob esses aspectos, o conto da avó revela-se como um anti-conto de fadas, pois, embora mantenha a estrutura e a linguagem próprias da narração infantil, associada à imagem de um universo mágico e maravilhoso, no qual tudo sempre termina bem, seu conteúdo mostra uma dura e sinistra realidade. Por detrás das aparências, desvenda-se um mundo sem valores, no qual o homem büchneriano cumpre sua caminhada solitária (ARON, 1993, p. 99).

Ressalto aqui que, embora exista uma visão anti-humanista desde o Renascimento, há

um anacronismo ao citar Woyzeck. Detenho-me não ao conceito, mas ao ideal da essência humana e como esta, na verdade, é desconstruída durante a peça.

1.3) A questão da civilização

A leitura de Bauman (1998) sobre Freud, em O mal-estar na pós-modernidade, dá o tom de provocação em O mal-estar da civilização. Já que a modernidade foi a grande inauguradora do sentimento de ativação cultural e de civilização, poderíamos dizer que o

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termo “civilização moderna” é um pleonasmo, já que, segundo Freud, foram os modernos que criaram a civilização como a conhecemos hoje.8

Devido ao autoconhecimento em que a modernidade se centrou, na maioria das vezes, acreditamos que esse conhecimento sobre si e certo cerceamento normatizado pela civilização estariam relacionados a um “avanço”, porém todo avanço gera uma atitude de desprendimento com o passado. Por isso, quando falamos de civilização, estamos renunciando àquilo que é considerado instintivo no ser humano, o que causa, por conseguinte, um grande mal-estar. Neste ponto, é importante entendermos que o recalcamento sofrido pelo “Eu” de Freud é utilizado por Foucault para observar uma malha social. Associar Freud e Foucault implica em revisitar também as divergências entre eles, já que a Psicanálise é um desenvolvimento das Ciências Humanas. Por outro lado, as críticas devem também ser citadas. História da loucura será estudado posteriormente. Por enquanto, lembremos que

O princípio do prazer está aí reduzido à medida do princípio de realidade e as normas compreendem essa realidade que é a medida do realista. O homem civilizado trocou um quinhão de suas possibilidades de felicidade por um quinhão de segurança. (BAUMAN, 1998, p. 8).

O vazio sentindo pela personagem Woyzeck pode ser fortemente atrelado a esse mal-estar citado por Freud e Bauman (Sartre, em A náusea, também exemplifica isso). Woyzeck é comparado, muitas vezes, a um animal, ou até ainda mais inferiorizado, como no caso deste trecho: “O macaco já é soldado, o que não é muito, o degrau inferior da espécie humana!” (BÜCHNER in GUINSNBURG, KOUDELA (ORG.), 2004, p. 242). Este fala é citada na cena em que as personagens se encontram em um ambiente análogo a um circo onde animais são adestrados para serem civilizados e comportarem-se de forma educada. Porém, Woyzeck, na sua condição de inferior (um “macaco soldado”), ainda cede aos seus instintos, como é possível perceber:

(...)

Woyzeck – O que foi, senhor doutor?

Doutor – Eu vi Woyzeck; você mijando na rua, contra o muro como um cachorro. No entanto você ganha duas moedas por dia. Woyzeck, isso é mau.

O mundo está ficando mau, muito mau.

Woyzeck – Mas senhor Doutor, se a natureza exige da pessoa.

8 É importante explicitar que a autodenominação da civilização greco-romana está mais próxima ao conceito de

sociedade do que ao conceito de civilização como o entendemos hoje. Alteração semântica que também acontece com o conceito de barbárie. Bárbaro, para os romanos, denominava quem não pertencia àquela sociedade, enquanto que, para os modernos, bárbaro é aquele que age de forma cruel e impensada.

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Doutor – A natureza exige, a natureza exige! A natureza! Pois eu não demonstrei que os musculus constrictor visicae9 está subordinado à vontade? A natureza! Woyzeck, o homem é livre, no homem a individualidade se transfigura em liberdade. (...) (BÜCHNER in GUINSNBURG, KOUDELA (ORG.), 2004, p. 248).

Em muitos trechos da peça, como na passagem acima, o estado animal é transmitido como um estágio anterior ao civilizacional. Aron (1993) evidencia que embora o Doutor utilize a liberdade e a capacidade de escolha como fatores que marcam a presença humana, ainda assim utiliza Woyzeck como cobaia, o que fica explicitado em uma cena subsequente, quando animaliza e marginaliza Woyzeck perante a sociedade.

