• Nenhum resultado encontrado

A constituição ontológica da morte : uma análise heideggeriana

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A constituição ontológica da morte : uma análise heideggeriana"

Copied!
79
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL ÁREA DO CONHECIMENTO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

CAROLINA DE ALMEIDA PILATTI

A CONSTITUIÇÃO ONTOLÓGICA E ÉTICA DA MORTE: UMA ANÁLISE HEIDEGGERIANA.

CAXIAS DO SUL 2018

(2)

CAROLINA DE ALMEIDA PILATTI

A CONSTITUIÇÃO ONTOLÓGICA E ÉTICA DA MORTE: UMA ANÁLISE HEIDEGGERIANA.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre. Prof. Orientador Dr. Itamar Soares Veiga.

(3)

Sistema de Bibliotecas UCS - Processamento Técnico

CDU 2. ed.: 111.11 Pilatti, Carolina de Almeida

A constituição ontológica e ética da morte : uma análise heideggeriana / Carolina de Almeida Pilatti. – 2018.

78 f. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado) - Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2018.

Orientação: Itamar Soares Veiga.

1. Existencialismo. 2. Morte. 3. Ética. 4. Ontologia. 5. Heidegger, Martin. I. Veiga, Itamar Soares, orient. II. Título.

P637c

Catalogação na fonte elaborada pela(o) bibliotecária(o) Ana Guimarães Pereira - CRB 10/1460

(4)

CAROLINA DE ALMEIDA PILATTI

A CONSTITUIÇÃO ONTOLÓGICA E ÉTICA DA MORTE: UMA ANÁLISE HEIDEGGERIANA.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre. Prof. Orientador Dr. Itamar Soares Veiga. Aprovado em 04/12/2018 BANCA EXAMINADORA ____________________________________ Prof. Dr. Itamar Soares Veiga (Orientador)

____________________________________ Prof. Dr. JaymePaviani

____________________________________ Prof. Fábio Caprio Leite de Castro

(5)

Dedico este trabalho à minha família, que foi de extrema importância durante esta etapa da minha trajetória. Ao professor Itamar Soares Veiga por toda a paciência nas orientações, me incentivando em todos os momentos. Aos professores deste mestrado, que foram essenciais ao meu desenvolvimento.

(6)

AGRADECIMENTOS

A esta universidade, especialmente ao corpo docente do Mestrado em Filosofia, direção e administração, que me conferiram a oportunidade de vislumbrar um horizonte diferente e peculiar de possibilidades.

Ao meu orientador Itamar Soares Veiga, pelo suporte acadêmico e por muitas vezes, emocional. Assim como pela dedicação em me orientar e me apresentar a obra de Heidegger.

Ao meu filho Antonio e meus esposo Cesar, pela paciência, compreensão, apoio e incentivo durante esses anos em que me dediquei a este trabalho.

Respeitosamente, a todos os pacientes e seus familiares, que me conferiram o alicerce fundamental ao desenvolvimento desta dissertação.

E a todos que direta e indiretamente fizeram parte da minha formação, o meu muito obrigada.

(7)

“Precisamos pensar no fato de que ainda não começamos a pensar”.

(8)

RESUMO

A morte fenomenologicamente apreendida é o fim da existência e assim, uma espécie de vivência de uma possibilidade. A existência possui uma finitude, ou seja, ela se mostra em uma situação de “ainda-não” (nicht-noch), na qual o morrer do ente privilegiado denominado Dasein constitui a possibilidade efetiva, mais peculiar e intransferível. A existência e o final do Dasein são abordados nesta perspectiva em distintos momentos da produção de Heidegger. Entretanto, o cerne está na segunda seção de Ser e tempo. Assim, a questão medular tratada é a da constituição ontológica e ética da morte num caráter existencial, bem como as articulações entre o permanecido (Noch-verbleibenden) e os permanecentes (Verbleibenden). Estas duas denominações da existência encontram-se em um âmbito onde ocorre uma espécie de “nó ôntico-ontológico” e possivelmente ético. No que diz respeito à ética, aprofunda-se a apropriação técnica da morte de um Daaprofunda-sein moribundo por outros Daaprofunda-sein que estão no entorno. A trama da existencialidade presente na analítica existencial, bem como as condições fundamentais do Dasein são importantes para o mero entendimento da circularidade que permeia o tratado do filósofo da Floresta Negra. É possível perceber uma lacuna a ser estudada a respeito do ente que finda, pois, o tema da morte apresenta problemas em sua definição ontológica e ética: sobre o ente finito em situações terminais, a qual se denomina aqui de permanecido. Esta abordagem permite o aprofundamento da junção complexa destas dimensões ôntica e ontológica da morte. O método utilizado foi um tratamento teórico-exploratório. A análise final indica diferentes estatutos ontológicos como possivelmente definidores do permanecido, inclusive, a tomada do caráter existencial do findar deste pelos permanecentes, e a possibilidade de uma contribuição da concepção de serenidade em Heidegger. Por fim, ressalta-se a necessidade de uma ética aplicada à morte e ao morrer, em contraponto à tecnologização cotidiana e impessoal.

Palavras-chave: Dasein. Ser-para-a-morte. Cotidiano. Permanecido. Técnica.

(9)

ABSTRACT

Phenomenologically apprehended death is the end of existence and such, a kind of experience of a possibility. Existence has a finitude, that is, it shows itself in a situation of "still-not", in which the death of the privileged ente called Dasein constitutes the effective, most peculiar and non-transferable possibility. The existence and the end of

Dasein are approached in this perspective at different points in Heidegger's production.

However, the core is in the second section of Being and Time. Thereby the marrow question treated is the ontological and ethical constitution of death in an existential character, as well as the articulations between the remained (Noch-Verbleibenden) and the permanent (Verbleibenden). These two denominations of existence are within where it occurs, a kind of "ontic-ontological node" and possibly ethical. What is related to ethics, the technical appropriation of the death of a dying Dasein by other Dasein who surrounds them is deepened. The plot of existentiality present in the existential analytic as well as the fundamental conditions of Dasein are important for the mere understanding of the circularity that permeates the agreement of the Black Forest philosopher. It is possible to realize a gap to be studied in relation to the entity that ends because theme of death presents problems in its ontological and ethical definition: on the finite ente in terminal situations, which is here referred to as remained. This approach allows the complex junction deepening of these ontic and ontological dimensions of death. The method used was a theoretical-exploratory. The final analysis indicates different ontological statutes, as possibly definitors the remained, including the taking of the existential character of the ending of the permanent ones, and the possibility of a contribution of the serenity`s conception in Heidegger. Finally, the need for an ethics applied to death and dying, as opposed to everyday and impersonal technology is emphasized.

Keywords: Dasein. Being-to-death. Daily. Remained. Technique.

(10)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

1. MORTE EXISTENCIAL E MORTE BIOLÓGICA: elementos fenomenológicos . 13 2. AS PROFUNDIDADES DAS CARACTERÍSTICAS EXISTENCIAIS ... 26

2.1 Exposição da Ek-sistencia ... 27

2.2 Ser-no-mundo e Ser-com... 31

2.3 A existencialidade enquanto modos-de-ser ... 40

3. O DASEIN E O FIM: o ser-para-a-morte ... 50

4. O PERMANECIDO E OS PERMANECENTES ... 58 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 69 REFERÊNCIAS ... 75

(11)

INTRODUÇÃO

No texto da analítica existencial, Heidegger coloca a questão do ser, tendo por objetivo a procura pelo seu sentido, utilizando para isso a fenomenologia hermenêutica. Na pesquisa sobre o sentido do ser é preciso interrogar os diferentes entes, e dentre todos estes, se destaca o ente Dasein. O Dasein é um dos temas centrais, em que a compreensão do ser constitui o próprio ser deste mesmo ente. Nesse sentido Heidegger afirma que “esse é o ente que somos cada vez nós mesmos e que tem, entre outras possibilidades-de-ser, a possibilidade do perguntar”. Trata-se então de uma característica importante desse ente, pois esse perguntar justifica aquilo que Heidegger denomina em Ser e tempo, a primazia do Dasein. Além disso, acrescenta-se, em um possível confronto com a tradição anterior, que esse ente possui uma dimensão fenomênica e hermenêutica que pretende ir contra a representação: “Não é o caso de um ente para a representação por uma abstração, mas precisamente ele é a sede da compreensão-do-ser.” (HEIDEGGER, 2012, p. 45).

