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Tecnologia e ambiente na permacultura : perspectivando a crise socio-ambiental

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Academic year: 2021

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(1)

U

NIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

I

NSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

P

ROGRAMA DE PÓS

-

GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

E

VANDRO

S

MARIERI

S

OARES

Tecnologia e Ambiente na Permacultura:

perspectivando a crise socio-ambiental

CAMPINAS

2018

(2)

E

VANDRO

S

MARIERI

S

OARES

Tecnologia e Ambiente na Permacultura:

perspectivando a crise socio-ambiental

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Peixoto Ferreira

ESTE

EXEMPLAR

CORRESPONDE

À

VERSÃO

FINAL

DA

DISSERTAÇÃO

DEFENDIDA

PELO

ALUNO

EVANDRO

SMARIERI

SOARES,

E

ORIENTADA

PELO

PROF.

DR.

PEDRO

PEIXOTO

FERREIRA.

CAMPINAS

2018

(3)
(4)

U

NIVERSIDADE

E

STADUAL DE

C

AMPINAS

I

NSTITUTO DE

F

ILOSOFIA E

C

IÊNCIAS

H

UMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 31 de outubro de 2018, considerou o candidato Evandro Smarieri Soares aprovado.

Prof. Dr. Pedro Peixoto Ferreira (orientador). Prof, Dr. Mauro William Barbosa de Almeida. Prof. Dr. Rafael Alves da Silva.

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

(5)

A

GRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, aos meus pais, Nivaldo e Luiza, e ao meu irmão, Leandro, pelo apoio e o incentivo para a realização deste trabalho, mas, sobretudo, por me ensinarem a importância do discernimento e o valor do conhecimento. Agradeço também ao meu avô, Vicente, com quem passava as manhãs da minha infância na “roça”, visitando seus amigos.

Ao meu orientador, Pedro Ferreira, pela disposição e dedicação a este trabalho e às nossas discussões nos últimos cinco anos. Aos colegas do CTeMe de quem aprendi muito do que está presente neste trabalho e que me deram a oportunidade de pensar sobre temas tão pertinentes, ainda que menos explorados do que deveriam ser.

A todas as pessoas que encontrei durante o trabalho de campo, com quem convivi em vivências significativas, das quais cito Marcelo, Priscila, Leila, Sol, Pauly, Lê, Michel, Peter, Marsha, Karin, Nestor, Stela, Lucas, Clóvis, e especialmente ao Fernando (em memória), com quem desenvolvi, ainda em 2015, algumas das ideias e aproximações conceituais nas quais germinou este trabalho.

Aos parceiros e às parceiras da aventura acadêmica no Brasil do golpe. Sabemos que o curso de nossas carreiras sempre será marcado por este período vexatório de nossa história, no qual se torna cada vez mais difícil progredir em nossa profissão. Mas sabemos também que é o pensamento crítico, a reflexão sobre a realidade, a consciência de classe e o questionamento da ordem e do status quo, que irão embasar as ações que nos livrarão das ameaças que nos rondam. A vocês um sincero agradecimento por insistirem nesse caminho.

Às amizades que ajudaram nesse processo, cada qual à sua maneira, Victor, Jéssica, Bonatti, Tathi, Moretti, Aninha, Andrei, Alex, Andreuzzi, Talitha, Alessandra, Luísa, Fábio, Higor, Caio, Ana, por todas as discussões e distrações igualmente essenciais.

Aos trabalhadores e trabalhadoras da Unicamp por proverem um espaço excepcionalmente propício para as nossas atividades, a despeito das dificuldades enfrentadas pelas universidades públicas brasileiras.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio a esta pesquisa.

(6)

R

ESUMO

Nesta pesquisa, buscou-se entrar em contato com as práticas circunscritas sob o conceito de permacultura, através da pesquisa de campo em sítios que as desempenham. A partir das descrições desta experiência em cursos, construções, produção de alimentos e planejamento de “sistemas permanentes”, evidencia-se nos relatos a relação entre os praticantes da permacultura e os elementos mobilizados: plantas, microrganismos, animais, estruturas materiais e princípios éticos. Observou-se nestas relações um modo de ação que parte de um conjunto de princípios éticos para elaborar uma estratégia frente à crise socioambiental. Foi dada atenção especial às experiências de manejo agroflorestal e de planejamento e construção de um sistema de saneamento ecológico. Procurou-se evidenciar os modos de agir e pensar perpetrados nestas situações de ensino e aprendizagem, que revelaram uma relação técnica com os meios ambientes (recursos naturais, fauna e flora), fundamentada por uma ética particular, e concebida como forma de garantir as condições de vida, como as conhecemos, mesmo frente a mudanças climáticas.

Palavras-chave: Permacultura; Política ambiental; Tecnologia; Ética; Teoria

(7)

A

BSTRACT

In this research, we sought to get in touch with the circumscribed practices under the concept of permaculture, through the field research in sites that perform them. From the descriptions of this experience in courses, constructions, food production and planning of "permanent systems", the relationship between permaculture practitioners and the mobilized elements is shown in the reports: plants, microorganisms, animals, material structures and ethical principles. One observes in these relations a mode of action that starts from a set of ethical principles to elaborate a strategy towards the social-environmental crisis. Special attention was given to agroforestry management and planning and construction of an ecological sanitation system. The aim was to highlight the ways of acting and thinking perpetrated in these teaching-learning situations, which revealed a technical relationship with the environments (natural resources, fauna and flora), based on a particular ethics, and conceived as a way to guarantee the living conditions, as we know them, even in the face of climate change.

Keywords: Permaculture; Environmental policy; Technology; Etichs; Actor-Network

(8)

L

ISTA DE

F

IGURAS

Figura 1 - Morada Natural: vista parcial da Casa Mãe... 37

Figura 2 - Anúncio do Curso de Design em Permacultura , realizado em julho de 2015. ... 39

Figura 3 - Mapa do sítio Morada Natural ... 41

Figura 4 - Aplicação da técnica “Cob” sobre a base de “hiperadobe” na construção da “Oca. ... 42

Figura 5 - "Útero". ... 44

Figura 6 - "Zoneamento permacultural" do sítio Morada Natural. ... 45

Figura 7 - Representação esquemática de uma bacia de evapotranspiração em corte transversal. ... 52

Figura 8 - Início da construção da bacia de evapotranspiração. ... 55

Figura 9 - Bacia de evapotranspiração, aberta, durante a montagem do filtro com bambus... 56

Figura 10 - Filtro anaeróbico de fluxo ascendente. ... 57

Figura 11 - Sequência de etapas da digestão anaeróbica. ... 58

Figura 12 - Centro de cálculo. ... 67

Figura 13 - Bacia de evapotranspiração antes da aplicação das últimas camadas ... 74

Figura 14 - Aula de leitura de paisagem durante o PDC ... 89

Figura 15 - Marcelo durante a leitura de paisagem ... 94

Figura 16 - Manejo de agrofloresta na Fazenda Atalanta ... 101

Figura 17 - Canteiro em agrofloresta da Fazenda Atalanta ... 104

Figura 18 - Aula de manejo agrofloresta na Fazenda Atalanta ... 105

L

ISTA DE

Q

UADROS Quadro 1 - Princípios Éticos da Permacultura. ... 20

Quadro 2 - Eixo Associação x Substituição. ... 51

Quadro 3 – Hipertelia na concretização do objeto técnico. ... 111

L

ISTA DE

S

IGLAS

CSIRO Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation. FANJ Fundación Antonio Núñez Jiménez de la Naturaleza y el Hombre. IPB Instituto de Permacultura da Bahia.

IPC International Permaculture Convergence.

OAPEC Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo. OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte.

PAL Permacultura América Latina. PDC Permaculture Design Course. PSA Projeto Policultura no Semi-Árido.