Podemos perceber claramente, em toda dramaturgia de Woyzeck, que as pessoas e os animais são restritamente separados pela capacidade de controlar os instintos, isto é, pela sua natureza, como se isso distinguisse o ser humano bom do ser humano ruim, e justamente este parece ser um ponto de crítica na dramaturgia. Quando Sabato Magaldi (1989, p. 164) escreve que “[…] desamparado de uma razão superior, o homem aferra-se à natureza”, podemos ilustrar sua colocação a partir do seguinte diálogo entre o Capitão e Woyzeck.

[...]

Capitão – (...) Woyzeck, você é um homem de bem, um homem de bem…, mas, (Com dignidade) Woyzeck, você não tem moral. Moral é quando se tem moralidade, você entende? É uma boa palavra. Mas você tem uma criança sem a benção da igreja (...).

(BÜCHNER in GUINSNBURG, KOUDELA (ORG.), 2004, p. 246).

Averiguamos que, na maior parte do tempo, Woyzeck é aquele que mantém relações consideradas instintivas com a maioria das personagens. Sua relação com Marie, por exemplo, é a única que lhe dá prazer, sendo, contudo, uma relação que se restringe basicamente ao aspecto sexual. Sem esquecer de mencionar, é claro, as passagens de ciúme, que o levam a assassiná-la e a questão da procriação, uma vez que os dois têm um filho.

Nessa analogia constante entre Woyzeck e uma postura animalesca, poderíamos observar se fica evidente, no texto, uma “preocupação Darwinista”10 de melhorar a espécie.

Woyzeck não demonstra preocupação em relação ao seu filho. Ademais, o já mencionado trecho: “(...) O macaco já é soldado, o que não é muito, o degrau inferior da espécie humana! (...)” (BÜCHNER in GUINSNBURG, KOUDELA (ORG.), 2004, p. 242), faz perceber que, na verdade, não há uma condição evolutiva, no sentido darwinista, em Woyzeck, mas sim

9 “A expressão latina refere-se ao esfíncter que controla a bexiga” (GUINSNBURG, KOUDELA (ORG.), 2004,

p. 248).

10 Embora o livro A origem das espécies, de Darwin, tenha sido publicado 22 anos após Woyzeck, o pensamento

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uma involução. Suas práticas animalescas colocam em xeque o estado civilizatório do humano moderno. Woyzeck transborda aquilo que o Humanismo e a modernidade caracterizaram como ser humano. A peça introduz um homem que, simultaneamente, está localizado em seu tempo e parece ser o avesso do seu próprio tempo.

Este paradoxo faz lembrar a paridade entre luz e sombra, exposta pela gemelaridade que faz do homem uma sombra escura de si mesmo (As palavras e as coisas). No caso de Woyzeck, ele próprio explicita a sombra escura da modernidade. Foucault, ao falar do panóptico, que domestica o homem, volta a falar de luz e sombra: “O panóptico é uma máquina de dissociar as dimensões gemelares ver-ser visto; no anel periférico, se é totalmente visto sem se ver; na torre central, vê-se tudo, sem ser visto” (FOUCAULT, 1979, p. 167). A partir desta fala, reitero que Woyzeck é um homem de seu tempo, porém à margem dele.

Voltando ao trecho de Bauman (1998, p. 8), discutido acima, a questão desenvolvida entre a segurança e a felicidade é complexa, pois, quando há escassez de liberdade em prol de uma ordem, significa que o acréscimo de “segurança” implica em mal-estar. Quando há mais liberdade e menos ordem, há um problema na segurança, contudo, há também um menor mal-estar. Segundo Freud, o mal-estar que há na falta de liberdade é gerado porque existe uma dissonância entre o instinto humano e o estado civilizatório, aquele que prevê a ordem da sociedade. Uma liberdade sem segurança não assegura a felicidade. Tampouco o contrário.

