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UMA HISTÓRIA MÁGICA: ANÁLISE DO INSÓLITO NO CONTO O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA (1974), DE MURILO RUBIÃO

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UMA HISTÓRIA MÁGICA: ANÁLISE DO INSÓLITO NO CONTO “O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA” (1974), DE MURILO RUBIÃO

Lucas Henrique da Silva (Letras Vernáculas e Clássicas - UEL) Adilson dos Santos (Orientador)

RESUMO:

O presente artigo busca realizar uma análise do conto “O Ex-mágico da Taberna Minhota” (1974) do escritor mineiro Murilo Rubião, um dos grandes nomes da literatura brasileira em sua vertente fantástica. Durante o estudo, abordaremos a questão narratológica como contribuição para uma análise temática. Isto é, ao analisarmos Murilo Rubião, lidamos diretamente com o gênero fantástico, e, para estudo desse gênero literário, dialogaremos principalmente com o texto crítico de Tzvetan Todorov, especificamente seu estudo intitulado Introdução à Literatura Fantástica (1975), assim como outros nomes da crítica desse gênero tão pouco explorado em território brasileiro. Outro ponto desta comunicação é também a análise da temática do duplo, que reside na narrativa curta de Rubião de forma tão sigilosa, porém fixa. Afinal, o que faz do insólito de Murilo Rubião tão singular e original? Para respondermos esta questão, a seguinte análise sobre a citada temática em seu conto abordará não somente os elementos estruturais do conto, mas fará um aprofundamento psicológico do personagem principal.

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INTRODUÇÃO

O conto “O Ex-Mágico da Taberna Minhota” faz parte de O Ex-Mágico, livro de estreia do escritor mineiro Murilo Rubião. Essa compilação de narrativas curtas foi publicada em 1947 e conta com quinze contos onde o autor aventura-se principalmente pelo fantástico, gênero muito pouco explorado no Brasil. Nessas histórias o autor aborda o cotidiano humano através de uma perspectiva transcendental, irônica, e para isso figura-se sempre o elemento insólito.

A obra de Rubião não é tão extensa, mas significativa. Seu repertório conta com cerca de 30 contos, em sua maioria do gênero fantástico. Na busca por um meio confiável de alcançar a obra de Murilo Rubião, encontra-se o livro Murilo Rubião: Literatura Comentada de Jorge Schwartz, que reúne textos selecionados pelo professor titular de Literatura Hispano-Americana da Universidade de São Paulo junto de elementos como: biografia, estudo histórico, entre outros. Nessa leitura de Murilo Rubião, Schwartz, intencionando um levantamento claro e de fácil compreensão, discorre:

O fantástico já impregna essas primeiras histórias e serve de artifício ficcional para chamar atenção sobre a crua realidade do homem na Terra. Também o texto bíblico é uma constante fonte de inspiração, fato evidenciado nas epígrafes extraídas da Bíblia que antecedem cada um dos contos. Há, ainda, nessa primeira etapa da produção literária de Murilo Rubião, uma procura do semelhante carregada de cores e de certo humor que beira a ironia. Ainda assim, percebemos um universo em que os conflitos acabam quase sempre derrubando as precárias ilusões dos personagens (SCHWARTZ, 1981, p. 12).

2.0 O MÁGICO E O FUNCIONÁRIO

Após uma epígrafe da bíblia, o conto abre-se da seguinte maneira: “Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior” (RUBIÃO, 1947, p. 12). Essa infelicidade é marca predominante da atmosfera da narrativa, que é tangida por um narrador em primeira pessoa sempre descontente com sua situação. No início, temos um funcionário público que lamenta o fato de ter sido “atirado” à vida sem passado ou parentesco aparente. Esse fato contado pelo narrador precede uma narrativa encaixada, onde o funcionário público conta sobre seus dias de mágico, que é onde reside o insólito. A realidade plana da história é abalada quando o narrador inicia sua narrativa, afirmando com convicção: “A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendeu ao retirar do bolso o dono do restaurante”

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(RUBIÃO, 1947, p. 13). Esse ocorrido mágico precede todos os outros, que juntos compõe a narrativa encaixada presente no conto: a de um mágico infeliz e tedioso com sua situação, despedido do restaurante e admitido num circo.

