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Proslógio (Portuguese Edition) - Santo Anselmo de Cantuária

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Academic year: 2021

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Santo Anselmo de Cantuária

Proslógio

Edição bilíngüe

Tradução:

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Proslógio, Santo Anselmo de Cantuária

© Editora Concreta, 2016 Títulos originais:

Proslogion

Quid ad haec respondeat quidam pro insipiente Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli

O texto latino utilizado nesta obra é o da S. Anselmi Cantuariensis Archiepiscopi Opera Omnia, edição crítica de Franciscus Salesius Schmitt, O.S.B., 3 vol., Edimburgo, Thomas Nelson & Sons, 1947.

Os direitos desta edição pertencem à EDIT ORA CONCRETA

Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – Telefone: (51) 9916-1877 – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br

EDIT OR:

Renan Martins dos Santos COORDENADOR EDIT ORIAL:

Sidney Silveira TRADUÇÃO:

Sérgio de Carvalho Pachá REVISÃO:

Emílio Costaguá CAPA & DIAGRAMAÇÃO:

Hugo de Santa Cruz DESENVOLVIMENT O DE EBOOK:

Loope – design e publicações digitais www.loope.com.br

FICHA CATALOGRÁFICA

Anselmo de Cantuária, Santo, 1033-1109

A618p Proslógio [livro eletrônico] / tradução de Sérgio de Carvalho Pachá, edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2016.

124p. :p&b ; 16 x 23cm ISBN 978-85-68962-13-8

1. Teologia. 2. Filosofia. 3. Filosofia medieval. 4. Metafisica. 5. Cristianismo. 6. Catolicismo. 7. Espiritualidade. I. Título.

CDD-230.2 Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer

reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

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F

COLEÇÃO ESCOLÁSTICA

oram características marcantes do período escolástico a elevação da dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos, a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela razão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da materia

prima a Deus.

O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício fenomenológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno: o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes.

Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgenstein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.

Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renascentista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas, mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto.

Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas pouco

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difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciativas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens, para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados.

No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na longínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma espécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigurado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada terra dos relativismos.

Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grosseteste, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica.

Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procuraremos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será o de não lhes desfigurar o pensamento.

Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro.

SIDNEY SILVEIRA Coordenador da Coleção Escolástica

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A

GRADECIMENTOS AOS COLABORADORES

Através de campanha no website da Concreta para financiar a tradução do Proslógio, 432 pessoas fizeram sua parte para que este livro se tornasse realidade, um gesto pelo qual lhes seremos eternamente gratos. A seguir, listamos aquelas que colaboraram para ter seus nomes divulgados nesta seção:

Adailso Janesko

Adeilton Dutra Gomes Alan de Oliveira

Alex Quintas de Souza Alexandre Leme

Alexandre Mariano dos Santos Rocha Allan Victor de Almeida Marandola Aluísio Dantas

Álvaro Pestana

Alysson Souza Moura

Amanda Jheniffi Cavalcante Soares Amantino de Moura

Ana Nely Castello Branco Sanches Anderson Mello de Carvalho André Arthur Costa

André Augusto Custódio André Bender Granemann

André Caniné de Oliveira Machado André Quinto

Andrea Rocha Antônio Araújo

Antonio Carlos Correia de Araújo Jr. Antonio Paulo de Moraes Leme Arthur Dutra

Aruan Baccaro de Freitas Assunção Medeiros

Augusto Alves de Carvalho Augusto Carlos Pola Jr.

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Aulenio Júnior

Aureliano Caldeira Horta França Benedito Luiz Pinheiro Moretto Bernardo Jordão Nogueira de Sá Bruno José Queiroz Ceretta Bruno Vallini

Carla de Carli Carlos A. Crusius

Carlos Alexander de Souza Castro Carlos Eduardo de Aquino de Pádua Carlos Eduardo de Aquino Silva Carlos Jesus de Abreu Pereira Filho Cláudia Makia

Claudia Pompein Lizardo Gomes Cleber Eduardo da Paixão

Cleto Marinho de Carvalho Filho Clovis Amaral

Cristiano Eulino Cristiano Mora

Cristiano Nunes Laureano Cristiano Roberto Azevedo Cristina Garabini

Cristoph Klug Daniel Oliveira Davi Albuquerque David Damasceno

David de Carvalho Nisner Delania Gomes Vieira Diego Gonçalves de Araújo Diego Jácome

Diego Luvizon

Dorival Vendramini Jr. Edgar de Almeida Cabral Edilson Lins

Edinho Lima Edson Bezerra Eduardo Aguiar Eduardo César Silva Eduardo Furtado da Silva Eduardo Gomes

Edvaldo Ramos

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Elisabete Miranda Elizabeth Ferreira Dias Elpídio Fonseca

Ely Pinto Ely Silveira

Emanuel do Rosário Santos Nonato Eric Cari Primon

Érico Raoni Santos da Silva Estêvão Lúcio Sobrinho Ettore Nicolau Jose da Rocha Evandro José Ferrez Vicente Evandro Maraschin

Everton S. da Silva Fabio Aguilheiro Fabio Dias Fábio Kurokawa

Fábio Salgado de Carvalho Fabricio Freitas Alves Felipe Aguiar

Felipe Corte Lima Felipe Koller Felipe Leandro Félix Ferrà

Fernando Antonio Sabino Cordeiro Fernando Cenjor Rodrigues

Fernando de Oliveira

Fernando Henrique Pereira Menezes Fernando Longuini Alves

Fernando Luiz Ferreira de Almeida Fernando Schuind da Costa Guedes Flavio Aprigliano Filho

Fortunato Baia

Francisco Heládio Cunha dos Santos Francisco Igor de Souza e Silva Gabriel Henrique Knüpfer Gabriel Melati

Gabriel Pereira Bueno Gabriel Zavitoski Gabriela Marotta Genésio Saraiva Gilberto Luna

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Giuliano Araújo Lucas de Carvalho Giuseppe Mallmann

Gleydson dos Santos Teixeira Avelino Guilherme Batista Afonso Ferreira Guilherme Bomm

Guilherme Mezzaroba Guilherme Pinheiro Guedes Gustavo Bertoche

Gustavo de Araújo

Gustavo Mendonça Rezende Gustavo Saraiva Frio

Gustavo Vulpi

Haberlandt Pereira Duarte Heitor Dias Antunes Pereira Hélio Angotti-Neto

Hellyandro de Sousa Ferraz Henrique Miotto

Hermano Zanotta Hugo Kalil

Humberto Campolina Igor Silveira Santos Ivanor Bochi

Jackes Douglas Pessoa Lourenço Janaina Maria Fabricio

Jean Carlos Diniz Lopes Jefferson Bombachim Ribeiro Jefferson dos Santos Alves Jefferson Nascimento Jessé de Almeida Primo Joacir Souza Viana João Marcelo Crubellate João Marques da Silva Jr. João Romeiro

João Valdoir da Silva Santos

Jonathan de Alcântara F. Nascimento Jonathan Pinheiro

José Alexandre

José Armando Vinagre Delarovere Jose Barboza

José Bernardino Figueredo

José Mauricio de Oliveira Lima Neto José Ribeiro Jr.

