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CHICO XAVIER, MÍSTICA E ESPIRITISMO: UMA DISCUSSÃO POSSÍVEL

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Brasil Fernandes de Barros**

CHICO XAVIER, MÍSTICA

E ESPIRITISMO: UMA

DISCUSSÃO POSSÍVEL*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 30.11.2019. Aprovado em: 04.05.2020.

** Doutorando e Mestre em Ciências da Religião (PUC Minas). E-mail: brasil@netinfor.com.br Resumo: o estudo da mística possui um grande volume de ambiguidades e polissemias e

há de se tomar cuidado para não banalizar o conceito tomando qualquer expe-riência como sendo dessa ordem. O objetivo deste artigo é abordar uma episte-mologia da mística que se aplique ao Espiritismo, e, para tanto, estabelecemos uma investigação sobre os fenômenos mediúnicos atribuídos ao médium espí-rita Chico Xavier, comparando-os com as análises sobre mística e estados não usuais de consciência de William James, Juan Martín Velasco, Evelyn Underhill e Bernard McGinn. Pretendemos, portanto, avaliar se é possível pensar e discu-tir essa tradição pelo viés da mística.

Palavras-chave: Mística. Espiritismo. Kardec. Estados de consciência.

É inegável que há mais facilidade de se discutir e pensar a mística quan-do se parte das grandes religiões mundiais que quanquan-do se pensa a partir das religiões de cunho popular ou relacionadas às tradições originárias. Neste sentido, não só as devoções da religiosidade popular católica, como também as tradições afro-brasileiras e indígenas nos desafiam a pensar outras formas de se conceber a experiência ou vivência mística, sobretudo, para além das grandes tradições religiosas universais

(SOUZA, 2018, p. 340).

E

ntendemos que a proposição do cientista da religião Carlos Frederico Barboza de

Souza é válida ao declarar que há mais facilidade de “discutir e pensar a mística” quando se fala das grandes religiões. O autor fala ainda que há um desafio em

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“pensar outras formas de se conceber a experiência ou vivência mística, sobre-tudo, para além das grandes tradições religiosas universais”. Apesar do grande volume de ambiguidades e polissemias que o tema oferece, há, porém, que se to-mar cuidado para não tornar vulgar esse conceito, tomando qualquer experiência como sendo mística. Bernard McGinn (2012, p. 15) afirma que:

Teologicamente falando, a questão não é se ‘Essa pessoa foi realmente uma mís-tica porque ela ou ele reivindica ter tido o tipo de experiência que eu defino como mística?’, mas ‘Qual o significado de seus escritos, autobiograficamente místicos ou não, na história da mística cristã?’.

Ou seja, para se dizer que alguém é ou não um místico, é necessário que existam mais do que fenômenos extraordinários relacionados à sua vida. É preciso avaliar se o legado desse indivíduo pode ser considerado místico e se repousa sobre ele um conjunto de características claras, epistemologicamente falando, a respeito do que está sendo analisado. Apesar dessas afirmações de Bernard McGinn, pensamos que a análise das experiências místicas do ponto de vista fenomê-nico também faz parte dessa epistemologia e é o que pretendemos fazer neste trabalho.

Em nossa dissertação de mestrado, discutimos o conceito de religião para o Espiritismo e concluímos, entre outros assuntos, que podemos classificá-lo nessa condição (BARROS, 2018). Uma vez feito isso, por consequência, precisamos avaliar outras características que são geralmente atribuídas às religiões. É, portanto, por essa razão que resolvemos nos perguntar se o Espiritismo pode ser anali-sado do ponto de vista da mística. Será que podemos atribuir ao Espiritismo as características típicas da mística? Será que podemos classificar Chico Xa-vier, que notoriamente é um dos seus principais expoentes, como um místico? Como pensava Allan Kardec, o fundador1 do Espiritismo, a respeito da

místi-ca? Apesar de o Espiritismo ser uma religião de abrangência mundial pequena, no Brasil é a terceira maior religião do país, e uma das perguntas desse artigo é se podemos tomar os fenômenos mediúnicos do Espiritismo como fenômenos extraordinários típicos da mística.

Entendemos que a mística, de nosso ponto de vista, pode ser abordada, dentre outras formas, por duas dimensões, uma que chamamos de fisiológica ou fenomênica e outra experiencial ou transcendente. A primeira dimensão é a que tratará dos aspectos do fenômeno extraordinário, das experiências físicas e mentais que vivencia o indivíduo que se diz um místico, e quando falo de “mentais” me refiro ao campo mental fisiológico, ondas, estados de consciência e campos de consciência etc. A segunda dimensão é a que diz respeito à vivência da expe-riência em si enquanto algo que transcende a realidade do indivíduo e o

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trans-forma e as pessoas ao seu redor em alguém diferente, é o que alguns chamarão de encontro ou de uma união com uma entidade divina, ou que afirmarão ter tido contato com uma realidade transcendental.