Demitido do restaurante por fazer surgir pratos do paletó, que oferecia aos clientes gratuitamente, o mágico sem nome citado inicia uma carreira ilustre no “Circo-Parque Andaluz” (RUBIAO, 1947. p. 13). Lá, seu dom lhe traz muito sucesso. A plateia estruge com suas verdadeiras mágicas, enquanto ele recebe os aplausos com indiferença e olhar distante. O mágico não encontrava motivos para demonstrar mais que indiferença às palmas, especialmente às que vinham das crianças, que, segundo o mágico, eram “rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem” (RUBIÃO, 1947. p. 13). Quando atingiu a popularidade, suas mágicas, que sempre fluíam naturalmente e, muitas vezes, contra sua vontade, começaram a incomodá-lo. Vive situações insólitas como, por exemplo, tirar urubus da gola do paletó ou deslizar serpentes do seu sapato. Como defesa, o narrador-personagem diz: “mencionava a minha condição de mágico, reafirmando o propósito de não molestar ninguém” (RUBIÃO, 1947. p. 14).

Já não podia dormir sem que pássaros saíssem-lhe aos ouvidos. Conclui que a morte é o único meio para encontrar a paz que a vida de mágico lhe tira. Decide pelo suicídio. Decidido, o mágico executa cinco tentativas: (1) Tirar leões do bolso, confiando que esses o devorariam. Os leões farejam-no, passeiam e retornam entediados, concluindo: “Este mundo é tremendamente tedioso” (RUBIÃO, 1947. p. 14). (2) Devorar suas crias, buscando uma indigestão fatal. Frustrado por uma dor de barriga excruciante. (3) Afastado da zona urbana, o mágico atira-se do ponto mais alto da serra. A mágica involuntariamente lhe dá um paraquedas. (4) Tenta suicidar-se com uma pistola alemã, que se transforma em um lápis. (5) Ouve na rua: “ser funcionário público era suicidar-se aos poucos” (RUBIÃO, 1947. p. 15) – emprega-se. Esperando pela morte, o mágico agora é funcionário da Secretaria do Estado. Altera-se seu caráter.

Sem muitas experiências, o mágico acredita que um emprego poderia matá-lo. “1930, ano amargo” (RUBIÃO, 1947. p. 15), é como define o protagonista sua nova vida. Antes indiferente quanto aos humanos, agora os enojava com o excessivo contato. O ócio que passou a viver tornou-o reflexivo, revoltado, especialmente quanto ao fato de não possuir um passado, fato que os leitores conhecem logo no início do conto. Comprova-se: “Os meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida” (RUBIÃO, 1947. p. 15). Sua vida passa de mágico desesperado para funcionário publico amargurado. Não morre, como esperado, mas apaixona-se, algo que nunca lhe havia ocorrido. Isso o distrai de seus conflitos psicológicos, agora incertezas: “Como me declarar à minha

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colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma experiência sentimental” (RUBIÃO, 1947. p. 15).

Já com um ano sofre ameaças de demissão, e procura melhorar somente temendo a separação da amada. Mesmo que rejeitado, o protagonista apreciava sua presença. Para manter seu lugar, tenta uma medida desesperada: vai ter com o chefe sobre sua estabilidade de dez anos no cargo, que lhe impedia a demissão – mentia. O chefe espanta-se: “Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia de afirmar que tinha dez” (RUBIÃO, 1947. p. 15). O funcionárioentão conta com suas habilidades mágicas, sem uso há mais de um ano, ao tentar tirar dos bolsos algum documento que validasse sua mentira. O que consegue é um papel amarrotado, que não continha mais que um poema inspirado nos seios da datilógrafa. A infelicidade fecha a narrativa encaixada: “Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia” (RUBIÃO, 1947. p. 16).

