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Cenografia do conhecimento : a dimensão estética da escola

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Academic year: 2021

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UNVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

ESTER MALKA BRONER GIANNELLA

CENOGRAFIA DO CONHECIMENTO: A DIMENSÃO ESTÉTICA DA ESCOLA

CAMPINAS 2015

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ESTER MALKA BRONER GIANNELLA

CENOGRAFIA DO CONHECIMENTO: A DIMENSÃO ESTÉTICA DA ESCOLA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Educação, na área de concentração Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte.

Orientadora: Profa. Dra. Ana Angélica Medeiros Albano

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA ESTER MALKA BRONER GIANNELLA E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. ANA ANGÉLICA MEDEIROS ALBANO.

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

CENOGRAFIA DO CONHECIMENTO: A DIMENSÃO ESTÉTICA DA ESCOLA

Autora: Ester Malka Broner Giannella

COMISSÃO JULGADORA:

Profa. Dra. Ana Angélica Medeiros Albano Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado

Profa. Dra. Renata Cristina Oliveira Barrichello Cunha Profa. Dra. Marcia Lágua de Oliveira

Profa. Dra. Luciana Esmeralda Ostetto

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno. 2015

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AGRADECIMENTOS

À Nana Albano, pela afetividade expressa na confiança, na leitura orientadora, na ênfase por extrair um sentido de beleza na vida; mote tão presente em seu olhar curador, ensejando sempre nossas exposições mais sensíveis.

Aos queridos professores da Banca de Qualificação e Defesa, intercessores desta tese, Guilherme do Val Toledo e Luciana Ostetto, pela atenção generosa e criativa, incitando rumos que fizeram toda a diferença para essa viagem. E a Marcia Lágua, Renata Barrichello, as suplentes, Simone Cintra, Rosvita Kolb e Marcia Strazzacappa, por aceitarem compartilhar comigo a leitura dessa minha exposição.

Aos professores Cleide Terzi, João Frayze-Pereira, Stela Barbieri, pelas conversas, indicações preciosas, propiciando conexões fenomenológicas nas dimensões éticas e estéticas no cenário da escola.

Ao LABORARTE, pela recepção afetiva aos coletivos de pesquisa, aproximando pessoas a mim tão especiais: Nana A., Marcia Strazzacappa, Nana Ayoub, Ana C. Rossetto, Agda, Henrique, Lucília, Simone, Rosvita, Luciana, Rô Reyes, Márcia Lágua, Mirza, Tomás V., Lilian, Laura P., Lelê, Rey, Luís Porter...tantos outros e Rosaura, que vem do querido GEPEC e de outros lugares de mim, presenças fortes desta jornada, empatia no olhar e no abraço aos nossos dilemas.

A Paulo Machado, Mara e Candido, pelos melhores tempos dessa trajetória vividos na estética do Matutu, na casa, na escola e no templo.

À Dora Montenegro e Rachel Dantas, pelo espírito de abertura e acolhimento em nossa visita aos Centros de Educação Científica Escola Alfredo J. Monteverde.

À professora e amiga Ana Spyer, por me reaproximar de tudo que me fez sonhar a Bahia, por me levar de volta ao teatro e à dança, companhia forte e segura para os cenários de intervalos da tese.

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Aos professores e educadores da escola, todos sem exceção, e também aos alunos, atores e autores dessa cenografia do conhecimento, pela convivência mais do que amável e inspiradora de uma outra apropriação da escola.

À Débora Vaz, pela recepção absoluta às construções de minha pesquisa, meu projeto, abrindo o coração e voando comigo pelos corredores do mundo em busca de novas paisagens para a escola.

À Andrea Martin, Airton Pretini, Carolina Cossi, Carina e Gabriel Ribeiro, Danielle Ambrósio, Danilo Hernandes, Leticia Higuchi, Luiz Rodrigues, Marisa Misae, Renato Nadal, Ricardo Francisco, Rosana de Pieri, Silvia Letícia e Teresa e Daniel Castanho pela cumplicidade nas inquietações da gestão, cotidianamente, percorrendo comigo os corredores da escola, partilha imprescindível na criação de nossos inéditos viáveis. E, também, à Cintia Simão e Rosa Antunes de Barros, porque seguem tão presentes em suas heranças afetivas e pedagógicas.

Ao Wilson Leal, pela ação estética e amorosa com que que edita nossas produções, delicadeza precisa de quem maneja peças para meditação.

À Leda Farah, pelas correções, primores e endireitamentos em seu trabalho de doula literária. À Marly Ribeiro Conceição, minha colaboradora nos cuidados da casa, pela amizade e presteza. Aos amigos e familiares, pela serenidade com meu distanciamento de nossa boa vida em comum. Ao Dalmo, pela mais sutil das inspirações, sopro divino.

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RESUMO

Este trabalho reúne questões em torno de um campo, em geral, pouco valorizado nas reflexões sobre os problemas da escola – a sua dimensão estética. Enfatiza a experiência estética no processo de aprendizagem, bem como seus desdobramentos na partilha das produções dos alunos com a comunidade nos corredores de escola. Diante de possibilidades de compreensão sobre a identidade de uma escola, o plano técnico-científico referente às grades curriculares, às didáticas e ao controle da aprendizagem quantificada nas avaliações se impõe em suas vitrines, porque assim se crê que atenda de forma mais direta às expectativas externas impostas pelos rankings da Educação. Sabe-se, no entanto, que essas perspectivas tendem à homogeneização de toda forma de produção escolar, gerando rara repercussão na cultura da comunidade, no sentido de pertencimento e identificação de seus atores com os projetos que desenvolvem na escola. O currículo prescrito tem seu devir nas avaliações oficiais e reproduz a afirmativa que a deprecia – “escola é escola em qualquer lugar”, afirmação que se populariza e se fortalece como premissa por toda parte. Para compreender de forma mais reflexiva essa máxima tão difundida e reconhecida, “escola é escola em qualquer lugar”, na condição de coordenadora pedagógica, pesquisa-se o olhar zeloso e especializado de uma curadoria, entendendo sua natureza como aquela que vê o mundo atravessado por uma visão estética e assim oferece em destaque, tal qual uma cenografia do conhecimento, a expressividade de sua documentação pedagógica, ao expor e partilhar com a comunidade as produções dos alunos. Apreende-se, nessa perspectiva, a potência das inúmeras possibilidades dialógicas entre o projeto pedagógico, o discurso expressivo dos alunos, bem como as formas de recepção pela comunidade.

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ABSTRACT

This work gathers questions within a field that is often given little value or attention in the reflections about the problems of the school – its aesthetic dimension. In other words, it emphasizes the aesthetic experience in the learning process, as well as its outspreads in the sharing of students’ productions with the community in the school halls and corridors.

In face of the possibilities of understanding of and about the identity of a school, the technical-scientific plan that refers to the curricular framework, the didactics and the control of measurable learning through assessment imposes itself in the school showcases, because it is believed that this way it will more accurately meet the external expectations imposed by the educational rankings. We know, however, that such perspectives tend to homogenize all forms of school production, generating then little repercussion in the culture of the community, for it doesn’t contribute to the building of the senses of belonging and identification of its actors with the projects developed at school. The prescribed curriculum has its becoming in the official assessment and reproduces the very statement that depreciates it – ‘a school is a school anywhere’, an affirmation that becomes a more and more popular and stronger premise everywhere. In order to understand and reflectively examine this widely known and recognized premise, ‘a school is a school anywhere’, I stand as a pedagogical coordinator to research about the zealous and specialized look of a curator, understanding its nature as the one that sees the world being crossed by an aesthetic view and therefore highlights the expressivity of its pedagogical documentation as if it were a scenography of knowledge, when exposing the students’ productions and therefore sharing them with the community.

