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Os juristas contemporâneos e a democracia: uma leitura das obras políticas de Hans Kelsen e Norberto Bobbio

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Academic year: 2021

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GRANDE DO SUL

LAURA FRANTZ

OS JURISTAS CONTEMPORÂNEOS E A DEMOCRACIA: UMA LEITURA DAS OBRAS POLÍTICAS DE HANS KELSEN E NORBERTO BOBBIO.

Ijuí (RS) 2015

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LAURA FRANTZ

OS JURISTAS CONTEMPORÂNEOS E A DEMOCRACIA: UMA LEITURA DAS OBRAS POLÍTICAS DE HANS KELSEN E NORBERTO BOBBIO.

Trabalho de Conclusão do Curso de Gradua-ção em Direito objetivando a aprovaGradua-ção no componente curricular Trabalho de Curso - TCC.

UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS- Departamento de Estudos Jurídicos e Sociais.

Orientador: Dr. Gilmar Antônio Bedin

Ijuí (RS) 2015

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AGRADECIMENTOS

Aos meus avós, pelo amor, incentivo e sabedoria. Em especial ao meu avô Otto (in memorian), com o qual tive o privilégio de dividir parte deste trabalho, e ouvir suas pondera- ções acerca do tema.

Aos meus pais, pelo incentivo e amor que sempre me dedicaram. E aos demais famili- ares pelo apoio integral na minha formação.

Ao meu namorado Roger, pela dedicação, amor, compreensão e principalmente pelo companheirismo.

Ao meu orientador Gilmar Antônio Bedin, pelo incentivo e sabedoria que muito me auxiliou para a realização deste trabalho.

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“Viva agora as perguntas. Talvez passe, gradativa- mente, em um belo dia, sem perceber, a viver as res- postas..” Rainer Maria Rilke.

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A relevância do debate sobre o tema da democracia nas sociedades ocidentais é, atu-almente, indiscutível. Isto demonstra que as formas autocráticas de sociedade perderam rele-vância e que a luta pela democracia passou a ser visto como um movimento positivo. O pre-sente trabalho, convergente com este acontecimento, resgata a contribuição de dois notáveis juristas do Século 20 sobre o tema: o jurista austríaco Hans Kelsen e o jurista italiano Norber-to Bobbio. O objetivo é identificar qual é a contribuição destes auNorber-tores para o conceiNorber-to de democracia, as características fundamentais desta forma política em seu pensamento e seus pressupostos. Em seu final, o trabalho destaca os pontos de convergência e de divergência entre os autores e deixa claro que a luta pela democracia continua a ser uma tarefa fundamen-tal. O método de pesquisa utilizado foi o hipotético-dedutivo e a técnica a pesquisa bibliográ-fica.

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The relevance of the debate on the subject of democracy in Western societies is cur- rently, indisputable. This shows that the autocratic forms of society have lost relevance and the struggle for democracy was seen as a positive move. This work, converged with this event, recalls the contribution of two notable jurists of the 20th century on the theme: the Aus- trian jurist Hans Kelsen and the Italian jurist Norberto Bobbio. The goal is to identify what is the contribution of these authors to the concept of the concept of democ-racy, the fundamental characteristics of this political form in his thought and his assump-tions. At its end, the work highlights the points of agreement and disagreement between the authors and makes it clear that the struggle for democracy remains a fundmaental task. The research method used was the hypothetical-deductive and the technical literature.

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INTRODUÇÃO...08

1 A DEMOCRACIA NO PENSAMENTO DE HANS KELSEN...10

1.1. A Proposta do Autor...10

1.2. O Conceito de Democracia...12

1.3. Democracia e Liberdade...14

1.4. Democracia e Parlamentarismo...18

1.5. Democracia, Justiça e Tolerância...21

2 A DEMOCRACIA NO PENSAMENTO DE NORBERTO BOBBIO...24

2.1. O Futuro da Democracia...24

2.2. Os Três Princípios Fundamentais...25

2.3. As Contradições da Democracia...27

2.3.1. Os Limites da Representação Política...29

2.3.2. Os Limites da Liberdade...30

2.3.3. Os Limites da Ampliação da Democracia...32

2.3.4. Os Limites da Transparência...33

2.3.5. Os Limites da Educação para a Cidadania...34

2.4. A Luta Contra os Obstáculos da Democracia...35

CONCLUSÃO...39

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INTRODUÇÃO

A comunicação política atual encontra-se cada vez mais apegada a sentimentalismos de pertencimento ou repulsa a determinada ideologia. Neste contexto, a utilização de determinados termos, por sua própria pronuncia, já desperta de maneira imediata, e sem necessária correlação com a realidade externa, um significado ideológico pré-concebido.

Quando da utilização de tais termos em um debate, o interlocutor e seu ouvinte, ao invés de analisar o efetivo conceito do termo e a realidade que por meio dele se quer expressar, associam-no a juízo subjetivo da impressão própria que dele possuem.

Com o termo democracia ocorre o mesmo. A implementação quase integral de regimes democráticos nas sociedades atuais, e a ampla aceitação do ideal democrático em todos os debates políticos, tornou o termo pedra-de-toque. As figuras sócio-políticas atuais são avaliadas em quão democráticas ou não aparentam ser. "Democrático", assim, se tornou bom adjetivo e seu inverso ofensa.

Associar ao que quer que seja os termos democracia, democrático, democratizar, é garantia de tornar qualquer proposta bem vista de maneira imediata, independentemente de tal proposição estar associada ou não, ainda que minimamente, a qualquer característica do conceito mesmo de democracia. O que se vê, então, é a utilização demasiada do termo, de modo que vai se perdendo gradualmente a clareza na identificação de seu conceito original.

Diante de tal quadro, se mostra inadiável o retorno às bases daquilo que se entende por democracia. Retirar todo o excesso de significado a ele associado, no mais das vezes indevidamente, e identificar quais são as características e as bases sobre as quais o ideal democrático se fundamenta e tem origem.

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Para tanto, e sem perder de vista que tal termo já foi cunhado na idade antiga, pretende-se analisar as contribuições de dois juristas contemporâneos para o tema. Os autores escolhidos formam o jurista austríaco Hans Kelsen e o jurista italiano Norberto Bobbio. A escolha dos autores foi motivada pela relevância que os mesmos têm no contexto da chamada Teoria Jurídica Contemporânea e as influências que suas obras tem na formação dos juristas na atualidade.

O objetivo é identificar qual é o conceito de democracia para os citados autores, suas características fundamentais e seus pressupostos mais importantes. Por fim, pretende-se identificar os pontos de convergência e complementação e também as eventuais divergências existentes. O método utilizado foi o hipotético-dedutivo e a técnica de pesquisa empregada a pesquisa bibliográfica.

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1. A DEMOCRACIA NO PENSAMENTO DE HANS KELSEN

O presente capítulo analisa a contribuição do jurista austríaco Hans Kelsen sobre a democracia. O seu ponto de partida é a tentativa de descrever de forma isenta o que é a forma democrática de sociedade. Neste contexto, define o que entende por regime democrático e vincula o mesmo com o conceito de liberdade. Em seguida, destaca que a forma moderna de democracia é a democracia parlamentar e que afirma que a estrutura parlamentar define atu-almente os limites da democracia. Por fim, destaca os vínculos entre democracia, justiça e tolerância.

1.1. A Proposta do Autor

Em sua obra A Democracia, Hans Kelsen buscou reconstruir um conceito puro de democracia a partir dos fundamentos mais básicos que lhe caracterizam, visto que, segundo o autor, no período posterior às revoluções burguesas o conceito e a utilização do ideal democrático se tornaram unânimes perante todos, indiferente de posição política ou ideológica, tamanha a força com que tal ideal se estabeleceu frente à sociedade.

