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A CRISE NA CASA: reflexões sobre o SRT

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Academic year: 2021

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A CRISE NA CASA: reflexões sobre o SRT

1 André Oliveira Rêgo; 2 André Rodrigues de Oliveira; 3 Deise Mara de Paula Prado; 4 Cristiane Silva Lacerda; 5 Karla Fernanda Perdigão.

Esse artigo propõe uma discussão sobre a crise dentro de um Serviço Residencial Terapêutico (SRT), a partir das práticas de Saúde Mental no contexto da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. A residência terapêutica (RT) é um espaço de moradia, que precisa funcionar o mais próximo possível como uma casa. Existem desafios no caráter fundamental desse espaço: deve-se realizar procedimentos clínicos dentro da casa? Como abordar um morador da RT sem que ocorra um ato institucional? Como lidar com uma crise dentro da casa? A crise de uma pessoa em sofrimento mental pode ocorrer por vários motivos e se manifestar de formas singulares. Aqui separa-se crise em duas óticas, a agitação psicomotora e a crise subjetiva e também diferencia-se urgência médica e urgência subjetiva. A aposta é no refinamento e qualidade da equipe que atua no SRT, principalmente numa escuta mais sensível e atenta ao que os moradores da RT vão apresentar. O papel das cuidadoras nesse caso é indispensável, visto que elas permanecem mais tempo em convívio com os moradores. Deve-se valorizar todos os saberes: o supervisor da RT, as cuidadoras, os estagiários e principalmente o saber dos moradores. Através de reuniões de equipe e outros momentos de formação e capacitação, emancipa-se essa equipe. Além disso, é fundamental que a casa emancipa-seja um espaço que a palavra tenha lugar, que a linguagem se manifeste livremente. É por meio da linguagem que o sujeito se organiza. Uma ferramenta de grande valor é o "laço social", que traz a possibilidade de um contorno por meio da linguagem e das relações estabelecidas por esse sujeito que sofre. Utilizou-se um breve relato de caso para ilustrar as possíveis saídas dentro da casa, quando um morador em sofrimento tem espaço para falar e ser escutado, assim como a equipe tem uma orientação e manejo adequado para pensar em estratégias que irão auxiliá-lo a se orientar frente à crise.

SRT, Crise, Laço Social.

1Psicólogo; Pós-graduado em Saúde Mental; Serviço Residencial Terapêutico de Belo Horizonte - MG; Referência Técnica de SRT; andrerego.psi@gmail.com.

2 Psicólogo; Pós-graduado em Saúde Mental; Serviço Residencial Terapêutico de Belo Horizonte - MG; Supervisor de SRT; 3 Psicóloga; Pós-graduado em Saúde Mental; Serviço Residencial Terapêutico de Belo Horizonte - MG; Supervisora de SRT; 4 Psicóloga; Pós-graduada em Saúde Mental; Serviço Residencial Terapêutico de Belo Horizonte - MG; Supervisora de SRT; 5 Psicóloga; Pós-graduada em Saúde Mental; Serviço Residencial Terapêutico de Belo Horizonte - MG; Supervisora de SRT;

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As residências terapêuticas têm o caráter fundamental de moradia, de serem habitadas. Em alguma medida esse modo de habitar a casa produz efeito terapêutico, uma vez que passa a ser um aliado na condução do tratamento dos moradores. Entretanto, a casa não compõe um local destinado ao tratamento. Para essa finalidade existem outros serviços substitutivos da rede de saúde. O tratamento destinado aos moradores deve tecer laço com outros serviços e espaços da cidade. E no caso de uma crise de um morador, o que fazer?

Podemos definir a crise como um sofrimento psíquico e físico intenso, ou seja, o sujeito apresenta um sofrimento grave a ponto de apresentar mudanças significativas em seu comportamento. Pela vertente social a crise pode caracterizar-se como algo que causa estranheza, perigo e em alguma medida uma perturbação social, muitas vezes atrelada à agitação e agressividade. No entanto, nem sempre a crise se apresenta desta maneira.

Dentro da casa a crise se apresenta de diversas maneiras, na medida em que cada

morador em sua singularidade expressa seu sofrimento a seu modo. Daí a importância do

olhar e escuta daqueles que o acompanha. Em vista disso, os profissionais responsáveis pelo cuidado dos moradores encontram um grande desafio no que diz respeito às práticas de cuidado uma vez que necessitam escapar das práticas tutelares e desconstruir preconceitos sociais sem desassistir, já que além das atividades diárias e domésticas, os cuidadores assumem uma função respeitável no processo de desinstitucionalização.

Para além disso, são esses profissionais que estão a maior parte do tempo ao lado desses moradores, adquirindo conhecimentos preciosos sobre cada um, localizando pequenos indícios de que aquele morador sugere ou não algum sofrimento. Desse ponto, enfatizamos a importância de um olhar e uma escuta atenta ao cotidiano desse sujeito.