(9)

S

UMÁRIO

Introdução ... 10

Origem da permacultura ... 13

Difusão mundial ... 22

Perspectiva da permacultura ... 28

Capítulo 1 - Curso de design em Permacultura: planejamento do sistema permacultural e obra-aula. ... 37

1.1 – Construção da bacia de evapotranspiração ... 48

1.2 – “Obra-aula” e ação-rede. ... 63

1.3 – Mentalidade técnica e tecnologia da permacultura... 74

Capítulo 2 - Experiências com agroflorestas e a ética reticular da permacultura... 88

2.1 – Leitura de paisagem. ... 89

2.2 – Manejo agroflorestal: experiências, conceitos e reflexões. ... 101

2.3 – A ética da permacultura. ... 116

Considerações Finais... 130

Bibliografia ... 135

Anexos... 140

Princípios ... 140

Anexo I – Princípios dos sistemas naturais, segundo Birch ... 140

Anexo II – Princípios da Permacultura 1988 ... 141

Anexo III – Princípios da Permacultura 1991 ... 142

Anexo IV – Princípios da Permacultura 2012 ... 146

Entrevistas... 148

Anexo V – Entrevista com Clóvis Oliveira ... 148

Anexo VI – Entrevista com Marsha Hanzi ... 152

Anexo VII – Entrevista com Peter Webb ... 162

Relatórios ... 192

Anexo X – Relatório de atividades da pesquisa de campo ... 192

(10)

I

NTRODUÇÃO

Ao longo dos dois últimos séculos, a maneira de cultivar o solo transformou-se substancialmente, como consequência, alteraram-se também as condições de vida em torno dos cultivos. As revoluções agrícolas dos séculos XIX e XX trouxeram consigo um pacote tecnológico que se expandiu de forma inédita por todo o globo. O surgimento do maquinário agrícola, na esteira das revoluções industriais, criou uma nova correlação entre o trabalho humano e a extensão de terra trabalhada, bem como a quantidade produzida por indivíduos envolvidos na produção (MAZOYER; ROUDART 2009, p. 420-1).

Ao passo que novos modos de cultivo surgiam, as espécies cultivadas foram selecionadas. Aquelas capazes de rentabilizar os sistemas agrários ocuparam o espaço das culturas de subsistência. Os estabelecimentos agrícolas que não possuíam capital para a modernização da produção sucumbiram, cedendo lugar à produção industrial que abasteceria as cidades superpovoadas após o êxodo rural.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a indústria de motores a combustão e elétricos tinha na agricultura um novo mercado. A indústria química também pôde voltar seus esforços para a produção de alimentos, oferecendo uma gama de novos insumos para o combate de pragas, adubação e fertilização artificial dos solos.

Porém, estes avanços trouxeram seus inconvenientes. Mudanças tão bruscas na organização da economia camponesa provocaram o empobrecimento e o abandono da atividade rural. A difusão dos meios de transportes, que conectou áreas isoladas de produção, liberou os camponeses da tarefa de produzirem, ao mesmo tempo, seus próprios bens de consumo e os insumos de sua produção (força de tração, forragens, adubos, sementes, utensílios).

Atribui-se a esse cisma na organização produtiva camponesa, “a separação das tarefas materiais de produção e das tarefas intelectuais [que] refletia-se ainda nos sistemas de formação e de informação agrícola, por si mesmos especializados e hierarquizados”. (MAZOYER; ROUDART 2009, p. 420).

Estas transformações foram mais fortes nas colônias e ex-colônias europeias, onde a abundância de terras beneficiou a motomecanização dos cultivos. A desigualdade econômica latente nessas regiões engendrou um desenvolvimento desigual dos

(11)

estabelecimentos rurais, favorecendo a acumulação de capital e marginalizando os modelos locais de cultivo. Os pacotes tecnológicos ocuparam o espaço das práticas tradicionais.

Contudo, as sucessivas revoluções agrícolas demonstraram sinais de saturação já nos anos 1960. O “patamar da capitalização” (MAZOYER; ROUDART 2009, p.422) – uma determinada rentabilidade do estabelecimento que permitia a atualização dos equipamentos para manutenção do lucro sobre a produção – cada vez mais alto determinava os investimentos e o crédito para os agricultores, aprofundando a concentração de renda e a migração campo-cidade. As crises econômicas e de desemprego nas décadas seguintes, no bojo da crise do petróleo, provocariam um ambiente de contestação e busca por alternativas e a reforma agrária.

Neste período, evidências da degradação dos solos e da biodiversidade já eram sensíveis e mobilizavam o surgimento de movimentos ecológicos. A confluência dessas forças resultou em uma gama de iniciativas e na consolidação de correntes de pesquisas que tratavam tanto das questões agrárias, quanto das ecológicas e sociais.

Com isso, a Agroecologia – termo publicado pela primeira vez em 1928, por Basil Bensin, agrônomo russo – ganhou maior projeção e tornou-se uma disciplina que se propõe a pensar e desenvolver as práticas de cultivo a partir de uma perspectiva que diverge das engenharias agrícolas. Atualmente, podemos defini-la como “uma ciência integradora que comporta conhecimentos de outras ciências, além de agregar também saberes populares e tradicionais provenientes das experiências de agricultores familiares, de comunidades indígenas e camponesas”(LIZARELLI 2010, p. 259).

A perspectiva agroecológica abarca diversas correntes e estilos de experimentação, a amplitude de suas bases e a proposta de pensar a atividade agrícola como campo para superação dos desafios ambiental, econômico, social, territorial e tecnológico (ALTIERI 2009) fez com que muitas das “agriculturas alternativas” viessem a ser compreendidas como formas de desempenho desta ciência.

Mesmo que com origens conceituais independentes, a agricultura biodinâmica, o cultivo em agroflorestas e a permacultura, dentre outras, são compreendidas como práticas agroecológicas, por estarem comprometidas com a ideia de “transição agroecológica”, ou seja, a conversão das práticas de agricultura convencionais (baseadas no pacote tecnológico das revoluções agrícolas) para um manejo com baixo ou nenhum uso de insumos externos,

(12)

aliado a um sistema de não-exploração da mão-de-obra e conservação dos solos (ALTIERI 2009).

Dentre essas correntes, a permacultura se destaca por propor um modelo de design dos estabelecimentos (e também de qualquer “unidade”, um jardim, quintal, edifício etc.) que mobiliza técnicas não apenas de cultivo, mas de construção e planejamento energético. Como veremos a partir das descrições feitas nesta pesquisa, um projeto permacultural envolve a concepção de um modelo de design para a habitação, produção e regeneração de ecossistemas, cujo objetivo é constituir um equilíbrio energético dinâmico entre os elementos, baseando-se na disposição eficiente destes e beneficiando-se dos ciclos biológicos e geológicos para estabelecer relações de retroalimentação e sucessão que propiciam a perenidade de cultivos e a sustentabilidade da habitação humana.

O desempenho regular da permacultura acontece através de iniciativas particulares e de movimentos sociais, primeiramente no movimento de ecovilas, e notadamente nos movimentos ecológicos e de agricultura urbana1. A permacultura também é difundida através de ações de organizações não governamentais e dos Institutos de Permacultura2.

Nesta pesquisa, estive em contato direto com iniciativas particulares onde ocorreram práticas formativas em permacultura que me possibilitaram observar momentos de explicitação dos conhecimentos e do “fazer permacultural”. Dado o interesse desta pesquisa na perspectiva arraigada nas práticas e técnicas, esses foram momentos privilegiados para a pesquisa de campo e que foram complementados pela literatura produzida sobre a permacultura – desde os manuais e panfletos informativos até a bibliografia acadêmica recentemente publicada.

Com a difusão do conceito ao longo dos quarenta anos desde sua publicação, em 1978, estima-se que a permacultura seja praticada hoje em cerca de cento e quarenta países (SILVA 2013, p.180). Para garantir a mínima coesão entre as iniciativas, foram criadas agendas nacionais, continentais e mundial de conferências e convergências, que são

1

São exemplos de movimentos urbanos que se organizam em torno do conceito de permacultura: Rede Permacultural da Periferia (Permaperifa, São Paulo-SP); Rede de Permacultura do Ceará (Rede Permanece);

2

Dentre os Institutos de Permacultura brasileiros, podemos citar: Instituto de Permacultura da Bahia (IPB, Salvador-BA); Instituto de Permacultura IPOEMA (Brasília-DF); Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica (IPEMA, Ubatuba-SP); Instituto de Permacultura e Ecovilas da Pampa (IPEP, Bagé-RS), Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado (IPEC, Pirenópolis-GO).