Bauman, ao filosofar acerca desse mal-estar experimentado pelo homem, coloca como sintoma da ordem a questão da pureza. Quando ele elucida o sentido da busca da pureza no mundo, refere-se à invenção do que seria puro e do que seria impuro. A invenção desse sentimento permite fazer uma ligação clara com o lugar, que, por seu turno, influenciaria no atributo de pureza ou impureza. Bauman, para falar sobre a noção de pureza, apresenta o exemplo de uma omelete presente em dois lugares diferenciados: em um prato na mesa do jantar e em um travesseiro de cama. Poderia estender esta abordagem para analisar o lugar em que Woyzeck habita durante a peça: se, por um lado, ele e a sua marginalidade desempenham o papel de subserviência perfeita, por outro, quando a sua marginalidade afeta os demais cidadãos, há uma tentativa de limpeza de seus aspectos “marginais”. Em outras palavras, se se torna impossível tirar a marginalidade animal do ser humano, este próprio é varrido.11

A leitura em relação ao antônimo pureza/impureza pode remeter às questões de higiene expostas por Foucault em História da loucura. É possível observar que o pedido de exclusão do louco na sociedade era análogo à prática renascentista em relação à lepra. As

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práticas de exclusões são antigas. Em seu estudo, Foucault não assimilou os monstros, expostos por José Gil (2006), como um tipo de exclusão, porque esses eram criados para servirem, muitas vezes, de alegorias. O filósofo elegeu a lepra como exemplificação por uma questão de contexto histórico, já que se tratava de algo ligado à lógica “higienizadora”, que era legitimada, dentre outros, pelo cunho cristão. Após a erradicação da lepra, iniciou-se uma série de exclusões de pessoas na sociedade, ou, em outros termos, o processo de higienização.

Se formos estudar o curso, que virou o livro Os anormais, também de Foucault, notaremos que o tipo de questão incitada na modernidade em relação a crimes cometidos não é mais a da súplica do criminoso que confessa, e sim a do estudo sobre a conduta do criminoso, bem como o isolamento de pessoas com a mesma conduta. A dinâmica do punir passa da religião para a razão, buscando as motivações do crime. Por outro lado, a racionalidade também perpassa o condenado, já que não se pode punir aquele que não está em sua razão. A Psiquiatria, segundo Foucault, surge para identificar a loucura dentro do crime e dos criminosos, sempre entre o penal e o social. Levando em consideração que a identificação do louco na modernidade se dava pela não obediência a hierarquias, percebemos em Woyzeck uma contração nesse paradigma: embora à margem da civilização, ele se colocava em disponibilidade para atender às hierarquias, não sendo considerado louco nos eventos verídicos (expostos na nota de rodapé número 6). Então, por esse motivo, não existe pesar na morte do Woyzeck histórico12 e nem pesar quando a personagem Doutor a trata como um

experimento científico:

[...]

Woyzeck – Senhor Doutor, estou com tremedeira.

Doutor (muito satisfeito) – Ai, ai, muito bem, Woyzeck (...)

(BÜCHNER in GUINSNBURG, KOUDELA (ORG.), 2004, p. 257).

Como herança do trato da lepra, está o trato da loucura, e assim como a lepra, a loucura suscita nas pessoas, a partir do século XVII, uma vontade de exclusão, de divisão e de segregação. Mas pode-se perceber que a loucura se tornou enclausuramento por dois motivos diferentes. No século XVII, a loucura era vista como afronta à moral, tendo que ser combatida pela sua imoralidade. Já no século XIX, a loucura era vista como uma conduta desviante e por

12 A ideia de um “Woyzeck histórico” será destrinchada ao longo da dissertação, tendo em vista que a peça foi

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isso deveria ser reparada. Nos dois casos, porém, o motivo que levou ao enclausuramento dos loucos estaria ligado ao mesmo motivo da erradicação da lepra: higiene social.

Esta questão retoma a discussão sobre pureza, pois devemos ter em mente que a pureza está ligada à higiene e à ordem. Já o seu contrário, a sujeira, está ligada à desordem. Mas essa ideia não é absoluta ou universal, pois, se expandirmos a leitura para o conceito de “pureza não estrutural”, proposto por Mary Douglas (apud BAUMAN, 1998), entenderemos também o aspecto ritualístico presente no ato de limpar:

A sujeira, sugeriu Douglas, é essencialmente desordem. Não há nenhuma coisa que seja sujeira absoluta. Ela existe ao olhar do observador (…). A sujeira transgride a ordem. Eliminá-la não é um movimento negativo, mas um esforço positivo por organizar o ambiente (…) Ao perseguir a sujeira, forrar, decorar, arrumar, não estamos dominados pela angústia de fugir à doença, mas estamos, decididamente, reorganizando o nosso ambiente, adaptando-o a uma ideia. Não há nada de temível ou irracional em evitarmos a sujeira: é um movimento criativo, uma tentativa de relacionar a forma com a função, de dar unidade à experiência (...) Para concluir, se o desasseio é coisa inapropriada, devemos atacá-lo através da ordem. O desasseio ou a sujeira é o que não deve ser incluído se um padrão precisa ser mantido. (BAUMAN, 1998, p.16).