O tema da presente dissertação é a constituição ontológica e ética da morte. Em Ser e tempo Heidegger diz que o Dasein tem diferentes existenciais, um deles é o ser-para-a-morte. Ela é tratada na segunda seção da obra em questão, e é condição central para essa investigação. A existência implica numa finitude, ou seja, uma situação de “ainda-não” (noch-nicht), uma possível condição existencial para o Dasein que o dirige para a sua situação final. Percebe-se aqui, um campo de estudo sobre esse ente que finda, e a temática da morte apresenta problemas em sua definição de estatuto ontológico e ético, mesmo deste ente denominado finito em situações terminais que chamamos de “permanecido” (Noch-verbleibenden).

O problema abordado nesta investigação se expressa, justamente, em uma exploração das condições para iniciar uma discussão sobre o estatuto ontológico e uma possível ética do findar através de uma análise heideggeriana. Este propósito permite um aprofundamento da junção complexa entre as dimensões ôntica e ontológica e a possível apropriação técnica da morte. A união dessas dimensões pode ser encontrada desde a introdução de Ser e tempo, ainda quando Heidegger afirma que a indefinibilidade do ser não dispensa a pergunta pelo seu sentido, mas precisamente a exige. E nesse contexto acredita-se que tal pergunta pode ser

(12)

perpassada também em relação ao permanecido1 e aos permanecentes2, onde a

pergunta pelo seu sentido não é dispensada.

Ao nos colocar que o Dasein não é um ente que só sobrevenha entre outros seres, é inerente a essa constituição-de-ser do Dasein que em seu ser de algum modo e mais ou menos expressamente, compreende-se em seu ser e é próprio desse ente o estar aberto a ele mesmo. “A compreensão-do-ser é ele mesmo uma determinidade-do-ser do Dasein. O ôntico ser-assinalado do Dasein reside em que ele é ontológico”. (HEIDEGGER, 2012, p. 59).

O nó ôntico-ontológico pode se tornar incontornável, pois as questões que permeiam o findar do Dasein requerem um “entendimento tão caro quanto a obra de Heidegger” e neste âmbito, deseja-se nesta dissertação, obter uma familiaridade ou ao menos uma breve apreensão dos conceitos acerca da morte deste ente privilegiado.

A morte no âmbito fenomenológico é o fim da existência e, por isso, uma espécie de experiência. Nesta possível experiência, em que ocorre o duplo movimento ontológico de ouvir os apelos para vir-a-ser si mesmo “próprio” e de “fugir” ou dar as costas para si mesmo, o Dasein os realiza diante do morrer. Seu morrer próprio e intransferível é sua possibilidade mais peculiar. Isto, porque, ontologicamente, vida e morte não são fenômenos distintos e separados que se excluam e neguem um ao outro. Vida e morte constituem um fenômeno único, que se oferece como o fundo sobre o qual a existência se desenrola. A morte ilumina o sentido da vida, podendo fazê-la endereçar a ser “própria” ou “imprópria”. (CRITELLI, 1981).

Finalmente, a necessidade de um aprofundamento, expresso na questão acima, mostra a importância dessa dissertação como uma contribuição aos estudos

heideggerianos e possível expansão desses para uma ética de cunho mais aplicado3.

O método será de caráter teórico-exploratório e orientado pela leitura da segunda seção de Ser e tempo, bem como das traduções dos parágrafos 47 a 53 da

1 Tradução livre da expressão Noch-verbleibenden da obra Ser e tempo em alemão que se refere ao

ainda-remanescente, que permanece. Que continua a ser, a estar, a existir.

2 Tradução livre da expressão Verbleibenden da obra Ser e tempo em alemão que se refere ao que

permanece em outro caráter de permanência, o duradouro. Desta forma, as adjetivações passaram a ser utilizadas para e referir ao moribundo e aos indivíduos que estão no seu entorno.

3 Esta expansão para uma ética aplicada, somente poderá ser feita posteriormente com o uso de

subsídios filosóficos heideggerianos para uma reflexão das práticas na área da saúde, especialmente em pacientes terminais.

(13)

obra na língua alemã. Os conceitos de ser-para-a-morte, permanecente e permanecido serão aprofundados em uma discussão que alternam uma abordagem ontológica e ôntica, dentro de uma pesquisa analítico-documental. Fundamentalmente os comentadores reconhecidos na pesquisa sobre a filosofia de Heidegger serão consultados.

Essa dissertação está dividida nos seguintes capítulos: primeiramente se tratará da morte existencial e fenomenologia da morte, no capítulo seguinte se apresentará a existência, o ser-no-mundo, o ser-com, e a existencialidade enquanto articulação. A seguir será realizada a apresentação do ser-para-a-morte e, em último lugar serão tratadas elaborações realizadas por Heidegger e transformadas em qualificações: o permanecente e o permanecido. Esse capítulo encerrará com uma discussão sobre uma possível apropriação técnica da morte.

Convém mencionar que, como foram utilizados elementos da primeira seção para a construção e elaboração de todo o trabalho, os capítulos podem se apresentar de forma arbitrária numa primeira impressão, porém, se constituem e se “encontram”, conferindo a coesão e coerência que refletem a argumentação de Heidegger. Uma argumentação situada na segunda seção e explorada ao longo dos capítulos nesta dissertação.

Finalmente, no que se refere a terminologia, considera-se que a compreensão dos termos conceituais e muitos deles neologismos, são de extrema importância para o entendimento de Heidegger como um todo, pois todos esses termos estão inter-relacionados dentro de sua filosofia, formando um corpo homogêneo que se completa e que se auto explica. (CEREZER et. al, 2012).

(14)

1. MORTE EXISTENCIAL E MORTE BIOLÓGICA: elementos fenomenológicos

Cotidianamente, a ciência reduz e esvazia o conceito de morte4, essa que é a

experiência irrevogável e imprevisível do homem em sua própria existência. No desenvolvimento da analítica existencial de Ser e Tempo, Heidegger privilegia o tema da morte nos parágrafos 46 a 53, contexto que, será tratado adiante nesta dissertação, em seus aspectos ônticos, ontológicose possivelmente éticos.

O reconhecimento da morte no modo existencial, não é o mesmo que o reconhecimento em uma consciência empírica. Contudo, em alguns autores, para mostrarem esse fenômeno peculiar da existência, fazem o uso do termo consciência, inclusive de uma consciência qualificada como transcendental (VALENTINI, 1988). Esta consciência transcendental caracterizaria uma transparência diante de si mesma com todo o seu “vivido”. Assim, o saber que se morre, é algo que no cotidiano aparece como minimizado ou obscurecido perante uma análise mais profunda. Esta análise mais profunda se encontra em Heidegger a respeito do Dasein, sem esta ênfase, numa suposta consciência transcendental, mas com o foco em uma complexa autenticidade perante a morte.

Uma das possíveis concepções existencialistas de existência transpõe a diferença entre essentia e existentia dos seres já conhecida, e ao ser trazida por Sell (1962), essentia significa o que uma coisa é em si, ou seja, é aquilo que institui as determinações essenciais do conteúdo dessa coisa. Ou melhor, é o seu “ser assim” que se mantém integro após a abstração por completo de suas especificações, sejam elas casuais ou acidentais. A existência, neste caso, diz que alguma coisa existe, que “é” e que “está aí” com todas as suas particularidades.

No existencialismo, esse conceito de “existentia” recebe um significado totalmente diverso. Aqui, “existência” refere-se somente ao homem. "Existência” significa apenas existência humana. “Existência” passa a significar apenas o existir, o “estar aí” (Da-sein) do homem. Sendo compreendido esse “estar aí” somente na “vivência existencial”, isto é, a “essentia” e a “existentia” estão inseparavelmente ligadas. Assim sendo, somos forçados a reconhecer a impossibilidade de fixar um conteúdo determinado no conceito de “existência”. Portanto, restam apenas dois caminhos a serem seguidos. Renunciar à conceituação da “existência”, ou

4 Quanto a morte humana, a ciência não faz nenhuma diferença da morte de qualquer outro organismo

vivo. O ser humano não passa de um primata do velho mundo que de alguma forma teve seu cérebro mais avançado e foi capaz de desenvolver a linguagem, aprender a utilizar ferramentas e descobrir um método eficaz de compreensão do mundo.