Agora funcionário público e ex-mágico, vaga sem amor ou amigos. Conta: “Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que atente a vista” (RUBIÃO, 1947. p. 16). Nostálgico, arrepende-se de não ter aproveitado sua mágica. O conto termina com o funcionário público sem mágica ou amor, imaginando, agora, como seria sua vida com mágica. Fecha-se da seguinte maneira:

Como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a terra de um extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas (RUBIÃO, 1947. p. 16).

2.1 AS NARRATIVAS PREDISPOSTAS NA DIEGESE

Gerard Genette (1972) trabalha em seu estudo narratológico Discurso da Narrativa o conceito de diegese. Aproximando-se do conceito de Intriga/Trama, conceitua diegese como um encadeamento de ocorridos dentro da narrativa em um plano espaço-temporal. Diegese consiste no quadro macroestrutural dos acontecimentos dentro da obra, intrínsecos a ela. O ato de narrar não é inerente à diegese, e pode manter-se dentro ou fora desta, uma vez que a diegese está ligada à trama e não ao ato narrativo. Sobre o narrador,

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Genette diz: “é um papel fictício, ainda que directamente assumido pelo autor” (GENETTE, 1972. p. 213). Para análise da diegese do conto, propomos um diálogo com outro estudo narratológico: As Estruturas Narrativas (1969) de Tzvetan Todorov. Todorov aborda uma característica recorrente em obras fantásticas, que penetra no conceito de diegese: as narrativas encaixadas. Dentro do quadro que é a diegese existem duas narrativas: a encaixante e a encaixada. Seguindo o estudo de Todorov (1969), especialmente em seu capítulo Os Homens-Narrativas, encaixante é a história cronológica, a narrativa por si, enquanto que a encaixada estaria colocada entre a encaixante, imersa nela, uma narrativa dentro de uma narrativa. Um causo, um relato que um personagem propõe-se a contar, ou inserido pelo narrador entre a narrativa que, com relevância para a trama, encaixa-se. Uma narrativa dentro de outra. Todorov usa da obra As Mil e Uma Noites para exemplificação, obra de narrativas encaixadas confluentes. Uma é essencial à outra. Se em As Mil e Uma Noites, “contar é igual a viver” (TODOROV, 1969. p. 125), no conto de Rubião há toda uma vida.

Na diegese do conto rubiano possibilita-se essa posição de narrativas. Dispostos estes estudos narratológicos, sob uma análise estrutural, conclui-se uma diegese fragmentada em duas narrativas: (1) a do funcionário público que vive em desconsolo com sua vida. Essa primeira etapa inicia-se já no começo do conto, porém pausa em: “Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota” (RUBIÃO, 1947. p. 12), para retornar em: “Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas” (RUBIÃO, 1947. p. 16) e só acabar com o fim do conto. É a narrativa encaixante. (2) a do mágico da taberna que anseia a morte. Acaba apaixonado e sem mágica. Essa segunda etapa, que atravessa a primeira, começa em: “Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota” (RUBIÃO, 1947. p. 12) e termina em: “Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia” (RUBIÃO, 1947. p 16). Dessa forma, caracteriza-se como narrativa encaixada. Uma narrativa dentro de outra narrativa. O protagonista é também narrador, autodiegético, posicionado dentro da diegese. Para explicar a ausência de passado, relata sua breve história. Seguindo essa linha de raciocínio, embasada pelo estudo de Todorov (1969), a narrativa encaixada – etapa número (2) – aparece para relatar uma informação da narrativa encaixante – etapa número (1) –, e essa informação seria o fato de o narrador não ter um passado como qualquer outro ser humano.

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Nota-se que o conto “O Ex-Mágico da Taberna Minhota” não conta a história de um mágico que, cansado, torna-se funcionário público, mas sim a história de um funcionário público arrependido e frustrado, sem passado, que só viveu seu tempo de mágico. O leitor não lê uma história de um mágico que se tornou funcionário público, mas de um funcionário público que olha com nostalgia para seu passado de mágico, único passado que possui, pois na narrativa encaixante o tempo verbal consiste no presente, não no pretérito, como ocorre na narrativa encaixada. Possibilita a relação com a teoria de PIGLIA (2004) presente em “Teses sobre o conto” (2004): “um conto sempre conta duas histórias” (PIGLIA, 2004. p. 89). Em “O Ex-Mágico da Taberna Minhota”, temos duas histórias, contadas como uma: a do funcionário desconsolado e a do mágico descontente. Embora dentro da estrutura do conto apresentam-se quadros diferentes, o de narrativa encaixante e encaixada, essa intersecção que uma faz na outra faz com que sejam narradas como uma só – o conto moderno para Piglia (2004).