(13)

“espaços de encontro, fruição e autorregulação da comunidade de praticantes da permacultura” (FERREIRA NETO 2017, p.64).

*

Origem da permacultura

O ponto de partida para tratar da origem do conceito de permacultura são os anos de 1960 na Austrália, onde o contexto efervescente da época era alentado por movimentos progressistas e de contestação, notadamente os de oposição ao apoio militar do país aos EUA na Guerra do Vietnã (entre 1965 e 1972) e o que culminou com a conquista dos direitos civis da população aborígene, em referendo no ano de 1967. A contracultura hippie também se fazia presente e influenciava movimentos como o back-to-the-land, uma iniciativa de revalorização da vida rural em oposição ao modo de vida urbano, que incentivava o “retorno” da população ao campo.

As trajetórias de vida dos idealizadores da permacultura, Mollison e Holmgren, atravessam este momento progressista e contestador no qual eles se engajaram enquanto ativistas da causa ecológica e pesquisadores acadêmicos.

Bruce Charles (Bill) Mollison (1928-2016) é natural de Stanley, uma pequena vila litorânea do noroeste da Tasmânia. Neste local, Mollison viveu até os 26 anos de idade. Como a maioria de seus conterrâneos, tinha atividades sazonais, atuando na pesca marinha durante o Verão e na extração de madeira e na caça, durante o Inverno. Mollison aproximou-se das causas ambientais nos anos 1950, quando passou a trabalhar como guarda florestal.

Com o despertar deste interesse, Mollison deixa sua cidade natal e ingressa na Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation (CSIRO), em 1954, onde trabalha com pesquisas científicas em biologia marinha e ciências agrárias por dez anos, até ingressar na Universidade da Tasmânia, em Hobart, ao Sul da ilha, para estudar biogeografia. Mollison tem uma célere carreira acadêmica, apesar de iniciá-la tardiamente. Já em 1968 ele foi indicado para o cargo de tutor em Hobart e nos anos seguintes levou

(14)

adiante a ideia de fundar a disciplina de Psicologia Ambiental3, que foi oferecia até 2015. Paralelamente aos estudos em biogeografia e nesta nova disciplina, Mollison conduziu uma pesquisa sobre a genealogia dos aborígenes da Tasmânia e publicou este estudo em outubro de 19764.

Contudo, sua carreira acadêmica fora também bastante atribulada. Mollison perseguia, desde o tempo de seus trabalhos com a pesca e a guarda florestal, o intuito de conceber formas mais eficientes de relação com os recursos naturais. Quando tomou conhecimento do relatório The Limits to Growth, publicado pelo Clube de Roma em 1972, a ideia começou a tomar forma5.

Tendo alcançado algum reconhecimento dentro de sua comunidade acadêmica, questionou seus pares em Hobart sobre o modo como estavam sendo lecionadas as ciências diante da situação ambiental. Mollison recorda em entrevista6 que incentivou a autocrítica dos acadêmicos dizendo:

[O] que estamos ensinando é realmente irrelevante, não importa o que seja. É irrelevante porque não se refere a crises iminentes. Nós temos ensinado essas coisas por 50 ou 100 anos... a mesma física, os mesmos estudos clássicos... e nós todos deveríamos mudar”. Todos concordaram: “É, deveríamos”. Os professores e os estudantes concordaram, mas continuaram fazendo exatamente o que estavam fazendo antes.(MOLLISON 2002, p. 16)

A crítica incisiva ao modelo de educação que era seguido naquela universidade não surtiu efeito. Movido por essa decepção e pela constatação de problemas na fauna marinha da região que estudava, Mollison tomou uma decisão abrupta. Afastou-se de seu

3

Esta disciplina foi lecionada pela última vez em 2015, com o título Community & Environmental

Psychology.

http://www.utas.edu.au/courses/chm/units/kha357-community-and-environmental-psychology?year=2015Último acesso em 03 set. 2018.

4

O artigo pode ser parcialmente acessado em:

https://eprints.utas.edu.au/view/authors/Mollison=3ABC=3A=3A.html Último acesso, março de 2018.

5

Para o permacultor norte-americano Peter Bane, o “gênio dos australianos David Holmgren e Bill Mollison foi captar a crítica da civilização industrial, oferecida pelo relatório de 1972 do Clube de Roma, The Limits to Growth – que mostrou pela primeira vez, através de análises sistêmicas e modelos computacionais, como os fluxos de recursos e energia poderiam comprometer a economia mundial – e casar isso com aplicações práticas da teoria ecológica” (BANE 2012, p. 12-3)

6

Esta entrevista foi originalmente concedida a Scott Vlaun, editor informativo da Seeds of Change, em julho de 2001. Cito aqui a versão traduzida e publicada pela revista Permacultura Brasil (2002), disponível em:

https://permaforum.files.wordpress.com/2018/01/revista-permacultura-brasileira-09.pdf Último acesso em: marços de 2018.

(15)

emprego acadêmico e decidiu isolar-se em uma propriedade de cinco acres (aproximadamente 2,4 hectares) nas florestas húmidas do sul da ilha da Tasmânia:

[F]iz uma pequena clareira de um acre e meio onde construí uma casa, um galpão e um jardim e me retirei da sociedade o máximo possível. Vislumbrei aí a permacultura. Dei o salto quando comecei a pensar que, se eu pegasse todos os princípios da ciência ambiental e os transformasse em diretivas que te dissessem o que fazer, então, teríamos um caminho a seguir. (MOLLISON 2002, p.16)

Mollison declara nesta entrevista a influência de Kenneth Watt, ecologista e professor emérito da Universidade da Califórnia em Davis, que publicou em 1973 o livro

Principles of Environmental Science, com princípios da ciência ambiental e inspirando a

concepção de suas “diretivas”. Mollison estava empenhado na observação e aprendizado dos processos naturais, tanto para sua subsistência quanto para a concepção de sua alternativa pragmática aos estudos sobre o ambiente.

O que estava fazendo realmente era economizar energia em toda forma, fosse na construção de uma casa, no plantio de algo, no uso do fertilizante sem necessidade. Então eu pude ver que é possível fazer quase tudo biologicamente, e você não pode esgotar a biologia. (MOLLISON 2002, p. 16)

Começara assim a nascer o conceito de permacultura, mas ele só ganharia corpo com a colaboração de David Holmgren em estudos posteriores ao autoexílio de Mollison. O período de ruptura durou dois anos:

[N]ão demorei muito em dar-me conta que eu não poderia ficar isolado e deixar que os bastardos destruíssem tudo, assim resolvi regressar e lutar. Demorei um tempo em pensar como lutar e decidi que não utilizaria as armas convencionais, mas, recorreria ao pragmatismo, criaria um sistema claro e metódico. (MOLLISON apud. SILVA 2013, p.159)

Mollison estava motivado a retornar para desenvolver e espalhar sua ideia. Também voltava seguro de que o isolamento fora necessário e proveitoso, mas que a autossuficiência é uma ideia penosa e contraproducente:

Eu cresci daquela forma, em fazendas onde você trabalhava 18 horas por dia, trabalho pesado, e pensei: tem que ter um jeito melhor. Eu ignorei isso em Scott Nearing e John Seymour7. Ele [Seymour] escreveu um livro pelo qual você tenta

7

Mollison provavelmente se refere aos livros: Living the good Life how to Live Sanely and Simply in a Troubled World, Schocken Books, 1970, de Helen Nearing e Scott Nearing e Farming for Self-Sufficiency - Independence on a 5-Acre Farm, Pendullum Press, 1987, de John Seymour.