(15)

procurar outros meios que nos permitam exprimi-la de uma forma clara e distinta. (Sell, 1962, p. 49).

Em Heidegger, a essência do existir não é ofertada pelo conteúdo do “quê” (Was) de algo e a determinação da existência também não pode ser obtida a partir da fixação exata de um conteúdo objetivo. Apesar de esse “quê” se afastar de toda uma determinação, é possível entendê-lo no seu “como” (Wie), e por isso a existência não está desassociada ou incorporada à essência. O homem na sua essência é existência, portanto, a essência do “ser-homem” está na sua existência, e esta deixa de expressar o simples e puro fato de ser, para tornar-se num “modus essendi”. (Sell, 1962).

A disparidade dos modos-de-ser da existência encontra-se no proceder de diferentes indivíduos entre si, e desta forma, Heidegger diz que a existência é um ser que se ocupa e se preocupa consigo mesmo, chamando essa relação de preocupação (Fursorge). E ainda pode ser configurada como um ser que ao suplantar-se a si mesmo, aponta para algo mais: algo longe dele, além dele. É multíplice, desde o mundo que o circunda até as suas possibilidades mais próprias. Faz-se necessário, assim, mostrar a distinção entre existência inautêntica e autêntica, onde a existência autêntica ocorre somente, quando se realizam as possibilidades pertinentes ao seu ser, como contribui Sell ao referir que “portanto o meu simples “estar aí” não é existência (autêntica), mas o homem no seu “estar aí” tem a possibilidade de uma existência”. (JASPERS apud SELL, 1962).

Com a morte se terminaria com tudo o que se verificou até o momento no que tange à existência, pois seria o fim do estar no mundo. Porém, o que se apresenta nesta investigação não fala na morte como o fim do estar no mundo, o que acontece quando se sofre um acidente ou se adoece, e nem a destacar científica e biologicamente. Aqui, a morte é a relação individual e única que se encontra para com a própria morte, ou seja, com o significado que ela tem para a vida e para o fim. Convém não confundir o conceito de morte com o que se entende habitual e medianamente, porque dessa forma não se pode apreendê-la.

A morte nunca é dos outros, ela é somente individual, é “a minha própria morte”, e neste enredo, Heidegger diz que mesmo quando alguém se dispõe a morrer por outro, não está isento de morrer a própria morte. A morte não é um simples acontecimento que está esperando em um dia qualquer e a sua suposta relevância se

(16)

mostra no significado como acontecimento que ocorrerá em data incerta. A morte, deixa de ser algo estranho e exterior a vida para se tornar peculiar da mesma.

Em sua estrutura existencial o Dasein é ser-no-mundo, inautêntico e carrega a capacidade de angustiar-se e de contemplar toda sua estrutura existencial, além de temporal e de ser-para-a-morte. Nessa relação fica evidenciada uma conformidade dele ao mundo que é dado a ele como interpretado, assim, habita um mundo familiar, onde tudo é conhecido e previsível, onde todos são tratados como ninguém ou alguém. O Dasein como ser restrito por circunstâncias que compreendem o seu mundo compartilhado, é levado a pensar sobre a dimensão futura de sua existência e a lançar-se para seu encontro. É chamado a projetar-se, vendo-se sempre limitado no tempo como mortal, frágil, sujeito a incompletude e marcado pela angústia. (NAVES, 2004).

Esse contexto de compreensão imediata e científica da morte conduz a descrições que merecem uma investigação ontológica. No âmbito ôntico da psicologia, percebe-se que a partir dos elementos estruturais ontológicos pode decorrer uma descrição psicológica. Mas toda descrição psicológica possui um remetimento ao ôntico. Este é um elemento complicador da análise em geral, por isso o trabalho com a analítica existencial deve ter uma sequência cuidadosa.

Além da recepção psicológica, o tema da morte tem uma definição biológica, que também foi sofrendo alterações ao longo do tempo. Outrora, considerava-se que a morte, enquanto evento tinha lugar assim que o coração deixava de bater e que o ser vivo deixava de respirar. Com o avanço da ciência, a morte passou a ser vista como um processo que, a partir de um dado momento, se torna irreversível.

A definição de morte afirma genericamente os seguintes aspectos: manchas cadavéricas, rigor mortis, ausência de pulso nas principais artérias, inexistência de batimentos cardíacos e respiração, pupilas dilatadas e que não reagem à luz. A morte é o termo5 da vida devido à impossibilidade orgânica de manter o processo

homeostático. Trata-se do final de um organismo vivo que havia sido criado a partir do seu nascimento ou concepção6.

5 Fim, final, término. Utilizado comumente em clínica obstétrica para definir que o feto está em

adequação temporal para o nascimento, ou seja, a termo é o feto pronto biologicamente para nascer e finalizar a gestação.

6 Nascimento e concepção: matéria seguidamente questionada, onde se divergem sobre os conceitos

(17)

Atualmente, por exemplo, mesmo que um ser humano não consiga respirar pelos seus próprios meios, ele pode ter acesso a um benefício técnico: um ventilador7

artificial, mantendo assim uma vida com alguma qualidade. No mundo ocidental, a proposta mais aceita a respeito da morte biológica é a da morte cerebral, isto é, o cessamento completo e irreversível da atividade cerebral. (Resolução CFM 2.173/17). Além da área científica da biologia, existem concepções sociais e religiosas relativas à morte. Costuma-se, no caso de muitas crenças religiosas, considerar a morte como sendo uma separação do corpo e da alma, a qual corresponderia ao final de uma vida física na Terra, mas não da existência em si. A crença na reencarnação também é uma prática bastante comum.

Em seus modos de existir, como já mencionado anteriormente, o Dasein possui uma relação com o âmbito ôntico, e este âmbito ôntico não se confunde com os objetivos profundos da análise existencial, os quais tratam do âmbito ontológico. Há uma rede ou trama de descrições de fundo ontológico, que estão relacionadas entre si, perfazendo a existencialidade, ou seja, na medida em que a existência determina o Dasein, a analítica ontológica deste ente não pode ter início sem ter, a cada instante, em vista a existencialidade. Ela é entendida como constituindo o ser do ente que existe. (HEIDEGGER, 2012).

A existencialidade do Dasein é mostrada pelo conjunto dos existenciais. Toda a analítica está orientada pela pergunta sobre o sentido do ser, em relação ao qual o

Dasein se compreende e o afeta de uma ou de outra maneira, Heidegger chama de

existência, como descrito anteriormente e isto significa a possibilidade de ser, ou de não ser si mesmo, seja em modo próprio ou não, autêntico ou não. Existir é escolher esta ou aquela possibilidade de ser.

Por outro lado, a compreensão cotidiana não exige conhecimentos técnicos ou teóricos. É então através da analítica existencial que se torna possível uma perspectiva diferente a partir de uma tematização fenomenológica da existência. Ao contrário dessa compreensão cotidiana, um existencial específico permite que o

Dasein compreenda (Verstehen) a morte, e este compreender é uma das estruturas

7Ventilação mecânica: é o suporte oferecido por meio de um aparelho ao indivíduo que não consegue

respirar espontaneamente por vias normais devido a fatores como doenças, anestesias e anomalias congênitas.

(18)

existenciais que se mostra como o modo fundamental referente ao ser, circularmente. Mas, é necessário lembrar que “é sempre um compreender em um estado de ânimo”. (HEIDEGGER, 2012, p. 406). Por isso está sempre implicada uma facticidade do

Dasein.

No compreender está existencialmente (ontologicamente), o modo-de-ser do

Dasein como poder-ser (Seinkonnen), e no compreender ôntico (existenciário),

empregam-se as expressões “compreender disso”, no sentido de poder enfrentar alguma dificuldade, estar à altura, poder algo, perfazendo acepções que dizem respeito a uma compreensão cotidiana.

Existindo, o Dasein é o seu “aí”, significando que o mundo é “aí” e o Dasein está constituído como ser-em. Nesta constituição abre-se o tema do ser-no-mundo, onde: a abertura da compreensão, como uma abertura do “em-vista-de-quê” da expressividade, é cooriginária à abertura do completo ser-no-mundo, isto é, que o emvista-de-quê e a significatividade são abertos no Dasein indicando que ele é o ente para o qual, como ser-no-mundo, está em jogo o seu próprio ser. (HEIDEGGER, 2012).

