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A transformação dos esquemas de motivação, perceção e de ação que compõem o habitus de jovens em risco de desinserção social

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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO

DOUTORAMENTO EM SOCIOLOGIA

A transformação dos esquemas de motivação, perceção e de ação que

compõem o habitus de jovens em risco de desinserção social

Elsa Montenegro Moreira Marques

Dissertação de Doutoramento em Sociologia

Orientada pela Professora Doutora Cidália Queiroz

Co-orientada pelo Professor Doutor Carlos Gonçalves

Porto

Agosto 2012

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RESUMO

A pesquisa que deu origem a esta tese parte das seguintes interrogações: Como transformar o habitus de jovens que, sendo originários de meios socialmente desfavorecidos, partilham disposições, hábitos e motivações pouco favoráveis à aquisição de aprendizagens relevantes para uma transição qualificante para a vida adulta? Que forças externas são necessárias criar em ordem à reestruturação do passado convertido em disposições? Que características deve ter o contexto de socialização suscetível de estabelecer uma mediação eficaz entre as aprendizagens adquiridas no meio de origem e as requeridas pelas instituições da socialização secundária?

O propósito a que nos lançamos visa contribuir para a discussão teórica acerca das possibilidades de reconversão das estruturas subjetivas de jovens em que a imbricação de vulnerabilidades sociais instalou estados de consciência pouco compatíveis com a aquisição dos trunfos necessários para inverter trajetórias de vulnerabilidade.

A reflexão apresentada parte das abordagens teóricas que concebem a socialização como um processo dependente de padrões de relacionamento social que, ao exercerem fortes constrangimentos, dão acesso a desiguais oportunidades de apropriação aos recursos sociais hoje indispensáveis ao exercício da cidadania e, consequentemente, a posições diferenciadas na estrutura social. Elege, ainda, as perspetivas que nos remetem para os efeitos das dinâmicas de interação produzidas no interior de diversas instituições sociais, tais como a família, o habitat, a escola e os serviços sociais, na formação das estruturas mentais, problematizando, muito em particular, a questão da possibilidade de reconstruir a identidade social.

O objeto da nossa investigação prende-se com uma intervenção que se propõe inverter trajetórias de desinvestimento nos estudos e na qualificação profissional de jovens cuja socialização ocorreu em contextos fortemente restritivos de oportunidades. Optou-se pela construção teórica do percurso sócio - biográfico de um conjunto de dez jovens, em rutura com a ideologia do indivíduo uno e coerente, com vista à apreensão da problemática da formação do habitus e, mais ainda, das condições a reunir para a sua transformação.

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ABSTRACT

The research, which led to this thesis, has arisen from the following questions: How to change the habitus of youngsters who, being brought in socially disadvantaged environments, share dispositions, habits and motivations less favourable to the acquisition of knowledge relevant to a qualifying transition to the adulthood? What are the external strengths which are necessary to be created in order to lead to the restructuring of the past converted into dispositions? Which characteristics must the socialization context have, susceptible of establishing an effective mediation between the knowledge acquired in the original social environment and the required characteristics of the institutions of secondary socialization?

The purpose to which we have committed to intends to contribute to the theoretical discussion about the possibilities of reconversion of the subjetive structures of youngsters on which the imbrications of social vulnerabilities have installed states of consciousness less compatibles with the acquisition of the necessary trumps to reverse courses of vulnerability.

The reflection presented in this thesis arises from the theoretical approaches that conceive socialization as a process which is dependent of patterns of social relationship that, as exerting strong constraints, give access to unequal appropriation opportunities of social resources that nowadays are crucial to the exercise of citizenship and, consequently, to differentiated positions in the social structure. Furthermore, it elects the perspetives that guide us to the effects of the interaction dynamics produced inside social institutions, such as family, habitat, school and social services, in the shaping of mental structures, questioning, particularly, the social identity reconstruction issue.

The empirical research concerns to the study of an intervention that aims to reverse disinvestment trajectories in school studies and in the professional qualification of youngsters, which socialization occurred in highly restrictive opportunities contexts. Therefore, we have chosen, in particular, the theoretical construction of the sociobiographic trajectory, in disruption with the ideology of the individual as one and coherent, from a group of ten youngsters, in order to understand the construction of the

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À Cidália, minha amiga e mestre, com quem aprendi a disposição para perseguir o saber e a verdade.

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“Vês aquele pássaro? É um…” Enumera uma série de nomes inventados, em diversas línguas. E conclui: “Podes dizer o nome em todas as línguas do mundo, quando acabares, continuas a não saber nada sobre o pássaro, apenas sabes o que as pessoas lhe chamam. Por isso, vamos lá olhar para o pássaro e ver o que ele está a fazer. Isto é o que conta.”

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ... 1

CAPÍTULO I

VULNERABILIDADE ECONÓMICA, SOCIAL E SIMBÓLICA: É POSSÍVEL TRANSFORMAR AS DISPOSIÇÕES INCORPORADAS NA INFÂNCIA? ... 7

1. O problema da relação entre realidade exterior e realidade subjetiva ... 7 2. As possibilidades de transformação das disposições originais ... 34

CAPÍTULO II

A PASSAGEM DO CONHECER AO AGIR: OS DISPOSITIVOS

METODOLÓGICOS E TÉCNICOS ACIONADOS ... 45 1. A investigação-ação: das hipóteses teóricas às hipóteses normativas ... 45 2. Os dispositivos metodológicos e técnicos de observação e produção de

informação ... 55 2.1. Observação participante (na sala de aula, sessões de estudo extra aulas,

grupos de reflexão, reuniões da equipa pedagógica) ... 59 2.2. Histórias de vida... 71 2.3. A entrevista individual e de grupo: um meio para a autoanálise provocada e

acompanhada ... 79 2.3.1. Como são criadas as condições propícias para que os atores falem

de si próprios e se projetem no futuro? Trabalhar a linguagem com vista à tomada de consciência e ao desenvolvimento da capacidade de enunciação das aprendizagens inconscientes ... 84

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CAPÍTULO III

CONDICIONALISMOS DA SOCIALIZAÇÃO FAMILIAR: A SOCIALIZAÇÃO PRIMÁRIA ENQUANTO PROCESSO DE MODELAÇÃO DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS E DE APRENDIZAGEM CULTURAL ... 111

1. A inserção sócio profissional das famílias:

emprego, valor atribuído ao trabalho, perceção do tempo e do futuro ... 123 1.1. Um modo de vida centrado na poupança e na acumulação de um pequeno

património ... 128 1.2. A inclusão económica não liberta a vida de grandes tensões no quotidiano:

um caso de “integração laboriosa” ... 134 1.3. Um caso de mobilidade social descendente: a transição para um modo de

vida de restrição ... 143 1.4. As injunções contraditórias dos modelos familiares no que respeita

à relação com o trabalho ... 152 1.5. Entre o trabalho operário não qualificado e o terciário de baixa

qualificação ... 163 1.6. Desqualificação profissional e inserção no mercado de trabalho secundário:

o futuro percecionado com indeterminação e impotência resignada ... 174 1.7. Até que ponto os constrangimentos familiares podem ditar a opção de

interromper uma escolarização bem sucedida:

como elaborar projetos individuais quando toda a projeção no devir é

anulada por problemas quotidianos urgentes e vitais? ... 182 1.8. Entre o modo de vida da restrição e os padrões de conforto e bem-estar

típicos da “sociedade de consumo” ... 202 2. A dinâmica das relações familiares: privações na vida material e social,

acidentes biográficos e perturbações emocionais ... 209 2.1. A exposição a experiências prolongadas e repetidas de desamparo:

a ausência temporária, definitiva ou intermitente dos pais ... 209 2.2. Quando os desempenhos parentais comprometem o desenvolvimento

de um acordo interno entre as tendências impulsivas e o ideal moral ... 227 2.3. Quando a criança é transformada em adulto no seu meio familiar:

