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“Inércia circular” nos Discorsi de galileo Galilei: interpretação ou erro de tradução?

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“INÉRCIA CIRCULAR” NOS

DISCORSI DE GALILEO

GALILEI: INTERPRETAÇÃO OU ERRO DE TRADUÇÃO?

JULIO VASCONCELOS

Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Módulo VII, Avenida Universitária, Km 03, BR-116 44031-460 Feira de Santana (BA)

Universidade Salvador (UNIFACS) Alameda das Espatódias, 915 41827-900 Salvador (BA)

Resumo: Nos Discorsi e Dimostrazioni Matematiche intorno a due Nuove Scienze (1638), Galileo Galilei compõe um movimento horizontal uniforme e um vertical variado e, assim, demonstra ex

suppositione a forma parabólica da trajetória dos projéteis. Em seguida, discute a adequação física da

proposição, discussão que é apresentada na forma de diálogo entre três personagens, Simplício, Sagredo e Salviati. Os dois primeiros iniciam o debate, apresentando, entre outras objeções, a de que a Terra não é plana, como supõe a proposição, mas sim esférica; Salviati, porta-voz das idéias de Galileo, responde argumentando que o raio da Terra é muito grande e que é legítimo tomar “um minuto de um grau de um círculo enorme como se fosse uma linha reta”.

Porém, em seguida, o mesmo Salviati parece concordar com seus debatedores sobre a inadequação física stricto sensu da proposição: “Quando, portanto, queremos aplicar às distâncias finitas as

conclusões demonstradas para distâncias imensas, devemos efetuar correções, visto que nossa distância do centro da Terra, embora não seja realmente infinita, é tal que pode ser considerada imensa, quando comparada com a deficiência de nossos instrumentos...”.

O que se lê acima, na tradução brasileira dos Discorsi, não é muito diferente do que se encontra em muitas outras traduções (como as para o inglês e o francês, por exemplo). E elas constituem um importante apoio para a interpretação da “inércia circular” – que entende que para Galileo o verdadeiro movimento inercial é circular – já que através delas se lê que Galileo admite a necessidade de “correções” em sua teoria apoiada na suposição de uma Terra de raio infinito.

Porém, uma consulta ao texto original de Galileo mostra que essas traduções são discutíveis e que possivelmente têm em comum um preconceito metodológico, uma leitura que atribui ao florentino, um dos pais da ciência moderna, um método de aproximação que, embora usual na ciência que ele ajuda a fundar, não é o que se revela numa leitura atenta das palavras originais de Salviati. O artigo propõe que se reconheça a especificidade do método de Galileo e apresenta uma tradução alternativa para o trecho dos Discorsi supra-citado.

Abstract: In the Discorsi e Dimostrazioni Matematiche intorno a due Nuove Scienze (1638), Galileo Galilei, through the composition of a uniform horizontal motion and an accelerated vertical motion, demonstrates ex suppositione the parabolic shape of projectiles’ trajectory. Subsequently,

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Galileo presents a dialogue among three characters, Sagredo, Simplicio and Salviati, who debate the physical adequacy of the proposition: Sagredo and Simplicio object that Earth is spherical but the proposition supposes that it is flat; Galileo’s spokesman Salviati replies that the radius of our planet is very big and that it is not wrong to consider one minute of a degree at the “cerchio

massimo” as if it were a straight line.

Nevertheless, in the following lines of the Crew & de Salvio’s translation of the Discorsi, Salviati seems to agree with his peers: “When we wish to apply our proven conclusions to distances which,

though finite, are very large, it is necessary for us to infer, on the basis of demonstrated truth, what correction is to be made for the fact that our distance from the center of the earth is not really infinite, but merely very great in comparison with the small dimensions of our apparatus”.

What one reads above is not different from what is read in the French and in the Brazilian editions of that Galileo’s masterpiece. These translations are frequently used to provide support for the so-called “circular inertia” interpretation – which views Galileo’s concept of inertia as limited to circular motions around the Earth’s center – since they present Galileo reluctantly admitting the need of corrections in his theory developed on the supposition of a flat Earth.