Compreender não se trata de pensar a respeito de um objeto de reflexão, mas como se ek-siste8, tornando desse modo, o Dasein capaz de ser. Compreender é

poder-ser, e compreender a morte pode revelar ao Dasein à sua condição finita num caráter existencial. A morte é um fenômeno do cotidiano, portanto, vive-se e entende-se cotidianamente, entende-sempre a morte como morte do outro, pois: “os outros morrem e eu ainda não, na minha morte eu penso amanhã”. Deste modo repele-se da possibilidade da individualização da morte.

A morte é a possibilidade mais peculiar e irrefutável do Dasein, em que dentro de todas as possibilidades, já está presente como a absoluta impossibilidade de não ser/estar mais aí.

O caráter ôntico leva a compreensão de significados de fatos brutos e fechados sobre si mesmo. Em contrapartida, ontologicamente, a compreensão leva o Dasein à revelação de como ele ek-siste, saindo de si para se encontrar “aí” (facticidade). Então, não é como se pensa, mas como se existe, sendo correto afirmar que a morte é,

(19)

também, uma possibilidade ontológica, pois existe uma morte existencial, onde o

Dasein deixa de existir.

Pasqua interpreta a situação fática do Dasein mostrando que ser é sempre-para, ser-por, ser-em, na medida em que a essência do ser reside na ek-sistência, o ser reduz-se fatalmente ao que ele pode ser. E o que ele pode ser é, ser outra coisa que não ele próprio. (PASQUA, 1993).

Compreender é projetar, sendo o Dasein lançado diante do que tem de ser, e a impossibilidade de ter onticamente a experiência do Dasein como um todo, não tem a ver com uma deficiência do poder de conhecer, mas do próprio ser do ente. É, desta maneira, um problema ontológico (existencial) e não ôntico. Importante observar para não se considerar o Dasein como um ente qualquer, pois a morte do ente humano não é um fenômeno puramente biológico.

Heidegger faz da morte um elemento importante na sua filosofia e de qualquer forma, se a experiência da morte impossibilita o Dasein de falar dela, pode, apesar disso, experimentar, remota e indiretamente, a morte dos outros. E esta morte dada de forma objetiva, pode contornar a preocupação com a totalidade ontológica do

Dasein, porque para ele, alcançar a sua totalidade na morte é, ao mesmo tempo,

perder o ser do aí, onde morto deixa de “ek-sistir” e não está mais para falar da passagem ao já-não-ser. Assim, acredita-se ser possível conquistar um conceito existencial da morte não se tendo essa experiência. (PASQUA, 1993).

Morrer significa deixar de ser-no-mundo e o outro Dasein, uma vez morto, também é um já-não-ser. O já-não-ser do morto apresenta-se como um ser subsistente, como um ente qualquer. Pode-se observar a passagem de um ente como o Dasein a um ente como subsistente, contudo o cadáver não se reduz a apenas uma “pura coisa corporal”, é mais do que uma coisa material inerte: é o inanimado, o que perdeu a vida.

Quanto ao ente como subsistente e o utilizável, aborda-se a questão de uma possível apropriação técnica da morte, onde a ciência pode reduzir ou transformar o

Dasein em utensílio, no capítulo quarto desta dissertação.

Ao morto, restam os cuidados dos atos funerários, onde é honrado e estar com ele que já não é facticamente aí, é estar com ele no mundo que deixou. Esta análise fenomenológica da morte a partir de Ser e tempo, mostra que não se conhece e não

(20)

se experencia verdadeiramente o ser chegado-ao-fim do defunto. A morte é vivida como perda, mas uma perda sofrida pelos permanecentes e não pelo próprio morto. Então, o morrer do outro sendo inacessível, faz escapar e frustrar a ideia de ter a morte experimentada nos outros como uma análise ontológica mais detida sobre o fim do

Dasein. É impossível substituir a morte de alguém.

Quanto mais adequada seja a apreensão fenomênica do já-não-ser-“aí” do finado, tanto mais claramente se mostra que esse ser-com com o morto “não” experimenta precisamente o ser-chegado-ao-final próprio do finado. A morte se desvenda sem dúvida como perda, porém mais como uma perda que os sobreviventes experimentam, e no padecer pela perda, não se tem acesso, porém, à perda-do-ser que como tal o que morre “padece”. Não experimentamos em sentido genuíno o morrer dos outros, mas no máximo só estamos sempre “presentes a” ele. (HEIDEGGER, 2012, 661).

Se a tentativa de chegar à totalidade pela morte dos outros falha, permite pelo menos ter na morte um fenômeno existencial, uma vez que o findar do Dasein representa a sua totalidade e pode-se considerar o ser dessa totalidade como uma possibilidade real. O ser do Dasein não é um ser acabado, uma vez que para ser, é necessário viver. É um ser a findar, não uma totalidade acabada, mas em vias de acabamento, e no final, o Dasein como ainda-não, pode se constituir em um permanecido (essa denominação será amplamente discutida posteriormente). Somente ao findar que o Dasein se torna um ser qualquer, num ente sem vida. O ser do Dasein se distingue de um ente subsistente pois está em constante atividade, “ek-sistindo”.

A morte faz parte do Dasein, e é por isso que quando o filósofo escreve paradoxalmente que “findar não significa necessariamente perfazer-se”, ele diz que o

Dasein não finda com a morte como o alimento depois de consumido, ou como a chuva

ao desaparecer: é a morte que finda no sentido ativo, o Dasein. Neste sentido podemos vincular ao que tínhamos referido antes sobre o “ek-sistir”, que é sair de si, extenuar-se e avançar em direção ao fim. O Dasein, portanto, não se constitui como totalidade (Ganzheit) no fim (Ende), ele realiza-se desta forma, no caminho, ele é, sendo. Não se fala de um Dasein morto, no máximo de um Dasein moribundo ou permanecido (Noch-Verbleibenden).

A interpretação ontológica da morte leva ao entendimento do viver a partir do ser do Dasein, não somente do ponto de vista biológico, pois ele não morre como um animal ou uma planta. A morte faz parte do seu ser de uma maneira primordial e não acidental, e por essa razão que a interpretação de caráter existencial da morte

(21)

antecede toda a biologia e ontologia da vida, devendo fundamentar análises do tipo: histórico, biográfico, psicológico, etnológico. Uma “tipologia” da morte pressupõe o conceito ontológico da morte. (HEIDEGGER, 2012).

O ser do Dasein também não é o resultado de uma criação destinada à imortalidade, mas o início de um desaparecimento, em que a morte é uma força remota, fazendo com que se morra a cada instante a partir do nascimento. A morte para Heidegger é um desenvolver-se da finitude.

As exposições preliminares mostram a necessidade de interpretar o fenômeno da morte como “ser-junto-ao-fim”, a partir da constituição fundamental do Dasein, o existencial “cuidado” (Sorge). Este existencial consiste em ser/estar adiante e já no mundo, antecipar-se. A morte, examinada a partir do cuidado surge como o que ainda não está/é aí adiante, é o ainda-não-aí-adiante mais distante e igualmente é o mais iminente.Eessa iminência não é como uma tempestade ameaçando no horizonte ou a construção de uma casa quase terminada, no sentido ôntico. A morte refere-se ao ser do Dasein, ela é ontológica.”(PASQUA, 1993).

A morte é uma possibilidade de ser que o Dasein tem, a cada instante, de assumir-se. Com ela, encontra consigo mesmo no seu poder-ser mais próprio (autêntico). Esta é a possibilidade de já não ser Dasein. Assim, o Dasein circunscreve em si mesmo, como se fosse gravado no seu ser, a possibilidade de morrer, que é radical e incontornável. É a possibilidade da pura e simples impossibilidade. (HEIDEGGER, 2012).

A morte revela-se como a possibilidade mais própria, mais autêntica e que pertence somente a si mesmo. Morte (Tode) é um existencial, constituindo um momento do cuidado do ser do Dasein, que na abertura (Erschlossenheit), lança-se adiante de si mesmo, em direção ao fim que é seu último efetuar. Compreende-se, a partir de agora, portanto, que não é imposto passar pela morte dos outros para captar a dimensão ontológica da morte.