Kelsen pretendeu demarcar uma compreensão de democracia e assinalar a que tipo de experiência ela se prestaria, além de confrontá-la com distintas situações e ideologias que lhe pudessem ser contrapostas. A obra, não obstante assuma como premissa a identidade entre Estado e ordem jurídica, forjada pelas ideias normativistas do autor, assenta-se também na tensão entre ordem social e liberdade individual. A democracia, segundo o autor, se apresenta de maneira instrumental, procedimental, como meio de constituição da ordem jurídica estatal, alheia a valores éticos e conteúdos pré-definidos.

A democracia, assim, apresenta-se de modo procedimental, haja vista que se determina como um processo de organização, lógico e sistemático, o qual detém a faculdade de criação de uma ordem social, ou seja, uma ordem social normativa, no sentido de que as regras

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necessárias para a formação da vontade coletiva, bem como as demais atinentes ao desenvolver da atividade do Estado, sejam previstas em lei.

A referida normatização não se refere à relação e dependência dos tipos de decisões que tomarão os sujeitos, mas diz respeito a quais sujeitos poderão participar da criação da vontade coletiva, bem como expõe sobre o modo pelo qual tal vontade será elaborada. Sendo assim, a democracia é o processo pelo qual se forma a vontade do Estado.

Como dito, o autor pretende realizar um retorno às bases sobre as quais se fundamenta o pensamento democrático, haja vista que este, nas discussões contemporâneas, tornou-se batido, de utilização irrestrita e indiscriminada, acarretando, por vezes, certa vulgarização do termo e o afastamento dos valores próprios que lhe dão origem, que lhe são raiz e que lhe dão forma.

Nesse ponto, observa-se que hoje a democracia é utilizada em situações das mais variadas, para dar uma significação de abrangência, amplitude e acesso a qualquer área ou situação em comento. Em verdade, observa-se que ela é apresentada sempre de modo a dar um melhor retrato a alguma proposta - que alguém qualquer queira apresentar - de embelezar tal proposta pela soma da boa fama de que goza o ideal democrático.

Não raras vezes, tal utilização é realizada de maneira completamente diversa das origens do pensamento democrático e, até, de maneira antagônica, vinculada a valores e/ou propostas que divergem diametralmente daquilo a que a democracia se propõe. Kelsen já observava tal fenômeno ao afirmar que

Democracia é a palavra de ordem que, nos séculos XIX e XX, domina quase universalmente os espíritos; mas, exatamente por isso, ela perde, como qualquer palavra de ordem, o sentido que lhe seria próprio. Para acompanhar a moda política, acredita-se dever usar a noção de democracia – da qual se abusou mais do que qualquer outra noção política – para todas as finalidades possíveis e em todas as possíveis ocasiões, tanto que ela assume os significados mais diversos, muitos deles bastantes contrastantes, quando a costumeira impropriedade do linguajar político vulgar não a degrada deveras a uma frase convencional que não exige sentido determinado (2000, p. 27).

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Essa aceitação irrestrita do termo, todavia, com o uso em toda e em qualquer situação possível, faz com que ele perca o sentido mesmo que lhe é próprio. Nasce daí a necessidade de se buscar a origem, de retornar ao seu conceito mais básico e fundamental, separado de todos os outros artifícios e adereços que lhe foram impostos com o passar do tempo.

1.2. O Conceito de Democracia

Nesse cenário, no intento de retornar às bases mesmas do pensamento democrático, Kelsen pretende expressar um conceito puro, abandonando uma conexão direta com aspectos políticos ligados a ela, demonstrando o real caráter desse conceito. Dessa forma, a democracia se estabelece como forma de ordem estatal e jurídica na sociedade, e não somente como uma organização política.

Kelsen entende que a democracia, em seu conceito mais puro, decorre de dois pilares fundamentais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, segundo o autor, decorreria de um desejo natural inato ao ser humano:

É a própria natureza que, exigindo liberdade, se rebela com a sociedade. O peso da vontade alheia, imposto pela vida em sociedade, parece tanto mais opressivo quanto mais diretamente se exprime no homem o sentimento primitivo do próprio valor, quanto mais elementar frente ao mandante, ao que comanda, é o tipo de vida de quem é obrigado a obedecer (...) (2000, p. 27).

Tal fundamento e valor, portanto, é visto como desejo do homem de livrar-se de quaisquer coerções alheias sobre si, de ser o senhor da própria vontade e da própria vida.

Por sua vez, a igualdade, também intimamente ligada a tal desejo natural, se identifica com a condição em sociedade na qual todos são de igual valor, onde ninguém deve ter poder de mando sobre ninguém, suscitando a questão: "[...] 'Ele é homem como eu, somos iguais, então que direito ele tem de mandar em mim?'"(KELSEN 2000, p. 27).

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O autor, ademais, identifica uma influência de ordem psicológica em tal atitude:

De um ponto de vista psicológico, a síntese de liberdade e igualdade, característica essencial da democracia, significa que o indivíduo, o ego, deseja liberdade não apenas para si mesmo, mas também para os outros, para o tu. E isso somente é possível se o ego deixa de se perceber como algo único, incomparável e irreprodutível, mas, ao menos em princípio, como igual ao tu. O ego só poderá honrar a pretensão do tu a ser também um ego se o indivíduo não considerar como essenciais as inegáveis diferenças existentes entre ele e os outros e se o ego, ou autoconsciência, sofrer uma redução parcial pelo sentimento de igualdade com os outros. É essa, exatamente, a situação intelectual de uma filosofia relativista. A personalidade cujo desejo de liberdade é modificado por seu sentimento de igualdade reconhece a si mesma no outro (KELSEN, 2001, p. 180).

A Democracia seria, portanto, um modelo de organização da sociedade que possibilitaria à política sintetizar juridicamente esses dois princípios, que, repita-se, são caracteres fundamentais de seu próprio conceito. Para tanto, esse desejo inato de não deixar-se comandar e de ser diretor das próprias escolhas necessita passar por uma verdadeira transformação, de modo a adequar-se à realidade e às necessidades fáticas:

Da idéia de que somos – idealmente – iguais, pode-se deduzir que ninguém deve mandar em ninguém. Mas a experiência ensina que, se quisermos ser realmente todos iguais, deveremos deixar-nos comandar. Por isso a ideologia política não renuncia a unir liberdade com igualdade. A síntese destes dois princípios é justamente a característica da democracia (KELSEN, 2000, p. 27).

No mesmo sentido, diz o autor que,

Se a idéia de liberdade pode tornar-se um princípio dessa organização social - de que antes era negação - e, finalmente, um princio de organização estatal, isso só é possível através de uma mudança de significado. A negação absoluta de qualquer vínculo social em geral e, portanto, do Estado em particular, leva ao reconhecimento de uma forma especial deste vínculo, à democracia, que, com seu contrário dialético, a autocracia, representa todas as possíveis formas de estado, aliás, da sociedade em geral (KELSEN, 2000, p. 28).

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Ou seja, no pensamento de Kelsen, para que a liberdade se torne princípio e pilar dessa organização social democrática, necessária se faz uma verdadeira metamorfose de seu conceito, para permitir que tal valor, fundante e pilar do pensamento democrático, se conforme às necessidades do mundo real.

1.3. Democracia e Liberdade

O primeiro estágio, segundo Kelsen (2000, p. 28), nesse processo de transformação, ocorre no momento em que a liberdade passa a ser entendida como possibilidade de participação estatal, ou seja, direito de opinar e de pertencer à formação da vontade diretiva do Estado, e não mais como liberdade ampla e irrestrita, de fazer tudo o que se quer, com a ausência de qualquer espécie de domínio. A liberdade natural se transforma em liberdade social ou política. Por isso, da liberdade anárquica forma-se a liberdade democrática:

Se deve haver sociedade e, mais ainda, Estado, deve haver um regulamento obrigatório das relações dos homens entre si, deve haver um poder. Mas, se devemos ser comandados, queremos sê-lo por nós mesmos. A liberdade natural transforma-se em liberdade social ou política (2000, p. 28-29).