(16)

fazer tudo. Ele chamou isso de autossuficiência prática. Em primeiro lugar, eu acho terrível esse conceito de autossuficiência [...], nós somos absolutamente interdependentes. [...] Você pode ir muito longe ao que diz respeito ao seu alimento, talvez produzir tudo, mas além disso, é estúpido mesmo. (MOLLISON 2002, p. 17)

Assim, Mollison retorna de seu exílio decidido a aprofundar sua ideia, valendo-se de conhecimentos tradicionais e modernos, da sabedoria presente nos costumes locais e nas ciências e tecnologias, buscando inspiração nos processos observáveis, no instinto dos animais, nos ciclos da fauna, das águas, do solo.

David Holmgren nasceu em 1955 em Fremantle, na região metropolitana de Perth, Austrália Ocidental. Filho de militantes ecologistas e que estiveram envolvidos na oposição à participação direta da Austrália na Guerra do Vietnã, Holmgren cresceu habituado ao ativismo e aderiu às causas ecologistas antes mesmo de seu ingresso na Escola de Design Ambiental da Universidade da Tasmânia em Hobart, no ano de 1973.

Com o retorno de Mollison à Hobart, as trajetórias não demoraram em se encontrar. Holmgren obteve a orientação de Mollison em sua pesquisa sobre agricultura sustentável e o mote para a colaboração entre os dois fora a busca por “respostas, tanto éticas e filosóficas, como pragmáticas e técnicas à crise ambiental deflagrada pelo desenvolvimento industrial” (SILVA 2013, p.159-60).

Após a conclusão dos trabalhos acadêmicos, Mollison fez acréscimos ao texto e o trabalho foi publicado, em 1978, como Permaculture One – a Perennial Agriculture for

Human Settlements.

Neste momento, Mollison e Holmgren já dispunham de uma definição concisa para a permacultura:

Permacultura é uma palavra que cunhamos para um sistema evolutivo integrado de espécies vegetais e animais perenes ou auto-perpetuantes úteis. Em essência, é um ecossistema agrícola completo, modelado sobre exemplos existentes, porém mais simples. Idealizamos o sistema como é apresentado aqui, para condições de clima temperado; usando outras espécies e em número diferente, adequar-se-ia a qualquer faixa climática, destinando-se também a se adaptar a situações urbanas. (MOLLISON; HOLMGREN 1978, p.15)

(17)

O lançamento do livro, em 1978, é posterior à difusão da permacultura na Austrália. Desde a publicação do primeiro artigo em coautoria entre os dois pesquisadores, “A Permaculture System for Southern Australian Conditions”, no Tasmania’s Organic

Farmer and Gardener Newsletter, em 1976, os autores já estavam mobilizados para a

difusão do modelo de planejamento recém-criado.

Entre os anos de 1976 e 1977, Bill Mollison dedicou-se a viagens de campo, primeiramente pela Austrália e depois a outros países, em busca de práticas e técnicas tradicionais, referentes a diferentes biomas e que ajudariam a desenvolver seu conceito. Este novo trabalho de pesquisa foi tema de uma entrevista para a rádio nacional australiana8, através da qual Max Lindegger9, ativista ecologista, conheceu a ideia de Mollison e Holmgren. Pouco tempo depois, Lindegger convidaria Mollison para palestrar no Norte da Austrália.

Assim, os autores do conceito de permacultura seguiam ampliando a pequena rede de contatos que estes mobilizavam em volta da ideia. Ao final dos anos 1970 o conceito encontrava o cenário ideal para a difusão. Aquela década fora marcada por um crescimento limitado da economia nos países industrializados devido ao embargo imposto pela Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo (OAPEC) aos Estados Unidos devido ao apoio destes a Israel nas invasões militares nas regiões do Sinai (Egito) e Golã (Palestina).

Valendo-se do fato que países centrais como os próprios EUA e a Alemanha aproximavam-se do “Pico do Petróleo” 10 em seus campos de extração, a OAPEC teve poder de barganha para defender seus interesses frente a Israel. A situação culminou em instabilidades políticas (internas aos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que divergiam sobre a legitimidade dos conflitos no Oriente Médio) e econômicas, causando a falta de abastecimento e aumento dos preços dos combustíveis

8

ABC Radio National ou Australian Broadcast Company.

9

Max Lindegger pode ser considerado o primeiro aprendiz de Mollison e Holmgren. Fazendeiro engajado no movimento ambientalista na Austrália, foi o criador da primeira ecovila que declarou utilizar a permacultura como modelo de design, Crystal Waters, em Conondale, Queensland (AUS). A Ecovila de 650 acres (263 hectares), possui 83 terrenos privados para moradia, com 1 acre cada, e um mercado gerido pela cooperativa dos moradores.

10

O Pico do Petróleo ou Pico de Hubert é o termo pelo qual se refere à teoria de que após alcançar-se o pico de produção, a indústria petrolífera entrará em um declínio terminal (ver: HUBERT 1949).

(18)

com frequência – e com certa novidade – em países como a Austrália. A economia em crise levava ao aumento do desemprego e à perda do poder de compra da população.

Em função desta crise, no ano de 1978, a cidade de Maryborough, no Estado de Queensland (Austrália), encontrava-se com uma alta taxa de desemprego entre jovens. Foi nesta cidade que Bill Mollison havia participado de uma entrevista para a rádio nacional da Austrália. Devido à difusão das ideias, naquela ocasião, e ao problema enfrentado pela administração pública, Mollison e Holmgren foram chamados para conduzir reuniões públicas sobre suas ideias, com o intuito de encontrar alternativas para o desemprego e a degradação ambiental.

Destas reuniões, originaram-se duas cooperativas, uma para a confecção de roupas e outra de trailers para bicicletas, além de um centro de experimentos na dessalinização do solo (causado pelo desmatamento da região). Com os sucessos alcançados nessa fase primária da permacultura, o conceito ganhou forma de “movimento”, angariando adeptos através de cursos onde, primeiramente os autores, depois seus aprendizes formados, lecionavam os princípios éticos e de design da permacultura.

Foi criado assim o Permaculture Design Course (PDC) 11, um curso que aborda de forma holística – com a imersão dos participantes em algum local onde as técnicas serão desenvolvidas, construções e plantações realizadas, e “vivências” em medicina natural conduzidas – todos os tópicos relacionados à permacultura. O primeiro destes cursos foi realizado na cidade natal de Bill Mollison, Stanley, em 1978, com duração de três semanas. A primeira turma foi composta por dezoito convidados.

A difusão do conceito contou também com a publicação de livros e revistas que puderam ser traduzidos para outras línguas, principalmente, depois que Mollison passou a viajar além das fronteiras australianas para lecionar os cursos. Neste período, posterior ao lançamento do segundo livro, Permaculture Two: pratical design for town and country in

permanent agriculture (MOLLISON, 1979), a dupla segue caminhos diferentes. Mollison

faria uma série de viagens para palestrar e lecionar, enquanto Holmgren decide ficar na Austrália para se aprofundar na prática do conceito.

11

Atualmente o PDC possui um currículo comum de 72 horas/aula. Contudo, devido à imersão que normalmente acontece, sobretudo nos cursos lecionados na zona rural ou nos institutos de permacultura, a “vivência” dura cerca de dez a doze dias seguidos.

(19)

Portanto, é a vez de David Holmgren buscar o exílio e ele segue para a propriedade rural de sua mãe, em New South Wales, a 600km de Sydney, no interior da Austrália. Neste primeiro período de isolamento, Holmgren escreve Permaculture in the

Bush, publicado em 1985 e também lança as bases para uma de suas maiores realizações,

Melliodora, uma propriedade de aproximadamente 2 acres para onde se mudou com sua companheira Su Dennet, em 1985. Nesta propriedade, localizada mais ao sul, no bioma continental da Austrália, Holmgren e Dennet desenvolveram a experiência de transição de um regime de produção industrial (o sítio que compraram produzia amoras anteriormente) para uma produção diversificada e intensiva de pequena escala, utilizando o modelo da permacultura.

