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AS ENCRUZILHADAS DO AMOR E DO SEXO NO ENLACE COM O PAI Luciana Francischetti Piza

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Academic year: 2021

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AS ENCRUZILHADAS DO AMOR E DO SEXO NO ENLACE COM O PAI Luciana Francischetti Piza

A prática clínica tem frequentemente colocado o psicanalista diante de situações em que o analisante refere ter sido sexualmente abusado. E não é raro que esses relatos apontem o pai como o autor do abuso. A própria Fundação para a Infância e Adolescência – FIA-RJ, órgão público ligado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Rio de Janeiro, registra, em suas estatísticas de abuso sexual, mais de 90% dos casos praticados pelo pai.

Não obstante, observamos na clínica um dado que pode parecer paradoxal: em que pesem a seriedade e a gravidade do fato, que não é sem conseqüências para a vida psíquica do sujeito, verificamos que há, por parte da criança, um intenso afeto dirigido ao pai. Nos relatos desses sujeitos, é marcante a presença da ambigüidade de sentimentos em relação ao pai abusador. Se, de um lado, reconhecem a responsabilidade desse em relação ao abuso, de outro, são enfáticos ao afirmar seu amor por ele. O que explica esse fato? Qual a articulação que aí se estabelece entre sexo e amor no enlace com o pai?

Com Freud e Lacan, sabemos que as relações que o sujeito estabelece com seus objeto são – todas elas – como que balizadas, mais do que isso, definidas pela texto da fantasia inconsciente. “Elas [as fantasias] possuem realidade psíquica, por oposição a uma realidade material ... no mundo das neuroses a realidade psíquica é a decisiva.

(Freud, 1916-17 [1915-17], p. 336). Para Freud, o que está em jogo, do ponto de vista do inconsciente, é a realidade construída psiquicamente pelo sujeito, que se prende ao desejo inconsciente, e não aos fatos históricos. É ao desejo, portanto, que a fantasia dá suporte.

Segundo Lacan, “a fantasia é a sustentação do desejo, não é o objeto que é a sustentação do desejo. O sujeito se sustenta como desejante em relação a um conjunto significante cada vez bem mais complexo.” (Lacan, 1964, p. 175). Essa afirmação revela ser bastante freudiana, na medida em que foi o pai da psicanálise quem afirmou que o objeto da pulsão é indiferente (Freud, 1915), de modo que não poderia ser ele a sustentar o desejo. Dessa feita, para a análise da questão que levantamos, é preciso investigarmos, não o objeto em questão, mas a fantasia que sustenta o desejo em jogo nessa relação de amor e sexo com o pai.

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A fantasia inconsciente é um conceito psicanalítico que está presente em vários momentos da obra de Freud. Nos primeiros artigos, esse conceito nos é apresentado em articulação com a pulsão sexual e, fundamentalmente, com princípio de prazer. Ao se aproximar – sem ainda formulá-lo – do conceito de pulsão de morte, Freud pôde verificar a fundamental relação que a fantasia guarda com algo que se situa mais além do princípio de prazer e que coloca em jogo, ao mesmo tempo e na mesma cena, satisfação pulsional e desprazer. É, pois, o próprio masoquismo que revela sua presença e relevância no campo da fantasia inconsciente.

Em Bate-se em uma criança (Freud, 1919), texto resultante de um profundo estudo sobre a estrutura da fantasia, encontramos um dado interessante que, não por acaso, nos leva novamente ao pai. Freud verifica que o gozo que a fantasia de espancamento proporciona à criança não é engendrado por uma cena qualquer: ele requer, além do caráter masoquista da cena, que o parceiro do sujeito seja o pai. Freud assevera que é necessariamente o pai – nunca a mãe – que figura no centro dessas cenas fantasmáticas, que têm a particularidade de engendrar excitação e prazer sexual: “A representação-fantasia ‘bate-se em uma criança’ era investida regularmente com elevado prazer e desembocava em um ato de satisfação auto-erótica prazerosa” (Freud, 1919, p. 178).