A ideia de liberdade, tal como acima delineada, foi duramente criticada por alguns autores, como Rosseau, citado por Kelsen, afirmando que, na ordem democrática, seriam livres apenas aqueles pertencentes à maioria vencedora, ao passo que a minoria vencida, bem como qualquer daqueles que eventualmente mudassem sua opinião, perceberiam que tal mudança não implicaria qualquer alteração jurídica, continuariam sendo escravos daqueles.

Em resposta a tais objeções, Kelsen afirma que a renúncia à unanimidade e a aceitação das decisões tomadas por uma maioria caracterizam a segunda grande transformação pela qual passa o conceito de liberdade no estabelecimento de uma ordem democrática. Segundo ele, o princípio majoritário pode ser alcançado por um caminho racional, qual seja: ―a ideia de que, se nem todos os indivíduos são livres, pelo menos o seu maior número o é, o que vale dizer que há necessidade de uma ordem social que contrarie o menor número deles‖ (2000, p. 32).

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A democracia, em favor da elaboração de uma ordem social ulterior, renuncia à unanimidade que, hipoteticamente, poderia ser aplicada à sua função por contrato e contenta-se com as decisões tomadas pela maioria, limitando-se a proximar-se de seu ideal original. O fato de se continuar falando de autonomia e considerando cada um como submisso à sua própria vontade, enquanto o que vale é a lei da maioria, é o novo progresso, metamorfose da ideia de liberdade (KELSEN, 2000, p. 30, grifo nosso).

Kelsen ressalta que é essa transformação do próprio conceito de liberdade que leva a democracia do campo das ideias ao campo da concretude. Afirma, ainda, que a essência da democracia apenas pode ser compreendida se também for compreendida a antítese existente entre seu conceito ideal e a realidade de sua realização.

A democracia, no plano da ideia, é uma forma de Estado e de sociedade em que a vontade geral, ou, sem tantas metáforas, a ordem social, é realizada por quem está submetido a essa ordem, isto é pelo povo. Democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto de poder, governo do povo sobre o povo (2000, p. 35).

Todavia, afirmando que essa vontade geral que se autogoverna pressupõe a existência de uma unidade, pondera que tal unidade existiria apenas idealmente, haja vista a variedade de desejos, interesses e crenças em que se divide uma nação. O autor enfatiza que o povo apenas aparece uno em sentido jurídico, com ―a submissão de todos os seus membros à mesma ordem jurídica e estatal constituída‖ (2000, p.23). Acerca dessa divisão existente entre a população, Kelsen pondera que,

Dividido por posições nacionais religiosas e econômicas, o povo aparece, aos olhos do sociólogo, mais como uma multiplicidade de grupos distintos do que como uma massa coerente de um único e mesmo estado de aglomeração. Nesse aspecto, só se poderá falar de unidade em sentido normativo (...). Na verdade, o povo só parece uno, em sentido mais ou menos preciso, do ponto de vista jurídico. A sua unidade, que é normativa, na realidade é resultado de um dado jurídico: a submissão de todos os seus membros à mesma jurídico estatal constituída (2000, p. 36).

Nesse sentido, considera que, assim como o conceito de liberdade, também o de povo necessita metamorfosear-se, para que se enquadre e se concretize o ideal democrático. Para

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isso, distingue ―povo ativo‖, quando no exercício dos direitos políticos e de modo a construir as normas regentes do Estado, de ―povo passivo‖, quando submetido a estas mesmas normas.

Mas, se a unidade do povo não passa da unidade dos atos individuais regulados e dirigidos pelo direito do estado, então, nesta esfera normativa em que o "poder" se apresenta como vínculo normativo, como submissão às regras obrigatórias, a unidade buscada será o povo, mas como objeto do poder. Sob este ponto de vista os homens entram em campo como sujeitos do poder, somente na medida em que participam da criação da ordem estatal. E justamente nesta função, de importância decisiva para a ideia de democracia, porquanto o povo intervém na criação das regras do direito, ocorre a inevitável diferença entre este "povo" e o povo definido como conjunto de indivíduos submetidos a normas (KELSEN, 2000, p. 38)

Kelsen ainda apresenta uma segunda mutação no conceito de povo, distinguindo este de modo quantitativo e qualitativo (2000, p. 38). Em primeiro lugar, cita a existência daqueles que, mesmo podendo participar da vontade diretiva do estado, mantêm-se inertes, desinteressados acerca do rumo a ser definido, na assembleia geral, às políticas públicas. Em segundo lugar, estabelece um critério de qualidade, referindo-se àqueles que, mesmo participando ativamente do processo de construção, o fazem de maneira não refletida, mas apenas exteriorizando um comportamento de manada, seguindo posturas e desejos alheios aos seus, mas correspondentes aos de movimentos sociais e/ou políticos.

Na massa daqueles que, exercendo efetivamente os seus direitos, participam da formação da vontade do Estado, seria preciso fazer uma distinção entre aqueles que, como massa sem juízo, se deixam guiar pela influência dos outros sem opinião própria, e aqueles poucos que intervêm realmente com uma decisão pessoal - segundo a ideia da democracia -, conferindo determinada direção à formação da vontade comum. Investigação semelhante coloca-nos diante da realidade de um dos elementos mais importantes da democracia real: os partidos políticos, que agrupam os homens da mesma opinião, para lhes garantir influência efetiva sobre a gestão dos negócios públicos.

Assim, identifica também a importância dos partidos políticos, classificando-os como ―órgãos de formação da vontade do Estado‖ (2000, p. 39), entendendo, nessa senda, o individuo isolado como ser incapaz de ter importância significativa nesse processo.

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Kelsen, por fim, identificando no conceito de povo a mesma mutação no conceito de liberdade, como dito, entende que não é a transformação do conceito de povo, de um sentido absoluto - todos os cidadãos de determinado Estado - a apenas ao daqueles detentores de direitos políticos, participantes da vontade geral desse mesmo Estado, o primordial na metamorfose narrada, mas, principalmente, aquela que se dá em virtude da democracia indireta, na qual a vontade do Estado acaba sendo determinada apenas por alguns poucos sujeitos eleitos para tanto.

[Nesse sentido,] a democracia do Estado moderno é a democracia indireta, parlamentar, em que a vontade geral diretiva só é formada por uma maioria de eleitos pela maioria dos titulares dos direitos políticos. Os direitos políticos – isto é, a liberdade – reduzem-se a um simples direito de voto. De todos os elementos até agora considerados que limitam a ideia de liberdade e, com ela, a de democracia, o parlamentarismo é talvez o mais importante (KELSEN, 2000, p. 43).

Segundo o autor, um conceito radical de liberdade exigiria que todas as decisões do Estado, da mais básica até a mais complexa, fossem tomadas mediante a assembléia geral do povo, o que não se mostra praticável por razões técnicas, exigindo a criação de uma ficção jurídica capaz de conciliar a necessidade por liberdade e a efetiva escolha dos caminhos e da gestão da coisa pública. Nas palavras de Kelsen:

A ideia de liberdade, considerada em si, exigiria que a vontade única do Estado, em todas as suas diversas manifestações, fosse formada imediatamente por uma única e mesma assembléia de todos os cidadãos que tivessem direito de voto. Qualquer diferenciação do organismo estatal com base na divisão do trabalho, a transferência de uma organização estatal qualquer para um órgão que não seja o povo, significam, necessariamente, uma restrição à liberdade. (...) O parlamentarismo apresenta-se, então, como uma conciliação entre a exigência democrática e liberdade e o princípio da distribuição do trabalho (2000, p. 47).

