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CRÍTICA À FORMAÇÃO DO GENTIL-HOMEM DE LOCKE NO CONTEXTO DA SOCIEDADE DO CAPITAL

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Academic year: 2020

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CRÍTICA À FORMAÇÃO

DO GENTIL-HOMEM DE LOCKE

NO CONTEXTO DA SOCIEDADE

DO CAPITAL*

LILIANE BARROS ALMEIDA** ALINE DE FÁTIMA SALES SILVA***

* Recebido em: 12.06.2019. Aprovado em: 01.10.2019. ** Universidade Estatual de Goiás. E-mail: lba.liliane@gmail.com

*** Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Goiás. E-mail: alineufg@yahoo.com.br

DOI 10.18224/frag.v29i2.7411

DOSSIÊ

Resumo: John Locke viveu em uma época em que o capitalismo, ainda que de forma incipiente, se estruturava e com o olhar acurado já era possível observar os rumos pelos quais a sociedade iria trilhar nos séculos posteriores. A burguesia se fortalecia vigorosa e o consistente e o contínuo comércio internacional movimentava a Inglaterra e os homens de seu tempo. Para o empirista inglês, ao nascer, o homem é como uma tábula rasa, uma folha de papel em branco que somente a partir da experiência sensível pode-se lhe imprimir na mente todo o conhecimento do mundo. Nesse sentido o homem é partícipe ativo de suas construções, tanto no campo do conhecimento como da ação política. É ele o responsável por suas escolhas e por seu destino, no modelo liberal de sociedade elaborado por Locke. Para além da formação do homem industrioso proposta por Locke é necessário formar para a convivência, para a ética, a justiça e o bem, superando a es-fera do imediato, do supérfluo, do lucro, do que é venal, numa concepção crítica da existência que considere o ser, a essência, a verdade, a virtude, enfim, os valores perenes da existência individual e coletiva.

Palavras-chave: Formação humana. Capitalismo. Sociedade.

O homem, sendo senhor de si próprio e proprietário de sua pessoa e das ações ou do trabalho que executa, teria em si mesmo a base da propriedade; e o que forma a maior parte do que aplica ao sustento ou conforto do próprio ser.

(John Locke) Todo indivíduo empenha-se continuamente em descobrir a aplicação mais vantajosa de todo capital que possui. Com efeito, o que o indivíduo tem em vista é sua própria vantagem, e não a da sociedade.

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iberdade, propriedade e trabalho são conceitos fundamentais para a compreensão do homem em Locke. A propriedade para além da exterioridade reside no próprio homem. Todo homem é, portanto, proprietário de si mesmo e, agregando a essa propriedade preexistente o trabalho, o homem amplia sua propriedade inicial e garante por direito sua liberdade, seus bens, sua vida.

O fato de agregar trabalho ao que a natureza deu em comum aos homens autoriza e garante o direito de propriedade que é fruto do esforço pessoal racional, coerente e justo com o ato realizado.

Cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa ; sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a na-tureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade (LOCKE,1983, p. 45).

O homem nesses termos se define na relação liberdade-trabalho-propriedade, ele é livre para construir sua existência pelo trabalho, graças a sua propriedade inicial que pode ser infinitamente ampliada. Assim, quanto mais trabalho, mais bens, mais o homem desenvolve suas capacidades e possibilidades individualmente, garante sua liberdade pela extensão de seus bens, garantido desse modo sua própria existência.

De fundamentação jusnaturalista, Locke retoma o estado de natureza para compre-ender a ação humana na relação com o outro, a justiça, a liberdade e a propriedade. Para o filósofo o homem nasce com direito a perfeita liberdade, no estado de natureza ele se encontra livre para agir conforme achar conveniente, desde que essa liberdade não contrarie a lei da natureza.

O estado de natureza tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que tão só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses (LOCKE, 1983, p. 36).