Bill Mollison seguiu oferecendo cursos em outros países enquanto David Holmgren estabeleceu-se na Austrália. Na década de 1980, Mollison preparou a obra onde se encontra sua formulação melhor acabada sobre o conceito de permacultura:

Permaculture: A Designer’s Manual (MOLLISON 1988). Neste livro, o autor apresenta

extensamente todo o sistema de design da permacultura, desde os princípios éticos – formulados pela primeira vez nesta ocasião – até as diretrizes para as dimensões sociais, legais e econômicas do design permacultural para assentamentos humanos.

No Manual – como é comumente referenciado o livro de 1988 – a primeira formulação do conceito de permacultura, publicada em 1978, ressurge com um escopo ampliado para englobar questões mais amplas sobre o assentamento humano, sem abandonar a preocupação original com a agricultura (FERGUNSON; LOVELL 2014):

Permacultura (agricultura permanente) é o design e a manutenção conscientes de ecossistemas agriculturalmente [agriculturally] produtivos que têm a diversidade, estabilidade e resiliência de ecossistemas naturais. É a integração harmônica entre paisagem e pessoas provendo comida, energia, abrigo e outras necessidades materiais e não-materiais em um modo sustentável [...] [;] é um sistema de montagem [system of assembling] com componentes conceitual, material e estratégico, em um padrão que funciona para beneficiar a vida em todas as formas. (MOLLISON 1988, p. ix)

(20)

Também foi publicada pela primeira vez nessa obra os princípios éticos12 da permacultura, em sua formulação seminal, que ganharia uma versão melhor acabada na publicação seguinte de Mollison, em 1991, transcrita no Quadro 1.

Cabe destacar ainda sobre o Manual a presença das diretivas pragmáticas para o alcance dos objetivos da permacultura. Estes outros princípios, nomeados “princípios de design” foram publicados por Bill Mollison (1988) refletindo sua perspectiva sobre o

12

É interessante notar que os princípios éticos como listados abaixo surgem apenas no terceiro livro publicado por Bill Mollison, Permaculture: A Designer’s Manual, em 1988. As primeiras obras, Permaculture One (1978) e Permaculture Two (1979) não mencionam diretamente estas três diretivas éticas. Ademais, as definições destas três premissas variam, até mesmo entre sua publicação original e a subsequente, Introduction to permaculture (MOLLISON 1994 [1991]).

13

Optei por substituir o termo utilizado na tradução brasileira “estilo de vida correto” por “subsistência correta” devido à maior coerência com o termo original “right livelihood” (MOLLISON 1994b, 3). Livelihood é comumente traduzido por subsistência e sustento, formas menos frequentes são: sustentação, meio de subsistência e modo de vida. A opção por “subsistência correta” acompanha a tradução em língua espanhola, onde o termo se encontra traduzido por “subsistência correta” (MOLLISON 1994c, 3; grifo do autor).

14

Na publicação mais nova destes princípios, por Holmgren (2012), o terceiro princípio ético é nomeado “Fair-Share”; na tradução para o Português, Partilha Justa. Decidi pela manutenção de ambas as formulações para o terceiro princípio para conservar as descrições mais detalhadas da publicação de 1991, “contribuição dos excedentes” e contemplar a formulação de uso corrente, como verifiquei em campo, Partilha Justa.

Cuidado com a Terra: significa o cuidado com todas as coisas vivas ou não: solos, espécies e suas

variedades, atmosfera, florestas, micro-habitats, animais e águas. Isso implica em atividades inofensivas e reabilitadoras, conservação ativa, uso de recursos de forma ética e frugal, e [uma subsistência correta] 13 (trabalhando para criar sistemas úteis e benéficos).

[Cuidado com as pessoas]: Cuidado com a Terra também implica em cuidado com as pessoas, de forma que nossas necessidades básicas de alimentação, abrigo, educação, trabalho satisfatório e contato humano saudável sejam supridas. O cuidado com as pessoas é importante porque, mesmo que as pessoas sejam apenas uma pequena parte da totalidade dos sistemas vivos do mundo, nós causamos um impacto decisivo neste. Se pudermos suprir nossas necessidades básicas, não necessitaremos da indulgência em grande escala de práticas destrutivas da Terra.

[Partilha justa14]: o terceiro componente da ética básica de “Cuidado com a Terra” é a contribuição do excedente de tempo, dinheiro e energia para alcançar os objetivos de cuidado com a Terra e cuidado com as pessoas. Isto significa que, após termos suprido nossos sistemas da melhor forma possível, poderemos expandir nossas influências e energias para auxiliar outros no alcance desses objetivos.

Quadro 1 - Princípios Éticos da Permacultura. Fonte: MOLLISON 1991, p.15

(21)

planejamento energético e estratégico do funcionamento dos sistemas permaculturais. Essa formulação sugere a continuidade entre as “diretivas”, formuladas no exílio com inspiração em Kenneth Watt – citado acima – e novas inspirações, nomeadamente, Louis Charles Birch, geneticista australiano especialista em ecologia populacional15.

A tríade de princípios éticos sobre a qual se edifica a definição do conceito é um ponto de partida para a exploração da perspectiva que a permacultura lança sobre as crises ambientais. São premissas que indicam uma ética do cuidado e contribuem para a reflexão sobre a ética em um mundo naturalcultural (LATOUR 2011), como afirma Maria Puig de la Bellacasa (2010), filósofa que trabalhou a permacultura como objeto de investigação.

Os princípios de design são formulações que estabelecem diretrizes para a prática da permacultura. Neles estão contidas abordagens técnicas e éticas que balizam o planejamento, a manutenção e o funcionamento dos sistemas permaculturais. Seus conteúdos são inspirados em outras formulações – como a dos princípios dos sistemas naturais (Ver Anexo I) – e foram atualizados a partir de reformulações sobre a publicação original de 1988. A cada nova versão, foram adicionados novos itens, ou estes foram reformulados.

De maneira geral, eles buscam sintetizar procedimentos da concepção de estabelecimentos rurais em uma linguagem destinada às pessoas apartadas desta realidade. Eles tentam introduzir as pessoas em uma espécie de treinamento para pensar de modo a sempre conceberem soluções que estejam “à mão”, ou seja, realizáveis sem a necessidade de recorrer a um aparato tecnológico “estranho ao lugar”.

Portanto, eles estão baseados na disposição das estruturas: a localização relativa entre a horta, a cozinha e o galinheiro, para criar um ciclo de alimentação (horta-cozinha, comida; cozinha-horta, compostagem; galinheiro-horta, adubo); o aproveitamento das bordas, a reflexão sobre as “extremidades” ou “interfaces” entre os sistemas que devem ser utilizadas de forma benéfica – a interface entre um lago ou rio e a mata ciliar (o transito de animais domésticos ou selvagens, os microclimas ideais para determinadas plantas). Em linhas gerais, tais princípios tratam da “autorregulação das funções” (MOLLISON 1988, p. 11). Evidentemente, estabelecem o modo de ação humano nestes sistemas e instruem sobre

15

As diretivas com inspiração em Kenneth Watt são mencionadas por Mollison na entrevista publicada pela revista Permacultura Brasil. Porém, não há registro destas nos livros do autor. Os princípios de Birch – juntamente com os comentários de Mollison – que inspirariam os princípios da permacultura estão transcritos no Anexo I.

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como estabelecer “conexões funcionais” que dependam cada vez menos da intervenção humana.

*

Difusão mundial

O período de difusão internacional da permacultura é marcado por certo distanciamento entre Mollison e Holmgren. O primeiro dedica-se mais à consolidação da rede institucional, fundando Institutos de Permacultura e lecionando cursos, enquanto Holmgren permanece na Austrália trabalhando em seu sítio.