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2.4. A exposição a injunções contraditórias no decurso da socialização

primária ... 243

2.5. O sentimento de não ser desejado: quando o crescimento ocorre sob modelos de relação rejeitantes ... 248

2.6. Retratos familiares marcados por conceções educacionais autoritárias ... 251

CAPÍTULO IV O PAPEL DOS PROCESSOS VICARIANTES RELATIVOS AO GRUPO RESIDENCIAL NA INTERIORIZAÇÃO DE DISPOSIÇÕES ... 257

CAPÍTULO V A REPRODUÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS PELA ESCOLA ... 271

1. Sobre a desigualdade de oportunidades de acesso aos saberes e atitudes socialmente relevantes ... 271

2. A relação com a escola: percursos e discursos ... 281

3. Uma aproximação empírica da interação entre processos educativos escolares indutores de disposições desvalorizadoras do estudo e dinâmicas educativas que procuram “arrancar” os alunos às vulnerabilidades sociais de origem ... 346

3.1. O funcionamento da equipa pedagógica ... 391

REFLEXÕES FINAIS ... 399

BIBLIOGRAFIA ... 417

ANEXOS ... 431

ANEXO I - Guião de recolha de informação (guião de observação e guião de entrevista) ... 433

ANEXO II – Sessão de reflexão coletiva a respeito dos temas: “Apresentação de si próprios” e “Sexualidade e Afetos” ... 451

ANEXO III – Avaliação do desempenho dos estagiários ... 457

ANEXO IV – Aproveitamento escolar dos jovens obtido no Curso Profissional de Eletrónica, Automação e Comando ... 461

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ANEXO V – Disciplina de Físico-Química ... 463 Anexo V A – Ficha de trabalho sobre a Lei da Gravitação Universal ... 464 Anexo V B – Análise do funcionamento da disciplina de Físico-Química – Ano letivo 2007/2008 ... 469 ANEXO VI – Disciplina de Português ... 471 Anexo VI A – Ficha de trabalho da disciplina de Português: Tema: Protótipo

textual argumentativo ... 472

Anexo VI B – Ficha de trabalho da disciplina de Português: Tema: Sermão de

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INTRODUÇÃO

O estudo aqui apresentado incide sobre uma dinâmica de intervenção promovida por uma associação que se propôs reunir algumas das condições indispensáveis para qualificar escolar e socialmente jovens originários de meios sociais fortemente restritivos de oportunidades. O objeto da investigação que detalhamos neste trabalho remete-nos, mais concretamente, para o processo de mudança que a associação Qualificar para Incluir1 procurou desencadear nos habitus de dez jovens que têm em comum uma história de insucessos escolares, evidenciando, ao mesmo tempo, comportamentos que dão sinais de dissidência face ao projeto de formação escolar.

Embora originários de famílias fracamente incluídas no plano económico, seja pelas escassas qualificações profissionais, baixos salários e insegurança do emprego, seja pelas severas restrições do consumo, os jovens que participaram no referido projeto de investigação operacional são, acima de tudo, afetados pelas parcas oportunidades de aceder a grupos primários que lhes permitam desenvolver o sentimento vivo de pertencer e de, por essa via, alcançar um lugar simbolicamente valorizado na sociedade em que vivemos. São jovens que, embora possam aceder a consumos que não se confinam à mera satisfação de necessidades básicas de sobrevivência física, são severamente atingidos por fenómenos conducentes ao seu isolamento social. As suas sociabilidades evidenciam um inequívoco fechamento entre os socialmente “iguais”, o que muito concorreu para a sua eliminação dos processos de acesso ao capital social.

Não menos relevante, a respeito dos percursos dos jovens a que nos reportamos, é considerar que a escola investe muito pouco na compreensão das efetivas necessidades dos alunos. Ignorando os determinantes sociais da produção das disposições, as instituições de ensino mostram-se muito pouco disponíveis para conceberem programas e práticas pedagógicas que trabalhem a partir da matriz de perceção e ação adquirida pelos alunos nas

1 A Qualificar Para Incluir, Associação de Solidariedade Social (QPI) é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, fundada, em 2001, por sócios individuais e pela Cooperativa de Ensino Superior de Serviço Social/Instituto Superior de Serviço Social do Porto, como sócio coletivo. Promove uma ação simultaneamente educativa e sócio-terapêutica cujo objetivo central é contribuir para a interrupção dos processos de reprodução intergeracional da pobreza e da exclusão social.

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primeiras fases da sua socialização, conduzindo os que, na realidade, são excluídos a acreditar que são os principais responsáveis pela sua própria eliminação (Bourdieu, 1982).

A questão torna-se, ainda, mais complexa se considerarmos a evolução da escola no sentido da concessão de diplomas que nada devem à realização de efetivas aprendizagens e à aquisição de reais competências. A resposta da escola aos dilemas da escolarização numa sociedade heterogénea, gerando a desarticulação entre diploma e aprendizagem, não só precipita o sistema de ensino numa crise profunda do seu papel socialmente integrador, como contribui, e muito, para excluir (Bourdieu & Champagne, 1993), criando a ilusão de que o diploma é, por si só, a garantia de entrada num estatuto social valorizado.

A nossa implicação direta no trabalho desenvolvido pela referida associação junto de jovens afetados pelos problemas sumariamente enunciados conduziu-nos à formulação de algumas interrogações que, de certo modo, também nortearam o projeto que nos propomos aqui dar conta: como transformar o habitus de jovens que, sendo originários de meios socialmente desfavorecidos, partilham disposições, hábitos e motivações pouco favoráveis à aquisição de aprendizagens relevantes para uma transição qualificante para a vida adulta?; Que forças externas são necessárias criar em ordem à reestruturação do passado convertido em disposições?; Que características deve ter o contexto de socialização suscetível de estabelecer uma mediação eficaz entre as aprendizagens adquiridas no meio de origem e as requeridas pelas instituições da socialização secundária?

O problema que, para nós, se afigurava como mais relevante não é tanto o de conhecer como se produzem habitus pouco compatíveis com a aquisição dos trunfos necessários para inverter trajetórias de vulnerabilidade social. Importava, sobretudo, investigar processos de mudança suscetíveis de romper com a ação inconsciente desses mesmos habitus, enquanto estruturas subjetivas duráveis que dificultam ou, mesmo, inviabilizam a participação em processos de emancipação social.

É nossa convicção que os fatores que estão na origem da desqualificação escolar e profissional das jovens gerações estão largamente teorizados, havendo dado lugar à produção de uma vastíssima literatura nos vários campos disciplinares das ciências sociais. O que, a nosso ver, ressalta do confronto entre a produção teórica existente e as condições de vida de significativos grupos de jovens é a insuficiência de investimento de todo esse conhecimento disponível na produção de autênticas transformações suscetíveis de anular a ação dos fatores que provocam a referida vulnerabilidade.

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A centralidade atribuída à transformação das disposições que impedem a qualificação escolar e social de relevantes segmentos da população juvenil conduziu-nos, então, a estudar uma intervenção cuja principal finalidade era a de inculcar um conjunto de competências e disposições (atitudes face ao estudo, formas de consciência, modos de apresentação, linguagens, esquemas de perceção e de ação) determinantes para a afirmação social de dez jovens que, não as havendo incorporado nas suas socializações precedentes, apresentavam uma profunda desafeição pela maior parte dos saberes e conhecimentos difundidos pela escola.