But if those translations are confronted with the Discorsi, they are shown to be suspicious and possibly contaminated by anachronistic methodological assumptions, insofar as they attribute to Galileo some methods of mathematical approximation which – though usual in the physics that he helps to create – are not present in the focused lines of the Discorsi.

This paper accordingly demands for recognition of Galileo’s originality and offers an alternative translation for the aforementioned Salviati’s words.

Palavras-chave: Galileo; Discorsi; inércia; lontananza; distanza.

Tal como o Dialogo de 1632, os Discorsi de 1638 foram escritos por Galileo na forma de diálogo, passado em quatro “jornadas”1 entre três personagens: Simplício, o representante das concepções sustentadas pelos aristotélicos, Sagredo, o leigo culto, de pensamento vivo e despido de preconceitos, e Salviati, o porta-voz das idéias de Galileo.

Os três lêem e discutem um suposto livro “do nosso Autor”, sobre uma pioneira Resistência dos Materiais, a primeira das duas novas ciências, e sobre os “movimentos locais”2. A esta segunda “nuova scienza” Galileo reserva as duas jornadas finais; na terceira, estão a teoria do movimento uniforme e o estudo dos movimentos “naturalmente acelerados”, estes sendo os que ocorrem devido à

1 Quando citarmos palavras e frases esparsas de Galileo usaremos, para diferenciá-las claramente das deste trabalho e das de seus comentadores, a grafia em itálico.

2 Na física aristotélica, o conceito de movimento abrange muito mais do que as mudanças de posição de um corpo; é a esse sentido restrito que, no século XVII, se refere a expressão “movimento local”.

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gravidade tão somente; na quarta jornada está o maior orgulho de Galileo, a teoria que resolve o problema do movimento dos projéteis, objetos atirados horizontal ou obliquamente ao ar.

A primeira proposição da quarta jornada dos Discorsi – doravante abreviada TP-1 – contém a prova da forma parabólica da trajetória dos projéteis, prova apoiada nas teorias do movimento uniforme e do movimento naturalmente acelerado. Seu enunciado é o seguinte:

PROPOSIÇÃO I – TEOREMA I

Um projétil que envolve um movimento composto por um movimento horizontal uniforme e por um movimento descendente naturalmente acelerado descreve em seu deslocamento uma linha parabólica.3

Como se vê, Galileo entende o movimento dos projéteis como composto de um movimento horizontal uniforme e um movimento vertical acelerado pela gravidade. Porém, o enunciado acima transcrito enuncia uma proposição estritamente cinemática, um recurso de Galileo para que ela tenha valor mesmo se não corresponder aos verdadeiros movimentos dos projéteis. É uma tática incensurável, pois Galileo não fugirá à discussão de sua adequação física, porém fazendo-a fora do contexto demonstrativo.

Assim, logo após a demonstração da forma parabólica ser apresentada, começa nos Discorsi um longo trecho em que é discutida a sua legitimidade física. Enquanto as proposições e suas demonstrações estão escritas em latim, o trecho em questão, como todos os diálogos que travam Sagredo, Salviati e Simplício, vem escrito em italiano, e é um dos mais importantes pronunciamentos metodológicos de Galileo, que nos possibilita conhecer as características da relação teoria-experimento em sua física.

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Iniciemos, então, a leitura deste importante diálogo:

SAGREDO – Não se pode negar que o argumento é original, engenhoso e

concludente, argumentando ex suppositione, pois supõe que o movimento transversal se mantém sempre uniforme e que o movimento natural descendente conserva também sua característica de acelerar-se sempre proporcionalmente ao quadrado dos tempos e que tais movimentos e suas velocidades, ao serem combinados, não se alteram, nem se perturbam, de modo que em última análise a trajetória do projétil, durante o movimento, não sofre nenhuma alteração de natureza; o que me parece impossível. A razão é que o eixo desta parábola, sobre a qual supomos efetuar-se o movimento natural dos graves, ao ser perpendicular ao horizonte, termina no centro da Terra; e, dado que a linha parabólica vai continuamente afastando-se de seu próprio eixo, nenhum projétil jamais terminaria no centro da Terra, ou se o fizesse, como parece necessário, então a trajetória do projétil se transformaria em outra curva, totalmente distinta da parábola.

