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Civil ou Militar? Conflitos de Foro e o caso Favacho

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Academic year: 2021

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IGOR JULIANO MENDONÇA DE ANDRADE*

Este trabalho é fruto de um projeto de uma pesquisa mais amplo, intitulado “Em nome de Sua Majestade: Debates e reformas do Conselho Supremo Militar e de Justiça (1808-1889)”, financiado pelo CNPq e FAPERJ, sob a orientação da professora Adriana Barreto de Souza, e que busca entender o funcionamento de uma instância da justiça militar ainda não estudada pela historiografia, o Conselho Supremo Militar e de Justiça. A linha da pesquisa com a qual trabalhamos no momento visa, ainda que de forma exploratória, dado o curto tempo de pesquisa, explorar os processos criminais militares, que subiram até a instância do Conselho de Estado, no Brasil do século XIX, e ainda está em fase inicial, pois não há nenhum trabalho historiográfico que contemple o tema. A pesquisa na sua totalidade visa esmiuçar as estruturas em que se fundam e que formam o corpo jurídico militar do Brasil no século XIX, os caminhos institucionais percorridos pelos processos criminais militares, além de traçar a trajetória dos Conselheiros que compunham o Conselho Supremo Militar e de Justiça, a época o órgão máximo no que tangia à justiça militar.

Diante de um assunto que ainda não foi abordado pela historiografia brasileira, o uso de fontes primárias, como processos criminais, registro de sessões do Conselho de Estado, jornais da época e anais da Câmara dos Deputados, se torna indispensável, já que não existe uma bibliografia que contemple o tema proposto. Entre os meses de agosto de 2011 e julho de 2012, foram fotografados vários processos criminais militares do século XIX que subiram ao Conselho de Estado do Império do Brasil, pertencentes a um fundo bastante explorado do Arquivo Nacional, mas que não tinha ainda sido explorado sob a temática da justiça militar.

Apesar de utilizar o processo que envolve o soldado José de Castro Favacho como título do trabalho, não se trata aqui de um estudo de trajetória, mas de utilizar o processo como guia inicial para entender como funcionava a justiça militar, não só em relação as suas

* Graduando em história pela UFRRJ. Orientadora: Professora Doutora Adriana Barreto de Souza – Agência

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instâncias, mas também a relação entre os diferentes círculos hierárquicos a que os réus pertenciam e a maneira de como eram julgados.

José de Castro Favacho era natural da cidade de Vigia, província do Pará, tinha 22 anos de idade, solteiro, branco, olhos pardos, cabelos pretos e era administrador do cemitério e sacristão da matriz na mesma cidade de Vigia. Ele surge como um exemplo de brasileiro sem poder ou posses que lhe assegurem os direitos civis, não “como privilégios, que apenas alguns teriam direito” (GRINBERG, 2002), mas os garantidos pela Constituição liberal de 1824.

Favacho foi preso no dia 13 de janeiro de 1874 na cidade de Vigia para recrutamento e, no dia seguinte, foi remetido para Belém, a capital da província, e na tarde do mesmo dia assentou praça no Exército. O recrutamento era uma prática violenta e recorrente no Império do Brasil, herdeira de uma tradição portuguesa, que recrutava a força os soldados que formavam seus quadros. Apesar de todos os cidadãos brasileiros estarem sujeitos ao recrutamento obrigatório, segundo Adriana Barreto “o ‘imposto de sangue’ recaía apenas sobre aqueles que estivessem excluídos das redes de favorecimento pessoal que ordenavam a sociedade da época (...)” (SOUZA, 1999:139).

O imbróglio gira todo em torno de uma ordem de habeas-corpus expedida pelo Juiz de Direito da 1ª vara da capital do Pará no dia 14 de janeiro em favor de José de Castro Favacho, que acabou desencadeando uma série de disputas entre o coronel comandante do 5º batalhão de artilharia, que mantinha Favacho sob sua jurisdição, e o Juiz de direito, que em virtude da negativa do coronel em apresentar Favacho à sua presença, expediu um mandado de prisão para o mesmo. O juiz de direito, no dia seguinte, expediu um novo habeas-corpus e mandou que um oficial de justiça, acompanhado de um escrivão, um policial e um cidadão comum, levasse o habeas-corpus ao detentor, que no dia era o oficial do Estado-Maior do quartel, que os levou a presença do coronel, que os ameaçou e desacatou. O Juiz então lavrou um auto de resistência contra o coronel e oficiou ao comandante de armas uma ordem de prisão ao coronel, por desacato e resistência. No mesmo dia Favacho foi levado à presença do Juiz sob escolta de um sargento e três praças, e o Juiz, depois de ouvir o paciente, concedeu-lhe o

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habeas-corpus, o colocou em liberdade e oficiou comunicado ao coronel através do sargento, que se negando a sair sem Favacho tentou invadir a casa do magistrado junto com as praças, sendo presos logo depois com a ajuda de cidadãos que vieram em socorro ao Juiz. Imediatamente após o ocorrido, o juiz oficiou ao chefe de polícia que efetuasse a prisão do coronel, ordem que o Major-delegado de polícia, acompanhado de algumas praças que desarmaram as praças do 5º batalhão, cumpriu.