Em consonância com estes objetivos de transformação social, considerou-se a metodologia de investigação-ação como o modo de conhecimento mais capaz de dar conta da complexidade das questões em jogo nessa intervenção, o que não significou enveredar por uma conceção empirista da investigação e abdicar do imprescindível trabalho de rutura com todas as explicações que tendem a atribuir a responsabilidade da exclusão aos próprios excluídos.

A trama de problemas que atravessa a vida dos rapazes, cujos habitus nos propusemos estudar numa perspetiva processual, conduziu-nos a enveredar por uma construção teórica do objeto de estudo numa ótica de cruzamento interdisciplinar de abordagens da sociologia, da psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem. O estudo dos problemas selecionados envolveu, concretamente, duas grandes incursões teóricas, uma delas relativa aos fenómenos de produção social do habitus, assim como às possibilidades e condições da sua transformação, a outra relativa aos fenómenos inerentes à aprendizagem.

Quanto ao modo como foi estruturado este trabalho, considerou-se que seria heuristicamente mais produtivo colocar as duas problemáticas teóricas acima mencionadas em diálogo constante com os dados obtidos no decurso da investigação e, assim, procurar superar as oposições estanques entre explicação e descrição, revisão bibliográfica e apresentação dos dados, pesquisa e intervenção.

Seguindo de perto os pontos de vista analíticos de Norbert Elias (2004) e de Pierre Bourdieu (1979, 1992b) desenvolve-se no primeiro capítulo, uma reflexão que procura dar conta do problema da relação entre realidade exterior e realidade subjetiva (ponto 1). Em rutura quer com a conceção do indivíduo fora da sociedade, quer com a conceção da sociedade fora dos indivíduos, a perspetiva que se apresenta assenta na premissa de que “estruturas individuais” e “estruturas sociais” são aspetos inseparáveis dos mesmos homens e,

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como tal, não podem ser estudadas separadamente. Um tal posicionamento teórico equivale a dar conta que o homem singular só pode ser entendido pela e na sua coabitação com outros ou, por outras palavras, que as disposições e práticas individuais dependem estreitamente da teia relacional em que se ancoram.

A pretensão de construir um encadeado de proposições teóricas sobre as possibilidades de reelaboração identitária levou-nos a passar, também, por autores como Bernard Lahire (1999, 2001, 2005a) para quem o processo de ajustamento antecipado das disposições às condições sociais da sua produção não é a única via possível na vida do habitus (ponto 2). Do seu ponto de vista, o modelo da “necessidade tornada virtude” designa apenas uma modalidade particular de existência do social, pelo que é crucial, em seu entender, o estudo dos condicionalismos sociais que permitem desinstalar o “amor do necessário”. Os contributos deste autor fornecem, quanto a nós, elementos teóricos relevantes do ponto de vista das condições suscetíveis de alterar o curso da reprodução da situação herdada. Um deles aponta para o facto da realidade interna ser plural e atravessada por incoerências, heterogeneidades e conflitos que fazem do processo de construção identitária uma realidade algo instável, em aberto e, em alguma medida, imprevisível.

A atitude de vigilância crítica deste autor a respeito do determinismo fatalista que postula a impossibilidade de alterar as condições sociais de partida passa por considerar que nem tudo o que colocamos em prática, por rotina, automatismo, hábito ou por obrigação, envolve a nossa adesão interior profunda e convicta. Tudo depende da maneira como as disposições foram adquiridas, do momento da biografia individual em que foram interiorizadas e dos contextos sociais em que o indivíduo se move no presente.

Interessantes elementos de resposta aos problemas que nos propomos estudar podem, também, ser encontrados na obra de Berger e Luckmann (1996 [1966]), consagrada à análise do fenómeno da socialização. Com efeito, ainda no segundo ponto do capítulo I, reflete-se a respeito das condições propostas por estes autores para se desinstalar as aquisições incorporadas na infância, entre as quais se destaca o relevante papel da “estrutura de

plausibilidade”, enquanto laboratório de transformação da realidade subjetiva interiorizada na

primeira socialização.

O Capítulo II equaciona algumas das interrogações que a investigação-ação levanta enquanto metodologia de pesquisa fundamental de terreno. Em total consonância com a sociologia psicológica proposta por Lahire (2005a, 2005b), assumimos, neste capítulo, que o

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acesso às disposições individuais depende da possibilidade de participar e intervir nos contextos onde estas se atualizam, sem esquecer o papel determinante da estimulação das capacidades reflexivas dos atores sociais para que possam enunciar as determinações que os levam a agir como agem, a pensar como pensam, a sentir como sentem.

Além de se refletir sobre os dispositivos metodológicos e técnicos que foram acionados na presente investigação, como as entrevistas em profundidade aos jovens, a reconstrução das suas histórias de vida e a observação participante ao longo de um ano (na sala de aula, em sessões de estudo, em grupos de reflexão e reuniões da equipa pedagógica), procura-se, ainda, explicitar e ilustrar neste capítulo (ponto 2.3.1) as condições que foram criadas para que os jovens se abrissem à reflexão sobre si próprios e enunciassem as suas aprendizagens inconscientes, assim como os acontecimentos dolorosos que marcaram a sua existência.

Conhecida a grande importância da socialização primária no desenvolvimento das estruturas cognitivas e da motivação para a aprendizagem, na formação de padrões de sensibilidade e de gosto, de linguagens específicas, de saberes diversos, impôs-se uma caracterização socioeconómica das famílias dos atores que dão vida ao nosso estudo. No capítulo III damos conta de algumas das matrizes de perceção, sentido e ação dos atores que marcaram o universo familiar dos jovens, muito em particular no que diz respeito à sua inserção sócio-profissional, ao valor que atribuem ao trabalho e à sua relação com o tempo e com o futuro (ponto 1). Na linha das análises desenvolvidas por Serge Paugam (2007), Brigitte Brébant (1984) e Elias (2004), reflete-se sobre o impacto do trajeto profissional dos progenitores dos jovens, e dos modos de vida que lhes estão associados, no património disposicional dos filhos.

Equacionando as relações que se estabelecem no interior da família enquanto função e manifestação do desigual sistema de oportunidades, apresenta-se, ainda, uma outra análise a respeito das interações familiares e das conceções educativas que norteiam os desempenhos dos pais, na perspetiva de avaliar que consequências têm vindo a provocar na vida psíquica dos filhos e na construção da sua identidade profunda (ponto 2).

O aprofundamento do conhecimento sobre os efeitos da socialização dos jovens na produção de disposições dissidentes com o mundo escolar exigiu, simultaneamente, a realização de uma análise centrada no papel dos processos vicariantes relativos ao grupo residencial na interiorização de disposições. O capítulo IV visa, com efeito, dar conta das influências do habitat residencial na formação de determinadas características disposicionais,

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dando particular atenção ao impacto das dinâmicas de interação a que os jovens estiveram submetidos, por via do território que habitam, na constituição de atitudes incompatíveis com o seu investimento escolar e com a apropriação dos “trunfos” tidos como relevantes para gerar a inclusão social.