SIMPLÍCIO – A estas dificuldades eu acrescentaria outras; uma das quais consiste

em supor que um plano horizontal, que não está em aclive nem em declive, é uma linha reta como se uma tal linha fosse em todas as suas partes equidistante do centro, o que não é verdade, pois, partindo do meio, vai em direção a suas extremidades, afastando-se cada vez mais do centro e elevando-se sempre; segue-se disso que é impossível que o movimento segue-se perpetue e tampouco segue-se mantenha uniforme para qualquer distância, mas irá sempre diminuindo. Além disso, penso que é impossível suprimir a resistência do meio, de modo que não se altere a uniformidade do movimento transversal e a lei da aceleração na queda livre. Todas essas dificuldades tornam assim sumamente improvável que os resultados demonstrados com proposições tão frágeis possam ser verificados por meio de experimentos realizados na prática.4

Já se comentou a tática de Galileo que Sagredo acabou de classificar como “engenhosa”, a de raciocinar “ex suppositione” em TP-1. E, como já se disse, a questão da correspondência com o movimento real está agora sendo debatida, mas não no interior da proposição, de modo que esta permanece matematicamente válida em qualquer caso.

Simplício, como vimos, nota duas dificuldades para se aceitar a suposição do movimento uniforme horizontal: a primeira se deve à esfericidade da Terra, que faz com que uma linha reta que se tome a partir de um ponto sobre sua

4 GALILEI, 1988, p. 251.

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superfície constitua uma subida, em que indubitavelmente o movimento é retardado e não uniforme.

A resistência do ar é o segundo impedimento a que o estabelecido na proposição vigore para o mundo natural. Estes impedimenti serão a seguir analisados por Salviati, o porta-voz do pensamento de Galileo, que buscará defender a validade física da demonstração frente às terríveis objeções com que Simplício e Sagredo a bombardearam. Abaixo está o início da defesa de Salviati, com grifos e negritos introduzidos para conveniência de nossas análises; também por conveniência, tomou-se a liberdade de numerar as etapas de sua argumentação:

SALVIATI – <1> Todas as dificuldades e objeções suscitadas estão tão bem

fundamentadas que julgo ser impossível removê-las; portanto, eu aceito todas, como penso que admitiria também nosso Autor. Concordo que as conclusões assim demonstradas em abstrato se alteram na realidade e se mostram a tal ponto inexatas que nem o movimento transversal é uniforme, nem a aceleração natural acontece segundo a proporção suposta, nem a trajetória de um projétil é parabólica, etc. <2> Ao contrário, porém, peço-lhes que não questionem nosso Autor naquilo que outros homens ilustres têm admitido, ainda que falso. E a autoridade de Arquimedes pode por si só tranqüilizar qualquer um, visto que, em sua obra Mecânicas e na primeira parte da Quadratura da Parábola, toma como um princípio verdadeiro (principio vero ) que o braço da balança é uma linha reta, na qual todos os pontos são eqüidistantes do centro comum dos graves, e que as cordas, às quais estão suspensos os pesos, são paralelas entre si. <3> Alguns desculpam esta arbitrariedade, considerando que na prática nossos instrumentos e as distâncias (distanze) com as quais operamos são tão pequenos em comparação com a distância (gran lontananza) que nos separa do centro do globo terrestre que muito bem podemos tomar um minuto de um grau de um círculo enorme (del cerchio massimo ) como se fosse uma linha reta e duas perpendiculares, que pendem de suas extremidades, como se fossem paralelas. <4> Caso na prática (nelle opere praticali ) devêssemos levar em conta esses detalhes (minuzie ), deveríamos começar censurando os arquitetos, os quais, utilizando o fio de prumo, presumem levantar altíssimas torres com lados paralelos (tra linee equidistanti). <5> Acrescento a isto que podemos dizer que tanto Arquimedes como os outros supuseram, em suas pesquisas, que estavam infinitamente afastados do centro (per infinita lontananza remoti dal centro) da Terra, caso em que suas suposições eram perfeitamente concludentes (nel qual

caso i loro assunti non erano falsi, e che però concludevano con assoluta dimostrazione).