Definida conceitualmente e descrita através de uma série de princípios que orientam seu desempenho e replicação a permacultura pôde difundir-se internacionalmente. A partir de então a ideia deles foi testada e praticada em outros contextos, sendo reformulada em função do bioma e dos objetivos de cada experiência. Ainda assim, a perspectiva da permacultura sobre as crises ambientais carregaria algo do ambiente onde o conceito foi criado. Holmgren comentou certa vez que: “[A Tasmânia] é um local onde a modernidade e a natureza colidem, destrutivamente e criativamente” 16.

A Tasmânia é um exemplo dos encontros entre a modernização tardia e as paisagens e ecossistemas exuberantes. Depois da tragédia colonizadora que dizimou a população aborígene, a segunda onda de “modernização destrutiva” daquele local, foi marcada por “batalhas” ecológicas pautadas pela diminuição brusca dos recursos pesqueiros da ilha e também pela inundação das terras à margem do Lago Pedder, na construção das barragens de uma usina hidrelétrica (construída para atrair indústrias beneficiadoras de minério – altamente consumidoras de energia e poluentes).

Certamente a percepção dos habitantes deste local, cuja economia estava baseada na extração – pesca, caça – e na agricultura, fora de grandes impactos no cotidiano. A proposta pragmática da permacultura de intervir no espaço com o propósito de criar condições de sobrevivência, com o menor gasto de energia possível, regenerando o ecossistema e integrando o humano a este, encontrou ressonância neste e em outros lugares,

16

Esta fala atribuída a David Holmgren foi publicada em um dossiê especial do site Pacific Edge que recapitula a história da permacultura em uma série de quatro reportagens nomeada “Permaculture Papers”. O trecho citado está disponível em https://pacific-edge.info/2010/10/the-permaculture-papers-2-the-dawn/

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com problemas semelhantes e mais complexos. Como veremos mais adiante, a difusão da permacultura, sobretudo no Sul Global é contemporânea a períodos de crises ambientais e econômicas.

A difusão mundial da permacultura tem início com a fundação do Permaculture‟s Institute, em 1979, por Bill Mollison. Nesta instituição foram formadas as primeiras gerações de permacultores e hoje contabilizam a diplomação de mais de quarenta mil pessoas, que trabalham no ensino e desenvolvimento da permacultura. Também foi através do Permaculture‟s Institute que iniciativas de apoio financeiro ao acesso a terra ocorreram. Uma delas é o EarthBank Society, que promove “investimentos éticos” e formas de economia e finanças alternativas, na Austrália. Outra iniciativa do instituto é a taxação voluntária dos ganhos com as publicações sobre permacultura para serem revertidos em programas de reflorestamento (SILVA 2013, p. 161).

Os outros institutos foram fundados ao longo da década de 1990 e assim estabeleceu-se uma rede institucional, com uma agenda de encontros regionais e um encontro internacional anual, a International Permaculture Converge (IPC). As IPCs são divididas em dois momentos, as conferências, que são espaços completamente abertos, onde pessoas mais experientes debatem ou fazem falas expositivas aos participantes – membros do público, tomadores de decisão, políticos –, e a convergência, que tem um viés prático de estabelecimento e reforço das redes, com a programação definida por seus participantes, exclusivamente concluintes de PDC (FERREIRA NETO 2017, p. 53).

O movimento realizado por este evento demonstra o alcance das ideias de Mollison e Holmgren ao longo do tempo. Até hoje foram realizadas treze edições do evento, a primeira delas aconteceu na Austrália, em New South Wales, no ano de 1984. A segunda nos EUA, em 1986 e a terceira na Nova Zelândia, em 1988.

Na década de 1990 a IPC saiu pela primeira vez do mundo anglo-saxão e foi sediada no Nepal, em 1991. Em seguida, no ano de 1993, a IPC aconteceu pela primeira vez na Europa tendo os países da Escandinávia como sede. A edição seguinte foi novamente sedeada na Austrália em 1996, depois da qual houve um hiato de nove anos.

A retomada das IPCs aconteceu em 2005, com uma nova edição europeia que ocorreu na Croácia. O primeiro país da América Latina a receber a IPC foi o Brasil em 2007, ano no qual a convergência tornou-se bienal. Após esta primeira edição na América

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Latina, o evento estreou também na África e no Oriente Médio, tendo como países sede o Malawi, em 2009, e a Jordânia, em 2011.

Em 2013, Cuba sediou a IPC em sua segunda edição latino-americana, depois o evento retornou à Europa na edição de 2015, realizada na Inglaterra. A edição mais recente do evento ocorreu na Índia em 2017 e a próxima será realizada na Argentina, em 2019.

Ao passo que a permacultura se institucionalizou, com a criação de encontros nacionais, continentais e grandes convergências mundiais17, o conceito de permacultura já estava definido para a academia e seguia sendo desempenhado. Tratava-se, enfim, de:

[U]m sistema de design para a criação de ambientes humanos sustentáveis. A palavra em si não é somente uma contração das palavras permanente e agricultura, mas também de cultura permanente, pois culturas não podem sobreviver muito sem uma base agrícola sustentável e uma ética do uso da terra. (MOLLISON 1994, p.13)

Desta forma, a palavra “permanente” e a palavra “cultura”, denotando tanto o significado de cultivo agrícola como dos costumes, hábitos e sociabilidades, compuseram o conceito de permacultura. Segundo Mollison (1994), o conceito tem dois níveis, o primeiro cuida da relação com as plantas, animais, edificações e infraestruturas (água, energia, comunicações), e o segundo da manutenção dos relacionamentos entre estes elementos, por meio da distribuição destes em um terreno, levando em consideração microclimas, deslocamento humano para realizar tarefas e posicionamentos benéficos que catalisem ou facilitem interações espontâneas.

Mollison e Holmgren deixaram claro que, apesar do caráter utópico que reveste as iniciativas da permacultura, é um imperativo deste modelo de design a viabilidade econômica, ao lado da ecológica. Portanto, dentre os princípios éticos, está a Partilha Justa, que remete tanto ao comércio ético dos excedentes (visando trocas locais) quanto à busca por uma remuneração adequada que permita que se viva do que se produz.

O objetivo é a criação de sistemas que sejam ecologicamente corretos e economicamente viáveis; que supram suas próprias necessidades, não explorem ou poluam e que, assim, sejam sustentáveis em longo prazo. A permacultura utiliza as qualidades inerentes das plantas e animais, combinadas com as

17

A história da institucionalização da permacultura é suficientemente exposta e debatida na tese e na dissertação, respectivamente, de Luís Fernando de Matheus e Silva (2013) e Djalma Nery Ferreira Neto (2017).

(25)

características naturais dos terrenos e edificações, para produzir um sistema de apoio à vida, para a cidade ou a zona rural, utilizando a menor área praticamente possível. (MOLLISON 1994, p. 13)

A inspiração e os parâmetros para a concepção dos sistemas permaculturais residem “na observação de sistemas naturais, na sabedoria contida em sistemas produtivos tradicionais e no conhecimento moderno científico e tecnológico” (MOLLISON 1994, p. 13). Denota-se assim a grande abrangência do conceito e a possibilidade de replicação e atualização mediante a incorporação dos conhecimentos tradicionais locais, das características dos sistemas naturais onde se pretende intervir e do manejo dos conceitos científicos e da tecnologia a ser mobilizada para tanto.

A circulação desta metaferramenta foi facilitada por uma rede institucional que apoia a publicação de revistas especializadas18 e livros, como os publicados inicialmente por Mollison e Holmgren, mas que agora traziam também relatos e instruções baseados em novas experiências de aprendizes. Mas o principal meio de introdução às ideias da permacultura continuou sendo os cursos e encontros, através dos quais novas pessoas eram iniciadas, e nos quais se firmavam, regionalmente, as redes de colaboração entre as pessoas mais experientes.