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Juliana Oliveira Julius Lima

Junior Torres Bertao Kilmer Damasceno Leandro Passos

Leandro Viotto Casare Leonardo Choi

Leonardo Ferreira Boaski Leonardo Henrique Silva

Lucas Amaral M. Gambetti de Castro Lucas Bozzi Martins

Lucas Mazzardo Veloso Lucas Monachesi Rodrigues Lucia Cagido

Lucio Novais Luís Felipe Cruz Luis Morais

Luiz Alcides Nascimento André Luiz André Barra Couri

Luiz de Carvalho Luiz Matos Lutio Henrique Lysandro Sandoval Marcelo Assiz Ricci Marcelo da Costa Sperka Marcelo Lira dos Santos Marciano Tadeu Souza Marcio Lopes

Marcius Vinicius Júlio Marcos Biancardi Marcos Precioso Marcos Rangel

Maria Aparecida dos Anjos Carvalho Maria Auxiliadora da Cunha Meireles Maria Beatrix Azevedo

Maria Rita de Aguiar Marinaldo Cavalari Mário Lucas Carbonera Marlon Rodrigo Oliveira Mateus Colombo

Mateus Cruz

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Matheus Ramos de Avila Mauricio Cardoso

Mauro S. Ribeiro

Maximiliano Losso Bunn

Mylene Carolina Moraes Pessoa Nicolas Barbieri Beoni

Nikollas Ramos

Nilton José dos Santos Jr. Oacy Junior

Odilon Silveira Santos Rocha Odinei Draeger

Orlando Tosetto

Paulo de Tarso Gonçalves Leopoldo Paulo de Tarso Irizaga

Paulo Henrique Brasil Ribeiro Paulo Lasaro de Carvalho Filho Pedro Benedetti

Rafael Bassoli

Rafael de Abreu Ferreira Rafael Manieri

Rafael Plácido

Raoni de Andrade Miaja Gomes Renan Coutinho

Renato de Carvalho Munhoz Renato Elesbão

Renato Lembe

Ricardo Antônio Mohallem Ricardo da Costa

Ricardo Luis Kummer Ricardo Rangel

Rinaldo Oliveira Araújo de Faria Rodolfo Bertoli

Rodrigo de Abreu Rodrigo de Menezes Rodrigo Franca Rogerio Penha

Romildo Mousinho Ferreira Ronaldo Fernandes da Silva Ronaldo Teixeira

Rosemberg Estevam

Samuel da Silva Marcondes Sérgio Eduardo

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Sérgio Fernando Hennies Leite Sérgio Meneghelli

Silvia Emilia de Jesus B. da Cunha Silvio Camargo

Silvio José de Oliveira Tarcisio Moura

Thiago Amorim Carvalho

Thiago Aurélio de Freitas Brandão Thiago Batista

Thiago Blaka Tiago Aurich

Tiago Borem Sfredo Tiago Campos Rizzotto Tiago Toledo

Tomoyuki Honda Vicente Tolezano Victor Hugo Barboza Vinicius Betini

Vinícius Leonardi Vinicius P. Botelho Vitor Fonseca de Melo Vitor Hugo Pontes Butrago Wellington Lima

Wellington Vieira Rios Wendel Cesar Giglio Ordine William Saraiva Borges Willians Alves Freitas Wilson Junior

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Sumário

Capa

Folha de Rosto Créditos

Coleção Escolástica

Agradecimentos aos colaboradores Apresentação

I. Esforço para harmonizar razão e fé

II. Preâmbulos históricos: o Século de Ferro

III. Feição teológica: um esboço da Escolástica posterior IV. O ser acima do qual nada pode pensar-se

V. Adversários e seguidores

VI. Uma edição para os dias de hoje Parte I - Proslógio

Prólogo

Capítulo 1 - Exortação à contemplação de Deus Capítulo 2 - Que Deus existe verdadeiramente

Capítulo 3 - Que não se pode pensar que Deus não existe

Capítulo 4 - Como o insensato disse em seu coração o que não se pode pensar Capítulo 5 - Que Deus é tudo aquilo que é melhor que exista do que não exista; e que, sendo o único que existe por si mesmo, fez tudo do nada

Capítulo 6 - Como Deus é sensível, embora não seja corpo

Capítulo 7 - Como Deus é onipotente, embora muitas coisas lhe sejam impossíveis Capítulo 8 - Como é misericordioso e impassível

Capítulo 9 - Como, sendo total e soberanamente justo, perdoa os maus e com justiça deles se comisera

Capítulo 10 - Como sem ferir a justiça castiga e perdoa os maus

Capítulo 11 - Como “todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade” e, contudo, “justo é o Senhor em todos os seus caminhos”

Capítulo 12 - Que Deus é a própria vida pela qual vive e que outro tanto se pode dizer de seus demais atributos

Capítulo 13 - Como somente Ele é sem limites e eterno, ainda que os outros espíritos também sejam sem limites e eternos

Capítulo 14 - Como e por que Deus é e não é visto por aqueles que o buscam Capítulo 15 - Que é maior do que quanto possa ser pensado

Capítulo 16 - Que esta é “a luz inacessível que habita”

Capítulo 17 - Que em Deus se encontra a harmonia, o odor, o sabor, a brandura, a beleza, de uma maneira inefável que lhe é própria

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Capítulo 18 - Que não há partes em Deus nem em sua eternidade, que é ele próprio Capítulo 19 - Que Deus não está num lugar nem no tempo, mas tudo está nele Capítulo 20 - Que Deus existe antes e depois de tudo e até mesmo do que é eterno Capítulo 21 - Se isto é “o século do século” ou “os séculos dos séculos”

Capítulo 22 - Que somente Deus é o que é e Aquele que é

Capítulo 23 - Que este bem é, ao mesmo tempo, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e é o único necessário, por ser todo e exclusivamente bem

Capítulo 24 - Conjectura sobre a natureza e a grandeza deste bem

Capítulo 25 - Quais e quão grandes são os bens reservados aos que gozam a visão de Deus

Capítulo 26 - Será esta alegria a “alegria plena” que promete o Senhor? Proslogion

Prooemium

I - Excitatio mentis ad contemplandum Deum II - Quod vere sit Deus

III - Quod non possit cogitari non esse

IV - Quomodo insipiens dixit in corde, quod cogitari non potest

V - Quod Deus sit quidquid melius est esse quam non esse: et solus existens per se omnia alia faciat de nihilo

VI - Quomodo sit sensibilis, cum non sit corpus VII - Quomodo sit omnipotens, cum multa non possit VIII - Quomodo sit misericors et impassibilis

IX - Quomodo totus iustus es et summe iustus parcat malis, et quod iuste misereatur malis

X - Quomodo iuste puniat et iuste parcat malis

XI - Quomodo universae viae Domini misericordia et veritas, et tamen iustus Dominus in omnibus viis suis

XII - Quod Deus sit ipsa vita qua vivit, et sic de similibus

XIII - Quomodo solus sit incircumscriptus et aeternus, cum alii spiritus sint incircumscripti et aeterni

XIV - Quomodo et cur videtur et non videtur Deus a quaerentibus eum XV - Quod maior sit quam cogitari possit

XVI - Quod haec sit lux inaccessibilis, quam inhabitat

XVII - Quod in Deo sit harmonia, odor, sapor, lenitas, pulchritudo suo ineffabili modo

XVIII - Quod in Deo nec in aeternitate eius, quae ipse est, nullae sint partes XIX - Quod non sit in loco aut in tempore, sed omnia sint in illo

XX - Quod sit ante et ultra omnia etiam aeterna

XXI - An hoc sit saeculum saeculi sive saecula saeculorum XXII - Quod solus sis quod est et qui est

XXIII - Quod hoc bonum sit pariter Pater et Filius et Spiritus Sanctus: et hoc sit unum necessarium, quod est omne et totum et solum bonum

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XXIV - Coniectatio, quale et quantum sit hoc bonum XXV - Quae et quanta bona sit fruentibus eo

XXVI - An hoc sit gaudium plenum quod promittit Dominus Parte II - Livro escrito a favor de um insensato

Quid ad haec respondeat quidam pro insipiente

Parte III - Apologia de Santo Anselmo contra Gaunilo Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli

Bibliografia citada

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Os capítulos da Parte I e os parágrafos

numerados das partes II e III estão

linkados para facilitar a consulta dos textos

nos dois idiomas. Basta clicar em

"Capítulo" ou na numeração de parágrafo

(arábica e romana) para ser direcionado

ao conteúdo em latim e vice-versa.