Cada época tem um padrão de pureza diferente, porém, nós podemos fazer uma analogia imediata entre “varrer a sujeira” e “estigmatizar os traidores ou expulsar os estranhos”, lemas que demarcar, em tempos distintos, o anseio pela manutenção da ordem. A questão exposta por Bauman, em relação à vida cotidiana, é que a mesma requer uma série de regras e manutenções para a sustentação da ordem. Se surge um estranho ou desviante na lógica cotidiana, a manutenção da ordem fica ameaçada. A questão é que a sujeira se prolifera em inúmeros sentidos, então, a higiene, como protetora da ordem, tem que se reinventar para poder limpar o sujo, rompendo com a tradição.

Sendo assim, temos uma instabilidade constante na busca da estabilidade pela limpeza e pela ordem. Portanto, a eliminação da sujeira em si pode ser impossível. O que deve-se é “colocá-la no lugar certo” para que não desordene o ambiente. Esse ideário social demonstra como a modernidade buscava um “mundo perfeito”, que, em teoria, era um mundo “anti-moderno”,13 já que o mundo perfeito exige uma estabilidade na qual os saberes são estanques.

Magaldi, em Woyzeck, Büchner e a condição humana, aponta que, na verdade, o instinto só é permitido àqueles que não são sujeira. Para estes, um ato violento não passa de uma obrigação para cercear os instintos do que é sujeira: “O Tambor-mor não só desfruta Marie, mas também humilha Woyzeck; Quer obrigá-lo a beber, depois do instinto satisfeito, e,

13 Ressalto que “anti” é sempre o desdobramento do próprio conceito. Retomando a gemelaridade foucaultiana,

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como Woyzeck recusa (protesto orgulhoso do fraco), surra-o sem piedade” (MAGALDI, 1989, p. 165).

As considerações feitas por Magaldi sobre os “algozes da sujeira”, ou, no caso da peça, os algozes de Woyzeck – Capitão e Doutor – também explicitam um pouco do tempo ocioso que a personagem Capitão vive, passando longas horas sem produzir no exercício de sua função como chefe do exército. Esta observação pode ser atestada pela seguinte fala do Capitão: “Devagar, Woyzeck, devagar, uma coisa após a outra, (...) O que vou fazer com os dez minutos que você ganhou terminando mais cedo? (...)” (BÜCHNER in GUINSNBURG, KOUDELA (ORG.), 2004, p. 245).

1.4) O desenvolvimento psíquico da nova episteme

A primeira leitura de Woyzeck, por Magaldi, parece ir ao encontro do homem do século XIX, homem este que, segundo Freud (1930) descreve no livro O mal-estar na civilização, é inacabado. Ao citarmos a noção de sujeito exposta por Freud, a qual, de acordo com Hall (2006), ajudou com a fragmentação do indivíduo, temos que ter em mente que o Eu exposto por ele pode ser relacionado à ideia do Id14. Freud escreve sobre um Eu que não pode ser acabado, pois está sempre em formação. Percebemos o inacabamento do sujeito, por exemplo, quando estamos à deriva da relação amorosa, quando, muitas vezes, os amantes expressam que o eu-tu se confundem em algum aspecto. O que Freud também quer apontar é como o Eu é exposto ao mundo exterior o tempo todo. É importante ressaltar que o inacabamento também resulta em um modelo de homem individual e autônomo. Quando falamos nesse entrelaçamento, podemos constatar instantaneamente a dicotomia cartesiana.

A patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu entre o mundo externo se torna problemática, ou os limites são traçados incorretamente; casos em que parte do próprio corpo e componentes da própria vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como alheios e não pertencentes ao Eu; outros em que se atribui ao mundo externo o que evidentemente surgiu no Eu e que deveria ser reconhecido por ele (FREUD, 1930, p. 12).