O quinto capítulo, dedicado à análise dos mecanismos escolares responsáveis pela acentuação das desigualdades sociais de origem dos jovens que nos ocupam, encontra-se dividido em três partes. Na primeira parte desenvolve-se uma análise acerca das condições e das oportunidades de acesso aos saberes certificados a partir de um conjunto de produções teóricas da sociologia da educação (Bourdieu, 1975, 1978; Charlot, 2000; Perrenoud, 2004, 2005), explicitando, em particular, os obstáculos que tornam particularmente problemática a missão de tornar os jovens capazes de inverterem a trajetória de exclusão escolar a que se encontram sujeitos. No ponto 2 deste capítulo são reconstruídos os seus percursos escolares, assim como a forma como cada um deles viveu, apreciou e arrumou os acontecimentos que marcaram a sua relação com o sistema de ensino. Por último, é feita uma aproximação empírica da interação entre processos educativos escolares indutores de disposições desvalorizadoras do estudo e dinâmicas educativas que procuram “arrancar” os alunos às vulnerabilidades sociais de origem. É, ainda, neste terceiro ponto que se apresenta um conjunto de reflexões a respeito das conceções pedagógicas, dos processos educacionais e das interações na sala de aula que ativaram ou, ao invés, debilitaram as disposições de origem dos jovens no decurso da sua formação escolar secundária.

Pensar teoricamente nas condições que tornam viável esse trabalho de libertação do passado impeditivo do crescimento psicológico e social é também reter os principais constrangimentos que se interpõem à ação prática e que limitam as possibilidades de experimentação das hipóteses normativas que se consideram mais adequadas. É esse o propósito a que nos lançamos nas reflexões finais deste trabalho.

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7 CAPÍTULO I

Vulnerabilidade económica, social e simbólica: é possível transformar as disposições incorporadas na infância?

1. O problema da relação entre realidade exterior e realidade subjetiva

Para compreender o processo de vulnerabilidade social a que estão expostos os jovens que fazem parte do nosso estudo, é fundamental apreendê-lo como processo dinâmico resultante da articulação de elementos objetivos e subjetivos. Em termos mais concretos, interessará desenvolver uma reflexão acerca das condições a partir das quais serão os indivíduos capazes de alterar o curso da reprodução da situação herdada dos seus progenitores ou, pelo contrário, as reforçarão, de tal maneira que a dita reprodução se aparenta a uma engrenagem irresistível.

A nossa reflexão será, assim orientada para uma questão central do ponto de vista do objetivo que nos move: o impacto das condições de existência, que são ao mesmo tempo materiais, relacionais, simbólicas, na construção do habitus, problematizando, muito em particular, a questão da possibilidade de reconstruir uma identidade social.

Partindo da hipótese de que a identidade individual se constrói, não somente na infância2 mas ao longo da vida, que nunca é um dado adquirido, que se constrói e reconstrói no seio de uma pluralidade de redes de interação, familiares, profissionais, sociais, que situam o indivíduo no mundo, em cada momento da sua vida, faz sentido interrogarmo-nos sobre os obstáculos que dificultam ou impedem esse processo crucial, para a inserção social, que é a identificação do indivíduo com um “nós”.

Seguindo de perto o estudo de Brigitte Brébant (1984)3 sobre os fenómenos psicossociológicos que impedem os pobres de mudar a sua história, uma análise que, em certa medida, encontra campo de verificação entre as famílias dos jovens que nos ocupam, valerá a pena começar por reter que, nas modernas sociedades de consumo, as perceções coletivas da

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Ainda que este período determine em grande parte a força ou a fraqueza da estruturação identitária e a confiança em si (Gaulejac & Léonetti, 1994).

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pobreza são repassadas de ambiguidade e ambivalência, evocando, ao mesmo tempo, piedade e aversão, culpabilidade e rejeição. Consumir abaixo dos padrões dominantes na sociedade de consumo, isto é, não fazer parte dos que podem adquirir os bens que significam estatuto social elevado, é uma situação que tende a ser vivida, pelos próprios, com sentimentos de vergonha. Sentimentos que, registe-se, traduzem, não somente o reconhecimento do julgamento coletivo que desacredita, mas, igualmente, representa um estado de impotência quanto às possibilidades de questionamento dessas classificações inferiorizantes.

Na sua esmagadora maioria, as famílias dos jovens em questão são residentes em bairros desqualificados, na periferia ou no centro histórico da cidade do Porto, estando, ou havendo estado, particularmente expostas a uma estigmatização social coletiva4, em virtude da lógica de relegação urbana que consiste na associação diferencial (Brinkerhoff & White, 1991) de conjuntos humanos socialmente homogéneos.

É que ao serem submetidos a uma sociabilidade obrigatória nascida da necessidade de sobreviver num espaço a que o exterior atribui má reputação, na base de uma série de estereótipos prontamente acionáveis sem necessidade de verificação, os indivíduos acabam por ficar enredados numa contradição muito difícil de superar: entre o desejo de ser outro, de esconder o lugar de onde se vem e a solidariedade com os iguais que os impele a aderir fusionalmente ao grupo que, assim, lhes é imposto.

Da necessidade de fugir à culpabilidade acima referida decorre o desejo de distinção face aos que partilham a mesma sorte, como se, ao fazer recair sobre os outros a negatividade que pesa sobre o coletivo, se libertassem do estigma que sobre eles recai. Na ausência de uma leitura política do processo de segregação espacial por parte dos residentes destes habitats, a sociabilidade tende, então, a ser atravessada por numerosas contradições e ambiguidades geradoras de rivalidades e conflitos.

As estratégias de defesa psicológica mais correntes face a essa culpabilização, decorrente da incapacidade de rejeitar a imposição do rótulo negativo, manifestam-se em dois tipos de comportamento muito corrente: interiorizar a agressão, o que dá lugar a atos de auto - exclusão, tais como demissões, recusa de sair de casa ou gestos de auto destruição, e identificar-se com o agressor, fazendo recair sobre os outros membros do grupo julgamentos

4 Vincent de Gaulejac e Isabelle Taboada Léonetti (1994) falam de relegação social para distinguir a vivência individual e coletiva do processo de desinserção social, o qual envolve sempre para além da dimensão económica, as dimensões social e simbólica. Quando esse processo é vivido e percebido individualmente, os autores denominam-no por desinserção, sendo que quando é vivido coletivamente toma o nome de relegação social.

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desvalorizantes. Lançar sobre o outro aquilo que causa angústia e amarra a uma insidiosa depreciação de si próprio é o mecanismo psicológico possível quando se está privado dos meios para enunciar e recusar os valores e mecanismos sociais que são objetivamente responsáveis pela situação de pobreza.

Todavia, privar-nos-íamos de um elemento de análise importante se não nos interrogássemos sobre as formas de integração interna que produzem normas e contra valores, e que podem ser compreendidas, então, como formas de integração nas margens5 (Gaulejac & Léonetti, 1994). Se é preciso reconhecer a flutuação e a fragilidade dos grupos, as rivalidades, os conflitos que os atravessam, nem assim será legítimo assimilar rapidamente a relegação urbana à anomia total, à desintegração social e à pulverização de todos os laços sociais.

Se é certo que a desvalorização com base no habitat tende a ter um impacto generalizado sobre os habitantes, é preciso assumir uma atitude de vigilância crítica relativamente à tentação de pressupor que a partilha de um mesmo território desvalorizado inviabiliza qualquer forma de solidariedade positiva. Igualmente importante é resistir à tentação de pressupor que essa partilha induz reações e modos uniformes de construir a identidade.

Nesses lugares, onde a gestão dos constrangimentos exteriores precipita uma sociabilidade de grupo, é possível observar formas de entre ajuda que se traduzem pela prestação de pequenos serviços que permitem mitigar as incertezas da vida quotidiana, a par de muitas formas de agressividade e violência que parecem traduzir um embotamento da sensibilidade e uma forte banalização das relações interpessoais.