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A

PRESENTAÇÃO

Santo Anselmo: o inteligível

como busca incessante

(19)

O

• • • • • • • • • • • • •

I. ESFORÇO PARA HARMONIZAR RAZÃO E FÉ

Renascimento Carolíngio foi, sem dúvida, uma das matrizes do que viria a ser o pensamento escolástico; mais especificamente, do procedimento dialético tão caro à Escolástica, cuja noção de filosofia muito deve a Rábano Mauro (784-856), formado nas Artes Liberais por Alcuíno (730-804), autor este considerado por notáveis historiadores como a alma do movimento cultural carolíngio.[ i ] Não muito original como filósofo, Mauro foi eminente classificador do pensamento de admiráveis predecessores seus, como o próprio Alcuíno, Cassiodoro (490-581) e Santo Agostinho (354-430). No livro

De universo, ele propõe – com o rigor que será tão apreciado pelos medievais – uma

divisão para a filosofia e para as ciências com o manifesto propósito de formar monges e sacerdotes cujo ofício será, sobretudo, o da pregação missionária.

Na filosofia, o esquema desenhado por Rábano Mauro continha dois gêneros e quatro espécies. No gênero a que deu nome de Actualis estavam a física, a ética e a lógica.

A física (causa quaerendi) subdividia-se em: Aritmética (numerorum scientia);

Astronomia (lex astrorum);

Astrologia (astrorum ratio et natura et potestas, caelique conversatio); Mecânica (peritia fabricae artis in metallis, lignis et lapidus);

Medicina (scientia curationum);

Geometria (mensura locorum et magnitudinis corporum); e

Música (divisio sonorum et vocum varietas, et modulatio canendi).

Por sua vez, a ética (ordo vivendi) dividia-se, bem ao modo aristotélico, no estudo das virtudes cardeais:

Prudência; Justiça; Fortaleza; e Temperança.

Por fim, a lógica (ratio inteligendi) era composta de duas disciplinas: Dialética (disputatio acuta, verum distinguens a falso); e

Retórica (disciplina ad persuadendum quaeque idonea).[ ii ]

No gênero ao qual chamou de Inspectiva: contemplativa, aeterna, reinava a teologia.[ iii ]

Esta alusão a Rábano Mauro é a propósito do método de filosofar imperante no decurso de todo o período escolástico – no qual, historicamente, se insere Santo Anselmo (1033-1109)[ iv ] –, época em que o esforço classificatório dava por pressuposta uma hierarquizada ordenação dos saberes, cujo amplíssimo escopo de investigações ia da matéria primeira a Deus. Em tal horizonte, sempre havia espaço para o mistério, tanto no tocante à ordem criada, ou seja, ao conjunto de entes do universo, como no tocante ao

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Criador, ser infinito inabarcável por qualquer inteligência finita. O famoso princípio fides

quaerens intellectum, motor do múnus teológico de Anselmo, tem como pano de fundo

uma divisão das ciências e da filosofia de estrutura similar à descrita por Rábano Mauro, a qual não era outra coisa senão um espelho epistemológico da estrutura ontológica da realidade.

Vinha de longe, do tempo de Clemente de Alexandria (150-215) e de Tertuliano (160-220), a desconfiança dos cristãos para com o labor filosófico, sobretudo quando este se apresentava como saber autônomo com relação aos textos da Escritura.[ v ] A Sacra

Pagina tornou-se a fons sapientiae quase à parte de todos os outros conhecimentos, e o

seu sentido difícil de penetrar era o dístico da insuficiência da razão humana e, também, do caráter inane da soberba, vislumbrada como maligno nascedouro do pecado original que instaurara uma desordem entre os afetos e a inteligência. Neste contexto, convém sublinhar: ainda na época de Santo Anselmo, considerava-se grande atrevimento indagar acerca das verdades da fé a partir de critérios subministrados pela razão natural.

Em síntese, certo agostinismo deturpado criara um hiato entre as verdades da fé e as descobertas da razão, o que só viria a ser superado de maneira cabal por Santo Tomás de Aquino (1225-1274). Neste ponto, vale advertir que, no século XIII, muito depois do tempo em que viveu Anselmo, ainda havia quem se sentisse incomodado com a filosofia grega. Um bom exemplo disto é São Boaventura (1221-1274), que mantinha uma postura de suspeita com relação a Aristóteles e a outros filósofos de cuja “audácia ímproba”, segundo o seu parecer, advinham diversos erros.[ vi ] Reflexos desta aversão de importantes teólogos ao Estagirita se fariam sentir na condenação de 1277 a várias teses averroístas e tomistas.[ vii ]

Em três escritos, Anselmo de Cantuária rompe com este preconceito mais ou menos implícito na obra de diferentes autores cristãos dos séculos XII e XIII: Monologium,

Proslogion e Cur Deus homo. Neles, o Doctor Magnificus se vale da mais fina dialética

para divisar o “raio de trevas luminosas”, expressão com que o Pseudo-Dionísio Areopagita, séculos antes, definira a Deus.[ viii ] Ocorre que, no contexto anselmiano, a fé se orienta ao saber numa espécie de complementaridade metafísica: “Não busco entender para crer, mas creio para entender”.[ ix ] Este princípio – credo ut intelligam – pode ser considerado como o primeiro grande tópico representativo da harmonização teológica entre fé e razão, depois de muitos séculos. Mas não se tratava, diga-se, de sondar a inescrutável realidade de Deus valendo-se do débil intelecto humano, e sim de usar este último como ponto de apoio para crescer numa compreensão do cosmos a um só tempo racional e mística. Não erraria, pois, quem enxergasse uma conexão entre o Pseudo-Dionísio e o Arcebispo de Cantuária, entre o místico que silencia perante o mistério e o teólogo que parte do mistério para melhor compreender a realidade.

Cumpre dizer que, no atribulado século de Anselmo, a maior parte dos escritos filosóficos clássicos à mão dos intelectuais latinos se resumia à velha lógica aristotélica salpicada por atilados comentários de Porfírio (234-305) e de Boécio (480-525), ao passo que a autoridade teológica inquestionável era a de Santo Agostinho, cujo estudo estava eivado de desvios teoréticos perpetrados por seus seguidores – neoplatônicos ou

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não –, como, por exemplo, o que ficou conhecido pela posteridade como agostinismo

político.[ x ] Num ambiente como este, harmonizar razão e fé parecia um desafio quase

insuperável; diante dele, contudo, o Santo de Aosta, autor do instigante escrito teológico

De casu diaboli, não se amedrontou.

A resolução do magno problema das relações entre fé e razão, como não poderia deixar de ser, tinha de passar por aquilo que hoje chamaríamos de teoria do conhecimento, no ponto atinente à origem das idéias, o qual ainda hoje suscita acaloradas discussões entre filósofos de correntes as mais conflitantes entre si: intuicionismo, empirismo, intelectualismo, inatismo, criticismo, abstracionismo e muitas outras, acompanhadas de suas respectivas subespécies. No caso de Anselmo, equivoca-se quem imagina que ele tenha descambado nalgum tipo de inatismo de fundo platônico, segundo o qual os conhecimentos já estão em nossa inteligência à espera de que a consciência os reconheça ao lembrar-se deles, ou num transcendentalismo gnosiológico, como o da teoria agostiniana da iluminação, de acordo com a qual os conceitos afloram na mente do homem por influxo direto de Deus.

Jamais o Arcebispo de Cantuária chegou a propor semelhantes coisas, pois nunca duvidou de que a alma humana fosse dotada de luz própria suficiente para alcançar as verdades por meio de raciocínios. Diz ele no Monologium: “Pensar uma coisa que recordamos é expressá-la mentalmente, e essa expressão da coisa é o próprio pensamento, formado na semelhança dela com a ajuda da memória”.[ xi ] Como se vê, embora atue como auxiliar da inteligência, a memória tem aqui papel bem mais modesto do que para os teóricos inatistas. Ora, não tendo lido as finas considerações de Aristóteles a respeito da memória e da reminiscência, Anselmo porém aprendera com Agostinho que o amor é o grande motor da memória – acólita da inteligência tanto na compreensão do mundo exterior, como na contemplação da interioridade da alma humana.