Diante da dificuldade do manejo da crise na casa e esgotadas todas a intervenções

nesse ambiente, a equipe pode acionar um dispositivo da rede, como a Atenção Básica, o

Centro de Convivência, CERSAM (CAPS), SUP (Serviço de Urgência Psiquiátrica). O encaminhamento à rede, segue certa configuração de subjetividade, perfil ou modo de ser do morador, aliado ao vínculo entre a equipe, ao conhecimento de sua história e o contexto

atual. Assim a equipe ocupa um lugar de “parceira do louco”. Por meio dessa “parceria”,

reconhece qual dispositivo da rede pode beneficiá-lo e qual transporte mais adequado para conduzi-lo. (Taxi, ônibus, caminhada ou Samu)

Em alguns casos a crise pode ser apaziguada por meio de um acolhimento no Centro de Saúde, pois questões clínicas podem ser desencadeadores da desestabilização. Às vezes apenas a oferta de outro espaço pode auxiliar o morador a se organizar

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novamente e apaziguar seu sofrimento. Há casos em que o morador estabiliza após passar um tempo dentro de outro lugar.

No contexto da casa é necessário se construir uma equipe, um trabalho feito por muitos e em continuidade, onde não prevaleça um único saber, mas um compartilhamento dos saberes em benefício do morador. O importante é a contribuição de cada um, promovendo a formação de uma equipe empenhada num trabalho coletivo, com abertura para a circulação da palavra, da construção de espaço para o morador se colocar e ser escutado.

Essa construção visa capacitar, expandir as intervenções e estratégias, qualificar as ações, promover a troca de informações. As Rodas de Conversa, Encontros de Estagiários, Encontros e Curso introdutório para cuidadores e reuniões de equipe são ferramentas promotoras de tal. Assim, se insere uma prática diária do cuidado e a implicação dos sujeitos responsável por esse cuidar.

Ao falarmos de crise somos convocados a buscar nessa palavra seus diferentes sentidos, para posteriormente tratarmos da crise com a qual lidamos nas casas. O Dicionário Escolar de Língua Portuguesa Domingos Paschoal Cegalla (2008) define crise como:

1 alteração ou piora súbita de uma doença: a paciente sofreu uma crise súbita. 2 surto: tinha crises de loucura. Ataque: Madame teve uma crise nervosa. 4 Fase ou situação difícil, perigosa, embaraçosa: a crise econômica era embaraçosa. 5 tensão; conflito: uma possível crise na família. 6 Período de transformação ou conturbação: talvez seja a crise da adolescência. (CEGALLA, 2008, p. 255).

Como podemos observar, a palavra crise é relacionada à loucura, ao adoecimento, mas também à transformação. Essa polissemia causa alguns embaraços, pois há uma tendência a ver na crise a expressão máxima da loucura; ora, estamos advertidos sobre as três diferentes respostas do sujeito à castração, sendo assim, tratamos a loucura, ou a psicose, como um dos modos possíveis de resposta ao dilema da castração, e a crise, como uma tentativa do sujeito de tratar o gozo que lhe invade.

Ao tratar o tema, Barreto (2004) faz uma diferenciação entre a urgência médica e a urgência subjetiva, tema que se relaciona intimamente com a crise. Segundo o autor, “na urgência médica, a demanda se relaciona à necessidade de um homem que sofre por sua ferida. O médico corre até seu paciente e o ideal, quando se considera o tempo, é que não haja intervalo entre chamado e resposta (2004, p. 1)”. Ou seja, quando se trata do

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corpo, há uma necessidade de intervenção para resgatar um estado anterior, uma homeostase que fora interrompida por alguma doença, ou por algum acidente que coloque a vida em risco.

A urgência subjetiva é mais complexa, tendo em vista que não há um fator externo, ou mensurável que causa a desordem, como na urgência médica. Barreto assinala que

na urgência subjetiva, o analista espera que o paciente venha ou seja trazido. Existe o sofrimento de um homem ferido em sua necessidade por sua linguagem, mas a demanda de tratamento nem sempre está presente no início; com frequência, é preciso ser ofertada e construída. Ou seja: passar da urgência segundo o Outro à urgência do sujeito. (BARRETO, 2004, p. 1)

Nas palavras de Barreto vemos o nosso desafio diário das casas diante da crise, é preciso avaliar as possibilidades de oferta de cuidado no momento que o sujeito apresenta-se sofrendo.

Quando se trata de uma agitação psicomotora, temos condutas bem definidas, sabemos quais serviços procurar e o que fazer. Mas quando a crise não é uma agitação, o que fazer? Quem acionar? Para onde levar? É possível contorná-la na casa? E o cuidador está preparado para atuar nesse momento? Essas perguntas surgem frente à crise, mas só podem ser respondidas no caso a caso.

A crise subjetiva que não tem o colorido da hetero e autoagressividade, costuma passar despercebida. No entanto, o sofrimento de quem a vivência não é menor, exigindo a oferta de cuidado urgente, muitas vezes adiado, na medida em que não encontra lugar na urgência, consumida pelos casos graves que chegam a todo momento e na atenção básica por ter uma agenda inchada que dificulta o acolhimento espontâneo.