Tudo parece indicar que a construção das identidades coletivas é um processo extremamente problemático quando a luta pela sobrevivência ocorre nas condições francamente adversas que anteriormente foram descritas. Na falta de recursos para negociar e inverter a desvalorização simbólica, aumentam as probabilidades de apenas ser possível aceder a uma identidade social com recurso às “armas dos desarmados” (Bourdieu, 1977), que o mesmo é dizer, a estratégias de inversão de sentido que induzem formas de integração social nas margens (Gaulejac & Léonetti, 1994).

5 A inserção nas margens constitui uma das estratégias identitárias de contornamento a situações de desvalorização social, refletida por Gaulejac e Léonetti (1994), na obra La lutte des places. De acordo com os autores, a inversão do sentido normativo dado a uma conduta específica permite realizar ações socialmente reprovadas sem se deixar de conservar a estima por si próprio. Com efeito, quando o contrassistema de valores é partilhado por um grupo (bando, clã, gang, seita) que produz o seu próprio ideal social, oposto às normas dominantes, pode-se falar, para os autores em causa, de uma verdadeira integração nas margens.

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Quando todas as expectativas foram eliminadas, quando os dias se sucedem numa rotina sem horizontes, se esgotam num vazio de objetivos, de projetos, de ocupações, de organizações que ofereçam oportunidades de descobrir interesses, estão criadas condições para que os jovens passem o tempo em torno do nada, até que, chegado o momento em que esse vazio se torna insuportável, se precipitam em explosões de violência aparentemente gratuita.

Para compreender esses atos de violência que parece gratuita é necessário ter em conta a degradação da relação do indivíduo com o seu ambiente, designadamente a privação do reconhecimento da sociedade envolvente e o vazio que “ocupa” as suas vidas. Tudo se passa como se para escapar à negação e ao anonimato apenas existisse o caminho das revoltas e cóleras que desembocam em processos destrutivos contra os outros e contra os próprios, como se a violência absurda fosse o único meio de fazer face ao sem sentido das suas vidas.

Num quadro de escassez de recursos culturais e de confiança mínima para fazer face ao problema, não existem muitas vias para questionar a génese e a reprodução da vulnerabilidade social e tentar uma adaptação capaz de mitigar, de alguma forma, o sofrimento insustentável. Isso explica o recurso a estratégias defensivas, tais como remeter as possibilidades de mudança de vida para a sorte ou o acaso milagroso, para o gosto pronunciado pelo jogo, pelos acontecimentos sensação, pela fabulação, pelos modelos heroicos. O que está em causa é, ao fim e ao cabo, a expressão imaginária de uma condição desejável que não se consegue expressar ativamente.

Fornecendo um suporte securizante que, de algum modo, permite viver sem projetos e fazer face às necessidades imediatas, o “gueto” forja uma espécie de organização bem adaptada ao exercício de uma função predominante: viver o instante presente, dia a dia, hora a hora e até minuto a minuto, criar uma certa desenvoltura em matéria de expedientes, legais ou ilegais.

Em síntese, o que melhor caracterizará a cultura que é produzida nestas condições é o jogo contraditório entre união, de um lado, e divisão conducente ao isolamento, do outro. Uma cultura que tem alguns pontos de contacto com a “cultura da pobreza” de que fala Óscar Lewis (1979). Uma cultura que embora faça emergir um sentimento de pertença a uma comunidade fundada sobre um modo de vida comum, não permite que o sentimento de comunidade possa ser o fundamento de uma identidade coletiva definida por relação aos outros grupos sociais. Num quadro em que os indivíduos são obrigados a pertencer ao grupo

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exclusivamente movidos por relações de dependência, a estruturação do grupo fica sempre ameaçada por uma contradição que interdita a formação do grupo real. Isto é, existe uma recusa individual de pertença ao grupo, ao mesmo tempo que não é possível sobreviver fora das relações interpessoais, de ordem económica e simbólica, que esse mesmo grupo proporciona.

Como explicar que a pertença a um grupo social, sujeito aos mesmos constrangimentos, se apresente como uma conquista difícil de alcançar? Como diz Brigitte Brébant (1984), é preciso sublinhar a impossibilidade de fugir ao peso do sentimento de vergonha e à culpabilidade que ele acarreta. Para escapar à culpabilidade convém afirmar-se como diferente dos outros e rejeitar o grupo, símbolo deste fracasso ressentido por cada um como individual.

De sublinhar que as instituições, muito em especial as do âmbito do poder autárquico, não deixam de dar um contributo para a interiorização desse sentimento, desde logo por se demitirem de apoiar formas de organização coletiva em torno da criação de equipamentos coletivos orientados para a satisfação das várias necessidades dessas populações, designadamente a de enquadrar os mais jovens em ofertas formativas, escolares, culturais, desportivas, que permitissem melhorar o seu desempenho na escola, preencher o seu quotidiano, conceber projetos de vida, descobrir interesses. Em suma, para resistir e contrariar os rótulos que facilmente sobre eles recaem, seria necessário que nesses locais se desenvolvessem processos de valorização coletiva expressamente investidos na qualificação das pessoas e na demonstração pública do seu valor. Na realidade, ao descurarem os problemas inerentes à privação social e simbólica, para que concorrem ativamente, as políticas de ordenamento do território e as de habitação social, em particular, evidenciam que na base da sua intervenção está a dificuldade de compreender que o modo de construir o espaço está longe de ser redutível aos aspetos mais elementares do conforto. Demitindo-se de apoiar a organização coletiva das populações alojadas com vista à sua afirmação simbólica e à superação do seu isolamento por via da implementação de programas de desenvolvimento social, as políticas de alojamento social são, na realidade, parte ativa do problema.

Para a compreensão do que confere a este grupo de jovens uma estruturação contraditória com efeitos negativos no que toca à capacidade de gerar a mudança em direção à ascensão social, vale, ainda, a pena ter em conta que para o sentimento de vergonha, que bloqueia a passagem do individual ao coletivo, muito contribuirá a difusão de uma ideologia

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que, de modo subtil e difuso, mascara os processos sociais que realmente conferem à pobreza um caráter estrutural.

Na falta dessa leitura lúcida sobre as condições sociais da produção do fenómeno coletivo, prevalece uma espécie de confusão ambivalente que impede os indivíduos de se percecionarem a si próprios como produto de processos estruturais de exclusão. Da análise dos processos subjetivos que são desencadeados nos indivíduos socialmente relegados resulta claro que, no coração da reprodução do fenómeno, está a dificuldade de gerar uma consciência do jogo de forças sociais que obrigam a que as relações sociais sejam, nesses espaços, reduzidas à sua forma mais residual.

Referimo-nos ao processo original de constituição desses habitats residenciais, nuns casos sem qualquer espécie de participação dos residentes, desalojados das ilhas da cidade do Porto, noutros, traduzindo um movimento de forte recomposição da população residente, já que são zonas antigas de atração das populações menos solventes que chegaram à cidade. Neste último caso, as tensões ligadas à produção do habitat prendem-se com a decomposição dos laços sociais tradicionais, criados e recriados pelas mais antigas gerações de moradores, em virtude do duplo processo de saída e de chegada de novos moradores.

Embora com histórias diferentes, os dois tipos de habitat, de onde são originários os jovens implicados no projeto de investigação operacional, de que aqui estamos a dar conta, apresentam a comum característica de serem espaços onde não existem formas de vida associativa com capacidade para contrariar e inverter a lógica da desvalorização coletiva e de atomização dos moradores, o que contribui para explicar as práticas violentas contra o construído.