Conforme salienta o padre Julián Alameda (O.S.B.), o Arcebispo de Cantuária foi tido por homens do seu tempo como um guia em questões filosóficas; e, para os que imediatamente se lhe seguiram, ele pode considerar-se o orientador no tocante a problemas teológicos espinhosos, justamente por conta do rico nexo que estabeleceu entre ciência e fé. Em Anselmo, a fé não é empecilho para o conhecimento científico; ao contrário, ajuda o homem a projetar a inteligência às mais audazes investigações científicas.[ xii ] Não por outro motivo, diz o filósofo italiano Battista Mondin que, com o nosso autor, a fides encontra na ratio especulativa uma serva fiel e permite ser entrevista sob novas luzes, a partir das quais as verdades da fé passam a não mais ser lidas e comentadas somente nos textos da Sagrada Escritura, mas começam a ser estudadas em si mesmas.[ xiii ] A teologia dava, pois, um enorme salto com Santo Anselmo, distinguindo-se da filosofia sem, no entanto, deixar de se valer dela.

Como se pode constatar, muito longe de afogar a tendência natural da inteligência humana de assimilar imaterialmente as formas dos entes, muito longe de impedir o vôo dela na inquirição das verdades, como frisa Zeferino González numa página antológica,

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Anselmo conduz a indagação filosófica às regiões mais elevadas da ciência do seu tempo, entregando-se concomitantemente a sublimes especulações teológicas.[ xiv ]

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II. PREÂMBULOS HISTÓRICOS: O SÉCULO DE FERRO

As seguidas vicissitudes por que o mundo ocidental passou depois do período carolíngio ficaram conhecidas como Século de Ferro – longa era de declínio civilizacional que abrange mais de cento e cinqüenta anos: de 882, quando foi assassinado o Papa João VIII, até 1046, durante o pontificado de Clemente II. Esta etapa, cognominada saeculum

ferreum obscurum, não é outra coisa senão a barbárie disseminada a partir da Cidade

Eterna: Roma. Tempo de crimes, torpezas, traições, esterilidade cultural, misérias, emasculação moral, horrores de todos os tipos.[ xv ] Lembra-nos a propósito Ricardo Villoslada que o cronista Barônio chama-o saeculum ferreum por sua aspereza espiritual;

plumbeum pela deformidade dos seus males; e obscurum pela inépcia dos seus escritores.

[ xvi ]

O renascimento filosófico carolíngio havia sido interrompido em todos os âmbitos. Mesmo nos mosteiros, até então centros difusores da alta cultura, estudavam-se gramática, dialética e resquícios do Trivium, ficando o Quadrivium completamente esquecido, de acordo com Fraile.[ xvii ] Numerosas abadias foram destruídas com as invasões de normandos, húngaros e sarracenos, o que fez muitas escolas sapienciais simplesmente desaparecerem.[ xviii ] Perfazem estes longos anos o cenário terrífico da cristandade que precedeu o surgimento de Santo Anselmo, e não nos parece ocioso dizer que a latitude histórica desta desgraça enaltece ainda mais a figura do Arcebispo de Cantuária. Este, sem deixar de ser homem do seu tempo, soube elevar-se às questões universalíssimas sem as quais a história se torna mera cronologia desprovida de bússola hermenêutica.

Vale ressaltar que os períodos decadentes são comumente pródigos em reações civilizacionais, e com o Século de Ferro não seria diferente. É nele que começa a regeneração espiritual a partir da fundação do mosteiro de Cluny, entre 909 e 910, numa terra cedida pelo duque Guilherme I de Aquitânia, o Piedoso (875-918). Para aquele lugar ermo, o abade Bernon (850-927) levou doze monges com o intuito de observar, com todo o rigor, a Regra de São Bento a partir duma vida de clausura e de contemplação litúrgica das verdades mais elevadas.[ xix ] Com austeridade e cheios de temor reverencial a Deus, aqueles homens reeducaram o Ocidente com a sua schola, termo que, no Prólogo da Regra de São Bento, tem o sentido de “unidade perfeita destinada a cumprir certos trabalhos sob as ordens de um superior”.[ xx ]

Cluny foi uma escola de virtudes de caráter eminentemente ascético, em que se ensinavam não apenas assuntos intelectuais, mas acima de tudo o Dominicum servitium, o serviço do Senhor no qual ação e contemplação estavam imbricadas. A longevidade e a santidade dos primeiros abades de Cluny contribuíram para a fundação de uma série de mosteiros pela Europa, todos de grande importância para o reflorescimento que a cristandade teria, a partir do final do Século de Ferro.[ xxi ] Sem estas admiráveis ilhas de reação civilizacional, figuras como Santo Anselmo dificilmente despontariam no horizonte da filosofia cristã.

Como era de esperar, o depauperamento político e moral foi acompanhado, durante o Século de Ferro, de um declínio intelectual claramente identificável na história da

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filosofia e da teologia. Observa-se então uma entressafra de grandes autores, que dura até começar a dar frutos a reforma proposta pelos imperadores otomanos, tanto na vida civil como na religiosa.[ xxii ] Estava-se em pleno século XI, quando a luta entre os poderes material e espiritual emerge de maneira encarniçada na disputa acerca das investiduras, em que Anselmo – primaz da Inglaterra entre 1093 até 1109, ano de sua morte – esteve envolvido. Neste ínterim, outro acontecimento decisivo teve grande influência para o futuro da teologia e, portanto, do próprio Arcebispo de Cantuária: o Grande Cisma do Oriente,[ xxiii ] que gerou a Igreja Ortodoxa e obrigou os ocidentais a aprofundar uma série de questões cristológicas para defender o papado.

Vale registrar que, em 1054, quando o Patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário (1000-1059), foi excomungado, Anselmo ainda não iniciara o seu noviciado na Abadia de Bec, onde se submeteu à Regra de São Bento, mas é impossível imaginar que, ao lançar-se à vida religiosa, ele desconheceslançar-se o problema que acarretara o Grande Cisma do Oriente. Anos depois, o opúsculo de Santo Anselmo intitulado De processione Spiritu

Sancti – escrito a pedido do Papa Pascoal II – demonstrou com razões suficientes que o Filioque deita raízes na Tradição apostólica; portanto, os ortodoxos estavam

completamente equivocados em sua querela.

Era, pois, errada a decisão de se tornarem espiritualmente bastardos, colocando-se à margem da autoridade petrina.

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III. FEIÇÃO TEOLÓGICA: UM ESBOÇO DA ESCOLÁSTICA POSTERIOR

Não se pode negar que a teologia de Santo Anselmo bebe de fontes agostinianas. Ressonâncias de várias idéias do Bispo de Hipona são bastante claras nos embates que o

Doctor Magnificus travou pelos direitos da Igreja contra o poder civil, na Inglaterra de

então. Em grande parte do epistolário dirigido aos poderosos daquela conturbada época, o santo teólogo jamais deixa de lembrar-lhes a dignidade do seu cargo como Arcebispo de Cantuária. Em suma, eles até podiam ser senhores do tempo, do dinheiro e das terras, mas ele, Anselmo, fazia-lhes ver que nenhuma glória, nenhuma riqueza, nenhuma potestade humana superava a de representar a Igreja constituída pelo próprio Deus em Pessoa. Como se pode deduzir, os conflitos diplomáticos e políticos de Anselmo com príncipes e reis não foram poucos, conforme ele próprio menciona numa epístola célebre: “Todas as forças da Inglaterra (...) trabalham para alijar-me, para distanciar-me da obediência devida à Santa Sé. (...) Sou [porém] cristão, sou monge, sou bispo, e por isso me cabe guardar a fé e não lhe acrescentar nem lhe quitar nada”,[ xxiv ] escreve a certa altura dos acontecimentos.