Desde o momento que o Dasein ek-siste, está lançado na possibilidade da morte e entregue a ela: projetado, lançado adiante, para fora de si, em direção ao mundo. Esta condição do Dasein se revela na angústia (Angst), que diante da morte não pode ser confundida com o medo do falecimento, pois a angústia não é fuga diante da morte, mas é algo diante do confronto da possibilidade na própria impossibilidade.

(22)

Assim, Heidegger coloca que a angústia não é uma qualquer disposição de fraqueza no indivíduo, pelo contrário, enquanto sentimento de situação

(Befindlichkeit) do Dasein, é abertura pela qual ele existe enquanto está lançado rumo ao seu fim. (HEIDEGGER, 2012). Admite-se que o ser do Dasein foge, e afasta-se constantemente de si mesmo, ek-siste. E o fenômeno da angústia o revelará: “o que angustia a angústia é completamente indeterminado” (HEIDEGGER, 2012). E o indeterminado, a origem da angústia, é uma ameaça e não vem daqui, nem dali, ou seja, é ameaça de parte alguma. “A angústia não sabe o que a angustia” (HEIDEGGER, 2012, p. 525). O que angustia a angústia é o mundo na sua mundanidade, enquanto tal, independente dos entes.

Já o medo (Furcht), considerado no momento estrutural proposto por Heidegger, no “diante de que se tem medo, o que dá medo, o temível é cada vez um ente que-vem-de-encontro no interior-do-mundo, um ente do modo-de-ser do utilizável, do subsistente ou do Dasein-com”. (HEIDEGGER, 2012, p. 399). E no contexto do “aquilo por quê se tem medo”, o Dasein receia por si mesmo, pois o medo revela sempre o Dasein no ser do seu aí e a sua fragilidade. “O ter-medo, como latente possibilidade do ser-no-mundo se encontrando, o “ser-medroso”, abriu o mundo de tal maneira que a partir dele algo como o temível pode ficar-mais-perto”. (HEIDEGGER, 2012, p. 401). Assim, ao pensar na morte, acontece o medo de que ela se aproxime.

O medo também é um modo do sentimento de situação (Befindlichkeit), enquanto estado anímico afetado, e pode se apresentar de várias formas: horror, terror, timidez, receio, espanto, covardia, tratando-se de possibilidades diversas do mesmo sentimento e que não tem um sentido ôntico, mas ontológico.

O que impele o Dasein é a possibilidade de ser no mundo, o próprio ser-no-mundo, revelando-se em sua indeclinável solidão, onde a angústia o isola e o expõe como “apenas o”. Na angústia o Dasein descobre-se entregue ao mundo para uma ek-sistência autêntica e ela manifesta ao Dasein no qual ele se encontra, torna-o estranho a si próprio, revelando o seu ser-no-mundo e seus componentes: existencialidade, faticidade e decadência. Esses caracteres ontológicos fundamentais formam um todo em que o ser do Dasein ek-sistindo, lança-se para frente de si mesmo.

No âmbito da morte, a angústia abre o ser relativamente à morte, que pode ser ameaçador, estranho e inóspito. Esquiva-se e habita-se um mundo protegido e presumível, no qual a morte aparece como um evento ao final da vida (que não é hoje).

(23)

Neste domínio, é comum encontrar a utilização deste existencial numa constante “psicologização”. Acredita-se, dentro de aspectos ônticos, que a angústia perante a morte pode proporcionar ao Dasein a responsabilidade por sua história, a partir da construção ou não de sentidos. E considerando possíveis privilégios trazidos pela angústia, pode-se aceitar a ideia de que é possível ser autor de sua própria existência. No cotidiano, vive-se afastando a possibilidade da morte de si mesmo, acreditando que haverá tempo e desta maneira, envolve-se em projetos, admitindo que estes poderão ser concretizados e que enfim, sempre se terá tempo.

Com o Dasein também se anda, numa cotidianidade mediana constantemente para este poder-ser mais próprio, insuperável e irremetente, quando também no modo da preocupação sobre uma indiferença cômoda em contraposição à possibilidade extrema da sua existência. (HEIDEGGER, 2012, p. 700, tradução nossa).

Sempre há a possibilidade da morte, mas ela é entendida cotidiana e medianamente, como a perda dos outros com os quais se envolve. No existir cotidiano, estas perdas são tidas como morte factual, separações, términos ou interrupções, e o impessoal trata das perdas tentando minimizá-las, pensando e agindo como se tenha outra oportunidade sempre, que se aprende algo com isso, ou fazendo substituições. Assim se esquiva do pensar no fim, porém, não existe recomeço, não existe substituição e não é possível esquecer que a morte é definida.

A todo momento se fazem escolhas, e a cada escolha feita, decreta-se o fim de uma possibilidade que não foi escolhida. Isso pode trazer a angústia acerca da realidade, esta que mostra que não é possível viver tudo ao mesmo tempo e que não se pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, por exemplo. O Dasein morre cotidianamente todos os dias e o tempo todo. No mais cotidiano modo-de-ser, se vê como ao arbítrio do tempo, pois o tempo passa e carrega-o para frente sem parar.

O Dasein é lançado em suas possibilidades no seu tempo, a fim de si mesmo. O projeto de cada um aponta para um futuro que ainda não é, mas que poderá vir a ser, e que também poderá não ser, uma vez que está pressuposto nas possibilidades a de já-não-estar-mais-aí. Apreendendo essa possibilidade iminente da morte, é provável que se legitime um sentido que transforme a leitura desse tempo, vendo-se como ser finito e responsável pela própria existência.

A possibilidade da morte invalida todas as demais possibilidades ao Dasein, e nesse contexto ele pode fugir, não se enfrentar e evitar ver-se de tal maneira. Assim,

(24)

ele esconde-se no impessoal e se solve e é por isso que na análise do “morre-se”, se mostra o modo-de-ser do ser cotidiano para a morte. Quando o “nós” morremos, “eu não morro”, pois o nós não é ninguém, então, a morte como acontecimento externo não “me atinge”.

A morte é notícia, tema de conversas e estudos, e o modo de enfrentá-la, impessoalmente, é interpretado como uma realidade e não uma possibilidade do ser. Heidegger diz que o “nós” (Man) certifica o direito de obscurecer o ser-para-a-morte no que ele tem de mais próprio. Essa dissimulação tem o intuito de conferir uma tranquilidade a respeito da morte, pois a morte desconcerta, é uma contraposição social e uma falta de tato, onde a vida pública procura ser preservada.

Como já exposto previamente, a angústia possibilita ao Dasein, que ele veja a morte de frente e também possibilita conferir a sua perspectiva mais absoluta. Contrariamente a isso, o impessoal tenta transformar a angústia em um medo ôntico, onde o “a gente9” manifesta o seu encobrimento, fazendo entender que a ideia da

morte é algo desprezível, uma covardia e uma fuga para fora do mundo. Nesta conjuntura, esse existencial aparece como uma fragilidade que um Dasein “seguro de si” não poderia aceitar, ocorrendo então, uma dissimulação total, pois o Dasein aliena-se no aliena-seu poder-aliena-ser, fazendo da morte algo estranho que não lhe diz respeito e que só ocorre com os outros. A fuga reproduz na vida cotidiana a decadência do ser autêntico do Dasein que deixa de ser próprio para existir acabando na morte. O ser-para-a-morte cotidiano e decadente é fuga constante perante a morte.

No “nós morremos”, a morte é ofuscada ao Dasein, que é sua possibilidade mais própria, autêntica que está por detrás da realidade inautêntica e imprópria do dia a dia. No entanto, o impessoal não consegue esconder ao Dasein a certeza do morrer, pois, que “se morre”, ninguém desacredita e nem mesmo o impessoal, apesar da sua

9 Nós, Impessoal, A gente, Das Man. Nas palavras de Werle (2003), a vida social é o império do a gente

(o impessoal), âmbito este em que se confunde o todos nós e o ninguém, na medida em que se age de acordo com o que se pensa em geral. Nesta interpretação, a concepção básica de Heidegger sobre a vida em sociedade é que ela é conduzida por uma noção obscura de convivência, em que não há sujeitos e sim domina o impessoal, de uma sociabilidade truncada, em que nem o eu nem o nós, se diferenciam. Este impessoal é ele mesmo sem face, uma espécie de ninguém que orienta a vida individual e não pode ser identificado com este ou aquele ser humano. Ocorre aqui uma perda do Dasein no espaço aberto da opinião pública (Öffentlichkeit) que tudo detém e nivela por baixo e determina o que cada um deve fazer. "O 'quem' é o neutro, o impessoal, que não é nada determinado, mas o que todos são, embora não como soma, que prescreve o modo-de-ser da cotidianidade." (HEIDEGGER, 1989, p.179).