A liberdade perfeita no estado de natureza é aquela que não fere o direito natural do outro nem a lei da natureza "que importa na paz e na preservação de toda a humanidade" (LOCKE, 1983, p. 36). Porém, perfeita não significa que seja absoluta, a liberdade ilimitada conduziria os homens ao estado de guerra permanente já que não haveria o mínimo de ra-cionalidade na condução das ações, cada um deixando que seus apetites governassem, agiria de acordo com seus desejos e nessas condições poder-se-ia cair facilmente numa selvageria desmedida. Assim é que a lei da natureza regula os comportamentos e deve ser preservada aci-ma de tudo por todos, de foraci-ma que "qualquer um tem o direito de castigar os transgressores dessa lei em tal grau que lhe impeça a violação" (LOCKE, 1983, p. 36).

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Segundo Locke, esse é o inconveniente do estado de natureza. À medida que cada um tem o direito de castigar aquele que infringir a lei natural, é quase impossível estabelecer os limites dessa autoridade e mais difícil ainda é julgar a si mesmo por seus próprios delitos. Não tendo um juiz comum que possa regular essas ações, resta aos homens o apelo aos céus e se estabelece um estado de guerra. Essa situação é extremamente perniciosa para todos porque pode levar à violência extrema, a injustiça e a destruição.

Evitar esse estado de guerra - na qual não há apelo senão para o céu, e no qual qualquer divergência, por menor que seja, é capaz de ir dar, se não houver autoridade que decida entre os contendores - é a razão decisiva para que os homens se reúnam em sociedade deixando o estado de natureza (LOCKE, 1983, p. 42).

Locke se opôs radicalmente ao modelo político absolutista monárquico, sobretudo, à ideia da concessão divina do poder, demonstrando a partir do conceito do estado de natu-reza, que todos os homens são igualmente livres em sua gênese e essência, capazes de decidir por suas próprias razões o que é melhor para cada um individualmente como para toda a coletividade, dispensando a figura do monarca na condução dos negócios da cidade. Desta constatação, o contrato social surge como meio de garantir que as liberdades individuais se-jam preservadas, sobretudo, a propriedade.

Nesses termos todos somos livres e proprietários, pois, a primeira propriedade que o homem possui como dissemos anteriormente, é a propriedade de seu próprio corpo e para assegurar a boa constituição dessa primeira propriedade é imprescindível que se tenha o mí-nimo necessário à sua subsistência - comida, bebida, repouso - como garantia de sua própria conservação. Esse é um direito imprescritível, nos termos de hoje, que Locke denomina "ra-zão natural". O homem pode e deve retirar da natureza o que for necessário à garantia de sua existência.

Portanto, além da propriedade inicial existente em cada pessoa, há ainda a proprie-dade concedida por Deus à humaniproprie-dade, assim, cada um pode ter também como proprieproprie-dade uma parte dessa herança compartilhada, desde que trabalhe por ela, garantindo assim o di-reito legítimo de usufruir de sua parcela para o seu próprio benefício como dos demais, pois,

Deus, que deu o mundo aos homens em comum, também lhes deu a razão para que a utilizasse para maior proveito da vida e da própria conveniência. Concedeu-se a terra e tudo quanto ela contém ao homem para o sustento e conforto da existência. E, embora todos os frutos que ela produz naturalmente e todos os animais que alimenta pertença à Humanidade em comum, conforme produzidos pela mão espontânea da natureza; contudo, destinando-se ao uso dos homens, deve haver necessariamente meios de apropria-los de certa maneira antes de serem utilizados ou de se tornarem de qualquer modo benéficos a qualquer indivíduo em particular (LOCKE, 1983, p. 45).

Para o empirista, o mundo que aí está pode e deve ser útil ao homem, que é livre para tirar o máximo proveito dos recursos disponíveis até o limite de não prejudicar outros seres humanos. Entretanto, qual é o limite da apropriação dos recursos naturais? Para esta-belecer esse limite, Locke desenvolve a ideia do uso diligente e racional dos recursos naturais cedidos por Deus aos homens. Dessa forma, os recursos não estão disponíveis para o abuso, o

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luxo e a usurpação dos direitos do outro, mas, para que o homem pelo seu trabalho melhore e amplie as reservas comuns da humanidade, separando a parte dessa reserva em que agregou o seu trabalho, para o seu próprio benefício.