Segundo Freud, o prazer masturbatório suscitado pela idéia do espancamento de uma criança está no nível do desejo inconsciente, fazendo com que o sujeito se dedique repetidamente à obtenção de prazer sexual pela via da mesma fantasia, rechaçada pela consciência. É algo que se esboça, pois, como uma compulsão à repetição – um dos nomes conferidos por Lacan (1964) ao gozo.

Essa fantasia é originada, segundo as pesquisas de Freud, muito cedo, na tenra infância, e sua confissão só se efetua com muita dificuldade. Quando se trata de o sujeito a formular para o analista, a vergonha e o sentimento de culpa são suscitados com grande intensidade.

No caso de meninas, Freud nos desvenda três fases da fantasia de espancamento. A primeira seria uma fantasia de amor, a segunda, uma fantasia masoquista e a terceira, uma fantasia sádica. A primeira fase – O pai bate na criança (que eu odeio) – corresponde a uma época muito precoce da infância, em que a criança, às voltas com o amor edípico, a rivaliza com qualquer outra criança que se mostre capaz de atrair para si a atenção que o pai dedicar-lhe-ia exclusivamente. Associando o espancamento à destituição do amor e humilhação, essa criança fantasia, em favor de seu narcisismo,

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que seu rival está sendo espancado por seu pai. Essa primeira fase, portanto, põe em cena uma demanda de amor endereçada ao pai. Para Freud, essa fantasia não é erótica, não está a serviço de uma excitação genital que procuraria satisfazer-se no ato masturbatório; é uma fantasia de amor.

Entretanto, o alcance da organização genital que se sucede na vida sexual da criança é fundado nessa mesma escolha prematura de objeto de amor incestuoso. Mas Freud lembra que o destino do amor incestuoso é o recalque, que torna os desejos edípicos inconscientes. Como efeito de recalcamento dos desejos incestuosos e pela sua efetiva presença no inconsciente, nasce o sentimento de culpa, que converte o amor em um castigo na segunda fase da fantasia, sempre inconsciente e representada pela frase

“Sou batido pelo pai”.

A fantasia, desse modo, revela ter-se tornado masoquista. Contudo, essa mudança não pode ser creditada exclusivamente ao sentimento de culpa ou à necessidade de punição: há que se considerar uma cota aí assumida pela moção de

amor (explorar isso!), adverte Freud. Do que se trata? Qual a relação do amor com a fantasia masoquista?

Segundo ele, “a fantasia inconsciente da fase intermediária teve originalmente

significado genital; surgiu por, recalque e regressão, do desejo incestuoso de ser amado pelo pai” (Freud, 1919, p. 192). Assim, ser espancado não representa apenas a

punição pelo desejo vinculado à relação genital proibida, mas o substituto regressivo dessa relação: ser espancado vem no lugar de ser amado no sentido genital e exprime a conjunção entre o erotismo e a consciência de culpa. O que sucede é, pois, um rebaixamento regressivo da organização genital para a anal-sádica, do qual decorre a conversão da frase “‘meu pai me ama’ no sentido genital”, em “sou batido pelo pai”.

Mas, o que Freud estaria precisando ao falar em amor no sentido genital? Nesse mesmo artigo, encontramos, além dessas referências, outras afirmações que endossam essa posição que ele assume e que nos faz questão. Vejamos: ele fala em “amor incestuoso pelo pai, entendido genitalmente” (Ibidem, p. 188), em “Eleição incestuosa de objeto entendida no sentido genital” (Ibidem, p. 191) e, ainda, no caso dos meninos, que “O ‘ser espancado’... é também um ‘ser amado’ no sentido genital” (Ibidem, p. 194).

O que significa “ser amado no sentido genital”? Por que razão ele teria assim se expressado, em lugar de dizer, por exemplo, que ser espancado vem no lugar de ser copulado? Por que razão Freud teria usado a palavra “amor” e não outra, que indicasse tão somente o sentido sexual? Ele parece fazer questão de atrelar à questão da

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genitalidade o amor. Há uma especificidade apontada por ele nessa fantasia, que enlaça sexo e amor na relação com o pai. Qual seria ela? Qual a relação do amor com o sexo na teoria psicanalítica que daria sustentação a esse atrelamento?