Ao associarmos esses conceitos com a personagem Woyzeck, percebemos uma complexa relação do mesmo com o mundo exterior, pois ele é um títere, como no teatro de

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marionetes de Kleist15, sendo um animal que age conforme os seus instintos. O que podemos

perceber muitas vezes é que a marginalização que a massa faz com o homem solitário, assunto que abordarei adiante, torna o automatismo vivido por Woyzeck insuportável, gerando a sua revolta final. Na peça, a fala inicial do Pregoeiro já anuncia o estado animal que o homem, mesmo autômato, tem, e que, no final das contas, é o estado que prevalece ao tomarmos consciência da solidão do Eu.

Pregoeiro (diante da tenda) – Meus senhores! Meus senhores! Vejam a criatura como Deus a fez, nada, nada mesmo. Vejam agora a arte: anda em pé, usa calças e jaquetas, tem uma espada! Oh! Faça um cumprimento! Assim você é um barão. Dê um beijo! (...) Tudo neles é educação, apenas tem uma razão animalesca, ou antes, uma animalidade inteiramente racional (...) (BÜCHNER in GUINSNBURG, KOUDELA (ORG.), 2004, p. 242).

Freud (1930), ao escrever sobre a sensação do Eu adulto, explica que ela foi construída através dos anos. Quando um bebê está com fome, só o que pode suprir a sua dor é um objeto externo, como o leite da mãe. Desse modo, vemos uma primeira separação entre o Eu e o mundo externo. A dor causada por si mesmo não é aceitável para um ser que procura seu bem-estar e o prazer, e, por isso, há uma demanda pelo que é externo. Nessa procura, vemos um Eu se misturar com o mundo. Por exemplo, pensar em um Eu de prazer e uma dor vinda de fora, mesmo quando essa dor é interna, é uma construção de Eu.

Freud compara as nossas mudanças psíquicas com as mudanças de uma cidade: um prédio que estava em certo local, cinco anos atrás, e fora demolido recentemente, pode ser lembrado, porém já não é mais visível. Isso é o que acontece com as transformações da nossa psique. O que Freud tenta explicar é que o sofrimento, ao lidar com o mundo externo, nos torna mais centrados em nós mesmos. Nesse processo, passamos a considerar que não sofremos influências do mundo, já que estamos fechados a ele:

O fato de o Eu, na defesa contra determinadas excitações desprazerosas vindas do seu interior, utiliza os mesmos métodos de que se vale contra o desprazer vindo de fora, torna-se o ponto de partida de significativos distúrbios patológicos. É deste modo, então, que o Eu se desliga do mundo externo. Ou mais corretamente: no início o Eu absorve tudo, depois separa de si um mundo (FREUD, 1930, p. 13).

15 Em seu pequeno texto Sobre o teatro de marionetes, Kleist, através de um “conto-conversa” entre o narrador e

um bailarino, apresenta uma nova visão sobre os simulacros. Se originalmente, em um pensamento clássico, homem e máquina, ou marionete e operador, separam-se, para Kleist a função maquina-operador-deus é o que traz a perfeição dos movimentos do simulacro. As qualidades do simulacro se sobressaem se comparadas às qualidades humanas. Para uma definição de “Simulacro”, conferir a nota de número 32.

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Tal condição exposta por Freud é colocada, em outros termos, por Magaldi a respeito de Woyzeck. Segundo o autor, há um “terrível requisitório da condição humana” (MAGALDI, 1989, p. 163), do qual a personagem não pode fugir, já que é o protótipo perfeito da subserviência hierárquica na sua condição de soldado. Condição que é contraditória à noção de natureza humana e se insere na ordem das circunstâncias, sejam sociais, culturais ou históricas, está posta à prova perante a nova diretriz mundial, época em que o castigo exemplar vai sendo substituído pela vigilância que, por vezes imperceptível, é permanente. Woyzeck, dentro do contexto moderno, não é útil, porque sua função de soldado é restrita a situações de guerra. A personagem é colocada em uma situação de total vigilância, sob a qual há uma análise constante de sua vida e sua natureza. Poderíamos citar um dos cenários de Büchner como uma visão real do panóptico de Foucault: “O pátio do Professor. Estudantes embaixo, o Professor na janela do sótão” (BÜCHNER in GUINSNBURG, KOUDELA (ORG.), 2004, p. 286).