In this perspective, I seize the power of the countless dialogical possibilities between the pedagogical project and the expressive discourse of the students, together with the reception of the work by the community.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: ALÉM DAS VITRINES NA EDUCAÇÃO: ALGUMAS DIGRESSÕES ACERCA DE UM VELHO ASSUNTO OU… OS

CORREDORES QUE ME TROUXERAM ... 11

AO PÓ RETORNARÁS: UMA POSSIBILIDADE (na metalinguagem de meus corredores) ... 20

MEUS CORREDORES NA EDUCAÇÃO INFANTIL ... 39

MEUS CORREDORES NO ENSINO FUNDAMENTAL ... 51

CONFIGURAÇÕES ESTÉTICAS PARA UMA CURADORIA ... 67

O CURADOR EM CONSTRUÇÃO ... 81

ESCOLA RURAL ARCANJO MIGUEL /MG ... 95

HIGH TECH HIGH/ CALIFORNIA/EUA ... 99

CENTROS DE EDUCAÇÃO CIENTÍFICA ESCOLA ALFREDO J. MONTEVERDE/ RGN ... 106

ESCOLA CASTANHEIRAS: canteiro de obras ... 111

CENOGRAFIAS DO CONHECIMENTO ... 120

EXPOSIÇÃO - UM POUQUINHO DE CADA UM DE NÓS ... 123

EXPOSIÇÃO - QUE MONSTRO SOU EU? ... 128

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EXPOSIÇÃO - POR DENTRO E POR FORA: ARMÁRIOS DE ESCOLA ... 135

EXPOSIÇÃO - BRINQUEDOS DE ONTEM E DE HOJE ... 139

EXPOSIÇÃO - ANIMAIS DA RESERVA BIOLÓGICA TAMBORÉ E DA MATA ATLÂNTICA ... 145

EXPOSIÇÃO - CASTELOS ... 150

EXPOSIÇÃO - FORMA É CONTEÚDO ... 154

EXPOSIÇÃO - LENDAS INDÍGENAS BRASILEIRAS ... 159

EXPOSIÇÃO - GRAFISMOS – VERTENTES DO GESTO ... 163

EXPOSIÇÃO - OLHAR PARATY ... 168

EXPOSIÇÃO - O LUGAR POR ONDE VOCÊ ANDA ... 173

EXPOSIÇÃO - REESCREVENDO CLÁSSICOS ... 180

INSTALAÇÕES ... 185

A VOCAÇÃO DO CORREDOR É O ACESSO ... 190

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APRESENTAÇÃO

ALÉM DAS VITRINES NA EDUCAÇÃO:

ALGUMAS DIGRESSÕES ACERCA DE UM VELHO ASSUNTO

OU...

OS CORREDORES QUE ME TROUXERAM

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Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.

(Italo Calvino, 1999)

Visitando Ouro Preto, em Minas Gerais, fui apresentada a seus lugares e monumentos históricos por um estudante morador da cidade, aparentando uns 16 anos de idade, guia turístico nas horas vagas. Constatando entusiasmo nas apresentações que fazia, desviei meu pensamento e perguntei pela escola que frequentava, sua arquitetura, a época em que fora construída e a ênfase que conferia ao estudo da cidade. No fundo, me perguntava sobre um possível impacto ou sobre a influência que sua escola havia exercido, resultando naquele discurso apaixonado pela cidade, sua história, sua estética fascinante. Ao responder-me, percebi em seu olhar o inesperado da pergunta. Reflexivo, retornou em poucas e drásticas palavras:

“bem...escola é escola em qualquer lugar, não tem nada a ver com isso que vemos aqui, não há nada de interessante por lá”.

Ouvi esse pensamento com um certo aperto no coração, e num instante meus olhos já não miravam o lugar para o qual o menino apontava. “Escola é escola em qualquer lugar”? A ideia insistiu, ressoando como provocação. Será? Tendo passado a maior parte da vida pensando e habitando o cotidiano escolar, sob diferentes perspectivas em funções e contextos, talvez eu pudesse entender de pronto a que se referia o estudante. Mas isso não foi suficiente para que eu voltasse à minha atenção de turista. Perturbada com aquele discurso, como educadora, senti-me também responsável por esse desencanto. O que pensam os alunos sobre as escolas em que estudam, que tipo de relações se estabelecem entre a escola e seu entorno, que relações de pertencimento a estética escolarizada do conhecimento produz em sua comunidade, são questionamentos cuja busca de respostas deveria constituir para nós, educadores, o chamado “pão nosso de cada dia”. Volto ao estudante e procuro reinterpretar na consciência o seu desapontamento quando identificou “escola é escola em

qualquer lugar”. Quantas representações ou ideias de escola são possíveis e, no entanto, a premissa remete a uma única

imagem? Não seria a escola um lugar de cuidado e preservação das histórias dos sujeitos e de suas relações com os grupos, com a comunidade, com a cidade, com o mundo, produzindo memória, cultura e conhecimento em diferentes

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13  tempos? Um lugar de encontro que, no imbricamento dos seus saberes, fosse contribuindo com as novas gerações,

provocando percepções, pensamentos e afeições que dessem a ver outras possibilidades narrativas? Uma fonte de expressão em diferentes linguagens, enfatizando importâncias e tempos atribuídos às coisas do mundo? A projeção de um currículo como um planisfério, cuja cartografia nos remeteria a um estudo sensível dos territórios simbólicos, sagrando a presença da vida na Terra? Poderia essa cartografia escolar ser mais dialógica com a cidade, com a comunidade, com a cultura?

Retorno à cidade que tanto me impressionou. Ouro Preto é um dos lugares mais fascinantes de Minas Gerais. Foi tombada como Patrimônio Histórico da Humanidade, pela UNESCO, em 1980. Chamada originalmente de Vila Rica, pelas riquezas que circulavam em sua região, atraiu para si aventureiros portugueses e paulistas, os chamados “bandeirantes”, para os negócios com ouro. Hoje, quem caminha por suas ruas estreitas, vertiginosamente íngremes, em calçadas de paralelepípedos contornando sempre um casario colonial, tem a sensação de viajar num túnel do tempo, para se deparar com um pedaço da história do Brasil. No século XVIII, foi palco de lutas aguerridas em favor de melhores condições para o povo brasileiro, quando em seu território uma elite de comerciantes e intelectuais, inspirada por ideais libertários, posicionou-se confrontando a coroa portuguesa em razão das altas taxas de impostos cobrados e, sobretudo, da exploração do ouro em território brasileiro. Resumindo, o final trágico desse confronto marca a história do Brasil, com a condenação à morte dos principais líderes, como Tiradentes, e a deportação de outros rebelados para a África. A cidade de Ouro Preto foi, desde sempre, um cenário de ações em que a história, a política e a arte representaram fortes dimensões de seu desenvolvimento cultural, que se misturam até hoje no imaginário da população brasileira. É conhecida no mundo, por exemplo, a obra de Aleijadinho, Antônio Francisco Lisboa, que incrustou e preservou, nas pedras das igrejas e nos museus da cidade, a presença da espiritualidade na arte barroca.

Ouro Preto, diferentemente do que aconteceu em boa parte dos centros históricos do País, preservou, pelo tombamento, o seu acervo arquitetônico original e hoje vive das marcas dessa história, fazendo do turismo, dos festivais de arte e das festas tradicionais uma forma de atrair milhares de pessoas de diferentes lugares do mundo para conhecê-la. Por si só, é uma

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escola a céu aberto. Mas, em meio a esse cenário todo, também mantém ativas suas escolas públicas, algumas já centenárias, formando novas gerações para dar, assim, continuidade à história do País e da cidade.

A força desse contexto e desse impressionante cenário faz com que cada lugar– os muros, as vielas, as pedras e os paralelepípedos – conte a história dessa cidade. Pergunto-me: as escolas e os alunos dessa cidade histórica de Minas Gerais serão diferentes dos de outras cidades brasileiras? Quando estudam, na história do País, os fatos que se passaram nos domínios territoriais do município em que vivem, reconhecem o valor histórico nessa estética preservada? Sentem-se mais pertencentes àquela paisagem, conforme a estudam como cenário da própria história? Que impacto essa estética teria sobre as pessoas desse lugar?

