Comentário da Lição da Escola Sabatina – 4º trimestre de 2016 Tema geral: O livro de Jó
Lição 8: 12 a 19 de novembro Sangue inocente
Autor: Jônatas de Mattos Leal
Editor: André Oliveira Santos: andre.oliveira@cpb.com.br Revisora: Josiéli Nóbrega
Introdução
Alguns meses atrás, a imagem de Omran Daqneesh impactou o
mundo. Ele foi fotografado sentado numa ambulância em Alepo, Síria,
todo empoeirado e com o rosto ferido em resultado de mais um capítulo
da horrenda e interminável guerra civil da Síria. Nesse ataque aéreo
houve mais três mortos e doze feridos.
Infelizmente, Omran, de apenas cinco anos, não está sozinho
nessa guerra.
Segundo o Unicef, cerca de 100 mil crianças vivem em
áreas sob controle rebelde em Alepo.
Em relatório publicado em março
de 2016, o UNICEF, braço da ONU para a infância, estima que cerca de
3,7 milhões de crianças – uma em cada três no país – não conhecem
outra realidade além do conflito que já dura cinco anos.
¹
Diante desse terrível quadro é inevitável perguntar: O que aquelas
crianças, como Omran, fizeram para merecer tal sorte? Muitas delas
nem sequer sabem discernir o bem do mal. Esse questionamento nos
leva ao epicentro do problema do sofrimento humano e a um dos temas
centrais dos diálogos entre Jó e seus amigos: “Por que, Senhor”?
Culpados e inocentes
A Bíblia não deixa dúvidas sobre a universalidade do pecado (Rm
3:10-12). Nós já nascemos pecadores (Sl 51:5) e, por isso, ninguém
pode ser considerado inocente no sentido estrito da palavra. No mundo
religioso há uma longa controvérsia sobre a extensão da depravação
humana e a natureza do pecado original. A expressão “pecado original”
foi cunhada por Agostinho (354-430 d.C.)
²
. De acordo com ele o
humanidade, e (b) à escravidão ao pecado transmitida às gerações por
uma distorção da vontade (isto é, concupiscência).
³
Para Calvino, “o
pecado possuiu todos os poderes da alma, desde que Adão se afastou
da fonte da justiça”. Essa corrupção é tão profunda que a humanidade
não é capaz de escolher o bem e, por isso, precisa que Deus faça essa
escolha por ela ao predestiná-la para a salvação ou perdição. Lutero
adotou uma posição menos radical ao diferenciar “a natureza corrupta
do homem do pecado original”.
4Por sua vez, o catolicismo afirma que
“todos os homens estão implicados no pecado de Adão”. Não é de
estranhar que tais tradições religiosas pratiquem o batismo infantil. Por
meio dele, a vida da graça de Cristo é comunicada, o pecado original é
apagado e o homem se volta novamente para Deus.
5A teologia adventista, fortemente comprometida com as
Escrituras, tem sua posição mais próxima do arminianismo.
6Essa
escola de pensamento admite que o pecado consiste em atos distintos
da vontade e a culpa do primeiro pecado de Adão não é transmitida a
seus descendentes, apenas sua poluição (ou inclinação para o mal).
Além disso, afirma que a humanidade caída é depravada, mas não
totalmente.
7Nesse sentido, concordamos com o judaísmo, que não tem um
conceito de pecado original. Em vez disso, fala-se da “inclinação má”
(hebraico
yē
ṣ
ʿ
er hāra
) do coração, com base em Gênesis 6:5; 8:21 (cf.
Dt 31:21),
embora discordemos da declaração de que tal inclinação
possa ser vencida pela guarda vigilante da lei, como o judaísmo
defende.
8Reconhecemos que a inclinação para o pecado não é pecado,
mas nos leva inevitavelmente para ele. Além de atos pecaminosos que
praticamos, vivemos em estado pecaminoso que só pode ser revertido
pela obra do Espírito Santo em nossa vida. Pecamos porque somos
naturalmente pecadores. Somente o novo nascimento, com base na
vitória de Cristo, pode nos livrar do domínio da nossa condição
pecaminosa.
Nesse sentido, Jó não era diferente de mim nem de você. Não era
inocente no sentido exato do termo. Contudo, devemos reconhecer que
sua prova não tinha conexão com suas escolhas. Ao contrário, ele sofria
exatamente devido à sua fidelidade. Por isso, ele não estava
equivocado quando reivindicou sua inocência. E, quem sabe, é nesse
ponto que o sofrimento mais nos inquieta.
Quando as explicações não podem explicar
O problema do mal nos incomoda mais quando as explicações
não podem explicar o sofrimento. Você já ouviu alguém dizer que,
diante do mal e do sofrimento não é conveniente perguntar a Deus: Por
quê? O livro de Jó parece apoiar essa ideia, visto que, ao fazer essa
pergunta, ele não recebeu resposta nenhuma (Jó 3:11). Muitas vezes
não entendemos o “porquê” do sofrimento. Talvez, não recebemos a
resposta porque ela não seria compreendida ou simplesmente porque
ela não exista. Isso nos leva a uma segunda possibilidade.