As narrativas que formam a diegese, são acompanhadas por um narrador sempre em primeira pessoa, autodiegético, termo sugerido por Genette (1972), que é o narrador-personagem contando sua própria história. Difere sua figura nas narrativas pelo tempo verbal supracitado. Através de Genette (1972), a focalização do ato narrativo no conto se dá totalmente interna, pois o caráter autodiegético faz com que “o herói conte a sua história” (GENETTE, 1972. p. 184), uma focalização interna totalmente realizada, pois: “A focalização interna só se encontra plenamente realizada na narrativa em monólogo interior” (GENETTE, 1972. p. 191). O narrador em primeira pessoa cria um monólogo, abordando a perspectiva da narrativa sobre sua posição focal. O tempo verbal da narração muda-se em cada etapa por, justamente, o fator das narrativas diferenciarem-se na diegese. A encaixante trata de sua situação atual, a encaixada, por sua vez, da sucessão de situações que o levaram à sua situação atual.

Os espaços no conto são: a Taberna Minhota, O Circo-Parque Andaluz, os cafés que frequentava, a delegacia, a serra e o escritório, que é onde predomina a vida do protagonista. O tempo se estabelece em suas duas formas: cronológico e psicológico. O narrador narra em tempo cronológico na narrativa encaixante, interrompida pelo tempo psicológico da narrativa encaixada, pois este depende diretamente da memória do narrador, em seu relato. O protagonista é o único personagem de fato abordado. É descontente com qualquer situação. Mostra-se com uma densidade psicológica autodestrutiva ao tentar

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suicidar-se diversas vezes. Mente pelo bel-prazer. Possui uma indiferença em relação à humanidade, mesmo chamando-os semelhantes, que, quando funcionário, transforma-se em náusea. É obstinado com a condição humana de sofrimento ligado ao amadurecimento, e, também, ao fato de não possuir um passado, demonstrando certa revolta com este último item. Termina nostálgico. Os personagens secundários e figurantes são:

1. O dono da Taberna Minhota, que é tirado do bolso do mágico – o contrata.

2. A plateia do circo, que adorava os números do mágico. Consistia em principalmente crianças. Figurantes.

3. A moça amada, datilógrafa vizinha de trabalho.

4. O chefe da seção do protagonista na Secretária de Estado.

Salvo a datilógrafa e o funcionário, todos os outros personagens são mencionados somente no plano da narrativa encaixada. Há também os leões mágicos.

2.2 RUBIÃO E SEU INSÓLITO

No conto “O Ex-Mágico da Taberna Minhota”, notamos a possibilidade de desconstruir a posição da narrativa de Murilo Rubião dentro do que se espera de uma tradicional literatura fantástica, uma vertente da narrativa insólita. Para isso, dispomos de outro estudo de Todorov (1975): Introdução à Literatura Fantástica, onde se busca dar luminosidade ao gênero fantástico. O fantástico seria: “hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 1975. p. 31). A hesitação no “ser” que afirma o autor seria um elemento crucial para a instalação do fantástico. Hesitação é o termo escolhido por Todorov para englobar ambiguidade, estranhamento, desconforto. Sentimentos que dependem diretamente do insólito presente na narrativa. Insólito seria algo incomum, inesperado, que apresenta-se na cadeia de acontecimentos naturais (sólitos). É como diz GAMA (2010): “Como temos observado em alguns contos do gênero, a inserção de um elemento insólito no percurso da narrativa rompe com a noção de equilíbrio experimentada logo no início do texto, instaurando-se o desequilíbrio Fantástico” (GAMA, 2010. p. 6). Através dessa ótica que pretendemos demonstrar a singularidade de Murilo Rubião perante o gênero fantástico, não como um simples cumpridor desses requesitos, mas como um revés a essa teoria.