Neste nosso artigo, iremos tratar a possível existência de uma experiência mística no Espiritismo na dimensão fenomênica. Portanto, a proposta é de abordar de forma preliminar uma epistemologia da mística que permita discutir e pensar o Espiritismo por esse viés. Para alcançar esse objetivo, pretendemos usar como referência o médium Chico Xavier. Estabeleceremos uma breve investigação sobre os fenômenos mediúnicos atribuídos a ele, comparando-os com as análi-ses do psicólogo e filósofo norte americano William James (1842-1910), e com as definições de Juan Martín Velasco, Evelyn Underhill e Bernard McGinn. As análises que serão tomadas em relação ao médium mineiro não passarão por seus

trabalhos mediúnicos propriamente ditos; não faremos aqui análise de textos ditos psicografados, mas sim a partir dos relatos dele e de pessoas que convi-veram com ele, procurando compreender quais eram suas próprias percepções a respeito das experiências que ele vivenciou. Faremos também uma análise de alguns pontos fundantes do Espiritismo, postulados por Allan Kardec, com vistas a identificar se há nessa doutrina conceitos relacionados à mística. O foco principal neste artigo será fundado na dimensão fenomênica do Espiritismo.

Embora entendamos que haja nas experiências de Chico Xavier, como objeto empírico de observação, a dimensão experiencial, transcendental, esta será ob-jeto de trabalhos futuros, já que entendemos que as definições de mística não se restrinjam tão somente a essa dimensão. A metodologia que usaremos aqui será a de comparação de alguns fatos da vida do médium mineiro, relatados por ele mesmo ou por quem conviveu com ele, com algumas das definições dos autores citados acima, sobre mística e estados não usuais de consciên-cia, com foco nas publicações de William James, em seu artigo A Suggestion

About Mysticism (1910) e em sua obra As Variedades da Experiência Religio-sa (1991). Pretendemos, por fim, de forma preliminar, avaliar se é possível

pensar e discutir o Espiritismo pelo viés da mística. O MINEIRO DO SÉCULO XX

Em fevereiro do ano 2000, por meio de uma promoção feita pela Globo Minas, o famo-so médium Francisco Cândido Xavier, nascido na cidade de Pedro Leopoldo em 02 de abril de 1910, foi eleito pelo voto popular na internet como Mineiro do Século XX, com 704.030 votos. Ele obteve mais votos do que personali-dades como Santos Dumont, Pelé, Betinho, Carlos Drumond de Andrade e Juscelino Kubitschek (SOUTO MAIOR, 2003). Segundo os seus admirado-res, ele recebeu, no decorrer de sua vida, em setenta e cinco anos de mandato

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mediúnico2 muitas outras honrarias, entre elas dezenas de cidadanias, mais de

uma centena de biografias, instituição por decreto estadual de Minas Gerais da comenda Chico Xavier, comenda pela cidade de Pedro Leopoldo, Maior Bra-sileiro da História por promoção da Revista Época em 2006 além de muitas outras homenagens (MATOS, s.d.). Entretanto, essa não foi a primeira vez que Chico Xavier chamou a atenção das câmeras, pois, em 28 de julho de 1971, o médium mineiro foi o responsável por uma das maiores audiências da TV brasileira com o Programa Pinga Fogo da extinta TV Tupi, exibição na qual 75% dos televisores paulistas acompanharam o programa até as 3 h da manhã (SOUTO MAIOR, 2003, p. 191).

Nunca um ‘PingaFogo’, depois de realizado ao vivo, teve o seu vídeotape trans-mitido mais duas vezes nos dias seguintes. Mas o de Chico Xavier teve essa sorte. O público pedia e a emissora atendeu. Mas além disso houve a sua re-percussão pelo Brasil todo. O vídeotape foi remetido ao norte, ao sul, ao leste e ao oeste. Em vários lugares foi também repetido. Muita gente gravou os seus diálogos em gravadores e até hoje continua a ouvi-los. O Diário de São Paulo, depois da publicação do resumo do ‘PingaFogo’ pelo Diário da Noite, teve de publicá-lo por extenso em seu suplemento chamado Jornal de Domingo. Saíram depois exemplares mimeografados do ‘PingaFogo’ e várias editoras eram soli-citadas a lançar o texto num livro (XAVIER, 1984, p. 8).

Segundo os antropólogos Sandra Jacqueline Stoll e Bernardo Lewgoy3, Chico Xavier

foi um dos principais responsáveis pela alavancagem da terceira maior reli-gião brasileira que, apesar de terem declarados apenas 3,8 milhões de adeptos pelo censo de 2010 (IBGE, 2010), teria, segundo fontes não oficiais, como as editoras que vendem milhares de títulos espíritas, cerca de 30 milhões de simpatizantes (VERA, 2016).

A influência de Chico Xavier vai além do próprio Espiritismo, sendo reconhecido in-clusive como um Santo não Católico:

Chico foi sucessivamente representado como um médium poderoso a serviço de uma escatologia nacional (anos 1930 e 40) e como um santo popular não católico (anos 50 em diante), tendo firmado as balizas linguísticas, doutrinárias e rituais de um espiritismo influenciado pela cultura católica brasileira. Os es-píritas acreditam que seu mentor, o espírito de Emmanuel, foi personagem em momentos fundamentais de história do cristianismo (LEWGOY, 2008, p. 90).

Na obra Espiritismo à Brasileira, a historiadora e antropóloga Sandra Jacqueline Stoll afirma que o médium Chico Xavier se afastou do cientificismo4 da doutrina

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fun-dada por Allan Kardec, aproximando-se do catolicismo com seu discurso das

virtudes e de uma noção de santidade cristã, argumentando que essa

transforma-ção seria uma das razões do sucesso do Espiritismo no Brasil (MAGGIE, 2004, p. 339). Mesmo depois de 30 anos, a cidade de Uberaba é destino de turismo religioso desse santo não católico (ROCHA, 2014). O que nos leva à conclusão de que, pelo menos para os espíritas, Chico Xavier é reconhecido como a maior referência para o fenômeno denominado mediunidade5 no Brasil.