Minha primeira ideia, talvez ingênua, era de que a intensidade da expressão estética, movimentando cultural e politicamente a cidade, trazendo turistas, estudantes e pesquisadores de outros quadrantes para conhecê-la, teria uma profunda implicação na vida de seus habitantes e, especialmente, da escola. E, supondo que a resposta fosse simples e próxima, formulei-a como dúvida ao jovem-guia da igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, o qual me explicava, naquele exato momento, sobre a procedência portuguesa do gradil que protegia as janelas do templo e por onde, juntos, olhávamos a cidade: “Senhora, eu creio que não faz diferença, não. Escola é escola e aluno é aluno em qualquer lugar. Eu gosto de

coisas bonitas e antigas, de Arte e História, e o prédio da escola em que eu estudo foi construído nos anos 60; minha escola não tem a graça das coisas que a gente vê aqui do lado de fora”.

Resposta dura e direta. Talvez seja ela portadora de um indicador sensível a ser considerado nas pesquisas de satisfação, quando a quantidade de “graça” medida, inter e extramuros da escola, determinar o grau de interesse do aluno pelo conteúdo que lhe é ensinado. Mas o que significaria essa afirmação: “escola é escola e aluno é aluno em qualquer lugar”? Como reagimos nós, educadores, diante dessa apreciação, ainda que rápida e pragmática, feita pelo estudante-guia, lá das Minas Gerais?

Não obstante o reconhecimento dessa representação tão monocromática formulada por um aluno, habitar e viver experiências nos domínios da escola incita-nos ao exercício de olhar essa instituição por diferentes lentes e esboçar outras

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15  representações que a definam como esse lugar de vivências múltiplas, contemplando encontros e desencontros, encantos e

o oposto daquilo que nos faz acesa a chama do interesse pela vida. O que a escola deve ser, representar ou oferecer em qualquer lugar? Uma instituição voltada para a transmissão dos conhecimentos acadêmicos e científicos, organizada e controlada por rankings de ingresso dos alunos nas universidades? Ou um campo fecundo para o desenvolvimento de pensamentos, sentidos e sentimentos sobre as coisas do mundo, a serem expressos e interpretados por diferentes vozes e linguagens? Ou ainda um espaço público da cidade, destinado à formação cultural dos cidadãos?

Face à amplitude das formulações possíveis, ocorre-me manter a mesma gramatura nas considerações a seguir, preservando sempre implicitamente a perturbação inicial advinda da resposta do jovem mineiro... “não, escola é escola e

aluno é aluno em qualquer lugar...”.

Nos ensaios sobre o que deveria ser, o que tem prevalecido, ora é o destaque de seu potencial criativo e transformador, quando se propõe expor e debater formas de apresentar e produzir narrativas sobre o mundo, ora seu potencial de reprodução, quando a meta da transmissão implica em forte controle sobre os tempos e os discursos, sobre a paisagem e, consequentemente, sobre as narrativas.

Como as escolas se mostram, como se deixam mostrar, como se percebem e como são percebidas pela comunidade? Como se produzem, nesse lugar de perceber e ser percebido, relações de pertencimento, de identificação, de produção de sentidos? Como se forma a memória dessas conjunções entre a cultura e o conhecimento na escola?

Seja em São Paulo, em Minas Gerais, no Acre ou em qualquer outro lugar deste país, uma instituição se reconhece com o nome, escola, e há algo em seu funcionamento que pode nos fazer entender melhor a resposta do jovem estudante de Ouro Preto, que ali nasceu, estudou e hoje trabalha como guia turístico, apresentando, com visível amor pela cidade, uma bela história aos turistas. Mas, decerto, aprendeu a vê-la e a narrá-la com tal encantamento fora das vitrines escolares. Quando lhe perguntei se a escola em que havia estudado incitava, em relação aos ícones da cidade ou a qualquer outro lugar do mundo, esse grau de apreciação e sensibilidade que ele revelava ali, o menino respondeu prontamente: “Não, minha escola

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saber mais sobre o que aprendem e sobre o modo como aprendem os meninos e meninas dessa cidade, de forma a compreender melhor a si mesmos, o lugar em que vivem e as projeções dos jovens estudantes para o seu futuro nesse lugar?

A imagem do menino ouro-pretano sobre a estética da escola nos faz pensar que as formalizações derivadas dos parâmetros curriculares e seus desdobramentos projetados em grades de disciplinas, como os gradis da igreja da Nossa Senhora da Imaculada Conceição, não só traduzem uma estética própria, mas, expondo tão somente a dimensão do (pré) visível das vitrines acadêmicas, “os saberes pedagógicos e disciplinares” (TARDIF, 2007), formam uma cortina de proteção sobre eles mesmos, apartando as experiências perceptivas e afetivas das manifestações da aprendizagem em seus domínios. Um lugar de não pertencimento, sem memória, é o que depreendemos, quando a visão escolar sobre a história oficial não inclui os olhares, a experiência e a paisagem para onde miram os que estão com ela se formando, construindo impressões e pensamentos mais pessoais.

É possível que, do lado de dentro dos gradis da escola, a comunidade de alunos contemple a cidade de seus cartões postais. Também não é incomum que turistas se confundam, com informações tão desencontradas relativas aos seus marcos históricos, fazendo referência à necessidade de melhor preparo dos guias que lhes apresentam a história dessa cidade. Não raro também é a menção sobre a população nativa suprindo essa falta e indicando direções não somente dos seus marcos, mas, muito especialmente, de outras formas de circular e conhecer preciosidades invisíveis de sua cidade, que não constam nos currículos nem tampouco nos guias turísticos. Insisto que o jovem-guia comentou que sua escola não tinha “graça”, porque era “contemporânea”. A cidade, sim, era tão encantadora!

Parece que, quando submetidas às fronteiras da cultura escolar, as grades distanciam-nos do essencial – a vida da cidade, a política modificando seu território, seu colorido, os jardins das casas, os turistas, suas formas de expressão entalhando a pedra e o ferro para narrar sua história e evolução. A vida na cidade, com seus problemas, seus valores, seu futuro, sua perspectiva estética, dá pistas, pelo aroma e pelos olhares que emana, entre ladeiras e vielas, de que em algum lugar, fora das vitrines, a mesa está posta para o café e para preservação daquele cotidiano.

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17  A escola, esse lugar de pausas e atenções sobre o desenvolvimento humano no mundo da cultura, compõe forte potencial

criador de um ambiente de interlocução e experiências de aprendizagem, sensibilizando os sujeitos para que se reconheçam autores e protagonistas de narrativas sobre a sua ocupação. À sua disposição estão os motes e os suportes para a criação de novos territórios narrativos que se expressam em diferentes linguagens, como cenografias do conhecimento.

Se a premissa “escola é escola em qualquer lugar” incita à necessidade de tomar consciência das definições dessa instituição, o conceito de lugar também impõe, desde já, questionamentos. Afinal, que lugar é esse do qual aqui se falará? Para significá-lo ao longo desta reflexão, pouso sobre o conceito de lugar um olhar fenomenológico, com a intenção de conferir-lhe visibilidade. Olhar cuja visão ambiciona percebê-lo no mundo em seus detalhes, em seu tempo presente, antes de calculá-lo ou separá-lo das sensações e, sobretudo, das experiências, matéria-prima da cultura. Olhar que o refere em seu cotidiano e nos posiciona diante dele, do lugar, como sujeitos ativos, concretos, históricos e sociais, ocupando-o e afetando-o com significados, sentidos e sentimentos, atribuindo-lhe, assim, valores. Olhar que pousa sobre as coisas, sobre os objetos, tornando-os lugares em si. Reserva-lhes um tempo de pausa, conferindo intimidade, familiaridade, identidade, poéticas próprias. Dessa perspectiva, lugar e experiência sensível serão aqui entendidos como dimensões convergentes da ocupação humana (TUAN, 2013).

Se nós, eu e o menino-guia, tivéssemos mais tempo para aquela conversa inicial, porém já tão decidida e objetiva de sua parte quanto ao rumo que tomaria nas explicações sobre a procedência dos gradis que protegiam as instituições, eu comentaria sua resposta e possivelmente já não me perderia em minhas próprias elucubrações, tentando criar uma imagem de sua escola. Talvez eu quisesse, no fundo, lhe dizer:

Ouça, meu jovem-guia, aluno nativo da cidade de Ouro Preto: em cada lugar há uma escola, em cada sala de aula, um coletivo, em cada carteira assenta-se um sujeito, possibilidade singular para a produção de uma memória e continuidade de uma história. Um aluno não pode ser o mesmo em Minas Gerais e no Rio Grande do Norte. Não pode ser o mesmo na zona urbana e na zona rural. Se caminha por entre vales de cadeias montanhosas da Mantiqueira ou se adentra nos manguezais entre os caranguejos da costa brasileira. Se pressiona entre os dedos a goiva e esculpe a pedra ou se é do barro que faz nascer suas criaturas.