Muita tinta já foi lançada sobre o papel no tocante à questão das investiduras, e não é nosso propósito esmiuçar o tema nesta nota introdutória à presente edição do

Proslogion. Antes nos importa apresentar Santo Anselmo como o autor que assimilou a

tradição teológica católica para – entrevendo nela horizontes ainda não de todo explorados – ser-lhe absolutamente fiel. A lacuna por ele divisada já estava bem assinalada no Monologium, escrito quando ainda era abade de Bec. Tratava-se de investigar a existência e a essência de Deus valendo-se, para tanto, de métodos filosóficos apresentados pelo viés duma robusta dialética. A conclusão desta obra filosófico-teológica é de que existe apenas um Ente supremo, o qual não pode ter recebido o ser de nenhum outro; a Ele chamamos “Deus”. Estava, pois, aberto o caminho para o Proslogion.

Com o Monologium, reentrava magistralmente a filosofia no terreno teológico. Um trecho desta obra de juventude de Anselmo demonstra-o de maneira cristalina: “Quando se diz de um homem que é corpo, que é racional, que é, em suma, humano, não se consideram estas diversas atribuições da mesma maneira nem do mesmo ponto de vista, pois o que é corporal por uma de suas propriedades é racional por outra, e cada uma delas, em separado, não constitui este conjunto a que chamamos homem”.[ xxv ] A partir da consideração do caráter ontologicamente composto dos entes, nos quais as distintas formalidades não se identificam em sentido absoluto com a essência, o Arcebispo de Cantuária nos leva à compreensão da necessidade racional de aceitarmos a existência de uma natureza simplicíssima, sem composição de nenhuma espécie, que, diferentemente de todas as demais, atua consoante todo o seu ser, e não a partir de qualquer parte sua. Neste ponto do Monologium, abre-se uma vereda metafísica para a posterior distinção entre essência e ser nos entes, feita com extraordinário rigor por Santo Tomás de Aquino. O teólogo Anselmo não se detém diante de problemas em relação aos quais grandes filósofos evitaram dar pareceres categóricos, como no caso da diferenciação entre tempo e eternidade. A omnipresença divina é apresentada por ele como abarcadora de todos os

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tempos históricos, mas não como realidade imanente ao devir, conforme sucede com o ser em Heidegger (1889-1976), e sim como algo que transcende à caducidade inerente às coisas temporais. Se o ser de Deus não estivesse absolutamente em tudo, haveria um lugar e um tempo em que não haveria nada – e um tempo e um lugar desprovidos de ser não são outra coisa senão absurdidade inconcebível para a filosofia. “Haveria, pois, um lugar e um tempo onde e durante o qual não haveria nada [ubi et quando nihil omino

est]; como isto é falso (...), a natureza suprema não pode estar circunscrita a um lugar e

a um tempo”.[ xxvi ] Em Anselmo, a eternidade é a realidade sem a qual o tempo é pura e simples aporia metafísica; nele, o ser está para além do tempo, que é tão-somente uma de suas epifanias. Com séculos de antecedência, o nosso autor antecipava-se ao beco sem saída heideggeriano de circunscrever o ser ao tempo, numa indisfarçada

glorificação da finitude, como acertadamente escrevera o tomista Octavio Derisi

(1907-2002) a respeito de Heidegger e, também, do seu epígono Sartre (1905-1980).[ xxvii ] Por estes exemplos colhidos de sua primeira grande obra filosófica, antevia-se que o Arcebispo de Cantuária escreveria uma obra magna, e esta não foi outra senão o

Proslogion, cuja importância pode ser medida pelos incontáveis filósofos que a

comentaram ao longo de séculos sem fim. Graças a ela, o autor do interessante diálogo

De Grammatico é considerado por muitos como o predecessor dos grandes autores

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IV. O SER ACIMA DO QUAL NADA PODE PENSAR-SE

São Boaventura, Santo Tomás, Duns Scot (1266-1308), Descartes (1596-1650), Malebranche (1638-1715), Leibniz (1646-1716), Baumgarten (1714-1762), Kant (1724-1804), Hegel (1770-1831), Schelling (1775-1854), Xavier Zubiri (1898-1983) e Cornelio Fabro (1911-1995) estão entre os nomes importantes da história da filosofia que depararam com o chamado argumento ontológico de Santo Anselmo, seja para acolhê-lo, seja para criticá-lo em parte, seja para rejeitá-lo por completo como prova da existência de Deus. Trata-se, sem a menor sombra de dúvida, de um dos tratados filosóficos mais importantes jamais escritos, e ao leitor não familiarizado com o raciocínio que tornou célebre o Proslogion pode impressionar o fato de ele ser tão simples.

Podemos resumi-lo brevemente, com nossas próprias palavras: quando o homem pensa em Deus, pensa-o como o ser acima do qual nada pode ser pensado, ou seja: pensa n’Ele como o ser perfeitíssimo. Ora, se este sumo cogitável não existisse na realidade, mas apenas em nosso pensamento, faltar-lhe-ia uma nota distintiva, sem a qual ele não seria aquele acima do qual nada pode ser pensado: a existência. Logo, é necessário que Deus exista como conceito em nossa inteligência e também como ser na realidade.

Esta é uma exposição sumariíssima do argumento, mas extraiamos dela algumas considerações preliminares. Em primeiro lugar, salta aos olhos que o ser perfeitíssimo não pode ser pensado como não-existente, porque, neste caso, não seria o ser perfeitíssimo. No dia em que concedermos que algo inexistente possa ser perfeito, ou, mais ainda, que possa ser perfeitíssimo, estaremos ao lado dos irracionalistas de todos os tempos e de todos os matizes. Em resumo, se perfeito é aquilo a que não falta nada para ser o que é, evidentemente a inexistência não pode predicar-se da perfeição. Séculos depois, dirá Kant, numa das mais ferrenhas críticas ao argumento, que a existência não pode ser predicado de nenhum ente. Mas não nos antecipemos aos fatos.

O argumento anselmiano pressupõe que Deus é o ser perfeitíssimo; que a existência é uma perfeição; e que todos – inclusive o ateu, ou seja, o insipiens – O concebem como o ser maior que possa pensar-se. Id quo maius cogitari non potest. Se esmiuçarmos o raciocínio do Arcebispo de Cantuária, observaremos o seguinte: a última premissa aludida acima induz a conclusão. Sim, porque se Deus é o ser maior que qualquer intelecto pode conceber, se ele é o Ente perfeitíssimo que todos, sem exceção, admitem, é preciso postular a sua existência real. Se, por outro lado, se concedesse que Deus existe apenas no pensamento, como conceito, porém inexiste na realidade, Ele não seria o maior, pois isto implicaria contradição com o conceito que, na opinião de Anselmo, todos têm de Deus.

Pois muito bem, aceitemos com Cornelio Fabro, à guisa de procedimento dialético, Deus como o maior que se possa pensar. A partir daí, indaguemos: se é assim, devemos necessariamente concluir por sua existência real?[ xxviii ] Diz o grande tomista italiano que o argumento anselmiano é sinuoso na distinção entre esse in intellectu e intelligere

rem esse, ou seja, entre o âmbito nocional e o âmbito real. Ora, que Deus seja o ser por

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Aquinate é dar um salto do plano do pensamento para o da realidade. Noutras palavras, ele aceita a prótase (Deus é o sumo cogitável) e nega a apódose ([logo] Ele existe no pensamento e na realidade).[ xxix ] Demos um passo além para ressaltar o seguinte: é possível conceber Deus como o maior ser pensável, embora não aceitando que todos, sem exceção, O concebam assim, como faz Anselmo, e também aceitar que Deus não pode existir apenas em nossa mente – negando, porém, a conexão lógica entre estas duas proposições.