Em Psicologia das massas (Freud, 1921), encontramos importantes referências sobre o amor, que podem lançar luz sobre essa questão. Nesse texto, Freud afirma que a visão ampliada que a psicanálise tem do amor não é uma inovação, uma vez que bebe da fonte de Platão:

Por sua origem, sua operação e seu vínculo com a vida sexual, o ‘Eros’ do filósofo Platão se corresponde totalmente com a força amorosa {Liebeskraft}, a libido da psicanálise... Na psicanálise, essas pulsões de amor são

chamadas a potiori, e em virtude de sua origem, pulsões sexuais... A

palavra grega Eros, com a qual se quer mitigar o desdouro, definitivamente não é senão a tradução de nossa palavra alemã Liebe {amor}. (Freud, 1921, p. 87, grifo nosso)

Grife-se o trecho em que Freud assevera que as pulsões de amor são chamadas pulsões sexuais. Freud faz uma equivaler à outra, deixando claro que em Eros está compreendida a tanto a noção de amor como a sexualidade. Ainda nesse texto, Freud define a libido como a energia das pulsões que se referem ao amor: “a energia como magnitude quantitativa... daquelas pulsões que têm a ver com tudo o que pode sintetizar-se como ‘amor’.” (Freud, 1921, p. 86). Mais do que isso, ele afirma que “O núcleo que designamos ‘amor’ forma, desde logo, o que comumente chamamos assim e cantam os poetas, o amor cuja meta é a união sexual.” (Ibidem, p. 86).

Ou seja, na própria definição do amor em Freud está embutida a função sexual, como meta, não sendo, portanto, noções independentes uma da outra. Somem-se a essa contribuição, formulações que Freud desenvolve em O mal-estar na cultura (Freud, 1930), quando distingue o amor plenamente sensual do amor inibido em sua finalidade. Todavia, adverte que esse último era originariamente amor plenamente sensual, e assim permanece no inconsciente. Ou seja, o amor é, em si, originariamente, sensual, isto é, erótico. Todavia, há um dado que dá a essa articulação toda a sua especificidade: o elo que atrela amor e sexo se funda no complexo edípico.

Em os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud afirma que

Durante todo o período de latência a criança aprende a amar outras pessoas que a ajudam em seu desamparo e satisfazem suas necessidades, e o faz segundo o modelo de sua relação de lactente com a ama e dando continuidade a ele. Talvez se queira contestar a identificação do amor sexual com os sentimentos ternos e a estima da criança pelas pessoas que cuidam dela, mas penso que uma investigação psicológica mais rigorosa permitirá estabelecer essa identidade acima de qualquer dúvida.

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Freud afirma que os cuidados da criança pela pessoa que dela cuida – a mãe ou a pessoa que cumpre a função materna – constituem uma fonte incessante de excitação e prazer sexuais oriundos das zonas erógenas, reforçadas pelo fato de que a mãe trata seu filho tal qual um objeto sexual substitutivo e, segundo Freud, absolutamente legítimo. Ele acrescenta: “a pulsão sexual, como bem sabemos, não é despertada apenas pela excitação da zona genital; aquilo a que chamamos ternura um dia exercerá seus efeitos, infalivelmente, também sobre as zonas genitais.” (1905).

O complexo de Édipo é, portanto, a base sobre a qual se funda a coalescência entre amor e sexo ou, como diz Freud, o amor no sentido genital. Sabemos que o complexo de Édipo é sempre dúplice, positivo e negativo: “... o menino não possui somente uma atitude ambivalente em relação ao pai e uma escolha objetal afetuosa pela mãe, mas se comporta também, simultaneamente, como uma menina: mostra a atitude feminina afetuosa em relação ao pai e a correspondente atitude ciumenta e hostil em relação à mãe.” (Freud, 1923, p. 35). Desse modo, sabemos que o pai é, também, alvo das escolhas objetais incestuosas que serão, no futuro, barradas pela Lei do Pai, a lei de interdição do incesto.