A possibilidade de participação direta e imediata do povo na formação da vontade geral do Estado é inversamente proporcional ao tamanho do Estado em si, em virtude, principalmente, de razões técnicas, como citado, que impedem a colheita da vontade diretamente de cada sujeito legitimado do povo e exigem a criação de um órgão instrumental representativo da vontade popular, ou seja, o parlamento.

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No entanto, o autor adverte que a plena e absoluta representação no parlamento ocasionaria a sua ilegitimidade, visto que não é cabível a representação parlamentar com integral identidade popular, a qual somente seria possível em teorias metafísicas. Por isso, defende que não se deve pretender essa identificação, mas sim sua técnica, devendo admitir o parlamento como instrumento para a formação da vontade estatal, sendo assim uma espécie de ficção da representação popular.

1.4. Democracia e Parlamentarismo

Assim, fica evidente que Hans Kelsen reconhece os méritos incontestáveis da criação da ideia parlamentarista e que sustenta que a democracia moderna só viverá por longo período se

[…] Se o parlamentarismo se revelar um instrumento capaz de resolver as questões sociais do nosso tempo. É certo que democracia e parlamentarismo não são idênticos. Mas, uma vez que para o Estado Moderno a aplicação de uma democracia direta é praticamente impossível, não se pode duvidar seriamente de que o parlamentarismo seja a única forma real possível da ideia de democracia. Por isso, o destino do parlamentarismo decidirá também o destino da democracia (2000, p. 46, grifo nosso).

Por outro lado, o autor identifica também que, se é verdade que a luta contra a autocracia teve como ponto essencial uma luta em favor do sistema parlamentarista (2000, p. 45), o sistema parlamentarista despertou, em razão principalmente da grande expectativa criada, uma desilusão daqueles mesmos entusiastas. É que o surgimento do parlamentarismo foi elevado ao status de salvação da democracia e suas dificuldades de representação levou a um certo cansaço.

Este cansaço fez com que o autor identificasse certa tendência, surgida já quando da posse da liberdade – após a derrocada dos sistemas autocráticos -, de que se poderia renunciar ao próprio sistema instrumental (parlamento) que garante a citada liberdade e pudesse se retornar a participação direta. Isto significaria, para Hans Kelsen, um retorno ao passado e a

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possibilidade, se não houver cuidado, de retorno as formas autocráticas de sociedade e de poder.

Neste sentido, ele conclui, a respeito da dita crise do parlamentarismo, e reforçando a união da democracia e do sistema parlamentar, que há uma inexatidão acerca desse sistema político, ou seja, um falso juízo de seu valor. Na visão de Kelsen, o sistema político parlamentarista é o que melhor se coaduna com os ideais e a prática de um sistema democrático, haja vista que, dentre as ideias que fundamentam o sistema parlamentarista, mostra-se como fundamental a autonomia democrática, ou seja, a da liberdade em si, concluindo que,

Se conseguirmos familiarizar-nos com as ideias que determinam o sistema parlamentar, perceberemos que a ideia aqui dominante é a da autonomia democrática, portanto, a da liberdade. A luta pelo parlamentarismo foi uma luta pela liberdade política. Isso é facilmente esquecido quando, hoje, se fazem críticas, injustas sob muitos aspectos, ao parlamentarismo (KELSEN, 2000, p. 46).

Não obstante, Kelsen (2000, p. 53) reserva parte da obra para analisar a eventual necessidade de que o sistema parlamentarista passe por uma reforma, sobre a qual diz, "A reforma parlamentarismo poderia ser tentada de um sentido de um novo reforço do elemento democrático". Aduz o autor que tal reforço poderia consubstanciar-se na análise, por parte da população, via plebiscito ou meio análogo, de proposições legislativas apresentadas por parlamentares, bem como na autonomia do povo, detentor do poder, diga-se, de dissolver o conjunto de representantes em dada época, elegendo outros em seu lugar.

Se for necessário levar em conta a tendência crescente a fazer com que o povo exerça influência sobre a formação da vontade do Estado, influência que seja a mais direta possível, seria preciso, no caso de o plebiscito condenar o projeto aprovado pelo parlamento, dissolver o próprio parlamento para constituir, mediante novas eleições, um parlamento que, mesmo não expressando totalmente a vontade do povo, pelo menos não se opusesse a ela (KELSEN, 2000).

Acerca do mesmo tema, o autor identifica na iniciativa popular um agente da reforma citada, bem como faz referência à necessidade de que sejam instituídos maiores meios de

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implicar responsabilidade aos parlamentares pelos atos praticados. Para tanto, diz o autor ser necessário que eventuais imunidades desproporcionais sejam revogadas.

Corolário lógico do sistema representativo é o princípio da maioria, realidade inescapável na concretização do ideal democrático. Kelsen (2000), inclusive, identifica nesse princípio uma forma de resguardar o cidadão e evitar o domínio de classes, e mais, reconhece nos direitos fundamentais instrumento capaz de resguardar o direito de existência e participação da minoria, que pressupõe a própria existência da maioria.

De fato, a existência da maioria pressupõe, por definição, a existência de uma minoria e, por conseqüência, o direito da maioria pressupõe o direito à existência de uma minoria. Disso resulta não tanto a necessidade, mas principalmente a possibilidade de proteger a minoria contra a maioria. Esta proteção da minoria é a função essencial dos chamados direitos fundamentais e liberdades fundamentais, ou direitos do homem e do cidadão, garantidos por todas as modernas constituições das democracias parlamentares (2000, p. 67).

À primeira vista, o princípio da maioria poderia parecer-se com o domínio da maioria sobre a minoria. Kelsen (2000, p. 70), todavia, refere que assim não o é, uma vez que, na prática, nem sempre a maioria numérica se mostra decisiva na formação da vontade geral do povo. Tal se dá em virtude da existência de diversos mecanismos, por vezes ocultos, capazes de fazer com que a minoria faça valer sua vontade, e até, por vezes, sobrepuje o interesse da maioria. Há uma espécie de influência mútua entre os dois grupos, em um embate de ideologias e discussões políticas objetivando a formação da vontade geral do Estado.

Uma ditadura da maioria sobre a minoria não é possível, ao longo prazo, pelo simples fato de que uma minoria, condenada a não exercer absolutamente influência alguma acabará por renunciar à participação – apenas formal e, por isso, para ela, sem valor e até danosa – na formação da vontade geral, privando com isso a maioria – que, por definição, não é possível sem a minoria – de seu próprio caráter de maioria. [...] De fato, todo o procedimento parlamentar com sua técnica dialético-contraditória, baseado em discursos e réplicas, em argumentos e contra-argumentos, tende a chegar em um compromisso. Este é o verdadeiro significado do princípio de maioria na democracia real (2000, p. 70).

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Kelsen observa, no parlamento, uma representação da divisão de classes ocorrida na sociedade e, nele, o local apropriado para o exercício do embate entre tais concepções e ideologias:

E se, como sustenta a crítica feroz que o marxismo fez à democracia burguesa, o elemento decisivo é representado pelas relações das forças sociais, então a forma democrática parlamentar, com seu princípio majoritário-minoritário que constitui uma divisão essencial em dois campos, será expressão ―verdadeira‖ da sociedade hoje dividida em duas classes essenciais. E, se há uma forma política que ofereça possibilidade de resolver pacificamente esse conflito de classes, deplorável, mas inegável, sem levá-lo a uma catástrofe pela via cruenta da revolução, essa forma só pode ser a democracia parlamentar, cuja ideologia é, sim, a liberdade, não alcançável na realidade social, mas cuja realidade é a paz (2000, p.78).

Kelsen também analisa a questão da implementação dos valores democráticos no âmbito do executivo, notadamente sob a órbita de um governo organizado sob o regime parlamentarista, correlacionando a democracia da legislação e a democracia da execução, afirmando ser necessário que os postulados acima tratados também sejam aplicados nessa órbita, com participação popular e responsabilização dos governantes, principalmente.