Até a data da publicação de sua biografia produzida por Marcel Souto Maior (2003), que foi transformada em filme, foram produzidos 412 livros ditos psicogra-fados pelos espíritos. Esses livros venderam, até 2003, cerca de 20 milhões de exemplares, cujas receitas milionárias foram todas integralmente doadas em cartório para instituições de caridade e instituições espíritas e são objeto de pesquisa até os dias de hoje, inclusive com o uso de inteligência artificial para analisar a veracidade das obras do médium (LEONARDI, 2017). Apesar de todos esses fatos em torno da vida desse famoso médium espírita, há ele-mentos para afirmar que ele seria um místico? Há definições de mística que se apliquem ao Espiritismo e a Chico Xavier?

MÍSTICA: USO E ABUSO DE UM TERMO IMPRECISO

O título desse tópico, não por coincidência, reproduz o título do primeiro capítulo de

El fenômeno místico (1999), de Juan Martin Velasco, já que a definição

eti-mológica clássica desse autor tem sido tomada quase como que um mantra a respeito do tema. Em inúmeras obras e artigos vemos a seguinte definição de Velasco sendo reproduzida:

A palavra castelhana ‘mística’ é a transcrição de um termo grego, o adjetivo mystikòs, derivado da raiz indo-europeia my, presente em myein: fechar os olhos e a boca, da qual procede ‘míope’, ‘mudo’ e também ‘mistério’, que remete a algo oculto, não acessível à visão, do que não pode ser falado. A palavra mys-tikòs nos remonta à Grécia clássica e, mais propriamente, para as religiões de mistério, ta mystikà: cerimônias em que os mystes, o fiel, é iniciado (myeisthiai) nos grandes mistérios (VELASCO, 2013, p. 19, tradução nossa)6.

Essa definição de Velasco está presente em muitos trabalhos, mas as semelhanças de definições acabam por aí, pois a polissemia e ambiguidade do termo se estende de forma extremamente intensa. Juan Martín Velasco (1999, p. 20) afirma que, no cristianismo antigo, com tempo, o termo passou a assumir três sentidos: 1) o simbolismo religioso em geral no que tange ao significado alegórico da sagrada escritura, que ofereceria um sentido espiritual em contraposição ao

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sentido literal; 2) relacionado ao uso litúrgico no culto cristão e seus diferentes elementos; 3) a um sentido espiritual e teológico referente às verdades inefá-veis e ocultas do cristianismo, que retratariam as realidades mais profundas de um conhecimento mais íntimo.

Velasco ainda se refere à existência de uma forte vinculação do termo mística à teologia, como sendo para alguns autores como algo inseparável, o que se contrapõe à existência de uma mística não religiosa. Ele afirma que há autores que preten-dem ligar a definição do termo a uma espécie de essência da mística, presente em diversas áreas, como na arte ou nas religiões não cristãs, sendo que a mística no cristianismo seria apenas mera “corporificação” dessa essência (VELASCO, 1999, p. 21). Nessa linha vamos encontrar Willian James ou H. Delacroix, cita-dos por Velasco (1999, p. 22), que entendem que há uma certa “mística natural”. Apesar da existência dos que acreditam que a mística esteja sempre vinculada a uma

religião, Velasco (1999, p. 21) afirma que há uma extraordinária variedade de formas da mística, sejam elas extra religiosas ou religiosas, cristãs ou não cristãs e define mística da seguinte forma:

[...] com a palavra ‘mística’ nos referiremos, ainda em termos muito gerais e imprecisos, a experiências interiores, imediatas, fruitivas, que ocorrem num ní-vel de consciência que supera aquilo o que governa na experiência ordinária e objetiva, da união - seja qual for a maneira como é vivida - do fundo do sujeito ao todo, ao universo, ao absoluto, ao divino, a Deus ou ao Espírito (VELASCO,

1999, p. 23, tradução nossa)7.

Willian James, por sua vez, define a mística por um viés, ao nosso modo de ver, um pouco mais pragmático, dizendo que a experiência religiosa tem uma ligação íntima ao que ele chama de “estados místicos de consciência”, é o que chama-mos de dimensão fisiológica ou fenomênica. James acredita em uma mística natural, em um fenômeno que possa ser explicado por um mecanismo fisioló-gico que ele denomina como “estado de consciência”, afirmando que este é a resultante de um estado mental que permita que “coisas surjam” na mente do místico, à medida que seu estado de consciência se modifica, e diz ainda que esse fenômeno irá variar de pessoa para pessoa, como veremos mais à frente com detalhes.