1.5) O panóptico

A descrição desse cenário nos é cara para sustentar a ideia moderna de que o controle de corpos acontece através da arquitetura, que faz com que todos sejam vigiados constantemente. Panóptico é o nome desse mecanismo da arquitetura moderna, que foi criado por Jeremy Bentham. Trata-se de um modelo arquitetônico que atua na distribuição dos corpos em lugares como prisões, fábricas, manicômios e escolas.

O Panóptico (1987) se constitui por um edifício em um formato circular, quase sempre com o seu intervalo vazado, formando assim um pátio com uma espécie de torre no meio. O círculo é dividido em pequenas celas que podem se situar tanto para o exterior do edifício quanto para o interior do pátio. O funcionamento das celas depende exclusivamente do objetivo da instituição: se for uma fábrica, terá um funcionário trabalhando, em uma escola, terá uma criança estudando, em um hospício, um doente se recuperando e em uma prisão, um presidiário se reabilitando. Parece que o ambiente do panóptico se torna propício para a exclusão de indesejáveis, a delimitação e disciplina do desejável e a análise da subjetividade humana. A delimitação da subjetividade humana está intrinsecamente ligada à vigilância panóptica em todas as instâncias e épocas da vida, pois o modelo gera uma disciplina orgânica, a qual se reflete no medo de ser visto em uma atitude não civilizada e, consequentemente, punido.

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Ao retornarmos a Woyzeck, percebemos, então, que o soldado altera os momentos de subserviência dentro de uma arquitetura panóptica, como nos momentos em que ele é um indivíduo contra um público ou uma multidão sem rosto. Quando ele não é requisitado como soldado, a questão do ócio se torna visível e provoca na personagem uma sensação de vazio: “Woyzeck – Senhor Capitão, sou um pobre diabo… e não tenho nada no mundo senhor Capitão (...)” (BÜCHNER in GUINSNBURG, KOUDELA (ORG.), 2004, p. 251).

No trecho exposto acima, Loureiro (2006) ressalta que embora a relação do tempo com o Capitão e com Woyzeck seja diferente, torna-se uma problemática para ambos. A questão mais preciosa sobre o tempo é que Woyzeck, envolto em um regime feudal tardio e decadente16, opera, ou precisa operar, como as máquinas da modernidade. Em outras palavras, o regime transmuta Woyzeck num híbrido animal-máquina.

No caso de Woyzeck, é preciso ter no horizonte a realidade social alemã do início do século XIX, com relevo para as condições de vida de seu proletariado urbano, para o qual uma jornada laboral de dezesseis horas era frequentemente regra, e o descanso dominical, muitas vezes, a exceção (REDONDO, 2006, p. 61).

Acredito que o tempo de ócio ganho pela personagem Capitão pode ser coligado às novas diretrizes tomadas na modernidade, na qual o exército se torna mais hierárquico e disciplinar, dispondo os trabalhos de forma distinta. Ao analisarmos as instituições que organizam a sociedade das mais diversas formas na modernidade, faz-se essencial falar da lógica prisional moderna através do livro Vigiar e punir, de Foucault (1999), percebendo como ela atua na questão crucial da liberdade. Ao relembrarmos a história da punição, somos levados a cenas grotescas de esquartejamento, torções e as mais cruéis formas de tortura, que tornam o condenado um verdadeiro mártir e o carrasco um grande assassino. “A punição pouco a pouco foi deixando de ser cena” (FOUCAULT, 1999, p. 13), o caráter de súplica imposto pelo Estado foi sendo refletido de uma forma diferente. Com a inauguração das questões relacionadas à civilização, o antigo sistema não parecia ser fundado pela razão, mas, pelo contrário, agregaria um tom de barbárie aos governantes. Também havia a preocupação de um estado disciplinar que não tivesse lacunas e nem espaço para sujeira, que atuasse de forma constante e permanente na vida urbana: “Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do

16 O processo da Revolução Industrial ocorreu em 1820 na Inglaterra e se espalhou pela Europa nos anos

seguintes, porém, a unificação da Alemanha só ocorre no ano de 1870 em conjunto à industrialização da mesma. Até esse período, a Alemanha era dividida em reinos, que tentavam suprir a demanda mercadológica da época.

Referências

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