Para quem pretende assumir uma atitude problematizadora a respeito das circunstâncias em que a mudança individual poderá ocorrer, faz todo o sentido começar por rever o que de essencial foi teoricamente produzido a respeito do processo de socialização. Para nós, o problema essencial passa pela busca dos fundamentos que sustentam a crítica das posições que, atribuindo um peso determinístico às primeiras aquisições, acabam por postular uma inevitável e insuperável dependência do futuro do indivíduo relativamente à matriz de perceção, sentido e ação interiorizada na primeira infância.

A nossa pretensão de construir um encadeado de proposições teóricas sobre as possibilidades de reelaboração identitária dos jovens em questão, impõe que nos detenhamos sobre o problema da relação entre realidade exterior e realidade subjetiva, procurando

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ultrapassar as posições dicotómicas, relativamente estéreis, no que respeita à interação entre fenómenos sociológicos e psicológicos.

Estamos a referir-nos ao debate que opõe a tese da subcultura da pobreza à tese estruturalista que elege os constrangimentos alheios à vontade e ação dos indivíduos em fator determinante da situação de pobreza (Paugam, 1991). É certo que para a consolidação do estatuto de pobreza muito contribuem as lógicas e mecanismos estruturais geradores de desigualdades sociais6, tais como as políticas de habitação social, que remetem parte importante da população para guetos, as desigualdades face à escola, onde a inexistência de uma verdadeira política de democratização do acesso ao saber continua a inviabilizar o acesso à qualificação escolar e profissional, as desigualdades provocadas por um sistema de emprego atravessado por lógicas que naturalizam o funcionamento da economia e submetem a vida social à violência dos imperativos dos atores dominantes no campo económico.

Assumir esta perspetiva que reconhece o lugar das causas externas, muito em especial dos fatores de produção das desigualdades sociais mais gravosas e iníquas do ponto de vista das condições de existência, não obriga, quanto a nós, a ignorar os efeitos dessas desigualdades sobre a vida psíquica dos indivíduos, os seus comportamentos e a sua identidade profunda.

Trata-se, então, de analisar até que ponto certas condições de existência demasiado penosas, não só do ponto de vista da escassez dos bens materiais mas, também, no que respeita à inexistência de capitais social e simbólico, podem instalar formas de reação psicológica e estados de consciência específicos que, retroagindo sobre os fatores externos, acabam por reforçar a sua ação e lhe conferir o caráter de uma engrenagem que se autoreproduz de geração em geração.

A perspetiva teórica que valoriza a análise dos sentimentos de desespero provocados pela vivência de situações de marginalização, algumas delas muito violentas do ponto de vista da degradação simbólica e relacional, assim como o sistema de racionalizações e de autodefesa que permite suportar essa privação, não é incompatível com a abordagem estrutural, desde que a esta se reconheça o caráter de fator primeiro e determinante da produção de subculturas de pobreza.

Todavia, uma vez instaladas, essas subculturas não são automaticamente transformáveis por via da ampliação formal das oportunidades de acesso aos vários tipos de recursos

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socialmente úteis. O que queremos dizer é que, sendo a consequência de um sistema social produtor de desigualdades sociais, as situações que dão lugar à produção de culturas mais ou menos aproximadas do que Óscar Lewis (1979) codificou como subcultura de pobreza instalam estruturas subjetivas cuja evolução e mudança não é possível sem um trabalho de reelaboração do indivíduo sobre as suas próprias racionalizações dos fracassos vivenciados.

Se é certo que o afastamento, temporário ou definitivo, dos mais desmunidos do mercado de trabalho e das instituições não decorre, em primeira instância, do seu desinteresse pelos valores da sociedade global, mas antes da consciência que têm da falta de poder e de instrução para aceder às oportunidades de promoção social e escapar ao destino da exclusão social, não será menos certo que os mecanismos psicológicos de defesa que assim se instalam dão lugar a estruturas subjetivas duráveis que podem inviabilizar ou dificultar a participação em eventuais processos de emancipação social.

Assumir esta posição teórica não é, ainda, suficiente para suprimir as ambiguidades contidas na noção de cultura de pobreza, precisamente na medida em que, nem é possível identificar um nível objetivo da pobreza, nem, tão pouco, encontrar uma homogeneidade social entre os pobres, assim como não é exato que constituam um grupo real.

Para controlar essas ambiguidades é crucial começar por ter em conta, como assinala Serge Paugam (1991), que a designação “pobres” faz parte de um processo de classificação que toma como referência uma distância em relação às normas dominantes na sociedade global.

Daí a centralidade da análise dos processos sociais que conduzem à designação e à etiquetagem das populações menos favorecidas para compreender que estamos em presença de um fenómeno para cuja produção também contribuem as conceções sócio éticas inscritas nas noções de êxito e de fracasso próprias de cada lugar e de cada época histórica. Noutros termos, o processo de classificação faz parte dos mecanismos mais gerais de produção do problema.

Nessa perspetiva complexa, analisar a privação de condições de socialização, familiar, comunitária, escolar, compatíveis com a apropriação de “trunfos” socialmente necessários, é dar conta que os jovens são desapossados não apenas dos recursos educacionais que lhes dariam acesso a um lugar na vida económica mas, também, de recursos relacionais e simbólicos indispensáveis para não se ser socialmente relegado e impossibilitado de ocupar um lugar na sociedade.

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Refletir acerca das possibilidades de mudança do habitus ou diluir o processo de

hysteresis do habitus (Bourdieu, 1963, 1979) é a questão nuclear da investigação que

pretendemos levar a cabo, desde logo pela circunstância de os jovens em causa se encontrarem submetidos a uma pluralidade de privações, cuja interação altamente perniciosa, neles instalou um tipo de realidade interna fortemente resistente à saída da situação herdada. Não se tratando de jovens provenientes de meios sociais exclusivamente afetados pela privação económica, se tivermos em conta os padrões de vida e de consumo tidos como normais na sociedade em que vivemos, mas igualmente privados de recursos sociais e simbólicos, coloca-se o problema de saber como desalojar os mecanismos estruturais de psicoadaptação a uma conjugação tão nefasta de fatores.

Nascidos em famílias que protagonizam situações de vulnerabilidade social mais ou menos graves, desde a resultante de baixas qualificações profissionais e inserção no mercado de trabalho secundário, à residência em agrupamentos severamente restritivos do ponto de vista da variedade e riqueza das relações sociais, à pura ausência das figuras parentais, em virtude da sua dependência de drogas ou de outras práticas altamente disruptoras (por exemplo, o alcoolismo e o desemprego) da vida familiar e gravemente atentatórias do auto conceito (por exemplo, a prostituição), até às situações de monoparentalidade que se traduzem numa real dificuldade de educar, os jovens que nos ocupam apresentam um conjunto de características que nos remetem para o problema teórico e prático da ressocialização. Daí que, em primeiro lugar, nos confrontemos com a necessidade de discutir teoricamente esse processo complexo que é a aprendizagem do comportamento humano.

Se tivermos em conta os trabalhos de Piaget (1970) sobre a cognição humana, sabemos que a aprendizagem é um processo dinâmico e ativo que ocorre segundo uma sucessão de estádios de equilíbrio e de desequilíbrio em busca da adaptação ao meio. Sendo um processo aberto, em constante evolução consoante o desequilíbrio provocado por novas situações cuja adaptação requer a construção de estruturas mentais mais evoluídas, fica claro, no pensamento deste autor, que o ser humano possui uma inteligência plástica, que o mesmo é dizer, que as suas estruturas psicológicas não ficam definitivamente construídas na primeira infância.