Evelyn Underhill por sua vez tem uma visão a respeito da mística diferente de James e se alinha como o que tratamos como sendo uma dimensão experiencial ou transcendente da mística. Ela afirma que:

O movimento da consciência mística [...] não é apenas a admissão repentina de uma visão avassaladora da Verdade: é antes um movimento ordenado em

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dire-ção a níveis cada vez mais altos da realidade, uma identificadire-ção cada vez mais próxima do Infinito. ‘A experiência mística’, diz Recejac, ‘termina com as pala-vras: ‘Não sou eu quem vive, mas é Deus é que vive em mim.’ Esse sentimento de identificação, que é o termo da atividade mística, tem um significado muito importante: em seus estágios iniciais, a consciência mística sente o Absoluto em oposição ao Eu [...] à medida que a atividade mística continua, tende a abolir essa oposição [...] Quando atinge seu termo, a consciência se vê possuída pelo sentido de um Ser ao mesmo tempo maior que o Ser e idêntica a ele: grande o suficiente para ser Deus, íntima o suficiente para ser eu’ (UNDERHILL, 1912,

p. 97, tradução nossa)8.

Essa visão de mística de Underhill é o que Velasco classificaria como sendo essen-cialista, e não há que se esperar que seja diferente, já que ela faz uma análise da mística de um ponto de vista teológico. Mas, e o Espiritismo, objeto deste artigo, como se posiciona em relação à mística?

Em entrevista realizada com a médium e escritora Suely Caldas Schubert, autora do livro Testemunhos de Chico Xavier, importante obra na qual ela faz uma aná-lise das correspondências pessoais feitas entre o médium mineiro e, à época, o Presidente da Federação Espírita Brasileira, o Sr. Wantuil de Freitas, ela afirma com certa veemência, depois de perguntada se Chico Xavier poderia ser considerado um místico, que, do ponto de vista dela e do Espiritismo, o médium mineiro não pode ser considerado um místico. Ela afirma que:

Não! Não acho, não, porque se colocar místico muda o sentido da coisa, ele é um missionário, é diferente, não é? Místicos são esses outros, agora se você co-locar o Chico dentro dessa qualificação de místico, pode atrapalhar a imagem dele e da imensa e notável obra que realizou. Porque ele não era um místico! Ele é um missionário, e a doutrina espírita, dentro da sua racionalidade, que a doutrina é muito racional, não é [...] nós não temos isso de misticismo, assim! Agora as pessoas poderiam até, ao se aproximar dele, tendo essa noção que ele poderia ter uma coisa assim, é [...] transcendental, diferente, né, mas na verda-de ele próprio e o meio espírita também não. Ele não é um místico, viu! A gente não qualificaria assim9.

É interessante observar que nesse trecho quando a entrevistada afirma que a Doutrina Espírita é “muito racional [...] nós não temos isso de misticismo”, percebemos que há nesse ponto, uma definição implícita do que seja mística e misticismo, fica claro que Suely tem um entendimento específico do que seja mística e este está ancorado no Espiritismo. Qual é essa definição de mística? O que a entre-vistada entende por mística ou, o que seria mais importante, qual o conceito de

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mística e misticismo para essa doutrina religiosa? E, por consequência, qual é o entendimento de Allan Kardec, o fundador do Espiritismo, sobre a definição de mística?

MÍSTICA E MISTICISMO PARA ALLAN KARDEC

O Espiritismo é uma religião que surgiu na segunda metade do século XIX, na França, pelas mãos do pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, que, ao pu-blicar O Livro dos Espíritos, adotou o pseudônimo de Allan Kardec. Em suas definições, ele descarta a intenção de torná-la uma religião e diz que ela se trata de uma doutrina filosófica e moral.

Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em ra-zão de não haver senão uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta exclusivamente uma idéia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta

sa-cerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o

separaria das idéias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião se levantou. Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma

religião, na acepção usual da palavra, não podia nem devia enfeitar-se com um

título sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis por que simples-mente se diz: doutrina filosófica e moral (KARDEC, [1868] /(2007c), p. 491,

grifo nosso)10.

Se lido de forma isolada, esse comentário de Kardec apontaria, se fosse o caso, para a possibilidade de uma discussão de uma mística não religiosa, pois, no trecho destacado, ele afasta inicialmente o Espiritismo dessa condição, quando diz que essa Doutrina não é uma religião e ainda fala de misticismo de uma forma negativa, como algo que deve ser evitado. Portanto, qual o significado que Kardec deu às palavras mística, místico e misticismo?

Em sua obra, o pedagogo lionês não se dedica a fazer definições sobre as palavras “mística”, “místico” e/ou “misticismo” de forma explicita e direta, pois não era seu foco, mas não é difícil de compreender o que ele entendia sobre essas palavras. Em diversas passagens Kardec deixa claro o seu entendimento:

Quanto mais avançarmos, mais iremos descobrindo os traços que ele [o Es-piritismo] deixou por toda parte e em todas as idades. Os modernos não têm outro mérito senão o de tê-lo despojado do misticismo, do exagero e das ideias

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supersticiosas dos tempos de ignorância (KARDEC, [1859] / (2007a), p. 421,

grifo nosso).

Em geral, desconfiai das comunicações que trazem um caráter de misticismo e de estranheza, ou que prescrevem cerimônias e atos extravagantes (KARDEC,

2013, p. 273, grifo nosso).

Poucos, no entanto, a conhecem a fundo e menos ainda são os que a compre-endem e sabem deduzir as suas consequências. A razão disso está, em grande parte, na dificuldade que apresenta a leitura do Evangelho, ininteligível para grande número de pessoas. A forma alegórica e o misticismo intencional da linguagem fazem com que a maioria o leia por desencargo de consciência e por dever, como leem as preces, sem as entender, isto é, sem proveito (KARDEC,

2013, p. 13, grifo nosso).