Foi apenas nos 1990 que as primeiras experiências, nomeadamente, permaculturais passaram a acontecer na América Latina. A pesquisa de Silva (2013) analisa o processo de introdução das ideias da permacultura nos países latino-americanos em relação aos contraditórios processos desencadeados pela consolidação do neoliberalismo nesta região na mesma época. No entanto o autor não deixa de levantar informações sobre financiamentos “contraditórios”, que desempenham um “ambientalismo neoliberal” a favor de empresas poluidoras e que utilizariam organizações não-governamentais – nomeadamente, a Permacultura América Latina (PAL), sediada nos EUA – para financiar projetos de alguns institutos de permacultura (SILVA 2013, p. 172).

Em sendo assim, tal como verificado anteriormente com as chamadas Ecovilas (e com muitas outras demandas e movimentos surgidos na contracultura dos anos 1960/1970), a permacultura se consolidou mundialmente vendo sua práxis ser constantemente atravessada pelos mecanismos – tanto ideológicos como práticos

18

A Permaculture Magazine é a principal revista especializada, publicada desde 1992. No Brasil, circulou entre 1998 e 2004 a revista Permacultura Brasil, com tiragem limitada a apenas mil exemplares e dezesseis edições a revista contava com o financiamento da ONG estadunidense Permacultura América Latina (PAL).

(26)

– que sustentam o capital, e isso, é claro, engendra uma série de tensões e conflitos, nas mais variadas escalas e situações, que acabam por comprometer o seu potencial emancipatório. (SILVA 2013, p. 173)

Apesar da cooptação do ideário da permacultura no bojo da domesticação do discurso ambientalista pelo establishment, foi também nos países latino-americanos que a permacultura alcançou novas realizações que reforçaram seu caráter “contracultural” e ampliaram seus potenciais emancipatórios. Com isso é salientada uma característica da permacultura que é comum a outros movimentos, com enfoque na sustentabilidade, surgidos também na segunda metade do século XX.

Contudo, dois casos ocorridos no Brasil e em Cuba, dentre outros19, são interessante por se contraporem a este uso dos ideários ecologistas que se tornou conhecido como greenwashing. As experiências ocorridas no semiárido baiano, com o projeto Policultura no Semiárido (PSA), desenvolvido pelo Instituto de Permacultura da Bahia (IPB), entre 1999 e 2011, e em Cuba, através da Fundación Antonio Núñez Jiménez de la Naturaleza y el Hombre (FANJ), a partir de 1993, são casos emblemáticos das possibilidades que a permacultura oferece para a invenção e desempenho de alternativas a situações críticas.

Com o fim da União Soviética em 1992, Cuba enfrentou o desabastecimento de petróleo e outros insumos, dificultando a produção de alimentos e os fluxos entre o campo e a cidade, gerando uma situação de fome nas cidades. A agricultura urbana, orgânica, familiar e permacultural, ajudou na mitigação dos efeitos desta crise.

Em Cuba, o papel da permacultura tem sido o fomento de alternativas à infraestrutura e aos insumos, enfrentando assim o problema do embargo econômico que

19

Outros casos interessantes que estão no mesmo escopo são: a) a experiência na Palestina, em 1993, quando a fundação palestina MA‟AN lançou um programa para pesquisa e capacitação de agricultores; este programa visava diversificar e potencializar o sistema agrícola local – prejudicado em virtude do pacote tecnológico imposto por Israel – além de retomar o manejo tradicional e orgânico das olivas; a permacultura também contribuiu neste caso com a difusão de técnicas de construção (adobe) e captação e armazenamento de água (SILVA 2013, p. 176-177). b) O projeto Chikukwa, desenvolvido no Zimbabwe em vilas rurais; o projeto foi iniciado em 2003 e estava baseado na difusão de técnicas agrícolas além de abordar questões de resoluções de conflitos, educação primária e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, ver:

http://www.thechikukwaproject.com/e https://permaculturenews.org/2013/08/15/the-chikukwa-permaculture-project-zimbabwe-the-full-story/. c) Outro caso relevante ocorrido no Brasil foi o trabalho de capacitação desenvolvido por Jorge Timmermann, através do já extinto Instituto Austro Brasileiro de Permacultura (IPAB), em Santa Catarina, voltado a pequenos produtores e camponeses da Serra Catarinense no início dos anos 2000; por conta deste projeto as práticas agroecológicas da permacultura se tornaram conhecidas naquela região e na grande Florianópolis, tornando Santa Catarina um dos locais mais ativos nas práticas permaculturais até hoje (SILVA 2013, p. 169, n.r. 137).

(27)

restringe o acesso dos agricultores aos produtos industrializados. A permacultura foi importante também para a difusão de técnicas de cultivo em terrenos urbanos, na adaptação de quintais e até varandas para a produção orgânica de alimentos.

Houve intensa colaboração entre uma “brigada” de permacultores saída da Austrália e da Nova Zelândia com a missão de compartilhar com a população seus conhecimentos sobre produção de alimentos em pequenos espaços e, assim, amenizar os efeitos da crise causada pelo embargo ao país. Os resultados desta experiência de colaboração profícua estão documentados em Permacultura Criolla (CUBA 2006) e nos documentários O Poder da Comunidade (2006) 20 e Permacultura para un futuro sustentable

en Cuba (2006)21.

No caso brasileiro, a realização do projeto se deu através do Projeto Policultura no Semi-Árido (PSA) realizado através do Instituto de Permacultura da Bahia (IPB) e idealizado por Marsha Hanzi22, fundadora do instituto. Toda esta experiência foi relatada e analisada em dissertação de mestrado desenvolvida por Cinara Del‟Arco Sanches (2011), engenheira agrônoma que atuou no projeto por dez anos como técnica e coordenadora.

O PSA teve duração de onze anos e atingiu cerca de 750 famílias dos municípios de Umburanas, Ourolândia e Cafarnaum e Morro do Chapéu. A região tradicionalmente produz milho, feijão e mamona, mas durante a década de 1990 sofreu com a queda de produtividade das lavouras, devido ao desgaste do solo e à limitação do plantio convencional no semiárido. Com o projeto, a produtividade da mamona de policultura (plantio em consórcio com as outras culturas) superou o convencional em 60% (SANCHES 2011, p. 72). Sanches, assim como outros pesquisadores que relataram o projeto, atribui o sucesso ao:

[C]onjunto de práticas ambientalmente e economicamente sustentáveis, reunindo o conhecimento empírico dos pequenos produtores e o conhecimento técnico baseado nos princípios da agroecologia (práticas agrícolas baseadas nos sistemas

20

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rr70FVoAXBo. Último acesso: fevereiro 2018.

21

Disponível em: https://vimeo.com/23222299. Último acesso: fevereiro 2018.

22

Marsha Hanzi é uma referência importante para esta pesquisa. Ela foi entrevistada em abril de 2016 (ver: Anexo VI), no Epicentro Dalva. Suas contribuições estão concentradas nas seções 1.3 e 2.2.

(28)

da natureza) e da permacultura (sistema de design e planejamento de assentamentos sustentáveis). (VENTURA; ANDRADE 2011, p. 3)

Estes exemplos demonstram como a permacultura pode contribuir efetivamente com a transição agroecológica, a partir de uma abordagem que não se sobrepõe aos costumes ou métodos tradicionais – tal como o pacote tecnológico das revoluções agrícolas – mas, ao contrário, pode potencializar a capacidade produtiva de sistemas agrários que tenham caído em desuso (como no caso das policulturas do semiárido brasileiro) justamente por conta da introdução de métodos industriais e do abandono das práticas de agricultura locais.

*

Perspectiva da permacultura

A permacultura pode contribuir efetivamente com a transição agroecológica no que tange os desafios de integrar conhecimentos para o planejamento dos estabelecimentos rurais e na construção de alternativas urbanas, como as hortas comunitárias ou soluções domésticas que minimizam a dependência de redes de distribuição de água e energia. É uma proposta que valoriza a experimentação e pesquisa por tecnologias alternativas para a produção e o estabelecimento de estruturas básicas para a manutenção da qualidade de vida, sobretudo, através daquelas que substituam tecnologias intensivas em capital.