É uma tese que, de algum modo, parece contrariar a teoria freudiana segundo a qual a qualidade afetiva e social das experiências da primeira infância determina, inexoravelmente, para o bem e para o mal, as aquisições que o indivíduo pode fazer ao longo da vida. Como se toda a história do indivíduo ficasse decidida nessa fase inicial, esta perspetiva subscreve um

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certo determinismo fatalista que quase postula a impossibilidade de nos libertarmos do que nos foi proporcionado pelos adultos que marcaram o universo da socialização primária.

O peso dessas aprendizagens primordiais é explicado, pelos estudiosos inspirados em Freud (1996), a partir de um mecanismo considerado crucial na aprendizagem dos valores e dos significados acionados na vida social. Trata-se do mecanismo que determina a identificação com os adultos significativos a partir do desejo de obter o seu afeto. É a enorme carga emotiva e afetiva que, segundo a perspetiva psicanalítica, está na origem da incorporação profunda dos modos de pensar, de sentir e de agir dos adultos que povoam o meio em que se nasceu e que confere a essas estruturas de perceção, de interpretação e de sentido um caráter absoluto. A realidade que é apresentada pelos “outros significativos” é, assim, tida como a única existente, que o mesmo é dizer, como universal, o que explica a dificuldade de alterar o habitus incorporado através da socialização primária.

Erick Erickson (1998), um autor que reelaborou a perspetiva freudiana, embora sem a recusar, avança contributos valiosos para compreender os dilemas inerentes ao desenvolvimento humano e apreender as condições de que decorrem as possibilidades de realizar as aprendizagens e as estruturações psicológicas que não foram feitas nas primeiras fases do desenvolvimento humano. A sua abordagem da construção identitária como processo ao mesmo tempo individual e social relativiza claramente o determinismo que é atribuído às ruturas ocorridas nas primeiras etapas da vida.

Eis como no próprio domínio disciplinar da psicologia se debatem abordagens teóricas que abrem caminho para a construção de sínteses teóricas mais complexas e, logo, mais apetrechadas para dar conta da multiplicidade de fatores que interferem na aprendizagem.

Ora, se é certo que a matriz de perceção, de apreciação e de sentido incorporada na infância possui um peso muito forte em virtude das identificações afetivas profundas que acompanharam a sua interiorização, não deixa de ser, igualmente, certo, que o choque com outras realidades distintas da que foi imposta à nascença confronta o indivíduo com a necessidade de adquirir outras referências, conhecimentos, valores, atitudes, padrões de conduta, etc.

Se, como mostra Piaget (1970), esse confronto com o novo é, em si mesmo, fator desencadeador de uma maior complexificação das estruturas psicológicas, resta saber se esse confronto não pode gerar fenómenos de resistência e de petrificação que inviabilizam a reorganização das estruturas psicológicas anteriormente adquiridas.

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Será necessário esclarecer as condições em que o confronto com situações, até então desconhecidas, pode desencadear a evolução em ordem ao desenvolvimento sócio cognitivo. Interessa, igualmente, identificar as situações em que essa evolução se torna impossível.

No caso dos jovens que nos ocupam, o problema, talvez mais um dilema, reside no facto de o contraste gritante entre a cultura e o modo de vida do meio familiar e residencial e os padrões culturais dos outros contextos de socialização se encontrar associado a uma desvalorização simbólica severa. O problema crucial para gerar o seu desenvolvimento sócio – cognitivo está em saber até que ponto a contradição profunda entre o meio de que são originários e os meios exteriores, como, por exemplo, a escola, instala uma dolorosa divisão interior, e até que ponto esse sofrimento rouba as energias necessárias para investir na reestruturação das aprendizagens incorporadas na infância.

Se dermos conta que o confronto com meios diversos do familiar envolve processos sociais de desvalorização, de inferiorização, que instalam sentimentos de fracasso e de impotência, é de admitir a hipótese de, nestas circunstâncias, esse processo de acomodação ao real, envolvendo sucessivos desequilíbrios e reorganizações das estruturas psicológicas, de que falava Piaget, se tornar inviável ou, pelo menos, problemático.

Mais uma vez, a reflexão teórica de Erickson (1998) ajuda a perceber que as aquisições típicas das sucessivas etapas do desenvolvimento, que não foram adequadamente desenvolvidas no tempo certo, são irrealizáveis se não forem reunidas certas condições básicas inerentes a esse processo.

Se o longo e doloroso caminho que é preciso percorrer para alcançar os conhecimentos e as competências sociais que os tirariam da pobreza é, já de si, um entrave à motivação para investir na aprendizagem de conteúdos escolares e outros, o problema torna-se ainda mais complexo quando, a essa perceção de ter que correr para uma meta demasiado difícil, se acrescenta a autopercepção de serem indivíduos pouco capazes e sem valor. Então, são muitas as probabilidades de se ficar prisioneiro na cultura de origem, de se ficar amarrado ao destino traçado no berço.

E, se tivermos em conta que as vivências familiares dos jovens foram atravessadas por choques biográficos graves, tais como a toxicodependência, o alcoolismo ou a prostituição de um dos progenitores, choques esses que introduziram numerosos conflitos e ambiguidades nas relações parentais, mais se compreende que o problema da sua ressocialização não remete apenas para as questões do interculturalismo. O que queremos dizer, é que os dramas afetivos

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ocorridos na primeira socialização instalaram, em muitos dos jovens de que estamos a falar, conflitos internos que, ao atentarem seriamente contra o auto conceito, dificultam, e muito, o referido processo de construção de novas estruturas mentais a partir do confronto com as situações ocorridas em contextos de socialização secundária.

É que para ser possível enfrentar qualquer obstáculo que obrigue a reelaborar o que anteriormente foi adquirido é preciso uma confiança básica nas próprias capacidades, para já não falar da confiança nos outros significativos (Berger & Luckmann, 1996 [1966]) que intervêm no trabalho de transformação da realidade subjetiva construída nas vivências que foram impostas no seio familiar. Essa questão da confiança pode assumir contornos problemáticos sempre que as primeiras ligações afetivas foram marcadas pela incoerência, a instabilidade e a ambiguidade, situação, aliás, muito corrente entre os jovens que são parte do nosso objeto de estudo/intervenção. Como confiar nos adultos que se dispõem a estabelecer uma relação implicada em ordem à conquista das aquisições que nos dias de hoje condicionam a inserção social se os próprios pais nunca lhes deram provas inequívocas de que são merecedores de uma atenção incondicional, nunca lhes deram provas de que se encontram no centro da sua atenção?

Na realidade, alguns dos jovens de que estamos a falar foram originados por pais que os habituaram à terrível frustração de serem esquecidos e abandonados a si próprios, sem outro motivo que não seja o da concentração em si próprios e da sua escassa disponibilidade para acompanharem o seu crescimento. Noutros, a dificuldade de fazerem a transição para uma vida adulta socialmente inclusiva prende-se tão só com a falta de recursos culturais e psicológicos dos pais, cuja história não lhes permitiu apetrecharem-se dos saberes necessários para lhes poderem proporcionar uma orientação adequada às exigências das sociedades modernas. Neste segundo caso, o difícil trabalho de articulação e integração dos diferentes mundos em que se processa a vida do jovem fica inteiramente a seu próprio cargo, corroborando a tese de Elias (2004) de que nas sociedades complexas cabe exclusivamente ao indivíduo encontrar as “pontes” entre os diversos contextos da vida social.