Além dessas, há inúmeras citações na obra de Kardec que apontam nesse sentido e citá-las todas tornaria a leitura cansativa, mas todas elas caminham num mesmo sentido de fundamentalmente demonstrar grande preocupação de afastar os conceitos do Espiritismo daquilo que ele acreditava ser misticismo. Pensamos que isso acontece porque às vezes os fenômenos de mediunidade do Espiritismo são associados à feitiçaria, à quiromancia e a outras atividades da ordem do fantástico e sobrenatural, como as afirmações de Evelyn Underhill a respeito da mística:

[...] palavra que é aplicada reiteradamente ao desempenho de médiuns e ao êxtase dos santos, à cultura mental, à feitiçaria, poesia sonhadora e arte me-dieval, à oração e quiromancia, a excessos doutrinários do gnosticismo e as especulações mornas de os Platonistas de Cambridge [...] deixando com isso de ter qualquer significado útil (UNDERHILL, 1912, p. 86, tradução nossa)11.

Nos trechos destacados acima, fica claro também que o entendimento de Kardec cor-robora as afirmações de Willian James sobre esse entendimento reiterado por Underhill, quando James diz que: “usam-se a miúdo (sic) as palavras ‘mis-ticismo’ e ‘místico’ como termos de mera censura, para capitular qualquer opinião que se nos afigure vaga, vasta e sentimental e sem base nos fatos nem na lógica” (JAMES, 1991, p. 316).

As afirmações de Underhill são ainda mais direcionadas, pois fala explicitamente de médiuns. Enquanto William James parece afirmar implicitamente que mística vai além do fenômeno, Underhill é explicita em dizê-lo, afirmando inclusi-ve que as explicações de James a respeito da mística são incompletas

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(UN-DERHILL, 1912, p. 96). Dessa forma, embora saibamos que não possamos reduzir a mística pura e simplesmente a uma dimensão fenomênica, baseado nessas afirmações, podemos inferir que não há a presença de um aspecto mís-tico no Espiritismo? Primeiramente, é necessário compreender que há outros pontos a respeito dessa doutrina que precisam ser levados em conta, pois o Espiritismo defende a ideia da existência de Deus e de religiosidade, conforme fica claro a seguir:

Visando a desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vai destruir a religião. Sabeis que é exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora creem; quem não sabia o que era orar, ora com fervor; quem não mais punha os pés nas igrejas, a elas vão com reco-lhimento. Aliás, se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o Espiritismo mais poderoso. [...] O Espiritismo é uma dou-trina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; é de todas, e não pertence a nenhuma em particular. Por isso não aconselha a ninguém que mude de religião. Deixa a cada um a liberdade de

ado-rar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela sua consciência

[...] (KARDEC, [1862] / (2007b), p. 62-63, grifo nosso).

Nesse trecho, vemos que além de Allan Kardec não ser contrário à ideia da religião, ele a ratifica, dizendo que o Espiritismo pode e deve ser usado para fortalecer os sentimentos religiosos e que esses devem ser tratados com recolhimento. Os trechos grifados acima abordam relações com o sentimento religioso que, a nosso modo de ver, podem ser vinculados com as palavras de Juan Martín Velasco quando ele trata de um “sentido espiritual e teológico referente às ver-dades inefáveis e ocultas do cristianismo12, que retratariam as realidades mais

profundas resultantes de um conhecimento mais íntimo” (VELASCO, 1999, p. 20). Isso fica bem caracterizado, por exemplo, nos comentários de Kardec na questão 148 de O Livro dos Espíritos:

O homem tem, instintivamente, a convicção de que nem tudo se lhe acaba com a vida. O nada lhe infunde horror. É em vão que se obstina contra a ideia da vida futura. Ao soar o momento supremo, poucos são os que não inquirem do que vai ser deles, porque a ideia de deixar a vida para sempre algo oferece de pungente. Quem, de fato, poderia encarar com indiferença uma separação absoluta, eterna, de tudo o que foi objeto de seu amor? Quem poderia ver, sem terror, abrir-se dian-te si o imensurável abismo do nada, onde se sepultassem para sempre todas as suas faculdades, todas as suas esperanças, e dizer a si mesmo: Pois que! depois de mim, nada, nada mais, senão o vácuo, tudo definitivamente acabado; mais alguns

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dias e a minha lembrança se terá acabado; mais alguns dias e a minha lembrança se terá apagado da memória dos que me sobreviverem; nenhum vestígio dentre em pouco, restará da minha passagem pela Terra; até mesmo o bem que fiz será esquecido pelos ingratos a quem beneficiei. E nada, para compensar tudo isto, nenhuma outra perspectiva, além da do meu corpo roído pelos vermes! Não tem este quadro alguma coisa de horrível, de glacial? A religião ensina que não pode ser assim e a razão no-lo confirma. [...] Que nos importa ter uma alma, se, ex-tinguindo-se-nos a vida, ela desaparece na imensidade, como as gotas d’água no Oceano? [...] Dizem que ninguém jamais voltou de lá para nos dar informações. É erro dizê-lo e a missão do Espiritismo consiste precisamente em nos esclarecer acerca desse futuro, em fazer com que, até certo ponto, o toquemos com o dedo e o penetremos com o olhar, não mais pelo raciocínio somente, porém, pelos fatos. [...] Haverá nisso alguma coisa de anti-religioso? Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião. Se ele aí está, é porque Deus o permite e o permite para que as nossas vacilantes esperanças se revigo-rem e para que sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva do futuro

(KARDEC, 2008, p. 130).