Outra pressuposição do argumento ontológico, também argutamente assinalada por Fabro, é a de que no conceito de Deus está incluído o de ser; no conceito de criatura, inclui-se apenas o de essência. Em síntese, sem o ser não haveria essências, razão pela qual estas são partícipes de algo que as transcende na realidade. Santo Anselmo distingue, antecipando-se a muitos dos seus críticos – a começar por Gaunilo, o primeiro deles – a ordem lógica do pensamento da ordem metafísica da realidade, ao afirmar que o quadro concebido por um pintor só pode considerar-se real depois de haver sido feito. Mas esta distinção, de acordo com o Arcebispo de Cantuária, não pode aplicar-se a Deus, entre outras coisas porque n’Ele ser e pensamento co-incidem, além do fato de que se Deus, o ser perfeitíssimo, existisse só no nosso pensamento, mas não na realidade, não seria Ele o sumo cogitável.

Tenhamos bem claro em nosso horizonte que concomitância cronológica não é paralelismo ontológico. Duas coisas podem ser concomitantes e uma delas ser inferior à outra. Por exemplo: no homem, o pensamento se vale dos sentidos e, muitas vezes, opera simultaneamente com eles na apreciação da realidade, mas está num plano ontológico muito superior, pois abstrai os conceitos da matéria num grau absolutamente inacessível para qualquer sentido. No caso de Deus – cuja perduração no ser se dá numa instância que transcende e abarca o tempo –, seria impossível a qualquer pensamento não ser co-incidente com Ele. Deus, ser eterno, está para os entes assim como o ato está para a potência e a substância para os acidentes. Não se pode pensar nenhuma coisa para além de Deus, nem o nada absoluto, impossível por definição.[ xxx ]

Acima afirmáramos, com Battista Mondin, que Santo Anselmo abriu novas perspectivas no tocante ao tema das relações entre fé e razão, mas agora ressaltemos que ele próprio, embora tenha deixado o problema consignado, não o resolveu. Há laivos de racionalismo em sua teologia, assim como certa confusão conceptual na pressuposição de que, relativamente à fé, as provas aduzidas pela Sagrada Escritura são débeis, sendo, pois, necessário lograr demonstrações racionais concludentes.[ xxxi ] Tal intento não se limita, na obra do Arcebispo de Cantuária, ao mistério da Santíssima Trindade, mas se estende a tudo que o fiel crê de Cristo (omnia quae de Christo credimus) sem apelar à autoridade da Sagrada Escritura (sine Scripturae auctoritate).[ xxxii ] Neste ponto, damos razão a Gallus Maria Manser, um dos expoentes do neotomismo no século XX, para quem Anselmo pode perfeitamente enumerar-se entre os autores que deram resolução insatisfatória a esta questão.[ xxxiii ]

Este problema está decerto implicado no argumento ontológico, quando, no capítulo IV do Proslogion, Anselmo declara que as suas considerações partem da fé e não saem do

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seu domínio.[ xxxiv ] No entanto, é evidente que a maior parte do livro aborda a questão da existência de Deus a partir de uma visada essencialmente filosófica, e não teológica. O pano de fundo – metafísico, sem dúvida – é a distinção entre Criador e criatura, sendo esta última, em virtude de sua indigência ontológica, passível de ser concebida como inexistente. O fundamento veríssimo da realidade é ser (esse), e nisto radica a similaridade entre Deus e tudo o que não é Ele, considerando-se porém o seguinte: “Se uma inteligência pudesse conceber algo que fosse melhor do que tu, a criatura se elevaria acima do Criador e viria a ser juiz do Criador, o que é inteiramente absurdo. E, na verdade, o que quer que exista fora de ti, pode ser pensado como não-existente”.[ xxxv ]

A súmula do raciocínio anselmiano está na premissa de que, se Deus está em nossa inteligência como o ser perfeitíssimo, deve admitir-se necessariamente como existente na realidade. Caso contrário, ele seria reduzido ao estado “imperfeito” dos entes que só existem no plano do pensamento. Como se pode constatar, o autor do Proslogion identifica o ser in mente com o ser in re, e a atratividade do seu argumento reside sobretudo no fato de dar vazão à perene aspiração humana pelos valores supremos.

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V. ADVERSÁRIOS E SEGUIDORES

A primeira grande objeção ao Proslogion recebeu-a Santo Anselmo pouco depois de ver a sua grande obra publicada. É exatamente a que trazemos nesta edição: o Livro

escrito a favor de um insensato,[ xxxvi ] da lavra do monge beneditino Gaunilo (século

XI).[ xxxvii ] Nestas páginas de polêmica, faz-se referência a uma mítica Ilha Perdida onde as delícias e riquezas são incalculáveis. “Se alguém me disser estas coisas [ou seja: se afirmar a existência da Ilha Perdida e dos bens nela existentes], compreenderei facilmente suas palavras, nas quais nada há de difícil compreensão. Mas, se depois, como quem tira uma conseqüência, dissesse: ‘Daqui para a frente não poderás duvidar da existência dessa ilha, visto que tens uma idéia clara da mesma em teu espírito e porque existir na realidade é mais do que existir somente na inteligência’ (...); eu suporia que meu interlocutor estava gracejando”.[ xxxviii ]

Na prática, ao tentar reduzir ao absurdo o argumento ontológico, Gaunilo substitui o ser perfeitíssimo de Anselmo pela Ilha Perdida, e conclui – a partir da consignação de que

cogitari não é o mesmo que intelligi – que o Arcebispo de Cantuária dera um salto da

imaginação para a realidade, pois ser pensado não significa a mesma coisa que ser entendido como ente real.[ xxxix ] Com efeito, alguém pode pensar a existência de uma coisa sem, contudo, entender que, pelo simples fato de pensá-la, ela exista necessariamente na realidade. Escreve Gaunilo, com certo sarcasmo: “(...) e não basta dizer que [algo] já existe de antemão em meu espírito no instante mesmo em que compreendo as palavras pelas quais se expressa, porque, conforme já foi dito, meu espírito poderia conter, igualmente, muitas coisas duvidosas e até mesmo falsas, afirmadas por alguém (...)”.[ xl ]

A resposta de Anselmo, também integrante da presente edição,[ xli ] aponta para uma falha capital na crítica de Gaunilo: a objeção do monge beneditino se aplica a todo e qualquer ente, mas não ao ser perfeitíssimo. Sem dúvida, qualquer coisa contingente pode ser pensada como não-existente, mas não Deus, se for concebido como ens

perfectissimum. Portanto, a objeção de Gaunilo, embora intuísse o famoso salto do

plano lógico para o ontológico, não consegue vislumbrar que a falha não está nas premissas, consideradas autonomamente, mas sim no raciocínio que não as consegue concatenar da maneira devida. Santo Anselmo então fulmina: “(...) ainda que nenhuma das coisas que existem possa ser concebida como não-existente, todas, sem embargo, podem ser pensadas como não-existentes, exceto o ser que está acima de tudo”.[ xlii ]

Tempos depois de Anselmo, São Boaventura acolhe o argumento anselmiano, reiterando, com o Arcebispo de Canturária, o fato de a questão se dar inteiramente no âmbito da fé.[ xliii ] Alexandre de Hales (1185-1245), escrevendo um pouco antes de Boaventura, mencionara favoravelmente o argumento de Anselmo em sua glosa às

Sentenças de Pedro Lombardo,[ xliv ] de onde extrai as seguintes conclusões:

• o Deus Uno e Trino só pode ser conhecido plenamente por Ele próprio;

• o homem, embora conheça a Deus de maneira imperfeita, pensando n’Ele deduz de imediato a Sua existência.[ xlv ]

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É exatamente de Alexandre de Hales que São Boaventura acolhe as premissas anselmianas, e, a partir delas, defende três pontos: 1) a impossibilidade humana de duvidar razoavelmente da existência de Deus; 2) por parte do homem, existe uma consciência do mistério do Deus que habita uma luz inacessível; 3) o conhecimento do Deus trinitário se dá pela fé.[ xlvi ] E finaliza frisando que a existência de Deus é verdade primeira e imediatíssima.[ xlvii ] Posteriormente, no clássico Itinerarium mentis in

Deum, Boaventura volta a acolher o argumento anselmiano.