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Os destaques no trecho acima querem chamar a atenção do leitor para dois de seus aspectos: o primeiro deles é o fato de que a superfície da Terra, embora sabida esférica, é tomada como plana e isto com status de “principio vero”, ou seja, a teoria física e sua respectiva matematização começam aí e não a partir da esfericidade do planeta. Assim, não se lê no trecho acima a descrição de uma aproximação como as muitas que, anos depois de Galileo, se encontrarão na chamada física clássica (como, por exemplo, o de aproximar a trajetória elíptica dos planetas para circular, quando as diferenças entre essas linhas são irrelevantes).

O segundo aspecto destacado na citação acima é a presença, a partir do passo <3>, de uma diferença entre as palavras “distanza” e “lontananza”, a primeira sempre se referindo a distância (horizontal) sobre a superfície da Terra, e a segunda sempre denotando distância (vertical ) ao centro do planeta.

Essa distinção parece permanecer no trecho seguinte, e não foi considerada, como se verá abaixo, nas traduções para o português, para o francês e para o inglês. Embora exaustivo para nosso leitor, pede-se-lhe que compare estas traduções e o original em italiano, citados abaixo, com especial atenção para as palavras sublinhadas e para o trecho destacado em negrito:

Quando poi noi vogliamo praticar in distanza terminata le conclusioni dimostrate col

suppor lontananza immensa, doviamo diffalcar dal vero dimostrato quello che importa il non esser la nostra lontananza dal centro realmente infinita, ma

ben tale che domandar si può immensa in comparazione della piccolezza de gli artificii

praticati da noi: il maggior de i quali sarà il tiro de i proietti, e di questi quello solamente dell’artiglierie, il quale, per grande che sia, non passerà 4 miglia di quelle delle quali noi siamo lontani dal centro quasi altrettante migliara; ed andando questi a terminar nella superficie del globo terrestre, ben potranno solo insensibilmente alterar quella figura parabolica, la quale si concede che sommamente si trasformerebbe nell’andare a terminar nel centro.

Quando, portanto, queremos aplicar às distâncias finitas as conclusões demonstradas para distâncias imensas, devemos efetuar correções, visto que nossa distância do centro da Terra, embora não seja realmente infinita, é tal que pode ser considerada imensa, quando comparada com a deficiência de nossos instrumentos; o lançamento de projéteis será o mais importante e, entre eles, consideramos somente os projéteis de artilharia, cujo alcance, por maior que seja, não ultrapassará quatro milhas, enquanto que são muitos milhares de milhas que nos separam do centro da Terra. E, como as trajetórias desses projéteis

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terminam na superfície do globo terrestre, muito pouco alteraråo sua forma parabólica, que admito, sofreria grandes tranformações, caso terminassem no centro da Terra.5

Quand donc nous voulons appliquer, dans le cadre de distances finies, des conclusions établies dans l’hypothèse de distances immensément grandes, nous devons retrancher de la vérité démontrée une quantité correspondant au fait que notre éloignement du centre n’est pas vraiment infini, mais seulement tel qu’on peut appeler immense, comparé à la faiblesse de nos moyens techniques: le tir des projectiles constitue le plus important,...6

When we wish to apply our proven conclusions to distances which, though finite, are very large, it is necessary for us to infer, on the basis of demonstrated truth, what correction is to be made for the fact that our distance fom the center of the earth is not really infinite, but merelly very great in comparision with the small dimensions of our apparatus. The largest of these will be the range of our projectiles...7

Como se pode perceber, todos esses tradutores entenderam “diffalcar dal vero dimostrato” (literalmente: ‘subtrair da verdade demonstrada’) como denotando algo do tipo “efetuar correções”.