(25)

ação de dissimulação. E a certeza disso é a “certeza que se funda na verdade”, e verdade para Heidegger significa desvelamento.

Neste contexto, o do desvelamento, vale retomar brevemente o parágrafo 44 de Ser e tempo, com o auxílio de Siqueira (2014), onde o conceito de abertura (Erschlossenheit) aparece como um dos existenciais fundamentais do Dasein e essa palavra pode, segundo Ernildo Stein, (2011, p.21) ser traduzida por “revelação, no sentido de erschliessen, ou seja, revelar, explorar [...] a condição de “aperibilidade”, de se poder abrir algo”. A discussão sobre a verdade é orientada para a abertura do

Dasein e às suas experiências, afastando o termo das propriedades linguísticas assim

como da salvaguarda da correspondência entre sentença e objeto. Ademais, isso evidencia que o Dasein não pode ser destacado como motivo de uma certeza irrefutável. Não seria possível haver qualquer verdade sem o Dasein e Heidegger sustenta que “no modo-de-ser do Dasein, estamos “na verdade”.” (HEIDEGGER, 1997. p. 247).

Enquanto o Dasein é transparente a si, encontra-se totalmente na abertura através da qual seu ser passa para o mundo, saindo de si mesmo, ek-sistindo, para entrar no mundo. A certeza da morte reveste-se, neste caso, de um caráter ontológico e não empírico, porque, uma certeza unicamente empírica não é o que estipula a certeza da morte. No horizonte de uma certeza empírica, o Dasein não está certo da morte como ela é, então o estar-certo da morte não pode ser compreendido, com efeito, a menos que esta seja apreendida como a realidade mais própria e incontornável. A morte é certa porque é a cada instante possível.

Estas características consentem a aproximação de um conceito plenamente ontológico da morte, em que a morte como fim do Dasein é a possibilidade mais própria, sem relação, certa e como tal indeterminada e incontornável do Dasein. Ela está, como fim do Dasein, no ser deste ente rumo ao fim. A morte permite ao Dasein ser um todo, e para Heidegger, o ainda-não da morte reúne-se ao “adiante” do cuidado, o ser do Dasein “ek-siste” “in-sistindo”, de tal modo que este pode exclamar “morro, logo ek-sisto”. É a possibilidade cujas características suprimem todas as outras, e o próprio Dasein, realizando-se. “Ek-sistir” é avançar em direção ao nada, saindo do ser. Avançar para a morte consiste em aproximar-se do ponto para onde tudo estará no todo do ente privilegiado, porque o todo não pode ser senão o ponto onde coincidem todos os contrários, assim “como na ponta de um pião girando sobre si e cujo movimento acelerado se confunde com a imobilidade. (PASQUA, 1993, p.

(26)

130, 131).

Dispondo de um possível conceito ontológico da morte, pode-se aplicá-lo à existência autêntica do Dasein, que tende a fugir no “nós" da possibilidade de já-não-ser. A existência autêntica consiste em estar diante do Dasein e ser para uma possibilidade é esforçar-se por aniquilá-la enquanto possibilidade. O Dasein “evita” o seu morrer e vive morrendo, porque enquanto morre não está já-morto. Esta atitude assemelha-se a uma expectativa ativa, um avançar à frente, onde toda a ação se esclarece através desta possibilidade que cresce incessantemente. A expectativa faz o Dasein viver na contínua antecipação da morte.

(27)

2. AS PROFUNDIDADES DAS CARACTERÍSTICAS EXISTENCIAIS

O ente central na analítica existencial de Heidegger é descrito em seus modos-de-ser e tem como característica própria, ser a abertura na qual o ser se revela, ao contrário dos outros entes, que não são dotados dessa capacidade. É por tudo isso um ente diferenciado. Ele é o Dasein, e está em uma constante relação ontológica com o ser e não com ouro qualquer. Estes demais entes não possuem a mesma dimensão ontológica do Dasein.

O Dasein se compreende imediata e regularmente no cotidiano dentro do mundo. Isto é demonstrado nos primeiros capítulos de Ser e tempo. Todo este processo visa cumprir a tarefa que Heidegger colocou no início do livro: responder à pergunta pelo sentido do ser. A complexidade de Ser e tempo não só mostra as estruturas existenciais, como veremos mais adiante neste capítulo mas, também, mostra a dimensão do sentido inscrito na finitude do Dasein: a temporalidade. Assim, “porque é a temporalidade que será trazida à luz como o sentido do ser deste ente que é o Dasein.” (PASQUA, 1993, p. 23). O tempo é determinante para que a compreensão do Dasein alcance a abertura e o desvelamento dos entes pelo ser. Pois, para Heidegger, “aquilo a partir de que o Dasein em geral entende e interpreta de modo inexpresso algo assim como ser é o ‘tempo’”. (HEIDEGGER, 2012, 75).

Em relação ao Dasein, ente que possui o primado ôntico-ontológico, este ente possui uma tarefa, e esta tarefa é ter-que existir. Ele existe imediatamente no mundo, possuindo, assim, uma condição fundamental que é a de ser-no-mundo. Tratar-se-á desta condição de forma mais detida adiante. Primeiramente se analisará o que significa a existência para este ente de uma forma mais específica. Neste sentido se fala do neologismo “ek-sistência”, da relação do ente enquanto existenciária e existencial. Em seguida será apresentada as condições de ser-no-mundo e ser-com. E ao final do capítulo serão expostos os existenciais enquanto possibilidades-de-ser do Dasein e em uma trama que é a existencialidade.

(28)

2.1 Exposição da Ek-sistência

O “aí” é a dimensão existencial fática em que ocorre a abertura do Dasein que desvela as diferentes possibilidades ou modos-de-ser, entre os quais está aquele pelo qual ele escapa de si mesmo. Neste caso, tem-se uma fuga possível deste ente frente à sua própria compreensão do ser. Em outras palavras, o Dasein tentará resistir cotidianamente em vão a uma compreensão autêntica do ser, pois acabará sendo “arrastado” no movimento de ek-sistência, no ter-que existir, no seu “aí”, jogado ao mundo (Geworfenheit).

A existência (Existenz) tal como Heidegger a descreve, não tem o sentido medieval de “existentia”. Para ele, o sentido medieval significa literalmente ser subsistente, aquilo que está numa possibilidade de ser pronto-a-mão (Vorhandensein). Esta possibilidade caracteriza os entes que estão fechados, imobilizados como uma pedra, ou seja, como “existentia”, algo estático. Em contrapartida, o filósofo fala a respeito de um outro sentido da existência, que é “ekstática”, caracterizando-se assim o Dasein. O Dasein, ao projetar a si mesmo em um modo-de-ser, sai de si, numa forma que pode ser denominada de “ek-sistir”. Isto também será mencionado em Carta ao Humanismo, publicada pela primeira vez em 1947. (PASQUA,1993).

Heidegger utiliza o termo existência (Existieren) em um sentido restrito, aplicando-o somente ao Dasein, onde este não possui sua essência ou natureza igual à dos demais entes. A essência do Dasein encontra-se na sua existência. Pode-se ilustrar isso com uma passagem de Inwood:

Existenz é o modo-de-ser do Dasein, não o fato de que ele é: Dasein é responsável por seu ser-como, não (exceto pela possibilidade de seu suicídio, algo raramente mencionado por Heidegger) por seu ser-que”. Frequentemente escreve Ex-sistenz ou Ek-sistenz para enfatizar o “passo para fora”. (INWOOD, 2002, p. 58).

Existir é escolher esta ou aquela possibilidade sob um modo-de-ser e compreender isto não exige um conhecimento teórico profundo. Em relação à existência existem algumas complexidades adicionais e Heidegger explora pelo menos duas variações importantes, as quais são as adjetivações: existenciário e existencial.