O nosso interesse em empreender a análise de uma intervenção centrada nas possibilidades de inverter trajetórias de desinvestimento nos estudos e na qualificação profissional leva a eleger um conjunto de perguntas que, apesar de clássicas na sociologia da educação, nos parecem da maior pertinência.

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Como se formam as disposições ou os esquemas que conduzem o comportamento dos indivíduos?

Será que é possível reconstruir essas disposições através de um trabalho sistemático de contra socialização?

Será que pelo facto de não formarem um sistema coerente e harmonioso, as múltiplas disposições incorporadas são suscetíveis de mudança, podendo ser gradualmente substituídas por outras mais favoráveis à aquisição dos trunfos indispensáveis para sair da vulnerabilidade social?

Será possível apagá-las progressivamente até ao seu desaparecimento completo por falta de atualização?

Será possível medir o processo de constituição das novas disposições, nomeadamente através da frequência e da intensidade do treino realizado?

A reflexão de Norbert Elias (2004) a respeito do conceito de hábito social fornece pistas pertinentes para conceber respostas às questões acima retidas. Uma primeira ideia que dele se pode retirar é que cada homem singular, sendo diferente de todos os outros, traz em si o hábito de um grupo, ou seja, é ao mesmo um ser individual e social. Não existe nenhuma identidade do “eu” sem identidade do “nós”. Todavia, facto que é facilmente esquecido, nem o eu nem o nós possuem um caráter estático. Toda a pessoa evolui no curso da sua existência, podendo dizer-se que, por exemplo, aos cinquenta anos é uma pessoa diferente daquela que era aos dez. Quando este mesmo indivíduo pronuncia a palavra “eu” não se refere à mesma pessoa que era quando tinha dez anos, nem tem, tão pouco, a mesma estrutura de personalidade que possuía aos dez anos. No entanto, é a mesma pessoa.

Para compreender o problema da identidade individual do homem ao longo da sua vida, é indispensável ter em conta a natureza processual do homem, o que não dispensa a construção de instrumentos conceptuais adequados.

Os aspetos biológicos, psicológicos e sociológicos que determinam a evolução da personalidade humana têm sido objeto de várias disciplinas que funcionam separadamente umas das outras e que, por isso mesmo, os apresentam como se existissem separadamente. Por isso, a tarefa essencial da investigação, neste domínio, remete para a compreensão e explicação da engrenagem e do entrelaçamento destes aspetos no processo identitário. Só através de um modelo teórico que recorra a conceitos comunicáveis, diz Elias (2004), será possível empreender tal tarefa.

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A construção da identidade é um processo evolutivo contínuo, segundo uma sucessão de fases que podem variar em função da diversidade dos contextos sociais a que o indivíduo acede. Não existe apenas um caminho para estruturar a personalidade, conceção que rompe com a tese do evolucionismo, quase natural, que está presente em muitas abordagens psicológicas do desenvolvimento humano.

Os contextos relacionais onde os indivíduos podem aprender a dizer “nós” são os mais variados e correspondem a níveis de integração também eles diversos. Família, amigos, aldeias ou cidades onde vivem, nação a que pertencem, o mundo ou a própria humanidade, representam níveis em que o uso do pronome pessoal “nós” envolve estados afetivos e emocionais mais ou menos intensos.

Quando se trata da família, os matizes emocionais da identidade são geralmente mais fortes do que no caso do local de habitação, da terra, ou da pertença ao Estado nacional, ou a formas de integração pós-nacionais7. A família continua a ser uma associação humana que, para o bem e para o mal, envolve um empenho forte e uma carga afetiva elevada dos indivíduos que lhe pertencem, funcionando, por isso, como um ponto de referência forte da identidade do “nós”.

Todavia, diz Elias (2004), há que reconhecer que as transformações estruturais profundas que vêm ocorrendo nas modernas sociedades mais desenvolvidas induziram uma mudança substancial do sentimento no seio familiar. Se, nas fases iniciais da evolução social, o homem singular não podia escapar à relação com a família, se esta lhe pertencia para a vida e para a morte, nas sociedades atuais, o indivíduo adulto passou a poder autonomizar-se da família, normalmente sem perda de oportunidades de sobrevivência, física ou social.

A perceção do “eu” como a única existência permanente, como a “única pessoa com que

temos de viver vitaliciamente” (Elias, 2004: 207) é uma aquisição recente decorrente da

crescente inconstância de muitas relações do “nós”, que anteriormente se impunham de modo vitalício, inevitável. Muitas relações familiares que haviam sido sentidas como uma imposição exterior pela maior parte das pessoas, já não se apresentam hoje com o caráter duma ligação obrigatória e irrevogável. Passaram a ser facultativas e revogáveis, exigindo, por conseguinte, uma maior participação e autorregulamentação dos indivíduos.

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Elias refere que “a função do nível de integração mais elevado da humanidade, enquanto unidade de referência da identidade do “nós” dos homens, talvez se encontre em crescimento. Mas, não será exagerado dizer que, para a maior parte dos homens, a humanidade enquanto ponto de referência da identidade do “nós” é um espaço em branco no mapa das emoções? (Elias, 2004: 226)

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Também as transformações das relações profissionais apontam neste sentido da deslocação do equilíbrio “eu – nós” em favor do “eu”, principalmente nos países mais desenvolvidos.

A maior permutabilidade e menor permanência das relações induziram uma forma particular do hábito social, que o mesmo é dizer, relações que exigem das pessoas individuais uma maior capacidade de auto – regulação, maior prudência, diminuição da espontaneidade no agir e no falar, sem apagar, no entanto, a necessidade elementar de calor irrefletido e de espontaneidade na relação com outras pessoas. A necessidade de segurança e constância da afirmação afetiva, o desejo de estar junto das pessoas de quem se gosta não desapareceram, não obstante a maior formalidade e impessoalidade das relações sociais.

Elevada individualização e grande heterogeneidade e variabilidade das relações pessoais são duas realidades que, não raro, dão lugar a situações de conflito interno ao próprio “eu”, precisamente em virtude da fragilidade ou ausência das referências ao “nós”. O hábito da prudência e do cuidado na concretização de relações não sufocou o desejo de dar e de receber calor afetivo e estabilidade na relação com os outros. A possibilidade de dar e receber a afirmação afetiva é que se tornou mais problemática, pelo facto de a relação haver passado a envolver um maior risco, uma vez que a variabilidade das respostas expõe o indivíduo a uma incerteza e insegurança que não existiam nos grupos tradicionais.

Se os modos de relacionamento são menos prescritos e, logo, menos previsíveis, a exposição do indivíduo à frustração e à perda de si explicam o risco que acarreta ser espontâneo. É por isso que “os homens procuram e desejam a afirmação dos afetos, mas

perderam a capacidade de a retribuir com a mesma espontaneidade e o mesmo calor, quando se deparam com ela.” (Elias, 2004: 228)

Se procurarmos utilizar esta referência teórica de Elias na análise do processo identitário dos jovens que nos ocupam, uma questão nos surge, desde logo.

Se nas sociedades atuais, as forças atenuadoras do “nós” se impõem transversalmente a todos os indivíduos, independentemente dos grupos sociais em que se integram, fará sentido falar de uma especificidade peculiar das categorias sociais simbolicamente mais desvalorizadas, como é o caso dos que vivem a desqualificação social?

Se as sociedades atuais impõem ao “eu” a imensa responsabilidade de encontrar um rumo no meio da incerteza, da imprevisibilidade e da escassez de prescrições orientadoras das

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