Além disso, repita-se, nenhum deles distinguiu “distanza” e “lontananza”, que no trecho imediatamente anterior dos Discorsi parecem ser usadas para extensões de direções diferentes, horizontal para “distanza” e vertical para “lontananza”.

As traduções em questão, porém, mantiveram outra distinção, aquela entre “lontananza infinita” e “lontananza immensa”, isto é, entre o raio da Terra tomado como infinito – o que resulta em superfície horizontal perfeitamente plana – e raio da Terra muitas vezes maior que uma distância horizontal – o que pode implicar em superfície horizontal aproximadamente plana.

Mais abaixo, apresentar-se-á uma tradução alternativa para o trecho em foco que manterá esta última distinção mas que, antes disso, associará “afastamento” (do centro) à palavra “lontananza”, deixando o termo português “distância” como tradução do italiano “distanza”.

5 GALILEI, 1988, pp. 251-2. 6 GALILEI, 1970 p. 211. 7 GALILEI, 1952 p. 241.

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Será ainda alterada a tradução de “distanza terminata” para “distância com términos” ou “distância limitada”. Pois “finito” e “terminato” parecem ser conceitos diferentes no pensamento de Galileo, a se julgar pelo seguinte trecho do Dialogo, em que Salviati fala sobre o movimento circular:

SALVIATI: ... em primeiro lugar, tal movimento é finito e limitado (finito e

terminato), e ainda não somente finito e limitado, mas não existe ponto algum na

circunferência que não seja primeiro e último término (termine ) da circulação...8.

Ou seja: o movimento por uma linha reta é finito e limitado por dois términos distintos; já o movimento circular, embora também “finito e terminato”, tem um término único para o início e o fim “da circulação”.

Outra indicação da diferença entre “finito” e “terminato” nos é dada ainda pelo Dialogo, em trecho em que aparece a expressão “distanza terminata” denotando a extensão de um arco de circunferência:

SALVIATI: ... dizei-me (Sr. Simplício): acreditais que um navio, que do estreito de

Gibraltar fosse para a Palestina, poderia navegar eternamente para aquela praia, movendo-se sempre com curso igual?

SIMPLÍCIO: Certamente que não. SALVIATI: E por que não?

SIMPLÍCIO: Porque aquela navegação está restrita e limitada (ristretta e terminata) entre as Colunas e o litoral da Palestina, e sendo a distância limitada (distanza

terminata), percorre-se num tempo finito: a menos que alguém quisesse,

retornando com um movimento contrário, refazer então a mesma viagem; mas este seria um movimento interrompido, e não contínuo.

SALVIATI: Resposta absolutamente verdadeira...9.

Aqui temos uma “distanza terminata” circular de extensão comparável ao raio da circunferência; assim – para voltar ao objeto do presente trabalho – não se pode “suppor lontananza immensa” entre o centro da Terra e o navio que viaja entre dois locais tão distantes como Gibraltar e a Palestina. Porém, no caso do tiro dos projéteis, como a “distanza” é de no máximo 4 milhas – para uma

8 GALILEI, 1933, vol VII, p. 56. 9 GALILEI, 1933, vol VII, p. 161.

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“lontananza” de milhares de milhas – então se pode entender como imenso o afastamento do centro da Terra.

Estamos agora em condições de apresentar uma tradução alternativa para a parte mais problemática do trecho em questão:

Quando poi noi vogliamo praticar in distanza terminata le conclusioni dimostrate col suppor lontananza immensa, doviamo diffalcar dal vero dimostrato quello che importa il non esser la nostra lontananza dal centro realmente infinita, ma ben tale che domandar si può immensa in comparazione della piccolezza de gli artificii praticati da noi: il maggior de i quali sarà il tiro de i proietti...