1.5. Democracia, Justiça e Tolerância

Vencidos os fundamentos da democracia e suas respectivas transformações na sociedade, Kelsen trabalha os contornos e as relações que a democracia estabelece com diversos outros pontos, bem como suas ramificações a partir destes. Nessa perspectiva, relaciona a ideia democrática com a história bíblica de Jesus Cristo, aduzindo que, quando de seu julgamento perante Pôncio Pilatos, a população da época julgou-o culpado, exigindo a liberação do criminoso Barrabás. Kelsen entende que, ―para os que acreditam no filho de Deus e rei dos Judeus como testemunha da verdade absoluta, esse plebiscito é, sem dúvida, um poderoso argumento contra a democracia‖ (2000, p. 204).

Para Kelsen, a narrativa acima se coloca como um argumento poderoso contra a democracia, pois mostra que a vontade da maioria não necessariamente representa justiça ou

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acertamento na decisão tomada, mas, por vezes, o contrário: decisões irracionais tomadas no furor de emoções primitivas e do comportamento grupal.

Associando o ideal democrático às religiões, Kelsen passa a analisar o absolutismo e o relativismo na justiça, admitindo que a razão humana não consegue nos levar a uma norma absolutamente válida de comportamento justo, pois esta é incabível, visto que a razão humana somente consegue compreender os valores relativos. Para ele, a norma absoluta depende de um julgamento daquilo que é justo, bem como a definição daquilo que seria injusto, gerando um conflito de interesses, pois não há unanimidade sobre um mesmo ato.

Todavia, é possível solucionar tal conflito de interesses mediante a tolerância das opiniões acerca das definições de justiça e injustiça, pois esta, segundo Kelsen, compreende a visão que foge ao absoluto:

Se a democracia é uma forma de governo justa, ela só o é por significar liberdade, e liberdade significa tolerância. Mas a democracia pode continuar tolerante, se precisar se defender de intrigas antidemocráticas? Pode! – na medida em que não reprimir demonstrações pacíficas de opiniões antidemocráticas.

A democracia possui uma característica peculiar quando comparada a outros regimes de organização social. Talvez seja o único regime que permite, na multiplicidade de opiniões existes na sociedade, a critica ao próprio sistema fundamento da possibilidade de opinar, continua Kelsen (2000, p. 204).,

A democracia não pode se defender se isso implicar desistir de si própria. Mas é direito de todo governo, mesmo democrático, reprimir com violência e evitar, pelos meios adequados, tentativa de derrubá-lo com uso de violência. O exercício desse direito não entra em contradição nem com o princípio da democracia, nem com o princípio da tolerância.

Diante do exposto sobre o absolutismo e o relativismo, podemos perceber que, para o autor, a tolerância é postulado fundamental para que se possa alcançar um ideal de justiça, considerando esta a solução definitiva para o conflito de interesses.

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Em relação à economia, Kelsen propõe analisar a existência ou não de relação entre o ideal democrático e os sistemas econômicos rivais, quais sejam o capitalismo e o socialismo. Após apresentar uma definição do entendimento adotado acerca dos citados sistemas econômicos, o autor esmiúça a relação entre sistema econômico e criação da vontade popular, afirmando que nenhum deles se relaciona, por natureza, a um sistema político definido.

Cada um deles pode ser estabelecido tanto sob um regime democrático, quanto um regime autocrático. Uma vez que, enquanto forma de governo, um sistema político é, em primeiro lugar, um processo ou método para aplicação de uma ordem social, enquanto os sistemas econômicos formam o conteúdo da ordem social, não existe uma relação necessária entre um sistema político definido e um sistema econômico definido. O método democrático ou autocrático em que uma ordem social é criada e aplicada não exclui nenhum conteúdo econômico dessa ordem. Nem o capitalismo nem o socialismo implicam um procedimento político definido e, portanto, os dois são – em princípio – compatíveis tanto com a democracia quanto com a autocracia (2000, p. 254).

Afirma o autor, igualmente, que, após as duas grandes guerras, o ―arqui-inimigo‖ da democracia passa a ser a ditadura partidária (de esquerda ou de direita), tal qual era antes a autocracia monárquica.

Dessa forma, Kelsen fundamenta o fenômeno da democracia com base nos valores essenciais da liberdade e da igualdade. Segundo o autor, é através destas que o indivíduo participa como agente ativo do processo de construção e elaboração das normas que regem a ordem estatal, ainda que para a realização prática de tal ideal seja necessária a transformação de alguns conceitos, tais como, povo, igualdade e liberdade.

Sem pretender um aprofundamento maior do tema e das circunstâncias e detalhes que o compõem, pretendeu-se delinear, em curtas linhas, a proposta do autor estudado na tentativa de fixar um conceito puro de democracia, com retorno às bases das quais se originou e, ainda, com análise dos valores e fundamentos que lhe são próprios. Assim, partindo dos valores fundamentais da liberdade e igualdade, que de seu diálogo caracterizam o que o ideal democrático tem de mais essencial, o autor metamorfoseou-os para que estes se adequassem às exigências da organização estatal fática, chegando a um panorama existente hoje nas sociedades modernas.

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2. A DEMOCRACIA NO PENSAMENTO DE NORBERTO BOBBIO

O presente capítulo analisa a contribuição do jurista italiano Norberto Bobbio sobre a democracia. O seu ponto de partida é a pergunta sobre o futuro desta forma de sociedade e sobre a possibilidade da mesma ser realizada no mundo atual. Neste contexto, o autor apre-senta os pressupostos desta forma de sociedade, as contradições (limites) de suas promessas e seus principais obstáculos. A conclusão é que a forma democrática de sociedade, apesar das limitações, ainda se diferencia claramente das formas autocráticas de sociedade e que deve ser defendida.

2.1. O Futuro da Democracia

O ponto de partida da reflexão de Norberto Bobbio sobre a democracia é que o poder foi historicamente organizado de diversas maneiras. A democracia é apenas uma destas formas. Esta forma esta, atualmente, instituída em praticamente todas em todos os países do ocidente. Nesta condição, a democracia deveria ser pauta cotidiana daqueles aos quais ela se aplica, seja por estar em constante mutação ou seja pela distância existente entre o seu ideal e sua prática.

É nessa diferenciação entre a democracia real, aplicada na realidade das sociedades modernas, e a democracia ideal, pensada de maneira hipotética – por vezes utópica -, que Norberto Bobbio centra a sua análise sobre a democracia e suas conexões com o presente. Neste sentido, existe, para o autor, uma diferença inescapável entre a democracia ideal e a democracia real.

Neste sentido, o autor lembra, já nas linhas iniciais de sua principal obra sobre o tema (O Futuro da Democarcia, 2002), brevemente algumas das críticas feitas face ao sistema democrático, citando momentos históricos em que se prenunciou a iminente eliminação do citado regime. Não obstante, tais prognósticos proferidos pelos ―profetas da desventura‖ falharam um após o outro, tendo a democracia se erigido, nos últimos anos, em denominador comum do debate político.

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Isto ocorreu pela força que representa a forma democrática de sociedade e sobre a incerteza em fazer afirmações sobre o futuro. Neste sentido, o autor reforça que o futuro é imprevisível e que todos aqueles que ousaram em prevê-lo tiveram grande dissabores com a história. Nas palavras do autor:

A dificuldade de conhecer o futuro depende também do fato de que cada um de nós projeta no futuro as próprias aspirações e inquietações, enquanto a história prossegue o seu curso indiferente às nossas preocupações (2002, p. 34).

O universo e seu curso são alheios à esfera em que decorre nossa vida. Não que a história não possa ser alterada, pois pode, porém a modificação é limitada, tendo em vista que, nesse processo, também somos modificados pela história, eis aí um dos porquês da dificuldade de prever o futuro.