A interação com o ambiente traz a sorte de experiências sensíveis que podem transformar o espaço escolar em um lugar de memórias vividas na escola. Se, na abundância das águas ou na aridez das secas, cada nativo quer crescer e aprender a

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entender seu ambiente, reconhecer-se integrante e preservar, por isso, a vida do lugar, uma escola, então, também não poderia ser a mesma, em tão distintos lugares, porque da mesma forma nem haveriam de ser os mesmos, os professores e os alunos. Cada qual com sua história, sua experiência de vida, seus percursos, seus afetos, significados, símbolos, sua relação com a comunidade.

Como compreender que uma cidade, em suas histórias, seus acessos e sentidos, mantenha em seu território uma escola que não seja o reflexo dessa vida?

Da vivência escolar diferentes linguagens podem transformar o pensamento em palavras, vozes, imagens, em gestos de uma maneira de ser, elementos de uma cultura.

Tal e qual visitamos os museus, as igrejas, os teatros, os restaurantes, as praças e os parques de uma cidade, talvez pudéssemos também visitar suas escolas, de modo que elas nos mostrassem, pela essência de suas cenografias, como e por que as novas gerações desejam continuar a preservar e a produzir, pelas suas narrativas, uma história de afeições para aquele lugar. Uma escola em sintonia com as provocações éticas e estéticas do lugar, elaborando, respondendo e produzindo formas, como reflexão de si. Italo Calvino nos incita a pensar a cidade pelos “entalhes e esfoladuras de seus ângulos” e revela que, para conhecê-la, é preciso perceber o que respira para além de suas vitrines e cartões postais. Sentir sua pulsão, o sangue em suas artérias. Mas e se as escolas estão vazias de sentidos, como mortas?

É fundamental que se criem relações, acessos entre a cidade e suas agências de produção de conhecimento e cultura. A escola, sem dúvida, é uma delas. O passado, o presente e o futuro de suas narrativas se encontram no potencial expressivo de uma certa cenografia dos saberes, produzida nos seus laboratórios de estudo. A dimensão estética da escola, em sua atitude e produção simbólica, se apresentaria como uma alegoria do conhecimento e da cultura, abrindo alas à percepção, à fruição, à interpretação e à aprendizagem para todos.

A respeito das digressões sobre uma velha história, poderia dizer que a analogia entre as cidades e as escolas invisíveis não é uma reflexão inédita. No entanto, ela evoca um pensamento taoista: “a estrada é antiga, nós é que somos sempre novos a caminhar por ela”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALVINO, Italo. Cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras,1999.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

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AO PÓ RETORNARÁS: UMA POSSIBILIDADE...

(na metalinguagem dos meus corredores)

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21  O que me disseram que havia nunca alterou a forma de uma coisa.

O que me aprenderam a ver nunca tocou os meus olhos.

(Alberto Caeiro,1889)

Não consigo remover a imagem da obra de Cinthia Marcelle do descanso de tela no computador de minha sala de trabalho na escola. Sala da coordenação do Ensino Fundamental I – lugar de encontros, reuniões, decisões a tomar. Crianças e professores reparam nessa imagem com o estranhamento de um déjà vu. Com frequência comentam, perguntam o que significa, procuram identificar a proximidade com o lugar. “Você quem tirou essa foto? ”.

Gosto de manter essa imensa cordilheira em pó de giz alertando para a provisoriedade das certezas acumuladas, não raro sob rígidas couraças musculares, desenvolvidas no medo de inovar, criar, recriar, inventar, pensar de outro modo; lanço mão da imagem inúmeras vezes em conversas com os professores. Ela tem a força de mil palavras. Sou inteiramente tocada pela forma com que sugere a fugacidade dos eventos, das ideias, das palavras e também a de nossas escolhas; sou tocada também pela impiedade que denuncia a fragilidade da memória, dos discursos renitentes; desequilibra-me no melhor dos sentidos essa antevisão da decomposição de convicções, informações, preconceitos, registros um dia estruturados em conteúdos curriculares a serem transmitidos e cobrados dos alunos em avaliações. Verdades proclamadas inquestionáveis, mantidas por longa data, e erigidas na estética de um quadro-negro, a provocar reproduções de concepções educacionais que sugerem controle de expectativas de aprendizagem, tensões, repetições, avaliações, julgamentos, recepções silenciosas e ambíguas. Disso tudo, vemos restar sua matéria-prima mais primitiva: o calcário, minério branco e fino, a compor-se, transformado e percebido, como uma sensação que comove. Um “bloco de sensações, um ser em si composto de perceptos e afectos”, nos modos de pensar da arte, como encontramos nas conceituações de Deleuze (1992, p. 193), irrompendo em formas de sentir e perceber uma paisagem. Um novo corpo surge, então, como matéria expressiva do conhecimento. Forma simbólica, provoca os sentidos e a rigidez ideológica de uma espécie de doutrina escolar.

A poética de Cinthia Marcelle demarca um lugar para as impermanências. Imensa cordilheira de dunas que incorpora e se move com o saber que se escreve e se apaga, continuamente. Contingentes, provisórias, palavras se deslocam e evanescem no vento. Os conceitos e as ideias fluem como “ondas múltiplas que se erguem e que se abaixam, mas o plano

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de imanência é a onda única que os enrola e os desenrola” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 45), ao mesmo tempo que estremece os paradigmas estruturantes da instituição escolar. A provocação do poeta me afeta: “desaprender oito horas por dia ensina os princípios” (BARROS, 1993). É Kastrup (2007, p 174) que, no estudo sobre a cognição e os processos de aprendizagem, reitera, mais uma vez, a afirmação do poeta: “O melhor aprendiz não é aquele que aborda o mundo por meio de hábitos cristalizados, mas o que consegue permanecer sempre em processo de aprendizagem. O processo de aprendizagem permanente pode, então, igualmente, ser dito de desaprendizagem permanente”.

Vasculho minhas memórias de desaprendizagem em milhares de horas letivas, centenas de professores e uma profusão de vivências em anos de escolaridade. Aparecem raras, esparsas e sem continuidade. Mas brotam sensações, percepções de lugares evocando os sentidos: gosto misturado do grafite e madeira no bagaço do lápis; ísquios torturados por um sem-fim de horas imobilizados num assento em ripas de madeira; o som da campainha a anunciar o temor da entrada e o alívio da saída da sala de aula; corredores frios, inóspitos; batidas do coração em disparo, antevendo a chamada oral de Geografia; o mistério ameaçador das lentes escurecidas da professora de História, encobrindo seu olhar; o sentimento de vergonha por não saber resolver o problema de Matemática; a memória amorosa de minha mãe rescendida no odor das surpresas abrigadas em uma lancheira plástica cor-de-rosa; a viscosidade da tinta nos dedos, liberando uma espécie de alegria em curvas coloridas sobre o papel; o peso da mala de couro, herdada dos irmãos, casa móvel dos cadernos em brochura, cartilha, régua, transferidor, estojo de madeira;o oco escuro da carteira escolar, espaço de intimidade, abrigando o delito dos bilhetes, das “colas”, dos destroços da paçoca Amor, tudo a ser dissipado, reduzido a pó, sorrateiramente.

Humores ingênuos e olhares furtivos atravessam as fileiras das carteiras em silenciosa cumplicidade entre os pares. O cabeçalho escrito em caligrafia perfeita na lousa inaugura mais um dia. O céu azul entre nuvens é visto pelas fendas na grade da janela. O pátio, a vida lá fora, já é esperado desde cedo.