A parcela que cada um irá tornar sua propriedade por meio do trabalho, dependerá do esforço individual e de certo modo, das habilidades, peculiaridades e talentos pessoais pró-prios das desigualdades naturais e sociais entre os homens. Necessariamente os mais racionais, mais diligentes, mais industriosos, reunirão as melhores condições para assumir o controle das atividades produtivas e consequentemente da sociedade, daí as distinções entre os postos na sociedade: "supondo o mundo dado como foi, aos filhos dos homens em comum, vemos como o trabalho pode dar aos homens direitos distintos a varias parcelas dele para uso pri-vado" (LOCKE, 1983, p. 50). Portanto, o direito não garante a igualdade, mas, a liberdade de ampliar pelo trabalho até o limite de suas possibilidades, de forma racional e eficaz, sua propriedade inicial.

Para Jorge Filho (1992, p. 77), a ideia de propriedade em Locke abrange no sentido mais amplo a soma dos direitos à vida, a liberdade e aos bens. Se a propriedade é ao mesmo tempo garantia do direito a vida, racionalmente ela é um direito natural, que além de asse-gurar a autopreservação, conduz o homem à plenitude da vida e a felicidade. Assim, o bom emprego de sua vitalidade e de seu trabalho é um bom negócio que garante ao mesmo tempo o seu sustento e a sua felicidade.

Em Locke o conceito de trabalho é resignificado e adquire o sentido de bonança, conquista, realização. O que antes era admitido como castigo herdado do pecado original,

tripalium, a tortura a que o pecador foi condenado ao perder o paraíso, torna-se a ferramenta

por excelência da produção e da satisfação da existência. Nesse sentido o trabalho também é propriedade e mais, é a propriedade por excelência dos indivíduos, porque graças a ele, o ho-mem amplia sua propriedade inicial agregando valor ao que naturalmente tem valor ínfimo.

Nem é tão estranho, como talvez possa parecer antes de dispensar-se a devida atenção, que a propriedade do trabalho seja capaz de contrabalançar a comunidade da terra; por-quanto é, na realidade, o trabalho que provoca a diferença de valor em tudo o por-quanto existe. Considere qualquer um a diferença que existe entre um acre de terra plantado com fumo ou cana-de-açúcar, semeado de trigo ou cevada e um acre da mesma terra em comum sem qualquer cultura e verificará que o melhoramento devido ao trabalho constitui maior parte do valor respectivo (LOCKE, 1983, p. 50).

O trabalho livre é assim, a base da propriedade, que o homem tem em si mesmo à sua disposição e que pode pôr em movimento para o seu próprio benefício ampliando suas ri-quezas e contribuindo para aumentar as reservas da humanidade, gerando bens para si, "para o conforto do próprio ser" e para a comunidade de um modo geral (LOCKE, 1983, p. 52).

Deus deu aos homens possibilidades iguais de ampliar sua propriedade inicial pelo trabalho e adquirir o direito a uma parcela dos bens cedida à humanidade, porém, as distin-ções e as desigualdades surgem pelas diferenças de emprego que os homens fazem de sua ca-pacidade industriosa. Locke admite que alguns homens nasçam mais bem providos de corpo e espírito, porém, adverte que esses são minoria, e que de modo geral, os homens são bons ou maus, úteis ou inúteis, pela educação que tenham recebido1. Daí a importância de uma

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capaz de ampliar infinitamente sua propriedade inicial para sua preservação, a reprodução de sua existência e mais, para “bom proveito da vida e da própria conveniência” (LOCKE, 1983, p. 45).

Assim, a boa capacidade industriosa produz a vida abundante, proveitosa e feliz. A felicidade, portanto, pode ser alcançada pelo homem por meio do seu trabalho, pelo acer-tado “manejo de seus negócios” (LOCKE, 1986, p. 35), que além de tornar feliz a si mesmo, traz benefícios para todo o conjunto da sociedade, considerando que pode o homem pelo seu labor, ampliar infinitamente as reservas da humanidade e expandir os frutos desse trabalho a todos os membros da sociedade.