Bobbio admite não saber qual o futuro da democracia e buscou tão somente traçar observações acerca dos regimes democráticos, Assim,

Se, depois, destas observações for possível extrapolar uma linha de tendência no desenvolvimento (ou involução) destes regimes, e assim tentar um cuidadoso prognóstico sobre o seu futuro, tanto melhor (2002, p. 18).

Para Bobbio, a democracia diverge do despotismo, forma de governo arbitrária e em que o poder detém a razão, também no ponto em que aquela se mostra dinâmica, ao passo que a forma despótica se revela sempre igual em si mesma. Ou seja, a democracia é flexível, se manifestando de maneira diversa a depender das peculiaridades existentes na sociedade em que está instituída.

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A fim de elaborar um conceito mínimo de democracia e de estabelecer a diferenciação entre aquela idealizada e a real, Bobbio elenca três pressupostos básicos necessários à confi-guração de um regime dito democrático, sem os quais democracia não o será.

O primeiro deles é a necessidade de estabelecer as regras do jogo. Ou melhor, a fixação de quem está autorizado a tomar as decisões do grupo, ou seja, quais são os indivíduos legitimados a, na união das vontades individuais, formar a vontade coletiva, bem como os procedimentos mínimos para que essa vontade seja colhida. Em outras palavras, o

quem e o como:

Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva, é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetudinárias) que estabele-çam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais procedimentos (BOB-BIO, 2002, p. 35).

A análise daqueles indivíduos legitimados à formação da vontade coletiva, como dito acima, se constitui no segundo postulado básico para a fixação mínima do conceito de democracia, qual seja, o direito ao voto. Para Bobbio, esse postulado estará preenchido no caso de tal direito ser assegurado a um elevado número de cidadãos. Por isso, por mais que reconheça que esse conceito se mostre bastante abstrato, o autor, defende que, na análise dessas situações é utilizada a máxima do "aproximadamente", entendendo, assim, ser impossível atribuir a incumbência de constituir a vontade coletiva a todos, mesmo no mais perfeito dos regimes democráticos.

Nesse passo, Bobbio reconhece a existência de graus de democracia, defendendo, por fim, que a regra fundamental da democracia, nesse ponto, é a regra da maioria, ponderando que:

Estabelecer o número dos que têm direito ao voto a partir do qual pode-se começar a falar de regime democrático é algo que não pode ser feito em linha de princípio, isto é, sem a consideração das circunstâncias históricas e sem um juízo comparativo: pode-se dizer apenas que uma sociedade na qual os que têm direito ao voto são os cidadãos masculinos maiores de idade é

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mais democrática do que aquela na qual votam apenas os proprietários e é menos democrática do que aquela em que têm direito ao voto também as mulheres (2002, p. 36).

Por fim, o autor elenca uma terceira condição, qual seja:

É preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição, é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. (2002, p. 38).

Ele identifica, nesses direitos fundamentais do indivíduo, um pressuposto básico a partir do qual a democracia se origina, não tendo como se falar em participação democrática sem que se assegurem valores, direitos e garantias básicas de manifestação social. Ademais, vê nos direitos acima citados condição mínima para que o regime democrático perdure. Nas palavras do autor:

Disto segue que o estado liberal é o pressuposto não só histórico, mas jurídico, do estado democrático. Estado liberal e estado democrático, assim, são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta, que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais (BOBBIO, 2002, p. 38).

Em outras palavras: é pouco provável que um estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia; e, de outra parte: é pouco provável que um estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais. A prova histórica dessa interdependência está no fato de que estado liberal e estado democrático, quando caem, caem juntos.

2.3. As Contradições da Democracia

Estabelecidos os pressupostos, Bobbio passa a analisar as diferenças entre a democracia conceitualmente prometida, a chamada democracia ideal, e a democracia vivida

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hoje pelas sociedades modernas, ou a democracia real. Para tanto, efetua a análise de seis situações em que esse conflito entre o ideal e o real pode ser observado, ou seja, seis situações que identificam promessas não cumpridas pelo ideal democrático.

O autor inicia identificando a existência de uma perspectiva orgânica na concepção de estado para as sociedades da Idade Antiga e Média, nas quais o todo prevalece sobre as partes, para uma perspectiva individualista reinante no mundo moderno, na qual o individuo é soberano e supõe a existência do Estado que, para a sua criação, conjuga forças com outras vontades individuais que o precedem.

Nas palavras do autor:

Partindo da hipótese do indivíduo soberano que, entrando em acordo com outros indivíduos igualmente soberanos, cria a sociedade política, a doutrina democrática tinha imaginado um estado sem corpos intermediários, característicos da sociedade corporativa das cidades medievais e do estado de camadas ou de ordens anteriores à afirmação das monarquias absolutas (...) (BOBBIO, 2002, p. 42).

O ideal, portanto, foi estabelecido com a visão do indivíduo soberano, que decidiria diretamente os rumos a serem seguidos coletivamente. Todavia, o que se verificou na prática foi uma situação diametralmente oposta, na qual crescem constantemente as intermediações e conflitos de grupo.

Nas palavras de Bobbio:

(...) Sujeitos politicamente relevantes tornaram-se sempre mais os grupos, grandes organizações, associações das mais diversas naturezas, sindicatos das mais diversas profissões, partidos das mais diversas ideologias, e sempre menos os indivíduos. Os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida política numa sociedade democrática, na qual não existe mais um soberano, o povo ou a nação, composto por indivíduos que adquiriram o direito de participar direta ou indiretamente do governo, na qual não existe mais o povo como unidade ideal (ou mística), mas apenas o povo dividido de fato em grupos contrapostos e concorrentes, com a sua relativa autonomia diante do governo central (autonomia que os indivíduos singulares perderam ou só tiveram num modelo ideal de governo democrático sempre desmentido pelos fatos) (2002, p. 42).

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No entender de Bobbio, desse dispersamento do centro do poder para várias unidades de interesse distintas, surge uma sociedade chamada policêntrica, poliárquica, ou, até, policrática. Assim, o ideal monístico da sociedade democrática, fundada na soberania popular e na existência de um único centro de poder, transmudou-se, segundo o autor, em uma sociedade real, de viés pluralista, onde diversos centros de interesse medem forças na busca de concretização de seus próprios ideais.

2.3.1. Os Limites da Representação Política

Origina-se, dessa primeira alteração, a segunda diferença existente entre a democracia ideal e a democracia real, qual seja a distinção entre mandato vinculado, ou de interesse, e mandato político, sendo este forjado quando do estabelecimento do ideal democrático, e aquele, na realidade do estado democrático moderno.

É sabido que, para fins procedimentais, nas sociedades modernas, necessária se faz a escolha de representantes que, por mandato, definem os rumos do Estado em nome do restante da população, haja vista que a atuação direta de todos os cidadãos se mostra impossível ante ao número elevado, e por vezes crescente, da população.

Neste sentido, o autor esclarece que a democracia moderna, nascida como democracia representativa, deve necessariamente ser exteriorizada pela existência de mandatos políticos, nos quais, uma vez eleito, o representante atua na busca do interesse geral coletivo, ou da nação, sem se vincular na busca de interesses particulares, seus ou de grupo e entidade que representa.

O mandato deve, portanto, ser livre. Neste sentido, segundo Bobbio, a proibição de mandatos

(...)Imperativos tornou-se uma regra constante de todas as constituições de democracia representativa e a defesa intransigente da representação política encontrou sempre, nos fatores da democracia representativa, convictos

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defensores contra as tentativas de substituí-la ou de combiná-la com a representação dos interesses (2002, p. 45).