Persiste em mim a sensação de esquecimento e constrangimento na tentativa de rever meus processos de aprendizagem da vida escolar. Pensamentos e sentimentos, atormentados por uma autoexigência para cumprir expectativas das quais não tinha a menor ideia, são testemunhos de existência numa época vivida na escola. Anos 70, presenciei, sem entender, minha escola se fechando em grades, subindo os muros, perdendo a cor e colocando-se à margem dos acontecimentos da cidade;

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23  sua proposição formativa a cargo das aulas de Educação Moral e Cívica e sua estética confinada à sensação de abandono

nas paredes nuas e desgastadas de seus corredores e salas.

Aprendi a ler convivendo em família, nas situações espontâneas, juntando minhas percepções ao repertório dos mais velhos. Passei tardes na solidão de uma filha temporã na biblioteca da casa, aposento mágico em que dormia também meu avô em meio aos seus travesseiros e acolchoados de plumas de ganso. A estética daquele quarto, abrigando estantes de livros, coleções, álbuns de fotografias, quadros nas paredes e ainda uma antiga cama de molas de ferro, provocava em mim uma curiosidade absorvente. Gostava de flanar os olhos nos tombos dos livros e interpretar os títulos; vasculhar o corpo nos desenhos de anatomia das enciclopédias e as referências culturais de uma herança europeia, figuradas nas imagens das velhas revistas alemãs, guardados de minha avó materna. Revirava o tempo passado nos álbuns de fotografia da família, em seus personagens e trajes que encarnavam meu espirito numa estética de outros tempos.

No contexto da escola, fui formada mais pelos seus corredores do que pelos planos de aula. Conheci mais a apreensão que o fascínio, no que tange às aprendizagens curriculares. Fui chamada a praticar a expressividade na gramática normativa de modo mais intenso do que nas indagações éticas e estéticas, suscitadas nos textos literários e filosóficos. Manipulei sem grandes expectativas tubos de ensaio, tabelas periódicas e mapas, sem rastrear suas sinapses nos filamentos da vida. Uma espécie de longa dormência cotidiana parecia enfraquecer minha percepção sobre um mundo que se apresentava no contexto da escola. Na adolescência, porém, fui resgatada pelas inquietações dessa fase da vida, buscando sentidos de pertencimento. Vislumbrei entusiasmo em outros palcos. Descobri a emoção profunda sendo remexida nos campos simbólicos da literatura, do teatro, da música e das artes visuais. As manifestações da cultura, da filosofia e da arte repercutiam fundo em meus sentimentos e deslocavam-me por novos territórios do pensamento, cenários simbólicos que me exigiam a criação de uma poética para a existência.

Habitei com o arrebatamento de uma resistência esse outro lugar de aprender, fora da sala de aula, assumindo-o como uma lente de ver o mundo, na polissemia de suas cenografias. Minha percepção é que esse repertório estético se mantém vivo, em movimento, incitado por novos e novos encontros.

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No memorial apresentado em minha dissertação de mestrado (GIANNELLA, 2009, p.22), essa percepção do mundo aninhada em lugares fora da escola e com um deleitamento até então desconhecido, expandiu-se em nomes, obras, ideologias e cenografias próprias:

Sem mais demora, a vida explodiu em poesia, música, teatro, cinema, literatura. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Egberto Gismonti, Arrigo Barnabé, Chico Buarque, Gal, Bethânia, a Bahia, o sol na pele, a Ilha de Itaparica, o candomblé, o acarajé, a cultura do outro, enfim, assim me constituí intimamente brasileira, atravessada pela experiência estética: Érico Veríssimo, Jorge Amado, Clarisse Lispector, Ligia Fagundes Telles, Carlos Drummond, Fernando Sabino, Inácio de Loyola Brandão. Mas também Krishnamurty, A.S. Neil, Pablo Neruda, Fernando Pessoa, Platão, Sócrates, Rousseau, Sartre, Marx entre outros que vieram tocar-me também. Pelas lentes da literatura e da filosofia, tecíamos intertextualmente nossas primeiras impressões sobre as histórias e os dramas da vida humana. Impressões que se tornaram imagens-referentes no arquivo da memória e que foram se atualizando à medida que interagíamos com o mundona ficção, nas ruas da cidade e nos tablados do teatro brasileiro. “As meninas”; “Não verás país nenhum”; “Confesso que vivi”; “A terceira onda”; “A terceira margem do rio”; “Boitempo”; “Liberdade sem Medo”; “Água viva”; “A estrela sobe”; “Feliz ano velho”; “Não apresse o rio (ele corre sozinho)”. No tablado, “Eqqus”, “Os efeitos dos raios gama nas margaridas do campo”, “Asdrúbal trouxe o trombone”, o Balé da Cidade,a Escola Macunaíma de Teatro.

Deparo-me frequentemente com histórias semelhantes, alusivas às experiências escolares. Ouvir os relatos de quem sobreviveu a elas, na maior parte das vezes, confirma a menção pejorativa: “escola é escola em qualquer lugar”. Sugerem, nas entrelinhas, sentimentos angustiantes: medo, tédio, isolamento, inconformidades às normas, às metodologias de ensino, aos tempos e às temáticas propostas.

Fora de seus domínios, no entanto, encontrei, não somente entre meus pares, mas entranhadas também na literatura, narrativas contundentes reacendendo a percepção de aprendizagem afetada pela cultura, pela política, pelas artes, pelos problemas do mundo. Snyders (1988, p. 188), em busca de acomodar a satisfação cultural na vida escolar, expressa também sua resistência. Ele diz:

Mesmo os adultos que se tornaram “intelectuais” escritores, jornalistas, artistas...quase não acreditam na escola da satisfação cultural que atingiram: é mais frequente fora do âmbito escolar que declaram ter conhecido a verdadeira cultura, sem a escola, às vezes contra ela.

Graciliano Ramos, em depoimentos tirados à poesia da obra Infância (1977), já nos surpreendeu há tempos com suas histórias de um menino humilhado, inconformado pela opressão que sentia na escola nos tempos de outrora; não por acaso, uma escrita tão reiteradamente citada e reconhecida como exemplo das idiossincrasias dessa instituição:

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O lugar de estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto do olho, entrando no olho. E o olho sem se mexer, como se o menino estivesse morto. Não há prisão maior que uma escola primária do interior. A imobilidade e a insensibilidade me aterraram. Abandonei os cadernos e as auréolas, não deixei que as moscas me comessem. Assim, aos nove anos ainda não sabia ler. (RAMOS, 1977, p. 188)

Edgar Morin (2010, p. 18), como outro exemplo, também descreve um período temeroso de adaptação ao Liceu. No entanto, logo que aprendeu a ler, passou a ser um devorador de livros em sua casa, “por toda a parte, a qualquer hora, inclusive durante as refeições”, descobrindo autores que expressavam suas verdades. Ele também os honra em seus relatos: Anatole France, Tolstoi, Romain Rolland e depois a música, com Beethoven e as canções francesas; as biografias de Joana D’Arc, Henrique IV, Napoleão e outros. Da escola, a lembrança que “passava de ano com certa dificuldade”, não obscureceu a memória das efervescências culturais que lhe impressionaram fora dela, habitando seu “refúgio imaginário”, com o mundo da arte, da cultura, das paixões, do cinema, da música, da poesia, da literatura, da filosofia, do partido, da política, da gastronomia, dos afetos e desafetos (MORIN, 2010). Mundo vasto esse que se vislumbra fora da escola! Somaria a essas tantas, outras narrativas que exortam a verdadeira experiência de aprender fora de seus muros.

Dessas narrativas que se somam às do menino-guia de Minas Gerais, ressalto as imagens de um cenário construído a partir de experiências vividas nessa instituição que leva o nome de escola, cujos elementos cenográficos revelam, com certa aridez, o que poderia se traduzir numa visão ética e estética desse lugar na cultura ocidental. Voltamos aí para um imaginário social, constituído no legado de um tempo histórico, longo, em que imagens de um quadro-negro saturado de discursos tracejados na caligrafia do professor, aperfeiçoadas pela imobilidade das carteiras enfileiradas e dos corredores vazios, sustentam as lembranças de um mundo cindido e neutralizado pela aridez cenográfica desses dispositivos escolares. Em sua lenta distensão na história e no tempo, desde a Antiguidade, somos afetados pelo que moveu suas formas de existência, transformando e incorporando concepções de educação, infância e aprendizagem. Ainda entrevemos hoje, em seus cenários, elementos que remetem ao racionalismo e ao cientificismo que não superou.