Quando então nós quisermos utilizar em distância limitada as conclusões demonstradas supondo afastamento imenso [do centro da Terra], devemos subtrair da verdade demonstrada aquilo que implica o não ser o nosso afastamento do centro realmente infinito, mas bem tal que se pode chamar imenso em comparação com a pequenez dos artefatos utilizados por nós: o maior dos quais será o tiro dos projéteis...

O sentido mais imediato do “poi ” italiano é o de “depois” e não o de “portanto”: a palavra “então” foi escolhida para traduzi-lo por se prestar às duas leituras, já que as palavras acima de Galileo, lembremo-nos, seguem-se à declaração de que Arquimedes e os outros concluíam “con assoluta dimostrazione” quando supuseram “infinita lontananza” do centro.

A tradução proposta, como se vê, parte do princípio de que o trecho acima não pode ser lido a não ser à luz do imediatamente anterior. Com isso, ganha um novo significado o “diffalcar dal vero dimostrato”: esta “verdade demonstrada”, como vimos naquele trecho, supõe afastamento infinito do centro da Terra, e dela algo se perde no momento de sua aplicação para a situação física efetiva em que o afastamento não é realmente infinito mas somente imenso.

Essa é a razão por que Salviati começou sua réplica aceitando “que as conclusões demonstradas em abstrato se alteram na realidade e se mostram... inexatas (si falsifichino)”, mas logo depois pediu a Sagredo e Simplício que não “questionem nosso Autor naquilo que outros homens ilustres têm admitido, ainda que falso”.

Pois, embora seja falso no mundo físico que o braço da balança ou a “distanza terminata” dos projéteis sejam retilíneos, a aplicação da verdade

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matemática a este mundo efetivo se justifica, pois são “minuzie” as diferenças entre partir de “lontananza infinita” ou de “lontananza immensa”; assim, dada a “piccoleza” do alcance máximo dos projéteis ou do braço da balança, a subtração da verdade não implica a necessidade de fazer correções.10

No trecho em questão, repita-se, estamos encontrando uma conceituação completamente diferente dos recursos de aproximação que, de fato, são usuais em física clássica. Retomando o exemplo da aproximação da trajetória elíptica dos planetas para circular: isto se faz, como se disse, quando as diferenças entre essas linhas são desprezíveis; porém, o mais importante é notar que o “principio vero” neste caso é a trajetória elíptica, isto é, a teoria físico-matemática de partida é a trajetória em forma de elipse e esta é substituída por uma outra, a rigor falsa, que apresenta praticamente os mesmos resultados matemáticos.

Observe-se que é possível calcular os resultados, sejam os provenientes da “verdadeira” teoria como os da falsa teoria, e é a possibilidade deste confronto preciso que justifica a não adoção da primeira em uma certa aplicação ou a necessidade de correções num certo uso da segunda. Ora, não é isso o que vimos acima nas páginas analisadas dos Discorsi: não há dois grupos de resultados matemáticos possíveis, mas somente um, o proveniente da premissa da infinita distância ao centro da Terra, tomada como “principio vero”, sem a necessidade ou mesmo a perspectiva de correções.

Este posicionamento interpretativo e a tradução alternativa proposta mais acima conflitam-se, como se mostrará a seguir, com a conhecida interpretação da “inércia circular”,que entende que o movimento inercial próprio da física galileana é o circular e que uma inércia retilínea nas páginas do Dialogo e dos Discorsi não seria mais do que uma aproximação.

10 Aqueles tradutores só estariam possivelmente corretos se falassem em “fazer correções”, não quando se passa de “lontananza infinita” para “lontananza immensa”, mas quando as trajetórias dos projéteis terminassem no centro – ou seja, quando a “lontananza” deixasse de ser “immensa” – pois só nesse caso Galileo “concede” que a figura parabólica “sommamente si trasformerebbe”.