(29)

O conceito existenciário10 de existência encontrado em Kierkegaard e Jarspers,

citado por Inwood, significa o si mesmo individual do homem, que está interessado em si mesmo como ente particular. Já o conceito existencial11 de existência, para

Heidegger, significa o ser si mesmo do homem na medida que está relacionado não com si mesmo individual, mas com o ser e a relação com o ser. Deste modo, considera que o Dasein existe de um modo diferente dos outros entes, então precisa-se distinguir suas características essenciais chamando-as de existenciárias e existenciais (Existenzialen), em vez de categorias. (INWOOD, 2002, p. 58, 59, 60).

Existenz propõe o adjetivo existencial (existenzial) e assim, Heidegger forja um

outro, o existenciário (existenziel). Existenzial aplica-se à estrutura ontológica da existência, suas interrelações e à compreensão que o filósofo tem da mesma. Como por exemplo: existenz envolve o ser-no-mundo e é um problema existencial, assim como a sua compreensão filosófica. Já Existenziel, aplica-se a gama de possibilidades abertas ao Dasein, a compreensão que delas possui e a escolha que faz (ou recusa), ou seja, um âmbito ôntico. O Dasein envolto no que impessoal está fazendo ou, ao contrário, escolhe e decide, são problemas existenciários. A distinção entre existencial e existenciário12 é análoga à distinção entre ontológico e ôntico, embora estes termos

não se limitem ao Dasein. (INWOOD, 2002).

Dasein é o homem na medida em que existe numa existência cotidiana, junto

com os demais entes em seus afazeres e preocupações. E para investigar o Dasein, enquanto possuidor permanente de uma compreensão do ser, impõem-se a analítica existencial, que como já antecipado anteriormente, que tem como tarefa explorar a conexão das estruturas que definem a existência do Dasein: os existenciais. “A fenomenologia hermenêutica desvela as estruturas do homem pela analítica existencial”. (STEIN, 2002, pg. 60). Heidegger afirma que o Dasein é único ente que compreende os demais entes (que simplesmente são, não existem) e é também um ente que existe no mundo. Sua substância é sua existência e não o espírito, como

10 Existenciário (existenziel) ou existentivo são os problemas concretos encontrados e resolvidos dia

após dia em qualquer nível e até, como se virá, a decisão antecipante da morte. É o caráter ôntico, portanto, relativo ao ente.

11 Existencial (existenzial) diz respeito ao problema da existência que só pode se clarificar no próprio

existir. É o caráter ontológico, portanto, referente ao Dasein.

12 Neste ponto, pode-se encontrar uma das inúmeras justificativas para a tarefa de tradução da obra

Ser e tempo diretamente da língua alemã, pois o principal exemplar, utilizado no Brasil, apresenta divergências de tradução para a língua portuguesa, confundindo as terminologias e contrariando os significados.

(30)

algo sintetizado de corpo e alma. O Dasein não é caracterizado, classificado ou qualificado fora de sua existência, sendo o seu único compreender-se e seu projetar-se. O Dasein na sua existência como ainda-não, está lançado no mundo.

Heidegger a respeito de Scheler e suas respectivas investigações, informa que este “acentua explicitamente o ser da pessoa como tal, e busca determiná-lo mediante uma diferenciação entre o ser específico dos atos face a tudo que é 'psíquico'”. Para Heidegger apud Scheler, uma pessoa não pode ser pensada como coisa ou substância, pois não é um ser substancial, nos moldes de uma coisa. A pessoa não é coisa, substância ou objeto. (KIRCHNER, 2016).

O homem não é uma coisa que está inerte num mundo de necessidades, pelo contrário, na medida em que compreende o ser, se coloca num campo de possibilidades e compõe as possibilidades de sua existência. Portanto, a investigação do ser perpassa necessariamente o Dasein, por se tratar deste, o único ente que está em condições de compreender o próprio ser, compreender os outros Dasein e os demais entes. Dasein, como ente, é um ainda-não, um modo-de-ser sob a condição fundamental de ser-para-a-morte e isso manifesta sua finitude.

Refere-se invariavelmente e de maneira mais ou menos explícita, à morte, como sendo algo temporal, assombrando toda a existência, onde o Dasein “não tem um fim (Ende), no qual ele simplesmente para, pois, o Dasein simplesmente existe finitamente”. (INWOOD, 2002, pg. 70).

O Dasein é um poder-ser, um ainda-não em relação a sua morte (finitude) e a existência dele nunca é algo pronto ou dado. Conservando-se sempre incompleto, é projeto para seu futuro, é o ser que busca planejar, pois sabe que não está pronto. Sempre inacabado e diante de inúmeras possibilidades, e estas possibilidades são os existenciais, acontecendo fenomenologicamente sob o alicerce das condições que até o momento estiveram subentendidas: o ser-para-o-mundo e o ser-para-a-morte. Para isso, Heidegger descreve:

Essas possibilidades o Dasein ou as escolheu ele mesmo, nelas foi ter ou nelas já cresceu cada vez. A existência é decidida cada vez só pelo próprio Dasein ou no modo de uma apropriação da possibilidade ou de um deixar que ela se perca. A questão da existência só pode ser posta em claro sempre pelo existir ele mesmo. A compreensão que conduz então a si mesmo, nós o denominamos compreensão existenciária. A questão da existência é um “assunto” ôntico do Dasein. Para isso, não é preciso que haja a transparência teórica da estrutura ontológica da existência. Damos o nome de existencial à conexão dessas estruturas. Sua analítica não tem o caráter de um entendimento existenciário, mas existencial. A tarefa de uma analítica existencial do Dasein quanto a sua possibilidade e a sua necessidade já está prefigurada na constituição ôntica do Dasein. (HEIDEGGER, 2012, pg. 61).

(31)

Os existenciais e as categorias (Kategorien) são as possibilidades fundamentais de caracteres ontológicos e o ente, que lhes corresponde, impele, cada vez, um modo diferente de se interrogar primariamente: “o ente é um quem (Wer) (existência) ou um quê (Was) (algo simplesmente dado no sentido mais amplo)". (HEIDEGGER, 2006, p. 89).

A palavra existencial tem relação com a estrutura própria do modo-de-ser do

Dasein. Os existenciais pertencem a um “quem” determinado, ao passo que as

categorias, palavra empregada por Heidegger no sentido que a tradição metafísica a utiliza, diz respeito às estruturas próprias dos entes simplesmente dados. As categorias são as caracterizações pelas quais se procura compreender o modo-deser dos demais entes, ou seja, as categorias não perfazem as estruturas do modo-deser do Dasein. (KIRCHNER, 2016). Este assunto, denominado existenciais, será abordado posteriormente, ainda neste capítulo.

Nesta diferença é possível compreender o objetivo de Heidegger ao estabelecer a ontologia fundamental, diferenciando-a. Consequentemente, faz a ressalva de que os demais entes, que não são ao modo do Dasein, devem ser compreendidos a partir de um modo que lhes é próprio e constitutivo.

Todas as explicações resultantes da analítica do Dasein provêm de sua estrutura existencial. Denominamos os caracteres ontológicos do Dasein de existenciais porque eles se determinam a partir da existencialidade. Estes devem ser nitidamente diferenciados das determinações ontológicas dos entes que não têm o modo-de-ser do Dasein, os quais chamamos de categorias. (HEIDEGGER, 2006, pg. 88-89).

Para melhor apreender a temática heideggeriana da existência é importante considerar que, na analítica existencial, o filósofo distingue variáveis sobre o modode-ser do ente investigado em seu modode-ser, e estes modos são os da manualidade (Zuhandenheit) ou pronto-a-mão (Zuhandensein), e do ser-simplesmente-dado (Vorhandensein). Desta forma, no capítulo que trata da mundanidade do mundo, o autor de Ser e tempo empreende esforços no intuito de descrever fenomenologicamente as variações do modo-de-ser do Dasein em sua ocupação cotidiana. Está em jogo um modo adequado de descrição do fenômeno “mundanidade do mundo”, mundo em que se está, a todo momento, projetado ou lançado.

(32)

2.2. Ser-no-mundo e Ser-com

O Dasein possui a condição de ser-no-mundo (In-der-Welt-Sein) e todo o ser do ente é compreendido no do mundo, pois a partir desta condição é possível determinar seu ser, mas não de maneira total. “A expressão composta ‘ser-no-mundo’, já na sua cunhagem, mostra que pretende se referir a um fenômeno de unidade.” (HEIDEGGER, 1989, pg. 90). Assim, ser-no-mundo se torna uma esfera em que ocorre o desvelamento dos demais entes pelo Dasein, permitindo inferir que a condição de ser-no-mundo proporciona uma complexidade que une vários elementos de Ser e tempo.