Nos tempos atuais, a identidade e o vigor de uma escola de crianças de Ensino Fundamental são reconhecidos pela documentação prescrita em suas grades curriculares. Interessa à sociedade reconhecer-se nela, conferindo de antemão sua potência, se “é forte ou fraca”, tendo como base as exigências dos exames vestibulares, por exemplo. Esse é um valor

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associado à acumulação quantitativa de seus conteúdos acadêmicos, e não à experiência de aprendizagem vivida e refletida nas interpretações de um mundo figurado nesse contexto pelos alunos.

Albano (2012), em estudo sobre o desenvolvimento da linguagem do desenho da criança, assinalou como as implementações curriculares passam por cima das suas necessidades de desenvolvimento e expressão. A escola forte é “reconhecida assim pela quantidade de material contendo exercícios repetitivos e mecânicos que atestam a quantidade de horas que a criança passou sentada executando”, “força que reside no enfraquecimento do aluno”, ideia que “revela que a força da escola está na força do adulto sobre a criança” (ALBANO, 2012, p.56).

Nessa matriz, é fato que essa mesma escola avança em seus ideais de democratização. Pública, conquista direitos de acesso e permanência dos alunos, mas desenvolve, por outro lado, forte espírito homogeneizador dos coletivos que agrega, descaracterizando e subestimando os processos de subjetivação, na compreensão das formas tanto de ensinar como de aprender. Essa escola, que persegue modelos e respostas previamente formatadas e prescritas para serem avaliadas quantitativamente, corre o risco de fazer adormecer a consciência autorreguladora (HADJI, 2011) dos sujeitos, desprezando autenticidade e diferença nos processos de aprendizagem.

Ao contrário, é uma documentação oficial que revela, em modelos quantitativos, o grau de adequação dos sujeitos à experiência curricular proposta pela instituição. Os protocolos do histórico escolar – boletins, conteúdos curriculares, planos de ensino – mapeiam, por si sós, as trajetórias percorridas. As expectativas prévias de aprendizagem ajustam a natureza dos sujeitos para “bom aluno”, “mau aluno”, “aluno mediano”, adjetivação cuja vocação é apagar, mais uma vez, as marcas da subjetividade, da diversidade das formas de interpretar, aprender e manifestar ideias. Um universo para ser explorado e compreendido, como já dissemos, em sua polissemia, empalidece seus signos culturais e nos deixa perdidos em sua paisagem, tal qual num deserto de dunas de areia ou montanhas de giz.

Penso em Walter Benjamin, quando diz, “cada manhã nos ensina sobre as atualidades do globo terrestre. E, no entanto, somos pobres em histórias notáveis” (BENJAMIN, 1987, p. 276). O predomínio da informação e a impregnação das explicações torna raro, diz o filósofo, encontrar sujeitos dispostos a extrair a narrativa de suas experiências, trocá-las com o

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27  outro, agregando novos sentidos para a sua própria história. Para Benjamin (1994, p. 41), a narrativa “é uma forma artesanal

de comunicação”, avessa ao ritmo industrial que tanto afetou a experiência de ensino e de aprendizagem no mundo na escola.

No intercâmbio formativo com professores e no papel de coordenadora pedagógica de Ensino Fundamental, tenho investigado a escola em suas diferentes dimensões. Cada uma delas produz narrativas, possibilidades múltiplas de leituras e interpretações. É certo que se pode indagar e conhecer a cultura de uma escola observando sua rotina, seus horários, seu funcionamento. Ou analisando o currículo prescrito na organização das grades, suas disciplinas, a frequência com que entram na agenda do tempo previsto para cada uma. Para avançar em seu entendimento, podemos lançar mão da pesquisa com a documentação escolar, aferindo a progressão sugerida para o ensino e também para a aprendizagem. De modo ainda mais sutil, conhecer a escola, perscrutando a bibliografia escolhida ao longo das séries. Os projetos interdisciplinares, os estudos de meio podem nos levar ainda mais longe nessa análise sobre uma escola. A forma com que se regula a disciplina é também uma questão recorrente para os seus usuários. Todas essas possiblidades são chaves de leitura com as quais se abre o entendimento de uma instituição escolar. O que se interpreta nessas leituras são os signos de um cenário, hoje impresso e declarado na estética das documentações previstas em Planos de ensino e Regimentos escolares. A estrutura desse tipo de organização oferece-nos a antevisão das proposições de conteúdos de ensino, das expectativas de aprendizagem, considerando parâmetros curriculares nacionais. Decorre dessa partida, ao longo da vida escolar, uma extensa documentação curricular, discorrendo sob a égide de “histórico escolar” institucionalizado, compondo variedade de disciplinas, avaliações, boletins, conselhos deliberativos que formalizam e protocolam os tempos e os fatos do cotidiano escolar, numa tentativa de qualificar e quantificar as experiências vividas pelos alunos.

Uma história de diferentes intensidades é vivida na escola e reduzida às declarações desses indicadores de aproveitamento. No entanto, raramente constam dessa “narrativa”, como conteúdos, os sentidos, os sentimentos, as formas, as cores, os sons, os signos que impressionaram e mobilizaram aprendizagens, desvelando singularidades do processo. Nesse cenário, são os organogramas, as sequências didáticas, os planejamentos prévios e os documentos de avaliação que perfilam as

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linhas de um projeto político-pedagógico, almejando, no ideário de excelência, certa homogeneidade no aproveitamento dos alunos.

Assim se compõem e se generalizam as percepções e o imaginário da comunidade sobre a escola, em faces estereotipadas de uma competência designada no positivismo, no iluminismo racionalista que sobrevive nesses cenários, nos discursos e nas manifestações de pais e educadores que se perguntam: escola forte ou escola fraca? conservadora ou progressista? tradicional ou construtivista? Dualismos que vertem de concepções frágeis, denotando preconceitos e projeções de uma percepção estética escolarizada que vai se fazendo própria, rígida e previsível, entravada no controle de expectativas de aprendizagem e nas didáticas de ensino. À margem, estão as dimensões intersubjetivas de aprendizagem, a percepção dos sujeitos, a elaboração, a entrega, os processos vividos, os sentimentos da alegria e também das dores que fazem nascer as formas mais elaboradas de uma cultura escolar mobilizada nas interpretações dos signos do mundo.

Não há de ser por acaso que a pergunta de um aluno de 7 anos – “professora, por que você sempre faz perguntas que já

sabe a resposta? ” – é pouco ou mal compreendida pela instituição da qual faz parte. O mesmo menino, um ano mais tarde,

desvia sua atenção da aula de Língua Portuguesa sobre as características e a importância do texto biográfico, me perguntando baixinho, enquanto a professora se dirige aos colegas: “Por que existe escola, mesmo?”. Como responder ao menino?

Essa velha e conhecida escola remexe a ferida que desejaríamos debelar, constatando, com Bourdieu e Passeron (2009), que ela vem cumprir a função da reprodução dos valores, manter poderosas as forças determinantes de um tipo de discurso, da legitimação das desigualdades em suas formas de padronizar o conhecimento, homogeneizar a cultura e o êxito nas respostas dos alunos diante dessas perspectivas.

Não faz muito tempo, também ouvi um relato da avó de uma menina de 6 anos, aluna recém-ingressante no 1º ano do Ensino Fundamental, que expressou tão precocemente essa ideia já formada sobre a escola, ao ter de responder à curiosidade do avô sobre sua nova rotina – com olhar já demonstrando impaciência para as perguntas e para finalizar rapidamente o interrogatório sobre sua escola, pede cumplicidade no olhar da mãe, resumindo: “É tudo igual, escola é

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escola, né, mãe?”. Como responder também à menina, se a maior parte dos produtos expostos nas nossas vitrines

acadêmicas apresenta uma estética do cotidiano escolar que se reconhece intencionalmente trivial, e torna, como disse igualmente o jovem mineiro: aluno e escola, iguais em qualquer lugar? Poder-se-ia considerar e mesmo dizer invisíveis ou indiferentes esses sujeitos e seus pensamentos sobre o mundo que lhes apresentamos na escola?