Todos os problemas legais decorrem do fato de que Favacho teria isenções que o livrariam do recrutamento, que já tinha sido tentado sem sucesso poucos meses antes, e que não foi dado a ele, tempo para que as apresentasse, tendo assentado praça e jurado bandeira imediatamente após sua prisão para recrutamento. Aprisionado e forçado a integrar as forças do Exército, Favacho recorre à justiça para que lhe seja concedido um habeas-corpus. Instaura-se, assim, uma disputa entre o juiz de direito e o comandante militar pela prevalência de suas respectivas instituições, o que leva o caso ao Conselho de Estado, para que lá se tenha o desfecho do processo. Porém, mesmo no Conselho, a discussão não se dá primordialmente pelos direitos do soldado, mas pelas atribuições da autoridade militar e do Juiz de direito, os erros cometidos por um ou outro. Ou seja, institui-se um debate sobre jurisdições.

A análise desse caso nos permitiu, assim, identificar e explorar dois problemas. O primeiro deles diz respeito a uma questão de arranjo organizacional. Durante algum tempo, não foi possível identificar os caminhos institucionais percorridos pelos processos criminais militares, mas ao longo do tempo vimos que, na maioria dos casos o processo tramita inicialmente por instâncias militares e na grande maioria dos processos que estudamos o caminho percorrido segue certa lógica:

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O segundo problema é propriamente jurisdicional. Os conselheiros divergem bastante sobre o ocorrido, e não conseguem chegar a uma decisão comum. Tais divergências mostram que os corpos que compunham a elite imperial, como os conselheiros de estado, não compunham um corpo fechado e unânime em suas decisões, assim como divergiam também ideologicamente, desconstruindo a imagem de um corporativismo ou uma solidariedade classista por parte dessa elite, até porque alguns conselheiros de estado ocupavam altas patentes do Exército imperial. O caso, portanto, divide o Conselho de Estado.

O documento apresenta uma série de relatos e pareceres acerca do caso e, em publicação da Gazeta Jurídica, jornal liberal editado na capital da província, fica explicitado de que o caso não é uma exceção, pois casos semelhantes teriam ocorrido anteriormente. Na verdade, a imprensa local ainda levanta novas suspeitas do exercício ilegal do poder na província, mas essas suspeitas estão inteiramente ausentes dos debates no Conselho de Estado.

Os Jornais da província do Pará dão bastante importância ao caso e, em sua maioria apoiam a decisão do Juiz, pela concessão de habeas-corpus à Favacho, exaltando um discurso liberal, e tentando fazer valer uma recente reforma judiciária, na qual deixa claro que nenhum cidadão pode ser preso sem ter cometido delito flagrante. Os Jornais afirmam veementemente que Favacho foi preso e teve seu recrutamento forçado em decorrência de desavenças com o Cônego Siqueira Mendes, chamado de ladrão e integrante de uma quadrilha de ladrões do tesouro provincial, por algumas das publicações. Siqueira Mendes já tinha tentado prender Favacho pra recrutamento meses antes, mas não tinha obtido sucesso, já que foram dadas a ele isenções que não permitiam que se procedesse ao recrutamento, mas aproveitando-se do fim

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da administração do Presidente da província, tendo sido assumido o cargo provisoriamente o vice-presidente, apontado pelas publicações como comparsa do cônego, Favacho foi novamente preso, e enfim levado ao recrutamento.

Militar ou civil, praça ou cidadão? Essa é a pergunta que permeia toda a discussão acerca do caso Favacho. Mas as questões vão mais adiante que um único processo. Assim como os casos de recrutamento, existem casos de desordens provocadas por praças, cidadãos que se envolvem em milícias e rebeliões, assassinatos e agressões de praças a civis e vice e versa, e mais uma série de casos em que os acontecimentos se misturam entre a sociedade civil e a caserna. Dentro dessa perspectiva, chega a mim a seguinte questão: O que define o que pode ou não ser julgado pelos juízes de direito ou pelas instâncias da justiça militar, já que existem leis que entram em conflito quando um mesmo caso envolve as instâncias civis e militares?