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O próprio autor julgava-se um escritor fantástico. Em uma de suas entrevistas, declarou escolher o gênero por herança de infância. Assíduo leitor dos contos de fadas, “do Dom Quixote, da História Sagrada e das Mil e Uma Noites”. Dizia mais: “sou um sujeito que acredita no que está além da rotina (...) nunca me espanto com o sobrenatural, com o mágico (...) E isso tudo aliado a uma sedução profunda pelo sonho, pela atmosfera onírica das coisas”. Eis uma perspectiva interessante de Murilo Rubião: “Quem não acredita no mistério não faz literatura fantástica”. O que vai contra Furtado (1980), que determina irrelevância de fatores como ceticismo ou fé na sobrenaturalidade para a construção de verdadeiros elementos fantásticos. Esse pensamento de Rubião sobre existir mais do que a mera rotina recai, totalmente, sobre o caráter de seu fantástico. O insólito do conto se instala em meio ao corriqueiro, a rotina. O equilíbrio dura algumas linhas. O insólito já existe no terceiro parágrafo com: “Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude” (RUBIÃO, 1947. p. 12). Ser atirado à vida sem infância já desequilibra totalmente o percurso sólito de uma narrativa, mas esse equilíbrio citado por Gama (2010) morre quando o narrador diz: “A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante” (RUBIÃO, 1947. p. 12-13). Esse ocorrido sucede ao seu primeiro momento de vida, quando contempla sua imagem de cabelos grisalhos no espelho da taberna. Essa representação no espelho é importante para a caracterização desse insólito. Analisaremos mais adiante.

A visão do autor sobre existir além de uma rotina reflete-se em “O Ex-Mágico da Taberna Minhota” de forma clara. As mágicas, que são o elemento sobrenatural que configura o fantástico do conto, são instaladas na narrativa totalmente em meio à rotina. A hesitação de Todorov é tão passageira quanto o assombro do dono do restaurante que, em um segundo questionava, no outro contratava. Em “O Ex-Mágico da Taberna Minhota” mostram-se de forma totalmente distorcida os pontos levantados por Todorov. No fantástico de “O Ex-Mágico da Taberna Minhota”, não há um acontecimento sobrenatural para quebrar a ordem natural e causar a hesitação, mas um fato insólito que dele nasce toda a narrativa. Uma confluência do sólito com o insólito dentro do fluxo da narrativa onde natural e sobrenatural se confundem.

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2.3 O DUPLO NO PERSONAGEM PRINCIPAL

No aprofundamento psicológico do protagonista, é presente o duplo. “Tema errante e recorrente na história da literatura mundial, o duplo apareceu e continua a aparecer sob as mais diversas formas, intrigando e instigando a curiosidade e a imaginação de escritores, críticos e leitores” (SANTOS, 2009. p. 2). Esse tema de duplicidade (ou ambiguidade) de personalidade é muito atrativo ao campo da psicologia. Recorrente na filosofia, cinema, artes, entretanto é na literatura que o duplo se manifesta de forma deliberada. Mello (2000) conceitua seu desencadeamento sobre um questionamento: “Na literatura, o tema do duplo é recorrente porque diz respeito a questões muito inquietantes para o ser humano. ‘Quem sou eu? ’ e ‘o que serei depois da morte? ’ são indagações perenes que se projetam na criação artística de todos os tempos e sugerem representações do desdobramento do Eu que pensa e, ao mesmo tempo, é objeto da reflexão” (MELLO, 2000). O duplo seria um desdobramento do próprio Eu. Um outro de um próprio ser, extrínseco ou intrínseco a ele, exterior ou interior. Um conflito dentro da trama onde o que ocorre é o confronto contra seu próprio outro, análogo ou não, mas que remete a uma pessoa de diversas formas como um reflexo. No panorama de Santos (2009), temos as formas mais recorrentes do duplo na literatura: “sósias, irmãos (gêmeos ou não), a sombra, o reflexo na água ou no espelho e a imagem captada pelo(a) quadro/retrato/fotografia” (SANTOS, 2009. p. 5).