Uma grande ferramenta que se apresenta no manejo da crise é o “laço social”. A questão do laço social surgiu na segunda clínica de Lacan, destaca Quinet (2006), para complementar a teoria de Freud sobre “O mal-estar na civilização”. Dessa forma, o laço social seria estruturado no conjunto da linguagem e do gozo, por meio dos discursos. Quinet (2006) afirma que “todo laço social é, portanto, um enquadramento da pulsão, resultando em uma perda real de gozo” (p.17), para dizer do mecanismo de organização civilizatório que organizaria a sociedade, esvaziando as tendências pulsionais das pessoas tratarem as outras como objeto puramente de gozo.

O autor descreve o Outro do qual o sujeito da psicose não é separado, como o Outro que não é o do laço social. A proposta é que exista um “outro” (comum) do pacto

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da fala, do contrato social. Como seria possível a entrada de um outro na psicose, se o mesmo foi foracluído?

Importante destacar que o significado de “foracluído” seria aquilo que está excluído do lado de dentro e que retorna do lado de fora através de alucinações e delírios. Esse é o ponto de enlace da psicose com o social, quando o sujeito consegue, por meio de sua manifestação inconsciente, ter acesso ao outro da lei, ao outro simbólico, e assim estabelecer laço. Esse mecanismo é desafiador, e na maioria das vezes, o Outro atravessa o sujeito e dificulta esse encontro, mas ao mesmo tempo tenta buscar o outro do pacto social, na tentativa de criar, por via de regra, uma lei que norteie sua relação com o real.

Dessa forma, a palavra (linguagem) dentro da casa deve ser valorizada, para que uma construção delirante não seja ignorada ou banalizada de forma nociva à construção que aquele morador tenta fazer sob sua realidade. Lacan (1988) afirma que é por meio do testemunho que o psicótico faz do inconsciente, que é possível verificar a própria estrutura da realidade.

Devemos sempre ponderar sobre como balizar/abordar a crise ou mesmo a manifestação inconsciente de um morador dentro da RT. Já que o lugar que falamos é uma casa (moradia), e não a clínica. Existe uma linha tênue entre o convívio cuidadoso dentro de um lar e um dispositivo da rede de Saúde Mental que trará à tona a prática clínica. Em algumas situações a equipe da casa é convocada a esse lugar da clínica “stricto sensu” e temos sempre que lembrar que alí é lugar de habitar, clínica se faz para fora da casa. O que podemos ofertar dentro da casa é o espaço para a palavra do morador valer, onde cabe a loucura.

Destacamos que muitas vezes não é possível resolver na RT. Para ilustrar esse manejo da crise dentro da casa segue um breve relato de caso. No relato, foi alterado o nome e gênero do morador para preservá-lo:

Rosana, 58 anos, tem um histórico de muitos anos de internação com uma hiper medicalização, onde a mesma foi “calada” grande parte de sua vida. No entanto, desde que começou seu tratamento nos serviço substitutivos, onde foi feito a diminuição do excesso de medicação, ela vem aparecendo em suas construções delirantes, incômodos, dores e atos, o que desafia constantemente a rede e a casa, pois diríamos tanto pela complexidade do caso, e também a sofisticação das construções delirantes apresentadas. Entre alguns exemplos, possíveis de serem citados, elegemos um, que por sua sutileza, nos toca em especial.

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Rosana possui um laço forte com a religião católica, onde faz menção diariamente à proteção que tem dos anjos e Nossa Senhora, indo inclusive com bastante assiduidade à missa, o que se faz um recurso de estabilização.

Certa vez, em um momento bastante angustiante para equipe, pois Rosana estava com sintomas muito delirantes de conteúdo persecutório, agressividade, passando ao ato, na quebra de alguns objetos da casa – numa construção delirante de ser perseguida por um bruxo (elemento recorrente em seus delírios).

Entre muitas tentativas de acalmá-la, e já em vias de acionar o SAMU, foi lembrado à mesma, de algumas roupas que havia recebido de doação. Num feliz acaso, entre elas, havia uma espécie de túnica azul – a saber, ela associa a cor azul como a cor dos anjos. Neste momento, ela olha para as roupas, localiza essa túnica, e a veste, dizendo ser um instrumento angelical de proteção, e da qual faria uso “como sua capa contra o bruxo” (sic). Momento em que apazigua, e dilui a crise.

Desta maneira, podemos considerar, que o encontro com a crise na casa, exige muito da equipe das RT’s, mas sobretudo nos aproxima, desse Humano demasiado humano que Nietzsche (2005) tão brilhantemente nos convida a pensar. E nesse encontro de humanos, no espaço que abriga a intimidade, o encontro/a palavra, costura um anteparo, que permite a potência da voz, da dor, da angustia (da equipe e morador), e igualmente da saída.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Barreto, F. P. (2204). A urgência subjetiva na saúde mental. Opção lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, 40, ago. 2004, 47-51. São Paulo

CEGALLA, Domingos Pascoal. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, São Paulo: Compania Editora Nacional, 2008.

LACAN, Jacques; MILLER, Jacques-Alain. O seminário: Livro 3: as psicoses. 2. ed. Rev. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988.

NIETZSCHE, Friedrich W. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. De Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Letras, 2005b.

QUINET, Antonio. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranóia e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

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