Sabemos, ainda, que na tenra infância os diques anímicos como a moral, o asco e a vergonha, que fazem barreira aos excessos sexuais, não foram erigidos. Movida pela disposição perversa polimorfa, característica da sexualidade infantil, a criança de tenra idade se entrega às mais diversas atividades sexuais, com o fim de satisfazer as pulsões parciais, sem levar em conta a proibição contra a busca de satisfação sexual em relações consangüíneas – na medida em que ainda não tiver havido a inscrição da Lei simbólica. Ao contrário, “dirige seus primeiros apetites sexuais e sua curiosidade às pessoas mais próximas e a quem mais ama por outras razões: pais, irmãos...” (Freud, 1916-17[1915-17], p. 191).

Fica claro, portanto, que, ao lado da mãe, o pai é objeto primeiro dos investimentos libidinais do sujeito. Todavia, por força da inscrição da Lei simbólica, de proibição do incesto, esse investimento é recalcado. Vale destacar que o recalque não anula o desejo incestuoso; ele tão somente faz com que esse desejo passe a operar a partir de outro lugar, de outra cena: o inconsciente, cuja realidade, vale lembrar, é sexual, segundo Jacques Lacan (1964).

O texto da fantasia fundamental, que é Sou batido pelo pai¸ diz do desejo

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pai como objeto do seu amor e de seu desejo sexual, visando ao encontro sexual, à cópula. Não seriam esses elementos os mesmos encontrados na cena de abuso sexual, mesmo naquelas em que não é propriamente o pai, o autor, mas um substituto desse?

Segundo Freud, a fantasia de espancamento, originada na tenra infância e retida para fins de satisfação auto-erótica deve ser concebida, é um traço primário de

perversão. Em Bate-se em uma criança (1919), ele atesta que a perversão nasce sobre o

terreno fecundo do complexo edípico e, ao sucumbir ao recalque, permanece como sua seqüela; como herdeira de sua carga libidinal, onerada com a consciência de culpa que a ela se aderiu. Desta feita, ele afirma: “A constituição sexual anormal mostrou definitivamente seu poder forçando o complexo de Édipo a uma determinada direção e compelindo-o a um fenômeno residual inabitual.” (ibidem, p. 189). Seria, portanto, o abuso sexual uma espécie de atuação da cena fantasmática inconsciente, com todo seu teor masoquista?

O que sucede nas transformações que conduzem à terceira fase é que, da primeira fase – O pai está batendo na criança, só ama a mim – o recalcamento do amor incestuoso implicou um desinvestimento da segunda parte – só ama a mim –, fazendo com que a ênfase recaísse para a primeira parte – o pai está batendo na criança.

LACAN: amor – Seminário 11, p. 179

AS TRANSFORMAÇÕES DA PUBERDADE (IMAGO)

Durante todo o período de latência a criança aprende a amar outras pessoas que a ajudam em seu desamparo e satisfazem suas necessidades, e o faz segundo o modelo de sua relação de lactente com a ama e dando continuidade a ele. Talvez se queira contestar

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a identificação do amor sexual com os sentimentos ternos e a estima da criança pelas pessoas que cuidam dela, mas penso que uma investigação psicológica mais rigorosa permitirá estabelecer essa identidade acima de qualquer dúvida. O trato da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte incessante de excitação e satisfação sexuais vindas das zonas erógenas, ainda mais que essa pessoa — usualmente, a mãe — contempla a criança com os sentimentos derivados de sua própria vida sexual: ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o substituto de um objeto sexual plenamente legítimo. A mãe provavelmente se horrorizaria se lhe fosse esclarecido que, com todas as suas expressões de ternura, ela está despertando a pulsão sexual de seu filho e preparando a intensidade posterior desta. Ela considera seu procedimento como um amor “puro”, assexual, já que evita cuidadosamente levar aos genitais da criança mais excitações do que as inevitáveis no cuidado com o corpo. Mas a pulsão sexual, como bem sabemos, não é despertada apenas pela excitação da zona genital; aquilo a que chamamos ternura um dia exercerá seus efeitos, infalivelmente, também sobre as zonas genitais.

Referências

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