Para Locke esse é o trabalho da educação que cabe inicialmente aos pais. Formar o corpo e o espírito para bem empregar tanto o físico quanto o entendimento na condução laboriosa dos negócios com o objetivo de tornar indivíduo produtivo e útil. Eis o homem industrioso.

Mas que motivo pode em consequência fazer avançar este cuidado dos pais devido aos filhos até um domínio absoluto e arbitrário do pai, cujo poder não vai mais além do que proporcionar-lhes, pela disciplina que julgar mais eficaz, a força e a saúde ao corpo, vigor e retidão ao espírito, como melhor convenha aos filhos para que se tornem úteis a si e ao próximo; e se lhe parecer necessário à sua condição, fazê-los trabalhar quando forem capazes, para sua própria subsistência? (LOCKE, 1983, p. 59).

No Ensaio acerca do Entendimento Humano, Locke demonstra que não há na men-te dos homens ao nascerem, nem ideias, nem princípios, nem valores, absolutamenmen-te nada é inato. Todo o conhecimento é, portanto, derivado da experiência sensível. Ao longo do ensaio, o filósofo demonstra o modo como os homens adquirem as ideias a medida em que vão experimentando o próprio mundo, sentindo os objetos externos e realizando operações internas com o uso entendimento. É pelos sentidos que o homem adquire o mundo e conhe-cimento de todas as coisas.

Os sentidos inicialmente tratam com ideias particulares, preenchendo o gabinete ainda vazio, e a mente se familiariza gradativamente com algumas delas, depositando-as na me-mória e designando-as por nomes. Mais tarde, a mente, prosseguindo em sua marcha, as vai abstraindo, apreendendo gradualmente o uso dos nomes gerais (LOCKE, 1983, p. 148). Ao nascer, a criança não traz nada de pronto em si, sua mente é como uma tábula rasa ou uma folha de papel em branco, a qual pode a educação imprimir ideias, princípios e valores, preenchendo o gabinete vazio, fazendo depósitos na memória que tornaram o ser bom ou mau, útil ou inútil, dependendo do emprego desses materiais e do direcionamento toma-do. Diz o autor:

Ocurre aquí como en las fuentes de algunos ríos, donde una hábil aplicación de la mano encauza las flexibles aguas por canales que las hacen tomar un curso enteramente contra-rio. Y por esta direción que se les da en la fuente reciben diferentes tendencias y llegan al fin a lugares muy remotos y distantes. Imagino que el espíritu de los ninos toma éste o aquél camino tan fácilmente como el agua (LOCKE,1986, p. 32).²

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A educação é, nesse sentido, um instrumento que possibilita o desenvolvimento das potencialidades individuais, uma ferramenta, por assim dizer, que, bem utilizada, poderá ampliar as reservas da humanidade, garantindo a liberdade e consequente extensão de sua propriedade inicial, prevalecendo a vontade do indivíduo, que deve empregar de forma mais proveitosa possível suas faculdades e laboriosidade desenvolvidas, ele é o artífice principal na corrida pelo melhor lugar na sociedade, melhor do ponto de vista mercantil, lugar onde se possa realizar os negócios mais rentáveis para si e assim adquirir poder e respeito.

O homem industrioso é o que recebe esse direcionamento e é capaz por si mesmo de bem captar esses recursos disponíveis para gozar plenamente a vida, a liberdade e os bens, que lhe são garantidos por direito via o trabalho.