A investigação fenomenológica de Heidegger possui um caráter ontológico que busca as determinações essenciais do ser dos entes. Em seu texto, o status do Dasein possui uma ambiguidade, onde de um lado ele é um ente, ao qual cabe a analítica existencial investigar, e do outro, equivale ao homem, que não deve ser entendido meramente, pois é uma determinação ontológica correspondente ao ser desse ente especial. Ele é especial porque é o único que coloca a questão do ser.

A resposta a essa dubiedade se encontra no Dasein, ente que é em si mesmo, ontológico, na medida em que é o único ente em que o ser possui uma abertura originária ao modo-de-ser de todos os outros entes, ou seja, é constitutivo do ser do homem o desvelamento do sentido do "é", a partir do qual o mundo advém como sendo de determinada maneira. Essa característica do Dasein se tornará mais evidente com a explicitação da estrutura do ser-no-mundo, que manifesta fenomenologicamente a constituição do Dasein. (BARBOSA, 1998). Esta explicitação é dada pela analítica existencial.

Pode-se relacionar os sentidos de ser com o habitar, para então extrair as implicações de um Dasein, que procura viver no mundo, significando que ele sai de si, ek-siste, mantendo-se fora desde sempre. Este ente é essencialmente preocupado, e a preocupação é um dos modos-de-ser, ou seja, um existencial. Estar preocupado é o modo como o Dasein se situa existencialmente no mundo. (PASQUA,1993)

O ser do Dasein se manifesta como cuidado, expressão esta que deve ser entendida como o núcleo estrutural ontológico e não como as meras atribuições do dia a dia ou com os cuidados da vida em geral, pois estes fenômenos são ônticos. Por outro lado, é porque o ser-no-mundo constitui essencialmente o Dasein em seu modo-

(33)

de-ser-para-com-o-mundo que é ontologicamente o cuidado. Isto combina com a estrutura que compõe esta condição de ser-no-mundo: o ser-em. O mundo faz parte do ser do Dasein e tem com ele uma relação que é essencial. (PASQUA, 1993). E como uma parte do significado da expressão remete ao ser-em, sobre isso Heidegger afirma: “O ser-em … é a expressão existencial formal que designa o ser do Dasein, enquanto este possui uma constituição essencial: o ser-no-mundo. (HEIDEGGER, 1997, p. 113, tradução nossa).

O ser-no-mundo pode ser dividido em três partes, que são seus momentos constitutivos e característicos: o "ser", o "mundo" e o "em", ou seja, onde, o mundo em que o ser é; o quem, que está no mundo; e o modo de ser-em em si mesmo. A cada um desses momentos é dedicado uma parte específica de Ser e Tempo. No entanto, como já mencionado, o ser-no-mundo é uma condição do Dasein e uma estrutura unitária, que só pode ser decomposta para análise. E esta análise possui uma centralidade a ser verificada, a mundanidade. (BARBOSA, 1998).

A mundanidade é caracterizada através de uma compreensão do ser “para quem” existe o mundo, e o ser que é no mundo só se revela a partir de sua morada, assim, a relação de “ser-em” pressupõe a compreensão dos termos que se relacionam no modo do "em". Em suma, a unidade contida nesta análise é fundamental para se compreender a ideia de ser-no-mundo em toda a sua complexidade. A explicitação da estrutura do Dasein já traz consigo o desvelamento do mundo e vice-versa, podendo-se dizer que a obviedade do podendo-ser-no-mundo advém da simplicidade com que o "no" aparece na expressão como um todo. E grande parte da importância do pensamento de Heidegger consiste em ele ter investigado também o "ser-em" da existência.

(BARBOSA, 1998).

A resposta à pergunta pelo quem do Dasein cotidiano deve ser alcançada mediante a análise do modo-de-ser em que o Dasein se mantém imediata e regularmente. A investigação se orienta pelo estar-no-mundo, constituição fundamental do Dasein que determina todo o seu ser.” (HEIDEGGER, 2007, p. 122, tradução nossa).

Para uma interpretação da análise de Heidegger, é necessário acompanhar a sua insistência em aprofundar o ser-no-mundo, onde este aprofundamento inicia com o ser-em da existência humana e amplia-se para outras estruturas, conforme percebe-se neste fragmento: “O mundo do Dapercebe-sein é mundo-com. O percebe-ser-em é percebe-ser-com outros. O ser-em-si-do-interior-do-mundo desses últimos é ser-“aí”-com. (HEIDEGGER, 2012, p. 345).

(34)

Corroborando a passagem anterior, Werle (2003) diz que, a relação entre os

Dasein não é uma relação entre sujeitos e sim, uma dependência entre eles e que isto

deriva de sua ocupação com os entes. Com os demais Dasein, ele não se detém unicamente por intermédio do comum operar, isto ocorre pela preocupação.

“Com” e “também” devem ser entendidos existencial e não categorialmente. Em virtude deste estar-no-mundo determinado pelo “com”, o mundo é desde sempre o que eu compartilho com os outros. O mundo do Dasein é um mundo em comum (Mitwelt). E estar-em é um coestar com os outros. O ser-em-si intramundano destes é a coexistência (Mitdasein). (HEIDEGGER, 2007, p. 123, tradução nossa).

Em um detalhamento mais específico, pode-se dizer que para uma coisa ou um objeto, a terminologia heideggeriana designa por "ser-simplesmente-dado", o "em" corresponde ao "dentro", ou seja, há uma relação meramente espacial de inclusão. Porém, não é suficiente mencionar que o Dasein está dentro do mundo, estando simplesmente "aí" e que foi uma vez abandonado ao mundo, pois, o dentro não pode se adequar a um ente que traz o mundo dentro de si, de certa forma. Dasein não "é" inicialmente, para após criar relações com um mundo, ele é Dasein na exata medida de seu ser-em, ou melhor, na medida em que possui um mundo. Não existe anterioridade entre esses dois movimentos. "A relação do Dasein com o mundo só é possível porque o Dasein, sendo-no-mundo, é como é." (HEIDEGGER, 1985, p. 96). Por isso, para o filósofo, inferir que o Dasein "tem um mundo", nada quer dizer do ponto de vista ontológico, a menos que se esclareça o caráter do "ter".

Dentro desse contexto, a conexão do Dasein com o mundo não se dá por nenhuma forma de conhecimento. Ela se dá pelo manuseio, pelo uso e pelo contato com os entes que “vêm-ao-encontro-dentro-do-mundo", com os instrumentos. O modo específico do ser-em é uma base constitutiva do modo cotidiano da ocupação, isto é, descreve a ocupação (Besorgen). Em relação a este existencial, ao qual se está envolvido desde sempre no mundo cotidiano, deve-se esclarecer o uso que Heidegger faz do termo instrumento.

Os instrumentos não são apenas objetos utilizados para fazer alguma coisa, e "coisa”, neste contexto, não seria apto ontologicamente. Pois “coisa” já é derivada de uma atitude de conhecimento do Dasein, onde "já se recorre implicitamente a uma caracterização ontológica prévia." (HEIDEGGER, 1985, p. 109). Os instrumentos referem-se sempre a outros instrumentos, e o conjunto de todas essas referências é que constitui o meio original do ser-no-mundo ocupado. Os objetos do conhecimento

Referências

Documentos relacionados

Já o terceiro e último capítulo trás à baila as consecuções da efetividade da titulação do direito de propriedade em área agrícola, analisando o papel do ministério

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

Conforme Ambiente e Energia (2012), em 1996, foi feita uma tentativa de consolidar as informações referentes ao estado da arte de eficiência energética em edificações com

Considerando as pesquisas em isolamento de compostos bioativos e a importância da família Lauraceae na Floresta Amazônica, uma pesquisa sobre espécies desta

A Escala de Práticas Docentes para a Criatividade na Educação Superior foi originalmente construído por Alencar e Fleith (2004a), em três versões: uma a ser

Para caracterizar a fragilidade ambiental dos picos Camacuã, Camapuã e Tucum, utilizou-se a metodologia de Ross (1994), baseada em dados de declividade, solo e vegetação atual.

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

num ritmo aproximado de uma flexão em cada 3 segundos, partindo da posição facial, mantendo o corpo em extensão, atingindo ou ultrapassando o nível de prestação definido (