Todavia, o autor entende que nenhuma das normas constitucionais foi mais violada do que esta, da necessidade de que um mandato não seja estabelecido com viés particular. Isso decorreria da própria compartimentalização das unidades de poder/ interesses existentes em dada sociedade. Cada grupo, conflitando com os interesses dos demais e alheio ao interesse geral da nação, busca eleger representante próprio, que atue na busca de concretização de suas causas.

Jamais um princípio foi mais desconsiderado que o da representação política. Mas numa sociedade composta de grupos relativamente autônomos que lutam pela sua supremacia, para fazer valer os próprios interesses contra outros grupos, uma tal norma, um tal princípio, podem de fato encontrar realização? Além do fato de que cada grupo tende a identificar o interesse nacional com o interesse do próprio grupo, será que existe algum critério geral capaz de permitir a distinção entre o interesse geral e o interesse particular deste ou daquele grupo, ou entre o interesse geral e a combinação de interesses particulares que se acordam entre si em detrimento de outros? Quem representa interesses particulares tem sempre um mandato imperativo (BOBBIO, 2002, p. 45).

Nisso se identifica mais uma das promessas não cumpridas da democracia ideal, pois, onde deveria haver representação política, desinteressada, a não ser com a busca do interesse público, coletivo e geral da nação em que, contido, há representação imperativa, vinculada aos interesses particulares, seja do grupo representado, seja do próprio mandatário.

2.3.2. Os Limites da Liberdade

Outro ponto problematizado por Noberto Bobbio foi sobre os limites da liberdade nas sociedades democráticas. O ponto de partida da análise do autor foi o reconhecimento que um dos princípios inspiradores do pensamento democrático é o princípio da liberdade. Este princípio deve ser entendido como uma garantia da autonomia dos sujeitos, ou seja, como uma estrutura que garante que, ao mesmo tempo, cada um de nós formula as leis e se submete as mesmas. Isto princípio deveria eliminar a distinção entre governados e governantes. Contudo, deve-se reconhecer, antecipa o autor, que ―a democracia representativa, que é a

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única forma de democracia existente e em funcionamento na atualidade, é já por si mesma uma renúncia ao princípio da liberdade como autonomia‖ (BOBBIO, 2002, p. 47).

Neste sentido, devemos reconhecer, ressalta o autor, que as hipóteses de democracia direta se mostram completamente inviáveis na prática, pois ensejariam um excesso de participação, que acarretaria no aumento da apatia eleitoral: ―O preço que se deve pagar pelo empenho de poucos é freqüentemente a indiferença de muitos. Nada ameaça mais matar a democracia que o excesso de democracia‖ (2002, p. 47). Neste ponto, expõe o autor que a existência de elites no poder não seria capaz de eliminar a diferenciação entre os sistemas democráticos e autocráticos, bem como, que um governo democrático não se caracteriza pela ausência de elites, mas pela existência de várias delas, concorrendo para a conquista do voto popular.

Essa diferenciação entre o ideal democrático (tentativa de eliminar o poder oligárquico), e a realidade da democracia prática enseja a existência de um sistema no qual quem cria as leis imperativas sobre a sociedade são as várias elites disputantes da vontade popular, e não a própria população, de forma direta. Na forma de representação, temos o seguinte quadro:

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No primeiro quadro, há o princípio norteador da democracia ideal, o qual estende à so-ciedade a liberdade, manifestada na autonomia de seus cidadãos, lhes fornecendo assim a de-mocracia direta, sendo, portanto, considerada, conforme analisa Bobbio, ―a capacidade de dar leis a si mesmo‖ (2002, p. 26).

Por outro lado, no segundo quadro há a renúncia parcial da autonomia, ou seja, a soci-edade representada cede aos governantes a sua liberdade. Entende Bobbio que esta segunda situação apenas se legitima como democracia no caso de as elites representativas serem varia-das, haja vista que a existência de um número considerável de elites faz com que concorram entre si pelo voto popular, equilibrando, assim, a sociedade e configurando um regime demo-crático.

2.3.3. Os Limites da Ampliação da Democracia

Além das contradições já referidas, Norberto Bobbio chamada a atenção ainda para os limites reais que a luta pela ampliação da democracia enfrenta nas sociedades atuais. De fato, as sociedades democráticas pressupõem a existência de uma cultura democrática que promova a ampliação das formas de participação e do número de cidadãos votantes nas consultas pú-blicas.

As sociedades atuais têm promovido os dois processos. Estes instrumentos, contudo, não tem conseguido ampliar, do ponto de vista fático, as formas de participação (onde se vota) e nem o número de participantes (direto nas urnas/eleições). Isto está muito claro nas palavras do autor:

Após a conquista do sufrágio universal, se ainda é possível falar de uma ex-tensão do processo de democratização, esta deveria revelar-se não tanto na passagem da democracia representativa para a democracia direta, como habi-tualmente se afirma, quanto na passagem da democracia política para a de-mocracia social — não tanto na resposta à pergunta "Quem vota?", mas na resposta a esta outra pergunta: "Onde se vota?" (BOBBIO, 2002, p. 48).

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A autonomia, assim, seria apenas parcela do âmbito maior em que se manifesta o di-reito de liberdade, que passa a ser vista sob os mais variados aspectos de participação social, bem como nos mais variados direitos básicos necessários para que o homem se qualifique minimamente como cidadão e possa participar de forma efetiva da vida pública, tais como direito à saúde, à informação, à intimidade, à associação, entre outros.

A fundamentação da democracia é estar em constante mudança, transformando-se a cada rumo que toma a história da sociedade, portanto, ampliando-se a cada passo conquistado acerca dos direitos que adquirem os cidadãos. Assim, tem caráter exploratório, com aspectos subjetivos, ou seja, é qualitativa, e não só quantitativa.

Essa opinião, porém, é refutada por Borges(2013, p.2).:

Desse modo, houve de fato no Brasil um aumento quantitativo de lugares em que o povo é chamado a participar, no entanto, essa atuação popular tem ser-vido apenas como cumprimento de um dever social simbólico, nada mais que isso.

O referido autor transporta o pensamento de Bobbio para os dias atuais, considerando que o simples aumento do número de votos não traduz necessariamente aumento de democra-cia, haja vista que o mero número de participantes não garante o exercício de direitos exerci-dos pelos cidadãos.

2.3.4. Os Limites da Transparência

O quarto limite destacado pelo autor é em relação a busca da transparência ou visibili-dade do poder. Neste sentido, Bobbio afirma que a democracia nasceu com o intuito de su-primir da sociedade o chamado poder invisível. Isto significa que a sociedade democrática tem o objetivo de reforçar que as decisões coletivas sejam tomadas de forma transparente. Dito de outra forma, o Estado democrático tem a pretensão que os rumos político do

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respecti-vo país sejam decididos de forma visível e que os cidadãos, em consequência, controle as ati-vidades governamentais (2002, p. 52).

Desta forma, a publicidade, ato que se constitui em tornar público algo, cumpre papel essencial para o desenvolvimento da democracia, pois tem caráter vinculante nas escolhas estatais, haja vista que o representante é eleito com base no voto do cidadão; assim, tem o cidadão parcela de escolha nos atos tomados pelo Estado. Considerando que o cidadão elegeu seu representante, tem parcela de escolha, como supramencionado, sendo dever do Estado expor publicamente as decisões tomadas, a fim de que o cidadão tenha conhecimento destas, visto que de seu interesse.

A exposição dos atos e decisões estatais faz com o que o Estado, ao analisar os inte-resses públicos, o faça com cautela, visto que qualquer ato tomado será imediatamente avalia-do pela sociedade. Nas palavras de Bobbio:

Uma das razões da superioridade da democracia diante dos estados absolu-tos, que tinham revalorizado os arcana imperii e defendiam com argumentos históricos e políticos a necessidade de fazer com que as grandes decisões po-líticas fossem tomadas nos gabinetes secretos, longe dos olhares indiscretos do público, funda-se sobre a convicção de que o governo democrático pode-ria finalmente dar vida à transparência do poder, ao "poder sem máscara" (2002, p. 52-53).