Nota-se que a lógica do Estado burguês se consolida na figura do indivíduo, na formação do gentil-homem, virtuoso segundo os ditames da razão capitalista burguesa, so-mente a ele cabem os méritos de seu sucesso ou fracasso, ele é o único responsável por sua opulência ou miséria, cabendo à educação bem conduzi-lo para que ele se torne produtivo, racional, eficiente e ao mesmo tempo laborioso e polido. Bem formado de corpo e espírito, forte, saudável, vigoroso, deve ser capaz de suportar as dificuldades impostas pelas condições de tempo, clima, circunstância e lugar de forma segura e corajosa e seu espírito deve ser sufi-cientemente forte para dominar o impulso dos desejos e paixões, agindo de forma racional, centrada e disciplinada direcionada ao objetivo fundamental, a vida, a propriedade e os bens. Diz o liberal inglês:

Como la fortaleza del cuerpo consiste principalmente en ser capaz de resistir la fatiga, lo mismo ocurre con la del espiritu. Y el gran principio o fundamento de toda virtud y merito estriba en esto, en que un hombre sea capaz de rechusarse la satisfación de sus propios deseos, de contrariar sus propias inclinaciones y seguir solamente lo que su razón le dicta como lo mejor, aunque el apetito le incline en otro sentido (LOCKE,1986, p. 66).³ A questão da disciplina é importante no tratado de educação de Locke. Disciplinar o corpo e o espírito é necessário à constituição homem do laborioso, essa é uma característica do homem de virtude dos tempos modernos. O burguês não pode se perder nos devaneios do ócio, pois, é preciso ser racional e diligente na atividade do trabalho, que é a garantia de seus bens, de sua liberdade e da sua própria vida. Para realizar esse empreendimento é neces-sário disciplinar as paixões, calar os desejos, silenciar os sentimentos, para que se possa ouvir somente o comando do trabalho das relações mercantis e de tudo o que lhe seja útil nesse campo.

A educação como o trabalho devem ser altamente disciplinadores dos corpos e das mentes, criando uma concepção e um hábito que o indivíduo toma para si, se reconhece nela e assume como necessidade central da existência. Essa nova definição do trabalho que se impõe implica a substituição do modo de organização do trabalho até então dominante: o trabalho servil e permite o advento do novo regime oposto ao Antigo Regime.

É todo um ideário de existência socialmente elaborado que se estende e se ramifica abarcando todas as instâncias da sociedade e formas de se relacionar dos homens no contexto das determinações do mercado tanto na vida pública quanto privada.

Esse é o modelo do homem virtuoso estabelecido na sociedade do capital, que nos termos contemporâneos preferimos chamar de homo imprehendere, aquele que está à frente

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dos outros, o profissional polivalente, que se destaca pela ousadia e pela industriosidade, eficiente, produtivo e eficaz, o que bem sabe aproveitar as oportunidades para retirar o que é mais útil para si, nas palavras do economista Adam Smith, é aquele que “empenha-se con-tinuamente em descobrir a aplicação mais vantajosa de todo capital que possui” (SMITH, 1996, p. 428).

Tal é o ideal do homem virtuoso na era do mercado, proclamado inicialmente por Locke, confirmado no século seguinte por Smith e consolidado nos séculos posteriores pelos discursos ideológicos que insistem em nos convencer que essa é a condição irreversível do homem na ordem estabelecida pelo capital.

A formação do homem virtuoso para a lógica liberal, não privilegia saber como busca incessante por compreender a essência, os conceitos e os valores que estão postos. Não há preocupação com o desenvolvimento da razão. O conhecimento se torna fragmentado e burocratizado. O indivíduo é treinado e moldado para internalizar os conteúdos das ciências separadas em campos de conhecimento, hierarquizados e pré-determinados. Vencer o desco-nhecido em busca do saber não é considerado nesse entendimento de homem. Trata-se da concepção bancária de educação, duramente criticada por Freire (1987) em que os conteúdos são depositados na mente do educando que recebem os depósitos, guarda-os, arquiva-os para utilizá-los nas situações que lhes forem solicitadas, nesse sentido a educação é investimento e sua utilidade se dá pelo custo-benefício que é capaz de produzir.