Percorrendo esta tese, porém, desejo investigar quais outras paisagens compõem esse ambiente que se declara educador. Para tanto, pesquiso elementos da dimensão estética da escola. Dimensão desvalorizada e desconceituada, e por isso invisível como possibilidade de leitura e interpretação da singularidade destas instituições. Fomo-nos tornando insensíveis aos seus objetos, aos seus lugares, incapazes de percebê-la e interpretá-la nas suas formas de comunicar, por diferentes linguagens, os processos de aprendizagem, o conhecimento e as manifestações que expressam a composição de sua cultura. O mundo visto por uma lente estética traz percepções do entorno e da cultura que podem ser muito diferentes do que se depreende no espaço ocupado cartesianamente. É o que também pode se entrever na obra de Cinthia Marcelle (2010), que, com a potência expressiva de uma linguagem, “dissipou” o que se afirmava como conhecimento. Eisner (2008) nos oferece elementos para aprofundar nossa compreensão sobre o processo que cientificizou a escola e seus currículos, em detrimento da discussão sobre a percepção sensível na aprendizagem, sublinhando a cisão entre arte e ciência e afetando de forma violenta a mentalidade e a cultura escolar.

A influência da psicologia na educação teve outra queda. No processo a ciência e as artes alienaram-se. A ciência era considerada fiável, o processo artístico não. A ciência era cognitiva, as artes eram emocionais. A ciência era ensinável, as artes requeriam talento. A ciência podia provar-se, as artes eram questões de preferência. A ciência era útil e as artes ornamentais. Era claro para muitos, assim como ainda hoje o é para muitos, para que lado pende a moeda. Tal como disse, contava-se com as artes quando não havia a ciência para guiar. As artes eram uma posição retrógrada. (EISNER, 2008, p. 7)

Acentuo, portanto, o valor da dimensão estética da escola, enfatizando sua presença como lugar multissensorial, de experimentação, fruição e produção de pensamentos e imagens em linguagens diversas.

Identifico como cenografia o processo de produção de conhecimento das crianças, tornado intencionalmente visível no espaço escolar. Refiro-me aos registros de significações atribuídas às experiências e ao conhecimento em processo de elaboração por alunos e professores, movidos pelo projeto curricular e por sua implicação na ambição cultural da instituição. Murais, painéis, cadernos, agendas, cartazes, desenhos, pinturas, esculturas, escritos, portfólios, pesquisas, objetos,

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fotografias, vídeos, que, expostos à comunidade, tecem a muitas mãos uma rede de sentidos e se expõem, materializados como objetos culturais, como cenografia do conhecimento na escola.

Como forma de documentação pedagógica, essa cenografia apresenta, de modo mais autêntico e elaborado, os processos de interpretação dos signos presentes nas referências curriculares que norteiam os estudos. Adentro por essa via, porque a entendo como uma lente privilegiada e sensível de análise dos fenômenos que compõem o processo identitário dessa instituição.

No decurso desta pesquisa, o termo “cenografia” foi primeiramente emprestado do teatro, por ali se definir como uma arte de projetar cenários com o intuito de potencializar a fruição estética na recepção de um espetáculo. Depois o aprofundamento das questões sobre a produção estética no espaço escolar e, mais especificamente, em seus corredores, possibilitou-me novo e feliz encontro com essa mesma denominação no campo da museologia, sobretudo a partir de Lisbeth Rebollo Gonçalves (2004).

A autora levou o conceito de cenografia para o campo da museologia, em substituição ao de “museologia da exposição”, considerando significativas aproximações conceituais no papel do desenho do ambiente para a qualidade da recepção estética. Em sua pesquisa, apresenta-nos os processos de construção e comunicação das exposições de arte no século XX (GONÇALVES, 2004), as mudanças históricas que se manifestaram nos estudos da arte e nas experiências de curadoria, revelando-se, por sua vez, nos dispositivos de apresentação dos objetos nos museus, no conceito de neutralidade por trás das paredes brancas, suporte para melhor fruição da obra de arte e depois, na criação das novas cenografias, “cenários expositivos” dos “novos museus” na década de 90, que foram conceitualmente definindo a exposição como forma, como discurso, como texto, como acontecimento, como ponto de encontro, como lugar social (GONÇALVES, 2004, p. 57). Nesse sentido, aprofundaram-se também os estudos sobre a recepção estética e colocou-se maior foco de atenção na postura do visitante de uma exposição. Diz a autora:

Há semelhança entre o papel do visitante e o do ator em cena, enquanto há diferença entre o papel do visitante em relação ao do espectador teatral. No percurso da visita à exposição, o visitante se envolve num jogo de representações e projeções a partir de sua própria história, de sua experiência de vida.

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A separação entre a cena e o espaço do espectador desaparece na exposição e o visitante pode ser entendido como um ator, no sentido de que, percorrendo o circuito da mostra, é um ser ativo (um corpo presente e fundamental) no seu dispositivo. (GONÇALVES, 2004, p. 20)

Por afinidades, empresto do campo museológico os seus conceitos estruturantes: exposição, curadoria, cenografia, experiência, público e recepção estética (GONÇALVES, 2004), tornando-os meu arcabouço reflexivo para destacar os sentidos e as possibilidades que abrem as exposições dos saberes em processo na escola. Saberes em permanente construção, que, incorporando formas em linguagens diversas, ativam signos, conceitos, discursos, referenciais, emoções, tornando a escola, e não mais somente os espaços fora dela, nessas cenografias do conhecimento em exposição, um lugar de experiência sensível e simbólica para todos.

Produzir conhecimento modifica o ambiente? Como esse processo vivido por crianças e adultos na escola afeta a cultura da comunidade?

Perscrutar a potência da dimensão estética da escola tem o sentido de levantar possibilidades de transformar informação e conhecimento em material experiencial, em percepção estética. De legitimar essa forma de aprender também na escola, interpretando e produzindo leituras do mundo em coletivos que se afinam e se refinam, progressivamente, no estudo de diferentes linguagens, para comunicar o que pensam e sentem a partir de problemas postos. É firmar a responsabilidade pela comunicação dos sentidos nesse lugar produzidos, ao longo dos tempos, enquanto se estuda o mundo, sua história e seus dilemas, para interpretá-lo e reinventá-lo. Tenho profundo apreço pela afirmação de Hanna Arendt (2000), quando nos convida a pensar sobre a nossa responsabilidade de compartilhar o legado do mundo com os jovens e amá-los, sobretudo, em suas formas de percebê-lo e renová-lo de modo imprevisto.

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não as expulsar de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 2000, p. 247)

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É, portanto, o campo das percepções, das recepções e dos sentidos nascidos do processo experiencial de investigar o mundo na escola, vivido, interpretado e exibido pelas crianças, o que me proponho a explorar como a dimensão estética desse lugar, mimetizada em sua cenografia, nos corredores dos edifícios escolares.

Tomo por exercício uma perspectiva que poderia chamar de estético-pedagógica, tendo como princípio que ensinar é compartilhar os sentidos que atribuímos às histórias do mundo; histórias que, como fios narrativos, tecem conhecimento e cultura, configurando cenografias compostas por signos, que exibem e suscitam interpretações e indagações literárias, visuais, musicais, corporais, filosóficas, biográficas, sociais, ideológicas e científicas. Não por acaso, essa experiência com o conhecimento se passa também dentro de museus, tendo como base seus currículos de referência, a história de suas exposições, seus acervos, suas curadorias. As formas de apresentação das narrativas ao seu público – o que vale para o museu e para a escola – devem comunicar seu patrimônio, seus bens culturais, seu currículo, mas, sobretudo, o entusiasmo com que se debruçou e se trabalhou duramente sobre eles, decifrando e interpretando imagens, signos, vertendo e produzindo sentimentos, sentidos e histórias que repercutem no lugar pela força da linguagem explorada.