Depois de Boaventura, o mais respeitável autor da escola franciscana que abrigou favoravelmente as premissas do Proslogion foi Duns Scot, identificando-as, antes de tudo, com o princípio da não-contradição. Diz ele no Tratado do Primeiro Princípio: “Deus, pensado sem contradição, é aquele em relação ao qual não se pode pensar nada maior, sem contradição”.[ xlviii ] Na mesma obra, o Doutor Sutil “colore” o argumento ontológico da seguinte maneira: “O que existe é um cogitável maior [do que o que não existe], e, portanto, é mais perfeitamente cogitável, porque visível [perfectius cogitabile,

quia visibile]. O que não existe em si nem aderido a um ser mais nobre, ao que nada

acrescenta, não é visível. Ora, é mais perfeitamente cognoscível o visível que o invisível, o qual só é inteligível abstratamente. Logo, o que é perfeitissimamente cognoscível existe”.[ xlix ]

A trajetória do argumento ontológico teria, entre os seus objetores, dois nomes de peso: Santo Tomás de Aquino e Kant. No caso de Tomás, a crítica começa pela constatação de que, ao pensar em Deus, não necessariamente o homem pensa n’Ele como o ser acima do qual nada pode ser pensado. E dá exemplos: na Antiguidade, houve quem acreditasse ser Deus um corpo: “É provável que quem ouve a palavra ‘Deus’ não entenda que, com ela, se expresse o ser maior que se possa pensar, pois de fato alguns creram que Deus era corpo (quidam crediderint Deum esse corpus).[ l ] Na refutação tomista, está implicado o rechaço de todo idealismo gnosiológico, mas o foco dela é a natureza mesma de Deus, imaterialidade pura, inalcançável para inteligências que precisam valer-se dos sentidos para conhecer. Ademais, se, com exceção dos néscios, todos ao pensarem em Deus O concebessem como ser perfeitíssimo, não haveria ateus, os quais são mencionados pelo Doutor Comum exatamente como os que racionalmente não O aceitam.[ li ]

Santo Tomás apela às propriedades da intelecção humana, a qual vai subindo numa escala que começa nos sensíveis e culmina nos inteligíveis. Em resumo, tendo em vista o modo essencialmente humano de conhecer, o qual não se dá por intuições pré-cognoscitivas das essências das coisas – pois raciocina abstraindo os conceitos das notas individuantes da matéria, captáveis pelos sentidos –, o Boi Mudo da Sicília preconiza que as únicas demonstrações aceitáveis da existência de Deus serão a posteriori, e a partir de evidências alcançadas pelos sentidos. Noutras palavras, como Deus não é um cognoscível imediato para a inteligência do homem, este precisa contemplar as criaturas para, a partir delas, raciocinando por meio de analogias, chegar à conclusão filosófica de que “Deus é”, ou seja, de que existe.

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Coube a Immanuel Kant trazer à baila uma das tentativas mais sofisticadas de refutar o argumento ontológico de Santo Anselmo. Na Crítica da Razão Pura, mais precisamente na “Dialética Transcendental”, o filósofo de Königsberg rechaça o argumento cosmológico, que se funda no conceito de causalidade, o ontológico, cujo procedimento é apriorístico, e o chamado por ele de físico-teológico, baseado na ordem do mundo[ lii ] – o que não seria mesmo de estranhar, em se tratando de um autor cujo criticismo impôs à inteligência humana rígidos limites no tocante ao conhecimento dos entes. Diga-se de passagem que Kant conheceu a prova ontológica de segunda mão, nas formulações cartesiana e leibniziana, em meio às quais pontifica: a existência não é uma realidade categorial, mas existencial; portanto, não pode ser predicada de nenhum ente. Aqui, percebe-se que Kant raciocina tendo no horizonte a sua tese segundo a qual a experiência

não dá aos juízos verdadeira universalidade, mas a dá apenas comparativamente, por

indução.[ liii ]

Isto quer dizer que a simples análise de uma idéia não permite ao homem chegar à coisa ideada propriamente dita. Noutras palavras, a existência só pode ser um limitadíssimo dado de experiência, nunca um conceito abstrato. No caso de Deus, a coisa agrava-se deveras porque d’Ele não podemos ter propriamente experiência.[ liv ] Neste contexto, acrescenta Kant ser absurdo concluir, de uma existência dada em sentido geral, a necessidade absoluta de Sua existência: “Se num juízo (...) suprimo o predicado e mantenho o sujeito, resulta uma contradição, e é por isso que digo que esse predicado convém necessariamente ao sujeito. Mas se suprimir o sujeito, juntamente com o predicado, não surge nenhuma contradição, porque não há mais nada com que possa haver contradição. Pôr um triângulo e suprimir os seus três ângulos é contraditório, mas anular o triângulo, juntamente com os três ângulos, não é contraditório. O mesmo se passa com o conceito de um ser absolutamente necessário. Se suprimis a existência, suprimis a própria coisa com todos os seus predicados”.[ lv ] E mais: “Se, por conseguinte, penso um ser como realidade suprema (sem defeito), mantém-se sempre o problema de saber se existe ou não. Porque, embora nada falte ao meu conceito do conteúdo real possível de uma coisa em geral, falta ainda algo na relação com todo o meu estado de pensamento, a saber, que o conhecimento desse objeto também seja possível a posteriori”.[ lvi ]

É justamente a existência o que Kant suprime da ordem predicamental, o que se agrava no caso de Deus, pois d’Ele sequer temos experiência – no sentido próprio do termo. Daí a inconsistência do argumento ontológico, segundo o criticismo kantiano.

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VI. UMA EDIÇÃO PARA OS DIAS DE HOJE

Seria copioso trabalho destrinçar os comentários de vários grandes filósofos a respeito do argumento ontológico, todos eles mais ou menos afastados das premissas de que se vale o Arcebispo de Cantuária no Proslogion. Na maioria dos casos, o comentador contemplou o escrito de Santo Anselmo a partir de suas próprias doutrinas, casos por exemplo de Descartes, Espinosa, Malebranche, Leibniz, Wolf, Baumgarten, Hegel, Schelling e outros.

Revisitar os trechos das obras desses notáveis personagens da história da filosofia excederia em muito o propósito desta nota introdutória ao Proslogion, que a Concreta traz à luz em tradução do filólogo Sérgio de Carvalho Pachá. Mas fique consignado que, ainda hoje, Anselmo encontra acérrimos defensores do seu argumento entre professores de filosofia e estudiosos de diferentes escolas – cada qual buscando um aspecto em que se apoiar. Isto, por si, justifica uma nova edição do Proslogion em língua portuguesa; no caso deste volume, acrescida da polêmica que o Arcebispo de Cantuária manteve com o monge beneditino Gaunilo.

Esperamos que o leitor aprecie as páginas a seguir.

[ i ] Cf. GUILLERMO FRAILE, Historia de la Filosofía, Tomo II, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos

(B.A.C.), 1960, p. 291.

[ ii ] RÁBANO MAURO De Universo, XV, 1 (PL 111, 414B).

[ iii ] Não nos custa salientar que esta divisão é caudatária do que, na Escola de Alexandria do tempo de São Panteno (?-200), era ensinado com o nome de Disciplinas Encíclicas.

[ iv ] Há divergências entre os historiadores quanto à duração do período escolástico. Se tomarmos como critério de definição certo modo harmônico, e complementar, de compreender a filosofia e as ciências – entre as quais se incluía a teologia –, não será arbitrário situar a Escolástica entre os séculos IX e albores do XIV. A partir de então, com a paulatina separação entre metafísica e teologia nas principais universidades européias, adentramos o terreno que serve de molde à modernidade. Entre o século XV e começos do XVI, o que sobrevive da Escolástica é um formalismo engessado, fruto seco duma visão de mundo que se deturpara e fora aos poucos sendo substituída, na mente e no coração dos homens, pela cosmovisão humanista, mais propriamente antropocêntrica, a qual deu lugar a uma atitude contemplativa fragmentária no que tange às ciências.