Em nome da competência e do desempenho o homem transformou a ação política em ação gerenciada pelo orçamento e financiamento, reduzindo o compromisso e o debate político aos interesses privados. Os valores humanos são orientados pelo que pode trazer algu-ma vantagem para os indivíduos e as concepções entre público e privado se elaboram na esfera do lucro. A perspectiva individualista assola o modelo educacional proposto pelo mercado, cuja lei é a meritocracia e a norma é a concorrência. Tratam os educandos como clientes, nú-meros que podem ser contabilizados nos resultados das avaliações, negando completamente a possibilidade da vida em comum, da philía, tão cara aos Antigos, amizade que não se trata de interesse, mas, do bem querer ao outro, da solidariedade, do respeito, da tolerância.

Tornamo-nos mercadoria que produz mercadoria, naturalizamos as relações abs-tratas e vivemos num mundo que as relações se efetivam por meio de sistemas tecnológicos. “Uma economia mundial baseada na concorrência produz necessariamente os que ganham e os que perdem, e a distância que separa uns e outros rapidamente se torna intransponível quando cada nova invenção tecnológica só traz vantagens àqueles que podem permitir-se introduzi-la” (JAPPE, 2006, p. 196).

A invasão do capital no campo da educação fez com que as instituições fossem apropriadas por uma estrutura que visa ao valor e ao lucro, interferindo diretamente no pro-cesso ensino-aprendizagem, submetendo o propro-cesso pedagógico às leis do mercado, negando a possibilidade do pensamento crítico, nivelando os educandos por baixo, pelo que é medío-cre, pequeno, útil para o capital e inútil para o ser humano.

Dessa forma a educação enfrenta o desafio de pensar e instituir uma formação que vise à atuação responsável do indivíduo na sociedade informatizada sem esquecer que o verdadeiro sentido da formação vai além do falso progresso, propagado pelo desenvolvimento tecnológico.

A estrutura educacional a serviço desta ordem se afirma na lógica do mercado pro-duzindo uma organização escolar que se fundamenta na relação entre oferta, a procura do

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serviço educativo e a demanda da sociedade; serviço que a ação do Estado se reduz ao garantir, apenas, o nível básico, deixando o superior à mercê da regulação das leis do mercado. O extre-mo individualisextre-mo imposto por esse extre-modelo impede ao mesextre-mo tempo, que se desenvolvam políticas democráticas de participação, compromisso com a vida coletiva e envolvimento com a realidade existente, enfraquecendo e desmantelando a luta política por melhores condições de trabalho e de desenvolvimento social, no âmbito educacional.

Essa formação nega, ao indivíduo, o direito a uma educação para o ser e o viver naturalmente humanos. Está a serviço da manutenção da ordem vigente que atende aos in-teresses de grupos minoritários. No entanto, essa questão exige uma análise e um olhar mais atento aos aspectos que, muitas vezes, encontram-se ocultados pelos preceitos liberais e ne-oliberais. Ademais, essa é a estratégia de alienação, com vistas a desenvolver ideologias que vão contra a formação do pensamento crítico. Para compreender esse emaranhado de ações intencionais é preciso interrogar, buscar respostas para além das práticas que se efetivam no senso comum e, assim, desvendar os entraves presentes no discurso atual.

o conhecimento e a informação passaram a compor o próprio capital, que passa a de-pender disso para sua acumulação e reprodução. Na medida em que, na forma atual do capitalismo, a hegemonia econômica pertence ao capital financeiro e não ao capital produtivo, a informação prevalece sobre o próprio conhecimento, uma vez que o capital financeiro opera com riquezas puramente virtuais, cuja existência se reduz à própria in-formação. Entre outros efeitos, essa situação produz um efeito bastante preciso: o poder econômico baseia-se na posse de informações e, portanto, essas tornam-se secretas e constituem um campo de competição econômica e militar sem precedentes, ao mesmo tempo em que, necessariamente, bloqueiam poderes democráticos, os quais se baseiam no direito à informação, tanto o direito de obtê-las como o de produzi-las e fazê-las circular socialmente (CHAUÍ, 2003, p. 8).

A educação, que deveria ser “mediadora do saber historicamente produzido pelo homem e condição fundamental para que ele atue e transforme a sua própria sociedade” (PARO, 2008, p.38), passa a atender à lógica de mercado adotada pelas empresas, o que in-terfere de forma radical no programa educativo da sociedade, levando à reprodução dos meios de produção impostos pelo mercado de trabalho consumidor.