Não obstante, a divulgação dos atos governamentais não só permite que o cidadão tenha informações acerca de seus direitos e deveres, como leva ao conhecimento da sociedade qualquer ato impróprio eventualmente tomado pelo Estado, aumentando assim o controle pú-blico.

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Por fim, pode-se destacar ainda os limites da busca da efetivação da educação para a cidadania. É que esta proposta fundamental da forma democrática de sociedade pretende a conscientização dos cidadãos para a importância de sua participação ativa no processo de construção da vontade do Estado. Isto pressupõe o fortalecimento da defesa do interesse pú-blico e do combate a utilização do voto como instrumento de barganha para realização de pro-jetos pessoais.

O autor (2000, p. 55) entende que tal educação para o exercício democrático surgiria da própria prática desse mesmo direito, concomitantemente, e não antes, como pressuposto da instituição de um governo democrático. Citando John Stuart Mill, afirma que, para tal fim, se mostra de extrema importância a participação de cidadãos de caráter ativo, pois os outros, passivos, por dóceis e/ou indiferentes às decisões públicas são os preferidos dos governantes, em matéria-prima hábil à criação de um governo alheio aos interesses do povo. Este é um dos grandes limites das democracias atuais.

2.4. A Luta Contra os Obstáculos da Democracia

O ideal democrático, diante dos limites há pouco referidos, leva a um cenário de desâ-nimo com a forma democrática de sociedade e a constatação da existência de alguns desafios (obstáculos) fundamentais que quase impossibilitam a realização dos ideais democráticos. Norberto Bobbio enumera três obstáculos fundamentais: a tecnocracia, a burocracia e o baixo rendimento da democracia.

O primeiro obstáculo referido por Bobbio diz respeito à formação de um governo téc-nico, no qual as decisões não são mais suportadas de forma ordinária, pelo sujeito normal, mas sim pelos sujeitos especialistas, aqueles que adquiriram conhecimentos acerca do assun-to. Nas palavras do autor:

A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos podem decidir a res-peito de tudo. A tecnocracia, ao contrário, pretende que sejam convocados

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para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos (BOBBIO, 2002, p. 60).

A sociedade moderna, porém, caracteriza-se pela complexidade e diversidade de orga-nização. Tal complexidade faz com que os assuntos públicos fujam à compreensão do cidadão médio, exigindo, para sua integral compreensão e participação, a existência de conhecimentos técnicos específicos das diversas áreas do saber. Nesse sentido,

[...] na medida em que as sociedades passaram de uma economia familiar pa-ra uma economia de mercado, de uma economia de mercado papa-ra uma eco-nomia protegida, regulada, planificada, aumentaram os problemas políticos que requerem competências técnicas. Os problemas técnicos exigem, por sua vez, expertos, especialistas, uma multidão cada vez mais ampla de pessoal especializado (2015, p. 59).

A elevação ocasionada pela necessidade de sujeitos especialistas e técnicos faz com que a aplicabilidade do ideal democrático seja reduzida, ou seja, dificulta a aplicação da de-mocracia. O cidadão comum fica alheio da participação na definição das atividades do Estado, deixando de emitir opinião fundamentada e manifestando-se sempre de maneira emotiva, gui-ado pela confiança na opinião alheia.

O segundo obstáculo apontado por Bobbio foi o crescimento demasiado do aparelha-mento burocrático, um tanto influenciado pelo obstáculo apontado anteriormente. Segundo o autor, na medida em que crescem as funções do Estado, e o próprio Estado em si, cresce igualmente a burocracia a ele atrelada. Não obstante, afirma o autor ser a burocracia conse-qüência do próprio desenvolvimento do ideal democrático, uma vez que para ele ambos an-dam juntos.

Estado democrático e estado burocrático estão historicamente muito mais li-gados um ao outro do que a sua contraposição pode fazer pensar. Todos os estados que se tornaram mais democráticos tornaram-se ao mesmo tempo mais burocráticos, pois o processo de burocratização foi em boa parte uma consequência do processo de democratização (Bobbio, 2015, p. 61).

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Diz o autor que a concessão de direitos relativos à democratização de determinada so-ciedade acarreta a exigência de outros direitos que lhe são relacionados, e assim sucessiva-mente. Tal fato desenvolve o aumento do aparelhamento estatal, como dito, e, consequente-mente, o aumento da burocracia desse mesmo Estado.

O terceiro, e último, obstáculo apontado pelo autor (BOBBIO, 2015, p. 63) diz respei-to ao baixo rendimenrespei-to associado ao governo democrático, muirespei-to em razão da sede de novos direitos e prestações da população, como acima referido. O governo democrático, tendo ga-rantido determinadas liberdades civis e sociais à sua população, faz surgir um desejo por ou-tras demandas e, tendo de respeitar a um processo formal de conjugação de vontades e tomada de decisões, por vezes se mostra inefetivo na resposta dada à sociedade.

Bobbio traça um paralelo com o sistema autocrático, afirmando que este, justamente por limitar os direitos e garantias e não se ver limitado por um processo de decisão formal, se torna efetivo, de resposta rápida e capaz de decidir sem maiores problemas burocráticos. Nas palavras do autor:

Além do mais, diante da rapidez com que são dirigidas ao governo as de-mandas da parte dos cidadãos, torna-se contrastante a lentidão que os com-plexos procedimentos de um sistema político democrático impõem à classe política no momento de tomar as decisões adequadas. Cria-se assim uma verdadeira defasagem entre o mecanismo da imissão e o mecanismo da emissão, o primeiro em ritmo sempre mais acelerado e o segundo em ritmo sempre mais lento (2015, p. 63).

Este é um grande obstáculo a efetivação dos ideais democráticos. É que as sociedades atuais, permeadas por uma grande plataforma de comunicação, mudou a percepção das pesso-as sobre o tempo dos acontecimentos (que se tornaram mais rápidos) e a necessidade de res-postas mais rápidas.

Em conjunto, os três obstáculos referidos (além dos limites analisados), poderiam Le-var, ressalta o autor, a um certo pessimismo sobre o futuro da democracia. Mas, o autor, não pensa desta maneira: ―Nada disso" (2015, p. 63). Ao contrário, o autor mantém a sua

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convic-ção que a forma democrática é a única possibilidade que temos de produzir um mundo menos violento e mais propenso a paz, a tolerância e ao reconhecimento e respeito aos direitos hu-manos.

Neste sentido, destaca o autor que os limites indicados e os obstáculos enumerados não são

[...] Suficientes para "transformar" os regimes democráticos em regimes au-tocráticos. A diferença substancial entre uns e outros permaneceu. O conteú-do mínimo conteú-do estaconteú-do democrático não encolheu: garantia conteú-dos principais direi-tos de liberdade, existência de vários partidos em concorrência entre si, elei-ções periódicas a sufrágio universal, decisões coletivas ou concordadas (nas democracias consociativas ou no sistema neocorporativo) ou tomadas com base no princípio da maioria, e de qualquer modo sempre após um livre deba-te entre as pardeba-tes ou entre os aliados de uma coalizão de governo (2015, p. 65).

Segundo o autor, preservado um núcleo mínimo dos pressupostos capazes de enqua-drar uma organização social como democrática, a situação concreta variará em uma maior ou menor solidez da democracia. Bobbio entende que, dentre os regimes democráticos, existirá aquele que se aproxima mais do ideal construído, todavia, mesmo aquela democracia que mais distante ficar desse citado modelo ideal não poderá de modo algum ser confundida com um estado autocrático (2015, p. 65). Isto é fundamental num mundo cada vez mais complexo e indeterminado.

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