[ v ] Clemente de Alexandria defendia que a fé, por ser superior à filosofia, subministra a plenitude da verdade, visto que procede da Revelação – do Logos divino espraiado à inteligência dos homens. Cf. CLEMENT E DE

ALEXANDRIA, Stromata, VII, 10, 480 (PG 9, 478-484). As famosas invectivas clementinas contra os filósofos

partiam de certa confusão entre os âmbitos da fé e da razão, além de se pautarem em referências à retórica sofística tomada como conceito unívoco com o de filosofia. Por sua vez, Tertuliano, embora reconhecesse que a filosofia era capaz de alcançar algumas verdades, dizia que isto se devia menos ao labor dos filósofos que à natureza mesma da verdade, razão pela qual o mérito deles era bastante modesto. Os filósofos, quando acertam, são comparados por Tertuliano a navegantes que, depois duma tempestade, se perdem no mar e ficam à deriva, acabando por chegar à terra por uma espécie de sorte cega (caeca felicitate). Cf. TERT ULIANO, De Anima, II, I

(PL 2, 648C).

[ vi ] SÃO BOAVENT URA, Collationes de Decem Praeceptis, II, nn. 24-25.

[ vii ] No dia 7 de março de 1277, Étienne Tempier, então bispo de Paris, promulga a condenação de 219 teses filosóficas tidas por heréticas. Na maior parte dos casos, tratava-se de teorias aristotélicas influenciadas pelo averroísmo de professores da Faculdade de Artes da Universidade de Paris. Além destas, dezesseis teses tomistas entraram no bojo da famosa condenação. Cf. PIERRE MANDONNET, Siger de Brabant et l’averroïsme latin ou

XIIIe. Siècle, Louvain, Institut Supérieur de Philosophie, 1908, pp. 175-191. Aos interessados, informamos que

diferentes edições desta obra de Mandonnet estão digitalizadas e disponíveis na internet, como em <https://archive.org/details/sigerdebrabantet01mand>.

[ viii ] “(...) os mistérios do Verbo de Deus são simples, absolutos, imutáveis, nas trevas mais que luminosas do silêncio que mostra segredos. Em meio às mais negras trevas, fulgurantes de luz os mistérios desbordam”.

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PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA, Teologia Mística, I, 1 (PG 3, 998A-B).

[ ix ] “Neque enim quaero intelligere ut credam, sed credo ut intelligam”, p. 44 desta edição.

[ x ] A absorção do direito natural pela justiça sobrenatural, assim como das prerrogativas civis pelos direitos da Igreja, foi defendida por teóricos que não foram de todo fiéis ao princípio de subsidiariedade já presente em Agostinho. Para uma primeira aproximação ao tema, indicamos o clássico livro de H.-X. ARQUILLIÈRE,

L’augustinisme politique – Essai sur la formation des théories politiques du Moyen Age, 2ª éd., Paris, Vrin, 1955.

[ xi ] “Habet igitur mens rationalis, cum se cogitando intelligit, secum imaginem suam ex se natam, id est

cogitationem sui ad suam similitudinem quasi sua impressione formatam”, in Monologium, c. 33.

[ xii ] Cf. JULIÁN ALAMEDA, Obras Completas de San Anselmo, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 1952, Tomo I, Introdución General, p. 94.

[ xiii ] “Cosi la teologia, grazie ad Anselmo, trova un posto e un compito distinto da quelli della esegesi biblica e

della filosofia. Si può affermare che la dissociazione cosciente tra filosofia e teologia è opera di Anselmo d’Aosta”. BAT ISTA MONDIN, Storia della Metafisica, Bologna, Edizione Studio Domenicano, 2008, Vol. 2, p. 297. [ xiv ] ZEFERINO GONZÁLEZ, Historia de la Filosofía, Madrid, Agustín Jubera, 1886, Tomo 2, pp. 148-153. [ xv ] LLORCA, VILLOSLADA, LABOA, Historia de la Iglesia Católica, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 2009, Tomo II, Edad Media – la cristianidad en el mundo europeo y feudal (800-1303), p. 112.

[ xvi ] “Saeculum quod sui ac boni sterilitate ferreum, malique exundantis deformitate plumbeum, atque inopia

scriptorum appellari consuevit obscurum”, in Annales eclesiastici, Roma, 1602, tom. X, a. 900, p. 647.

[ xvii ] GUILLERMO FRAILE, Historia de la Filosofía, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 1960, Tomo II, pp. 344-345.

[ xviii ] Para uma compreensão sinóptica deste período, ver JEAN LEFLON, Humanisme et chrétienté au Xe siècle, Saint-Wandrille, Éditions de Fontenelle, 1946.

[ xix ] MAURÍLIO CÉSAR DE LIMA, Introdução à História do Direito Canônico, São Paulo, Edições Loyola, 2004, p. 87.

[ xx ] DOM IDELFONSO HERWEGEN, O.S.B., Sentido e Espírito da Regra de São Bento, Rio de Janeiro, Edições Lumen Christi, 1953, p. 43.

[ xxi ] JOSÉ LUIS LLANES; JOSÉ IGNASI SARANYANA, Historia de la Teología – Primera Parte, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 1995, pp. 14-5.

[ xxii ] Op. cit., p. 15.

[ xxiii ] No Grande Cisma do Oriente, também conhecido como Cisma de 1054, o pomo teológico da discórdia foi o Filioque, que os orientais não aceitavam. Em suma, o Credo Niceno-Constantinopolitano enfatizara que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, e isto levou os orientais a acusar os ocidentais de mudar o Símbolo da Fé, pois, com a fórmula “que procede do Pai e do Filho”, parecia negar-se a fórmula grega “do Pai pelo Filho”. A controvérsia atravessou vários séculos, e um precedente do Cisma teve lugar no ano de 857, quando o imperador bizantino Miguel III, o Ébrio (840-867), expulsou da sede de Constantinopla Inácio (797-877), seu patriarca, hoje considerado santo tanto pela Igreja Católica como pela Ortodoxa. Para detalhes sobre o Filioque, ver A. VACANT, E. MANGENOT et E. AMANN, Dictionnaire de Théologie Catholique – L’exposé des doctrines de la théologie

catholique, leurs preuves et leur histoire. Tome Cinquième, Paris, Letouzey et Ané, 1947, pp. 2310-2343.

[ xxiv ] SANT O ANSELMO, Epist. 94.

[ xxv ] SANT O ANSELMO, Monologium, cap. XVII. [ xxvi ] Op. cit., cap. XX.

[ xxvii ] OCTAVIO DERISI, Tratado de Existencialismo y Tomismo, Buenos Aires, Emecé Editores, 1956, p. 117. [ xxviii ] Ver CORNELIO FABRO, L’uomo e il rischio di Dio, Roma, Studium, 1967. O trecho desta obra cuja leitura recomendamos enfaticamente é o apêndice IV, intitulado L’argomento ontologico e il pensiero moderno, 1.

Origine e forma dell’argomento in S. Anselmo.

[ xxix ] Em sintaxe, numa estrutura composta por dois membros relacionados entre si, prótase é o que, sendo subordinado, cria certa expectativa com relação ao segundo. Por sua vez, a apódose encerra o enunciado de maneira aparentemente satisfatória. Exemplo: “Quem desdenha (prótase), quer comprar (apódose).” Para dialéticos medievais, prótase e apódose relacionavam-se em enunciados condicionais nos quais o último componente era inferido do primeiro: se “A”, então “B”.

[ xxx ] Cf. MÁRIO FERREIRA DOS SANT OS, Filosofia Concreta, 3ª ed., São Paulo, Logos, 1961, Teses 1 e 2, pp. 29-32.

[ xxxi ] Monologium, Praef. [ xxxii ] Cur Deus Homo, Praef.

[ xxxiii ] G.M. MANSER, O.P., La Esencia del Tomismo, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1953, pp. 144-5. Como adeptos da escola tomista, não nos afastamos um centímetro sequer da tese de que não

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