Apesar de termos iniciado a pesquisa sobre o tema há pouco tempo, algumas consequências da falta de um código penal militar, e de leis que estabelecessem limites entre a sociedade civil e a militar, já ficam bem claras para nós. Julgamentos eram feitos com base no costume, seguindo uma lógica de antigo regime, já que as leis eram em um número enorme e se sobrepunham umas as outras, dando base a interpretações diversas, ficando a cargo do juiz, basear-se nas leis que conhecia ou preferia, para julgar da maneira que lhe convinha.

A dependência do discurso e interpretação de juristas e juízes e da intervenção do poder moderador para resolver as querelas existentes à época, causaram uma longa disputa em vários processos que misturavam os “civis” e a caserna, causando um mal-estar institucional entre dois poderes de um mesmo Estado. Esses conflitos se arrastariam até que se definissem com clareza os limites entre esses dois mundos, que mesmo no campo institucional ainda se misturavam, pois a identidade do militar, considerado pelas forças armadas como um sujeito à parte da sociedade civil ainda não estava consolidada, elevando ainda mais o grau de dificuldade na resolução jurídica dos processos que envolviam esses dois componentes de uma mesma sociedade.

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O caso Favacho aparece de forma que um membro da sociedade com poder o suficiente se utiliza do recrutamento para punir outrem por divergências quaisquer. Apesar de o recrutamento ter sido usado frequentemente para punir criminosos, Favacho não se enquadra nessa categoria, criando um mal estar maior ainda entre a autoridade militar e a autoridade judicial civil. A autoridade militar exercia poder sobre um recruta, e um juiz tentava fazer valer os direitos de um cidadão, ou podemos pensar em um âmbito maior, a autoridade militar e o Juiz tentando fazer valer o seu poder um sobre o outro.

Nesse caso acreditamos que mais do que uma disputa entre o mundo civil e o mundo militar, existia uma disputa de poder político entre as suas instituições. Trata-se aqui do que Bourdieu chama de “monopólio do direito de dizer direito” (BOURDIEU, 1989: 212), que ele classifica como confronto entre os agentes investidores de competência social e técnica para interpretar de maneira que consagre com justiça e legitimidade o corpus de leis.

Em uma sociedade completamente hierarquizada, Bourdieu nos chama a atenção para a falta de autonomia desses interpretes e o limite aos conflitos das interpretações, já que como estão sujeitos a uma autoridade maior, ficam sempre presos a uma interpretação dentro de um conjunto de normas jurídicas já estabelecidos, limitando suas ações a pequenos atos de força política, utilizando de uma linguagem de impessoalidade e neutralidade como forma de mostrar pertencimento ao campo e supostamente deixar de lado suas individualidades:

A própria forma do corpus jurídico, sobretudo o seu grau de formalização e de normalização, depende sem dúvida muito estreitamente da força relativa dos <teóricos> e dos <práticos>, dos professores e dos juízes, dos exegetas e dos peritos, nas relações de força características de um estado do campo (em dado momento numa tradição determinada) e da capacidade respectiva de imporem a sua visão do direito e da sua interpretação. (BOURDIEU, 1989: 218)

A nossa hipótese é de que de fato não existe uma justiça militar consolidada como instituição, já que, em muitos casos, depende do aval de instituições civis para confirmar, ou mesmo para reformar, as sentenças proferidas pelas diferentes instâncias militares. Essa hipótese é corroborada pelos frequentes conflitos de interpretações e apropriação das leis

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pelas autoridades em sua busca pela prevalência em julgar ou atribuir o mundo ao que os indivíduos envolvidos nos processos pertencem, mesmo que com eles não se identifiquem.

Referências Bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1989.

SOUZA, Adriana Barreto. O Exército na Consolidação do Império: Um Estudo Histórico

sobre a Política Militar Conservadora. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.

Documentos oficiais:

AMARAL, Antônio José. Indicador da legislação militar. Rio de Janeiro: Tipografia do diário do Rio de Janeiro, 1863.

Arquivo Nacional, 1R CODES, cx. 576, pct. 1, 1874 – 25 de fevereiro.

Jornais e Periódicos:

NERY, Marcelino. Attentado contra o poder judiciário. A Tribuna, Belém, 27 jan. 1874. p. 1. MAC-DOWELL, Samuel Wallace. Questão Favacho. A Regeneração, Belém, 25 jan. 1874. p. 1.

SOUZA, José Baptista Ribeiro. Attentado contra o poder judiciário. O Liberal do Pará, Belém, 20 jan. 1874. p. 1.

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ESPÍRITO – SANTO, Juvenelo Manuel. Habeas – Corpus. Diário do Gram, Belém, 21 jan. 1874. p. 1.

MILLER, Daniel Willian. Expediente. O Santo Ofício , Belém, 19 jan. 1874. Tribunal do Santo Offício, p. 1.

Referências

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