O trecho acima é extremamente poético e discute de forma filosófica questões existenciais que permeiam a mente humana há séculos e, do ponto de vista da mística, traz algumas marcas importantes abordadas por Willian James, como a inefabilidade dos sentimentos, quando se discute o sentimento de horror que a ideia da morte infunde no homem, que perderia suas esperanças e faculdades. Demostra tam-bém a qualidade noética dos pensamentos de Kardec para tentar descrever as incomensuráveis perdas do homem, com metáforas a respeito da perda da alma, como as “gotas se perdem no oceano”, ou como seria “horrível e glacial essa rea-lidade”. A inefabilidade e a qualidade noética não são as únicas marcas da mística definidas por James, o que faz com que seja necessário analisar de uma forma mais profunda os seus pensamentos e como eles podem se relacionar com o Espiritismo. OS CONCEITOS DE MÍSTICA DE WILLIAM JAMES E O ESPIRITISMO

A visão de William James do que ele chama de “estado místico de consciência” se restringe, de maneira geral, a uma observação externa e fenomênica. Em seu artigo “A Sugestion about Mysticicism” (1910, p. 85) ele afirma, logo nos primeiros parágrafos, que as observações de diversos autores, ao tratar desse assunto, têm sido feitas de uma perspectiva externa, e que ele mesmo não se exime dessa posição, arvorando-se, dessa forma, no direito de discorrer tam-bém sobre o assunto.

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Anteriormente, aqui em nosso artigo, dissemos que James afirma que a experiência re-ligiosa tem uma ligação íntima com os “estados místicos de consciência”, pois ele acredita que há uma mística natural, que surge em eventos que, de certa forma, possam ser explicados por um mecanismo fisiológico, ou seja, o que ele denomina como esse estado é a resultante de um estado mental que permita que “coisas surjam” na mente do místico através de um estímulo físico. Para explicar isso, ele diz que a mente do indivíduo que passa por uma experiên-cia mística é acionada por um estímulo físico, e que esse sujeito, portador de uma grande massa de sensações e memórias, possui um limiar de consciência que: “Quando, agora, o limiar decai, o que aparece não é a próxima massa de sensações; pois essas requerem novos estímulos físicos para produzi-las, e nenhuma alteração de um limiar puramente mental pode criá-las” (JAMES, 1910, p. 86, tradução nossa)13. Ele continua explicando tal fenômeno com a

seguinte comparação:

[...] se nós supormos que a onda de consciência ordinária, emerja acima da li-nha horizontal de seu plano limiar, essa declinará em todas as direções. A queda desse limiar terá por consequência, nessas circunstâncias, a produção de um estado de coisas semelhantes ao que vemos quando, na costa plana, na vazante de uma maré de primavera. Vastos trechos usualmente cobertos são revelados, mas nada surgirá além de algumas polegadas acima do plano da água e uma grande parte da cena submergirá novamente sempre que uma onda passar sobre ela. Algumas pessoas têm naturalmente um campo de consciência muito amplo, outro muito estreito. O campo estreito pode ser representado por uma forma incomumente íngreme da onda (JAMES, 1910, p. 85, tradução nossa)14.

Nessa passagem James sustenta, portanto, que em certas circunstâncias surjam “coisas” na mente do indivíduo que passa por uma experiência específica que, segun-do o autor, requer estímulos físicos. Entendemos que esses estímulos físicos podem ser atos rituais, danças, cantos, meditação e até mesmo atos comuns da vida do indivíduo. Essas “coisas” já estavam ali de alguma forma, mas não estavam “visíveis” para a consciência ordinária, e quando certas circunstân-cias específicas acontecem mudam o seu limiar usual, alcançando informações que outrora não eram conhecidas. Nessa comparação ainda, ele se refere às ondas que cobrem temporariamente essas “coisas” como o movimento do mar, fazendo com que elas não fiquem claramente posicionadas acima desse limiar todo o tempo, o que explicaria o fato de que, em alguns casos, o sujeito que a experimenta não tenha uma visão perfeitamente clara dessas “coisas”, pois tem sua visão ofuscada pelo movimento das ondas (uma oscilação do limiar de consciência). Isso é o que se denomina por alguns autores como Estados

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Alterados de Consciência (EAC), mas preferimos não usar essa terminologia, porque muitas vezes os EAC estariam associados a patologias, principalmente por conta dessa visão eventualmente ofuscada, o que não é o caso aqui. O psi-quiatra Alexander Moreira-Almeida trata essa questão, mais especificamente a mediunidade, da seguinte forma:

Tem se tornado claro que experiências dissociativas e alucinatórias são fre-quentes na população geral e, em 90% dos casos, não são relacionadas a trans-tornos psicóticos. Algumas experiências alucinatórias apresentam informações verídicas sugestivas de alguma forma de percepção extrassensorial. Com base nisso, Stevenson propôs, em um artigo no American Journal of Psychiatry, um novo termo (idiofania verídica), como suplemento ao termo ‘alucinação’, para designar experiência sensória não compartilhada verídica e não patológica. Há também evidências de que as experiências mediúnicas frequentemente envolvem pessoas com bons níveis de saúde mental e ajustamento social, ou mesmo su-periores aos encontrados na população geral. Tais evidências não corroboram a visão de que as experiências mediúnicas são sintomas menos intensos em um continum com transtornos dissociativos ou psicóticos. Também têm sido publi-cados estudos sobre a neurofisiologia da mediunidade (MOREIRA-ALMEIDA,

2012, p. 234).