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Vejamos como Fátima Évora, um destes intérpretes, considera o trecho em questão dos Discorsi. Após informar seu leitor de que Galileo considerava perfeitamente concludentes as demonstrações em que Arquimedes supõe infinita a distância ao centro da Terra, Évora assim prossegue:

Porém se quisermos aplicar as conclusões demonstradas para distâncias infinitas às distâncias finitas, devemos, segundo Galileo, efetuar correções. Contudo, a nossa distância do centro da Terra, embora não seja realmente infinita, é tal que pode ser considerada imensa, quando comparada à deficiência de nossos instrumentos;...11

Évora cita, então, o trecho que afirma que o alcance do lançamento de projéteis de artilharia “não ultrapassará quatro milhas, enquanto que são muitos milhares de milhas que nos separam do centro da Terra”, e continua:

Podemos portanto concluir, segundo Salviati, que os erros que aparecem nas conclusões, estabelecidas por abstração dos acidentes externos, serão de pouca importância para nossos instrumentos, em razão das distâncias, que são muito pequenas em relação à grandeza dos raios e dos círculos máximos do globo terrestre.

Como vemos, Galileo usa seu princípio de inércia circular sem maiores problemas, para garantir que o movimento uniforme em uma linha reta deve-se perpetuar (desde que não haja nenhuma força em direção contrária)...12

Apoiada naquelas traduções que estamos criticando, Évora entende que Galileo está admitindo que deveria, a rigor, fazer correções quando passa da distância suposta infinita ao centro da Terra para a distância efetivamente finita que nos separa desse centro. Podemos entender que, para Évora, o “principio vero” que Galileo tem em mente é o de uma “inércia circular”, que simplifica para retilíneo no caso de distância infinita ao centro, fazendo uma teoria físico-matemática falsa que, apesar de sua falsidade, aplica à experiência porque os erros que traz são de pouca monta.

11 ÉVORA, 1988a, p. 96. 12 ÉVORA, 1988a, p. 96-7.

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Entender que o “princípio” galileano de inércia é essencialmente circular, podendo ser aproximado para retilíneo para pequenos trechos da superfície da Terra, não é totalmente sem fundamentos porque, como vimos, o próprio Galileo nos disse que se pode aproximar “quatro minutos de um círculo enorme” para uma linha reta. Porém, como o florentino repetidamente compara seu procedimento ao de seu mestre Arquimedes, seria razoável imaginar um “princípio da alavanca circular”, que se reduziria a retilíneo para pequenos braços em equilíbrio.

Ora, nem a lei retilínea da inércia, nem a lei da alavanca para braços retilíneos, devem ser vistas como casos aproximados de leis mais gerais mas são, como Galileo assinala, “tomados como princípios verdadeiros”, “ainda que falsos”. Os passos <3> e <4> do início da réplica de Salviati podem sugerir que a figura de partida é o círculo, mas o passo <5> deixa claro que a suposição efetiva de partida da demonstração é a distância infinita ao centro e que, neste caso, Arquimedes e “outros” – aos quais Galileo se alinha – faziam suposições (“assunti”) que não eram falsas e “concludevano con assoluta dimostrazione”.

E as referências a este “ilustre” inspirador também explicitam que a demonstração ex-suppositione da proposição TP-1 inicia uma teoria físico-matemática que não é falsa, pois seu ponto de partida é um “principio vero” , seu primeiro resultado é “vero dimostrato”, e que, embora esse resultado se falsifique na realidade física, não há necessidade de fazer correções.

Por isso, é uma leitura anacrônica entender que as palavras de Salviati sugerem um princípio mais geral, seja para os movimentos inerciais, seja para os arquitetos ou para a Estática de Arquimedes.

Anacronismo também, como vimos, é transferir, mesmo que não intencionalmente, um método de aproximação usual da física clássica para um de seus fundadores, pois o fato de Galileo estar no início da linhagem dos grandes físicos da modernidade não significa que compartilha com estes todos os pontos-de-vista metodológicos.

Enxergar um pioneiro sob a ótica específica dada por sua posteridade é negar, a ele e aos seguidores, originalidade e criatividade. E, poucos discordariam,

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nada é mais injusto com Galileo e com os físicos que o sucederam do que subestimar as brilhantes inovações conceituais e metodológicas que nos legaram.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Referências

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