Como esperado de Murilo Rubião, esse tema acontece de maneira peculiar. Sabemos que lidamos com duas identidades, dentro de um só corpo: a do funcionário público desconsolado e a do mágico indiferente. Analisando-as, notamos diferenças entre essas duas identidades. Vale discorrer sobre essas relevantes transgressões de uma personalidade à outra – aqui tratamos como duas entidades, embora tratemos do mesmo personagem na narrativa.

A primeira e mais óbvia que notamos é as diferentes habilidades entre o funcionário e mágico: um é capaz de fazer mágicas, o outro, não. Depois o fato de que somente o funcionário público foi capaz de desenvolver o amor. Comprova-se em um trecho onde não existe mais o mágico e, sim, o funcionário público: “Como me declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma experiência sentimental!” (RUBIÃO, 1947. p. 15). Outro fator que parece determinar o funcionário público como um desdobramento agravado do mágico nos quesitos de posição perante a vida e a humanidade é a visão que cada um carrega sobre a raça humana. O mágico é indiferente, como comprovamos em trechos como: “Por que me emocionar, se não me causavam pena

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aqueles rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem?” (RUBIÃO, 1947. p. 13), e completava: “Muito menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado” (RUBIÃO, 1947. p. 13). A plateia assemelha-se a ele fisicamente apenas. O mágico tem ciência da sua sobrenaturalidade e parece crer nela como uma discrepância entre ele e os humanos “regulares”, muito embora não os trate como inferiores, apenas como distantes. O funcionário, por sua vez, demonstra uma revolta para com a vida: “E o ócio levou-me à revolta contra a falta de um passado. Por que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar?” (RUBIÃO, 1947. p. 15). Os humanos agora lhe davam náusea. Além disso, temos a evolução de seu descontentamento com a condição de mágico para um sentimento de tristeza, desconsolo. O mágico tentava o suicídio, um objetivo aparentemente alcançável – não para ele –, já o funcionário vive desconsolado com sua vontade de viver em um mundo mágico, e sabe que é impossível.

Aplicado à teoria do duplo, temos um caso diferenciado e fixo de alter ego. Santos (2009) afirma: “o homem é visto como um ser dividido entre um ‘eu’ e um alter ego. Etimologicamente, alter ego tem o sentido de “outro eu” ou ‘um segundo eu’”. Para Cánovas (2004), em “O Ex-Mágico da Taberna Minhota” temos: “um mágico que deixa o burocrata, outra parte de seu Eu, aniquilar sua capacidade de transfigurar o mundo através da arte” (CÁNOVAS, 2004. p. 213-214). Como o conto começa já com a figura do funcionário público desconsolado, o duplo se instala no início da narrativa encaixada onde encontramos a presença de seu desdobramento: o mágico, “no espelho da Taberna Minhota” (RUBIÃO, 1947. p. 12). O espelho é a primeira coisa que contemplam os olhos do mágico, que nasce nesse momento. Sabemos que o mágico foi atirado à vida sem passado algum, e o narrador nos fornece esse primeiro contato dele com a vida, ou, ao menos, do que dispõe sua memória – onde já entramos na área do fantástico.

O mágico contemplando sua própria imagem já envelhecida no espelho marca o início de toda uma história. É curiosa a escolha do espelho na narrativa, uma vez que esse objeto carrega toda uma carga mitológica. Essa carga é estudada de forma hermenêutica por Otto Rank (1939) em O Duplo, referência para o gênero. Embora o espelho carregue adversidades negativas em várias culturas, envolvendo morte, no Brasil o espelho carrega uma carga, também, de má sorte. O mágico não sofre por azar, entretanto sua vida sempre fora marcada pela infelicidade com suas situações. Cánovas (2004) através do estudo de

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Guiomar (1967) afirma que a visão do mágico no espelho configura um duplo derivado, pois deriva do duplo físico. Completa: “também é um duplo por divisão” (CÁNOVAS, 2004. p. 215).