São esses estados de idiofania verídica que William James (1991, p. 316) estuda e cha-ma de “estado místico de consciência”. Para o autor, esse fenômeno variará de pessoa para pessoa de forma muito significativa, pois o “campo de consciência” (que analisaremos à frente) pode ser mais ou menos estreito e a análise desse fenômeno deve ser feita através de quatro marcas importantes que ele determina como marcas da mística e devem estar presentes nesses casos, são elas:

1) Inefabilidade, seria a marca pela qual a experiência não permite ser trans-mitida, já que não há palavras adequadas para descrever seu significado. É como que um sentimento e só pode ser sentido e não explicado. É uma ex-periência pessoal e intransferível, pois quem a experimenta de maneira geral diz que ela precisa ser experimentada diretamente;

2) Qualidade Noética, essa marca é muito semelhante a estados de sentimen-to, mas carregam em si estados de conhecimento profundos, geralmente transformadores que não podem ser tocados pelo intelecto. São iluminações e revelações, permeadas de muito significado e importância, mas que não podem ser de maneira geral articuladas cognitivamente;

3) Transitoriedade, pois o estado místico não pode ser sustentado por muito tem-po e no máximo tem-podem ser acessados pela memória de forma imperfeita; 4) Passividade, está ligada a certas ações de ordem corporal que faz com que o

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como que guiado por uma força superior. A essa característica estão ligados fenômenos como discurso profético, escrita automática ou transe mediúnico. Além dessas marcas, William James também define o que ele entende por “campos de

consciência” que descreve da seguinte forma:

O campo é composto [...] de uma massa de sensações presentes em uma nuvem de lembranças, emoções, conceitos, etc. No entanto, esses componentes, que devem ser nomeados separadamente, não são separados, pois fazem parte do campo conscien-te. Sua forma perfaz uma só unidade em que as sensações [...] coalescem e se dis-solvem. O campo atual como um todo fluirá de seu antecessor e se fundirá continua-mente em seu sucessor, em uma massa de sensações que passará para outra massa de sensações e dando a ideia de um presente que muda gradualmente a experiência, enquanto as memórias e os conceitos carregam coeficientes de tempo que colocam o que está presente em uma perspectiva temporal mais ou menos vasta. Quando, agora, o limiar cai, o que aparece não é a próxima massa de sensações; pois a sen-sação requer novos estímulos físicos para produzi-lo, e nenhuma alteração de um limiar puramente mental pode criá-las. [...] É como o campo de visão, que o menor movimento do olho se estenderá, revelando objetos que sempre estavam ali para se-rem conhecidos. Minha hipótese é que um movimento do limiar para baixo trará si-milarmente uma acumulação de memórias subconscientes, concepções, sentimentos emocionais e percepções de relação etc., tudo de uma só vez; e que, se esse aumento do nimbus que cerca o presente sensacional for vasto o suficiente, [...] teremos as condições preenchidas para um tipo de consciência em todos os aspectos essenciais, como aquele que é chamado místico (JAMES, 1910, p. 86, tradução nossa)15.

O que James tenta demonstrar através dessa sua explicação é que a consciência é uma nu-vem de experiências cotidianas, compostas de diversos estímulos, separados em diversos compartimentos da mente e que “aparecem” para o indivíduo acima do limiar da consciência, e este a interpreta e vivencia em conjunto como uma úni-ca “coisa”, uma nuvem, que pode ser separada se a observarmos de perto como lembranças, emoções etc. Essa nuvem, segundo sua explicação, não é estática, ela flui continuamente e a mente está preparada para esse fluxo normal, porém, quando o limiar de consciência muda e surgem novas “coisas” ou novos “ele-mentos”, as sensações ou reações para essa nuvem são afetadas. E dessa forma, além do fluxo de sensações, ocorrerá um movimento de percepções, memórias e outras informações de um nível subconsciente para o nível consciente.

Do nosso ponto de vista, acreditamos que essa descrição de William James pode ser ilustrada através do relato de Chico Xavier fornecido em entrevista dada no Pinga Fogo em 1971 pelo médium que relata:

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Nesse tempo a minha cabeça era atormentada por muitos problemas. Quando eu anunciei o desejo de receber romances, o Espírito Emmanuel então me ex-plicou: Para que você receba romances, você precisa ter a mente em estado de

profunda serenidade. Se você quiser se comprometer a nos oferecer um clima mental adequado, de paciência e de calma, escreveremos por você algumas de

nossas memórias. [...] Então ele marcou, que eu me concentrasse durante uma hora por dia e me dispusesse a datilografar outra hora por dia, durante o tem-po em que perdurasse a psicografia do romance. Eu acompanhei a psicografia como acompanho também as nossas novelas da TV, com muito interesse, com muito carinho e torcendo por determinados personagens. Mas eu lia o que a mão escrevia. [...] Eu comecei a ver aquela cidade e o céu tempestuoso e a chuva caindo e aqueles dois homens vestidos à moda antiga, de túnicas, deitados na-queles sofás longos, comendo frutas com as mãos. Eu me assustei com aquela

visão que parecia uma visão estranha porque estava dentro de mim e fora de

mim. [...] Parei de escrever. Então ele me disse: ‘Você está debaixo de uma certa hipnose. Você está vendo o que eu estou pensando. Mas não sabe o que eu estou

escrevendo’. De modo que eu vivi muito mais o romance ao recebê-lo, do que ao

ler ou reler o que eu escrevia. [...] Não tinha consciência do que escrevia e nem

da continuidade dos assuntos, porque muitos dos personagens que me eram

simpáticos e que eu não desejava que sofressem, passaram a sofrer contra a minha vontade (XAVIER, 1984, p. 22, grifo nosso).