Quando me refiro aos “signos”, sinto-me aderida às conceituações de Deleuze (2003) sobre o termo, quando fez da obra de Proust uma referência fértil e vigorosa, não para que se consagrasse a memória do passado, mas para que se recolhessem e destacassem os signos como aprendizagem essencial voltada para o futuro. O autor afirma:

Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objeto de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja "egiptólogo" de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma predestinação com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos. (DELEUZE, 2003, p. 4, grifo do autor)

No pensamento de Deleuze, signo é plural, é abertura para o acaso, é o objeto de encontro e é ele que exerce sobre nós a “violência” (DELEUZE, 2003, p. 15) de nos tocar. Depois de feridos pelo signo, é que nos mobilizamos, nos “forçamos” a procurar os sentidos e, então, vivemos a “premência do trabalho do pensamento” (DELEUZE, 2003, p. 21). O mundo está para ser decifrado em seus signos, na mais absoluta possibilidade do diverso e em detalhes. Há que se perder tempo para decifrar signos (DELEUZE, 2003, p. 20) e, consequentemente, para aprender, o que é diferente de assimilar conteúdos.

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33  Para desvendar a dimensão estética da escola, aspiro ocupá-la fenomenologicamente, fruí-la, “esposando-a”

(MERLEAU-PONTY, 2009, p. 130) desde sua pele e adentrando por ela em seus processos, produções, tornando visíveis seus signos de pertencimentos, depositando neles os sonhos, os pensamentos e iniciando-me através deles em outra consciência desse ambiente.

Como afirmou a curadora e crítica de arte, Luísa Duarte (2014, s.p.), “quem faz arte ou pensa sobre ela está no mesmo barco. Quem pensa sobre o mundo em que vivemos e busca transfigurá-lo, está no mesmo barco”.

Valendo-me da imagem de tripulante de um mesmo barco, percebo semelhanças e afinidades com o ofício de uma curadoria, ao traduzir diariamente a escola que trabalho, à sua comunidade. Suas escolhas, suas práticas e produções, fruto de implicações das pessoas em temas diversos, são elementos que geram discussão, criação, longos processos de troca e elaboração de ideias. Para que não se reduzam às velhas reproduções em avaliativas e para que não caiam no esquecimento logo após, penso na criação de formas de expressão e comunicação do que se considerou relevante para conhecer e desvendar suas implicações no mundo que vivemos. O fotógrafo e antropólogo Milton Guran (2014, p.1), definindo o conceito de curadoria, afirma que procura trazer ao público a crítica reflexiva sobre uma produção, potencializando a visibilidade de seus propósitos a partir de seus valores, de seus enfoques, interpretações, comprometimentos, “como um manifesto estético, cultural e político”, resultando, desse diálogo com o público, novas reflexões, novas questões.

Busco inspiração no meu entusiasmo com as formas de aprender o mundo que se dão fora da escola, provocadas pela estética dos museus, das ruas, das galerias, do teatro ou do cinema, para pensar a escola como um lugar que também é suporte do mundo em seus signos. Que exige e transforma os sujeitos pela sua produção, reflexão, comunicação e, consequentemente, pelo impacto do sensível na recepção de seus processos. Um lugar de aprender a ver e interpretar o mundo, como experiência de um processo criativo, no sentido que preconizou Nietzsche (2012).

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No âmbito da pesquisa, a utilização desse paralelo de conceitos de cenografia e curadoria, ambos tirados ao universo da arte, se colocou a mim fundamental como repertório conceitual e metodológico para criar proposições estéticas atuantes, potencializando as formas de exposição e, consequentemente, as condições de recepção.

Aspirei o universo da arte e as experiências estéticas e reflexivas dos artistas e curadores para pensar como esses modelos poderiam ser transformadores da percepção nas escolas. É possível que, como educadora, impacte-me mais com a produção dos artistas do que com a dos pedagogos, mas isso não me apartou do prazer de querer habitar com vigor o ambiente escolar e potencializar seus propósitos. Ao contrário, um encantamento nas formas de “transver” o mundo, como disse o poeta Manoel de Barros (1997), na arte, quiçá poliu minhas lentes para fruí-lo, imaginá-lo, interpretá-lo, enfatizando assim os processos de conhecê-lo, estilizá-lo e recriá-lo em sua complexidade. Não sem conflito ou sofrimento, por não ser nem professora de arte, nem artista, mas, no mesmo barco, uma coordenadora pedagógica em ofício, sempre sonhei trazer essa lente para o âmbito da escola. O artista, dizem também Deleuze (1992, p. 207), acrescenta sempre novas variedades ao mundo. Aprendi a reconhecer, no processo de aprender o mundo, a força dessa linguagem, das sensações e percepções, “que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 208).

Não fosse pretensioso, tornaria minhas as palavras de Nietzsche (2012, § 107), quando nos convida a esculpir a existência como uma obra de arte, inventando sempre novas formas de vida, construindo nossa própria singularidade:

Como fenômeno estético, a existência ainda nos é suportável, e, por meio da arte, nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno. Ocasionalmente, precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para poder continuar com a nossa sabedoria! E, justamente por sermos, no fundo, homens pesados e sérios e, antes pesos do que homens, nada nos faz tanto bem como o chapéu do bobo: necessitamos dele diante de nós mesmos – necessitamos de toda a arte exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós.

A questão das formas e da assinatura que o pensamento toma nas documentações produzidas na escola já esteve subjacente em minha pesquisa do mestrado (GIANNELLA, 2009), quando pesquisava a fotografia como fonte de reflexão do cotidiano escolar. À época, investiguei os sentidos da produção fotográfica desse lugar, realizada por professores. A cada imagem fotográfica, a expressão de uma decisão, a percepção de um acontecimento, a força de uma experiência, a projeção

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35  de um modo de ver, de habitar sensivelmente um lugar não visível por outros olhares, que não aquele que o sente, que o

percebe, que o desvela em pensamento. Fotografia do cotidiano da escola produzida por professores, interpretada como poética de um sujeito que observa, vê, interpreta e comunica seu pensamento sobre as interações que se articulam neste espaço. Mais do que um recurso de apresentação de bonitas imagens de crianças, como tanto se vê, contextualizado numa proposição, situado num enquadramento e iluminado por uma perspectiva, torna-se antes uma voz, um discurso potente que diz respeito a uma ideia, a pessoas, objetos, tempo e lugar. Materializações do processo de aprender, também quando se ensina, e que se formam à luz dos sentidos de quem vê, sente e recria um mundo, percebendo e interpretando seus elementos estruturais, o studium, o punctum (BARTHES,1984), destacando ora o interesse geral, o estudo mais amplo e aberto do panorama, ora o acaso, um pormenor, uma imagem que fere, que produz estranhamento, deslocamento e modifica nossa leitura do objeto.

Com essas lentes conceituais, adentro o projeto de doutoramento e, ao mesmo tempo, já conferindo à coordenação pedagógica um caráter que se insere numa atividade de curadoria. Elas inspiram hoje uma convocação à leitura sensível do

studium e o punctum em uma cenografia escolar. Mais especificamente, as formas que tomam as produções do saber

escolar elaborado pelos alunos com seus professores. Não o saber literal, retomo, a reação esperada dos artefatos de avaliação. Mas as possibilidades de relações mais abertas com o conhecimento, quando são tocados os sentidos que movimentam os esforços de interpretação e elaboração, tanto na condição de quem produz como na de quem aprecia o feito. Sim, lugar de múltiplas leituras, a escola se expande em dimensões diversas, sejam elas relacionais, curriculares, éticas, formativas, tecnocientíficas, mas também estéticas, comunicacionais e culturais. Nesse território enrijecido de gradis disciplinares, a perspectiva estética é o que mais pode diluir fronteiras que separam as compreensões desse universo, criando formas mais orgânicas de percepção e circulação do conhecimento, entendendo-o como patrimônio cultural da escola.

Nos tantos ensaios de definição e representação desse lugar que é a escola, poderíamos fazer aqui mais uma proposição e afirmar: em si, a escola não existe enquanto fenômeno objetivo, e seria, assim, definida mais como um “não-lugar” (AUGÉ, 2012). Suspensa, acima do efêmero e do permanente, é, se não a reinventamos em nossas interações e ocupações de seus

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