Portanto, busco neste trabalho discutir a permacultura a partir do sentido das técnicas por ela desenvolvidas. Esta é uma perspectiva que remete à obra de Gilbert Simondon, que busca compreender a totalidade filosófica do pensamento técnico com outros modos de pensamento, como o da ética. Como podemos ver nos princípios listados aqui e nos discursos e trajetória de vida dos fundadores, o sistema permacultural, em seu funcionamento, não compatibiliza com produções em escala industrial, onde as dimensões éticas das ações estão subsumidas a um ideal de obtenção do lucro. Busco, portanto, descrever como as técnicas são pensadas e organizadas dentro de um ideário técnico e ético.

Abordo esta proposição da permacultura utilizando os termos da filosofia de Simondon, que desenvolveu a tese da individuação dos seres técnicos em Du mode

(29)

do sentido das técnicas é o meio de inserção destas na cultura. O autor chama atenção para a necessidade de reconhecer nos objetos técnicos um estatuto semelhante ao dos objetos estéticos ou religiosos, nos quais é reconhecida a realidade humana contida neles.

A consequência desta posição parcial da cultura sobre a realidade técnica é uma ausência de significação sobre os sentidos dos objetos técnicos que engendra posições extremas, quer seja da supervalorização da utilidade um, “tecnicismo destemperado”, ou a recusa, que enxerga invariavelmente intensões hostis em todo automatismo (SIMONDON 1989, p.10-1).

Para Simondon, a ausência de uma significação cultural adequada da realidade técnica resulta nestas duas atitudes contraditórias, as quais denotam uma condição de “alienação técnica”, ou seja, a incompreensão da relação do humano com os objetos técnicos. Portanto, o autor dedica MEOT ao esforço filosófico de “suscitar a tomada de consciência sobre os sentidos dos objetos técnicos” (SIMONDON 1989, p.9), como forma de superação desta condição alienante.

Ao tratar da individuação dos seres técnicos, através do conceito de “concretização”, Simondon esmiúça a relação do humano com as técnicas, apontando os desdobramentos da condição de alienação técnica, desde o surgimento da máquina termodinâmica como portadora de ferramentas e gestos, tornando-se “um amplificador de movimentos” (SIMONDON 1989, p. 79), até as consequências desta relação parcial para o progresso humano.

Já em escritos posteriores ao MEOT, Simondon aborda a possibilidade do desenvolvimento técnico em uma cultura fragmentada culminar em um “aspecto explosivo” das técnicas, no qual o progresso técnico está destacado dos outros domínios de desenvolvimento humano. O autor utiliza o adjetivo “explosivo” para identificar uma tendência de perda de ressonância do “sistema completo de atividade e de existência constituído pelo o que o humano produz e o que o humano é” (SIMONDON 2014, p.269).

O autor toma como referência o progresso das linguagens e da religião, enquanto fases do conjunto formado pelo humano e as concretizações, para pensar se o progresso técnico poderia também obedecer a esta tendência de saturação seguida por uma perda de ressonância. Assim, Simondon argumenta que a alienação técnica representa este risco por engendrar um progresso, a priori, destacado [éclaté] enquanto, “para que o progresso

(30)

técnico possa ser considerado como progresso humano, é necessário que ele implique na reciprocidade entre o humano e as concretizações objetivas” (SIMONDON 2014, p.277).

A alienação técnica, ou seja, o descompasso entre os diferentes domínios do desenvolvimento técnico – e também deste com outros domínios do desenvolvimento humano – é a condição que configura a possibilidade de um “aspecto explosivo” das técnicas. A questão da degradação social e ambiental das regiões subdesenvolvidas onde a França realizava a prospecção de petróleo e gás são os exemplos dado pelo autor para este aspecto do progresso técnico.

[Q]uanto mais ele [o progresso técnico] é operado em condição fragmentada, menos ele é um progresso humano: é o caso do progresso técnico alcançado há alguns anos na prospecção de petróleo e campos de gás natural. Na França, o gás de Lacq atravessa regiões subdesenvolvidas, sem nenhum benefício a elas, e vai ser vendido longe, em domínios já industrializados. O gás descoberto pelos petroleiros na região de Hassi-Messaoud [Argélia] queima em tochas no céu enquanto na Argélia os homens se matam e as crianças morrem de fome, próximas de campos devastados e fogueiras apagadas. O progresso técnico seria, muito mais profundamente, progresso humano se fosse um progresso da totalidade das técnicas, inclusive a agricultura, que é, por excelência e em todos os sentidos do termo, a parente pobre. (SIMONDON 2014, p.277)

Na filosofia de Simondon, o sentido das técnicas é o de uma maneira de ser e estar no mundo e, sobretudo, a relação mais primitiva que mantemos com este. A mesma condição de alienação provoca a incompreensão do papel do humano frente aos indivíduos e sistemas técnicos, sejam eles máquinas, maquinários, sistemas de extração e circulação de petróleo ou a própria agricultura. A dedicação ao entendimento dos potenciais dos objetos técnicos em ressonância com o ambiente (humanos inclusos) pode fazer superar um “aspecto explosivo” que Simondon já identificava às vésperas da década 1960.

Por escrever em tal momento histórico, o autor ainda não antecipa o mesmo aspecto explosivo que enxerga na cadeia dos combustíveis para os sistemas agrários. Contudo, atualmente, não podemos mais denominar a agricultura como a “parente pobre” de todas as técnicas. Ao menos para o agronegócio, onde as tecnologias intensivas em capital são alocadas, este progresso fragmentado é uma realidade inquietante. A Revolução Verde (revoluções agrícolas do século XX) demonstraria nas décadas seguintes aos escritos

(31)

de Simondon, que a agroindústria é também capaz de devastar ambientes e provocar fome e contaminações.

Como escapar deste aspecto explosivo do progresso técnico? A compreensão do sentido das técnicas poderia conduzir a um progresso técnico autorregulado, como “uma estrutura em rede, sendo a malha desta rede a realidade humana”, logo, um progresso de conjunto, onde “cada domínio de atividade humana esteja em comunicação representativa e normativa com todos os outros domínios” (SIMONDON 2014, p.277).

Simondon sugere que o progresso das técnicas seja autorregulado, notadamente conduzido por uma tecnologia informada pela ética presente na realidade reticular dos sistemas técnicos. A proposição simondoniana para o desenvolvimento de tal tecnologia coincide com a superação da alienação técnica, ou seja, o desenvolvimento de uma cultura onde se possa coincidir as diferentes fases do progresso humano. Portanto, é preciso conhecer estas realidades e agir eticamente em ressonância com os sistemas.

Se pensarmos a agricultura através da teoria dos sistemas agrários, como em Mazoyer e Roudart (2009) e à luz da noção de “aspecto explosivo dos progressos técnicos” (SIMONDON 2014), podemos identificar este momento crítico como um aspecto explosivo dos sistemas agrários. Um desenvolvimento intensivo em insumos, que deteriora parte fundamental do próprio sistema (o solo), que segue fragmentado, concentrando rendas e terras e não atendendo a demanda direta ou indireta por gêneros alimentícios. É certo que a agroindústria não produz apenas alimentos, contudo, um progresso técnico agroindustrial integral não pode deixar de cumprir este papel fundamental.

A agroecologia representa a via de contestação deste progresso. Suas vertentes representam diversos domínios de atividade da vida humana, desde a alimentação até à religião e a política. A perspectiva totalizante descrita por Simondon nos serve muito bem como conceito para esclarecer o que representam estes movimentos e iniciativas de transição agroecológicas do ponto de vista das técnicas. Ao não dissociar técnicas, religião, ciências e ética, essas manifestações culturais promovem a possibilidade de construção de um novo entendimento da relação entre ambiente e sociedade, entre humano e mundo.

Agindo neste sentido, a permacultura emprega métodos de experimentação e observação baseados na percepção e na intuição, buscando treinar essas capacidades em seus aprendizes e praticantes. Estes modos de conhecer os ambientes nos quais se atua,

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