Através ainda de Santos (2009), caracterizamos como um duplo interno, exatamente pela questão de partir de um conflito interno de personalidades que implodem de dentro pra fora, onde o personagem não chega a assumir uma total diferente personalidade, mas demonstra mudanças significativas. O duplo manuseado por Murilo Rubião se tornou um revés a questão trabalhada por Mello sobre o duplo servir como uma extensão para a imortalidade do ser. Aqui, o duplo mais aparece como uma fraqueza, uma vulnerabilidade onde Rubião aloja sua crítica sobre a ociosidade da vida de um funcionário público. O duplo não é uma luta pela imortalidade, mas um fragmento da mortalidade que é a existência humana, a rotina ordinária de um homem comum. Como se o duplo representasse a cisão que sofre o homem com sua magia ao se submeter a uma vida vulgar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Schwartz (1974), um dos maiores estudiosos de Rubião, questiona: “E a função do relato fantástico, já que o elemento suspense e consequente explicação final ficam totalmente diluídos na escritura?” (SCHWARTZ, 1974). Essa questão aplica-se também ao duplo de Murilo Rubião, fixo, porém totalmente diluído na narrativa por um mágico que não sabe se quer ou não suas mágicas. O conto de Murilo Rubião, especialmente o aprofundamento psicológico nesse personagem narrador, permitiu-nos notar como Murilo Rubião lidava com o insólito de maneira única, fazendo-o percorrer o mesmo percurso do natural para, no fim, terminar junto com ele. Um paralelismo ao novo fantástico que cita Todorov (1975), onde Kafka é uma forte figura. Aqui partimos também de um acontecimento sobrenatural – o mágico que tira pessoas do bolso – para terminarmos numa situação onde o natural é um sofrimento. O duplo, que foi o foco desse trabalho, necessitou da narrativa encaixada para dar-lhe melhor forma. Rubião mesmo afirmava ser um escritor preocupado com a clareza, e isso notamos ao escolher separar em claras etapas esses dois Eu do personagem.

Para que Murilo seja cada vez mais notado e admitido, é interessante instigar o estudo pelo seu campo no insólito em todas as suas escolhas. Seja o duplo ou o

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fantástico, temos em Murilo Rubião uma verdadeira fonte imaginativa de recursos inesgotáveis, onde o sobrenatural dilui-se no ato narrativo de forma que a ordem natural não é só quebrada, mas transgredida e invertida. O mundo que conhecemos, para Murilo Rubião, torna-se insólito, e, assim como acreditava o autor, vai além da rotina.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CÁNOVAS, Suzana Yolanda Lenhardt Machado. O Universo Fantástico de Murilo Rubião à Luz da Hermenêutica Simbólica. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2004.

Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/5522/000427438.pdf?...1> Acesso em: 24 abril 2014.

FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980.

GAMA, Vanderney Lopes da. Todorov e Furtado: elementos e contribuições para um estudo da estrutura do gênero fantástico. Rio de Janeiro: UERJ, 2010.

Disponível em: < http://sobreomedo.wordpress.com/2011/01/24/todorov-e-furtado-elementos-

e-contribuicoes-para-um-estudo-da-estrutura-do-genero-fantastico-vanderney-lopes-da-gama/> Acesso em: 23 abril 2014

GENETTE, Gerard. Discurso da Narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Editora Arcádia, 1972.

MELLO, Ana Maria Lisboa de. As faces do duplo na literatura. In: INDURSKY, Freda. CAMPOS, Maria do Carmo. (Orgs.) Discurso, memória e identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzato, 2000.

PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. In: Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Rank, Otto. O Duplo. Rio de Janeiro: Coed, 1939.

RUBIÃO, Murilo. Literatura Comentada por Jorge Schwartz. São Paulo: Abril Educação, 1982.

SANTOS, Adilson. Um périplo pelo território do duplo. Pernambuco: Revista Investigações, 2009.

SCHWARTZ, Jorge. O Fantástico em Murilo Rubião. São Paulo: Revista Planeta. 1974. TODOROV, Tzvetan. Os Homens-narrativa. In: As estruturas narrativas. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006.

Referências

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