Se perguntar “por que” não parece ser uma solução adequada,
alguns diriam que perguntar “para quê” seria mais proveitoso. É verdade
que muitas vezes Deus concede bênçãos por meio do sofrimento. Paulo
nos lembra de que
nossa leve e momentânea tribulação produz para
nós eterno peso de glória, acima de toda comparação
(2Co 4:17). Em
Hebreus, lemos sobre os bons frutos do sofrimento: “
toda disciplina,
com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de
tristeza; [...] depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido
por ela exercitados, fruto de justiça”
(Hb 12:11). Por isso, a Bíblia não
hesita em nos desafiar a nos alegrarmos em meio à provação (Tg 1:2;
cf. At 5:41; 1Pe 4:16).
Como vemos, é inegável que as provações são instrumentos
divinos para burilar e aperfeiçoar seus filhos. Deus não cria o
sofrimento, mas Se aproveita dele para amadurecer a nossa fé. Por
isso, Pedro declarou aos seus contemporâneos:
Amados, não
estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a
provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse
acontecendo
(1Pe 4:12).
Assim, em muitos casos, a pergunta “para quê” pode achar uma
resposta satisfatória. Mas, ela ainda é insuficiente. Nesta semana, o
próprio autor da lição nos lembra de outros casos em que o mal não tem
propósito nenhum. No diálogo com Satanás, o próprio Deus afirma que
as provações de Jó eram “sem causa” (Jó 2:3). Mais tarde, o próprio Jó
afirmou que suas chagas eram “sem causa” (Jó 9:17). Que benefício
espiritual as provas de Jó produziram para ele, desde que ele já era
temente a Deus, homem íntegro e se desviava do mal?
Sendo assim, às vezes, a pergunta “para quê” também não parece
adequada diante do sofrimento. A experiência de Jó é um alerta sobre o
perigo de buscarmos respostas para o problema do mal. Então, qual
seria a melhor atitude diante do sofrimento? A única pergunta adequada
a fazer diante dele é: Até quando, Senhor? Essa é a pergunta mais
frequente nos Salmos de súplica (Sl 6:3; 74:10; 79:5; 80:4; 89:46; 90:13;
94:3). Um exemplo está no Salmo 13, quando Davi repetiu quatro
vezes: “
Até quando,
S
ENHOR? Esquecer-Te-ás de mim para sempre? Até
quando ocultarás de mim o rosto?
Até quando estarei eu relutando
dentro de minha alma, com tristeza no coração cada dia? Até quando se
erguerá contra mim o meu inimigo?”
(Sl 13:1, 2). Essa pergunta reflete
não apenas um intenso desejo de libertação da prova ou sofrimento,
mas uma fé inabalável no controle total de Deus. Além disso, ela
expressa a confiança em que Deus impõe limite para o mal, ao passo
que reafirma a esperança de que, no fim, Ele Se levantará em nosso
auxílio.
Considerações finais
Podemos não ter todas as respostas. Mas temos todas as
certezas necessárias para confiar no Deus Todo-Poderoso, que é
amoroso e sábio. Podemos descansar confiantes nAquele “que
é
poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou
pensamos, conforme o Seu poder que opera em nós”
(Ef 3:20).
Conheça o autor dos comentários deste trimestre:
Jônatas de Mattos Leal é
natural de Pelotas, RS. Graduou-se em Teologia pelo Seminário Adventista
Latino-Americano de Teologia (IAENE), em 2008. Concluiu o mestrado em
Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco em 2011, e
mestrado em Teologia pelo Seminário Adventista Latino-Americano de
Candeias, na Associação Bahia. Atualmente, é professor de teologia bíblica
(Antigo Testamento) e coordenador de pós-graduação no Seminário
Adventista Latino-Americano de Teologia (IAENE). É casado com Taiana
Pickersgill Leal e pai de Pietro Pickersgill Leal.
¹ Para ter acesso à reportagem completa, leia “O 'horror de Aleppo' em imagem de menino que
sobreviveu a ataque aéreo na Síria”, em http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37116942
² Joseph F. O. S. A. Wimmer. “Original Sin”, ed. David Noel Freedman, Allen C. Myers, and Astrid
B. Beck, Eerdmans Dictionary of the Bible
(Grand Rapids, MI: W. B. Eerdmans, 2000), 993.
³ Andrew Hay. “Original Sin”, ed. John D. Barry et al. The Lexham Bible Dictionary
(Bellingham,
WA: Lexham Press, 2016).
4 Alan Cairns. Dictionary of Theological Terms.
(Belfast; Greenville, SC: Ambassador Emerald
International, 2002), p. 317.
5 Alan Cairns. Dictionary of Theological Terms.
(Belfast; Greenville, SC: Ambassador Emerald
International, 2002), p. 319.
6 O termo “arminianismo” vem do nome de Jacobus Arminius (1560-1609), o qual estabeleceu uma
escola de pensamento teológico sobre a salvação que afirmava o livre-arbítrio humano, negando a predestinação como ensinada por muitos reformadores. Para saber mais, ver: F. L. Cross and
Elizabeth A. Livingstone, eds. The Oxford Dictionary of the Christian Church
(Oxford; New York:
Oxford University Press, 2005), p. 108.
7 Alan Cairns. Dictionary of Theological Terms
(Belfast; Greenville, SC: Ambassador Emerald
International, 2002), p. 319.
8 Joseph F. O. S. A. Wimmer. “Original Sin,” ed. David Noel Freedman, Allen C. Myers, and Astrid
B. Beck, Eerdmans Dictionary of the Bible