O conhecimento é, então, valorizado e considerado como fator fundamental de aten-dimento às exigências da nova ordem mundial do capital. Porém deve-se questionar a que co-nhecimento esse projeto de sociedade se refere. O modelo de organização social atual exige um conhecimento imediato, pragmático, desprezando a reflexão filosófica e humanística. Esquecendo a dimensão da conquista da areté, a virtude, buscada incansavelmente pelos gregos. A formação passa assim a se comprometer com a racionalidade técnica, apresenta caráter instrumental, fun-cional e seu objetivo passa a atender aos processos de produção mercadológicos, não considera o conhecimento universal e ético voltado para a formação do homem2. “O resultado desse processo é o estreitamento de horizontes culturais, a banalização do saber e da existência humana, a adequa-ção aos valores e às práticas do mundo dos negócios” (COÊLHO, 2006, p.47).

A formação do homem não pode se basear na transmissão de conteúdo, é preci-so romper com os procespreci-sos superficiais, banalizados ou operacionalizados como ocorre no campo da tecnologia3. Esse processo é meramente técnico, informa desprezando o ato

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inves-tigativo do ensinar, do pesquisar, da leitura, do sentido da formação humana, da intelectualidade, apresentando uma forma de agir e de pensar imediata, operacional e superficial. Ao contrário des-sa ideia que privilegia o rápido, o imediato e o digital, é preciso superar a esfera do imediato e da superfluidade, do lucro e do pragmático para alcançar patamares superiores de formação crítica, que valorize o ser, a verdade, o bem e a justiça na contramão da formação do homem venal no contexto da sociedade capitalista.

Notas

1 Reconozco que algunos hbres tienen una constitución corporal y espiritual tan vigorosa y tan bien modelada por la naturaleza, que apenas necesitan del auxilio de los demás; desde su cuna son arrastrados por la fuerza de su genio natural a todo lo que es excelente, y por privilegio de su feliz consitución son aptos para las empresas admirables. Pero, los ejemplos de este género son muy escasos, y pienso que puede afirmarse que de todos los hombres con que tropezamos, nueve partes de diez son lo que son, buenos e malos, útiles o inútiles, por la educación que han recebido (LOCKE, 1986, p. 31). 2 “A formação manifesta-se na forma integral do Homem, na sua conduta e comportamento exterior e na

sua atitude interior” (JAEGER, 2010, p.24).

3 “Ocorre que esse campo está minando a própria natureza da humanidade. Quando as leis da natureza assumem o máximo de controle sobre os seres e os seres assumem o máximo de controle sobre as leis, rompe-se a barreira entre a humanidade do homem e a naturalidade da natureza, instaurando-se uma profunda perversão, uma inversão da relação mais elementar na qual o homem assumira o controle das leis da natureza por meio do controle que essas mesmas leis forjaram sobre a vida e o trabalho do homem; agora as leis da natureza reassumem o controle através de um processo de mecanização do homem“ (SANTOS, 1999, p. 297).

Referências

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JORGE FILHO, Edgar José. Moral e história em John Locke. São Paulo: Loyola, 1992. JAEGER, Werner Wilhelm. Paideía: a formação do homem grego. Tradução: Artur M. Parreira. 3. ed. São Paulo: M. Fontes, 2010.

JAPPE, Alselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Tradução: José Miranda Justo. Lisboa: Antígona, 2006.

LOCKE, Jonh. Pensamientos sobre la Educación. Tradução: La Lectura y Rafael Lasaleta. Madrid: Ediciones Akal S. A, 1986.

LOCKE, Jonh. Carta acerca da tolerância: segundo tratado sobre o governo: ensaio acerca do entendimento humano. Tradução: Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

PARO, Vitor Henrique. Gestão democrática da escola pública. 10.ed. São Paulo: Ática, 2008. SANTOS, Laymert Gracia dos. Tecnologia, perda do humano e crise do sujeito do direito.

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Referências

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