Nessa passagem, o médium Chico Xavier relata sensações que parecem apontar níveis de consciência diferenciados. Em alguns momentos diz perceber sua realidade e, em outros momentos, situações que pareciam ser estranhas à sua consciência. Ele também relata: 1°) Que para vivenciar essa experiência teve que mudar o seu “clima mental” através da concentração; 2°) Que durante essa experiência mediúnica “percebia” um cenário estranho à sua realidade usual, a ponto de “assustar-se” com as suas sensações; 3°) Diz que não tinha consciência de ações que executava (o ato de datilografar um texto que afirmou ser uma psicografia). Essas sensações são compatíveis às descrições de James: “O campo atual como um todo fluirá de seu antecessor e se fundirá continuamente em seu sucessor, em uma massa de sensações que passará para outra massa de sensações e dando a ideia de um presente que muda gradualmente a experiência [...].” Essas des-crições são classificadas pelo autor como “um tipo de consciência em todos os aspectos essenciais, como aquele que é chamado místico” (JAMES, 1910, p. 86). Quando Chico Xavier assume uma atitude de concentração, ele pretendia mudar o

seu clima mental, e para tanto, teve que adotar uma atitude diferenciada em relação ao seu dia a dia, o ato de concentrar-se uma hora por dia, atende a condição de um estímulo físico diferenciado de “profunda serenidade” e de

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“paciência e calma”. O médium também deixa evidente a existência de um “campo de percepções” no qual surgem “coisas” (pessoas, objetos e locais) que o deixam confuso quanto ao que é real ou não, a ponto de não ter consci-ência exata das ações que executava. Nesse ponto, devemos apontar também para a presença de outra marca importante da mística descrita por James, que é a passividade, já que, ao datilografar a história e não ter a consciência do que escrevia, essa marca fica bem caracterizada. Quando ele diz ainda que. “Eu acompanhei a psicografia como acompanho também as nossas novelas da TV, com muito interesse, com muito carinho e torcendo por determinados personagens [...]” (XAVIER, 1984, p. 22) essa passividade fica aqui também muito bem definida.

Nesse relato fica também caracterizada a transitoriedade do processo que o médium mineiro passou quando define que deveria se concentrar durante uma hora para que pudesse se dedicar à experiência por mais uma hora.

No livro As Variedades da Experiência Religiosa (1991), James apresenta ainda, o que ele chamou de “traços gerais da esfera mística da consciência” no qual diz que: “Minha tarefa [...] é indagar se podemos invocá-lo como autoridade” (JAMES, 1991, p. 348). Para discutir a autoridade do fenômeno místico, ele divide então a questão em três partes: 01) Estados místicos, quando bem de-senvolvidos, geralmente são, e têm o direito de ser autoridade plena para aque-le que a experimenta; 02) Deaque-les não emanam nenhuma autoridade que obrigue os que estão fora a lhes aceitarem as suas manifestações sem nenhuma crítica; 03) Eles quebram o paradigma de autoridade da consciência não mística ou racionalista, que é fundada apenas no intelecto e nos sentidos, mostrando que esta não passa de uma espécie de consciência. Demonstram as alternativas que apontam para outras ordens de verdade, as quais, à medida que alguma coisa em nós responda a elas, possamos continuar livremente a ter fé.

Entendemos que esses traços gerais de autoridade da esfera mística se encaixam nas características dos fenômenos acerca de Chico Xavier. Ainda na entrevista dada no Pinga Fogo, quando perguntado sobre a autoria de suas psicografias ele diz que:

Antigamente eu me sentia, às vezes, ressentido dentro da minha ignorância com aqueles que não conseguiam crer na realidade mediúnica.[...] Mas Emmanuel então me disse: ‘O seu ressentimento é pura vaidade, porque você não pode exigir que os outros venham a crer naquilo que você crê, você não pode pedir a out-rem que pense pela cartilha dos seus próprios pensamentos. [...] Então respeito a opinião de todos [...], porque isso se tornou tão evidente na minha vida, se tornou de forma tão palpável para mim a convivência com as entidades espirituais du-rante tantos anos, desde os dias da infância que, para mim, a vida com os

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Espíri-tos desencarnados já não é propriamente um fenômeno mediúnico, mas o estado de convivência [...] cheguei a um estado de certeza, certeza íntima e naturalmente pessoal e intransferível, que se eu disser que estes livros pertencem a mim, eu es-tou cometendo uma fraude [...] (XAVIER, 1984, p. 46, grifo nosso).

Nesse trecho, identificamos o que William James (1991, p. 316) classifica como

qua-lidade noética, quando Chico Xavier diz: “Antigamente eu me sentia [...]

res-sentido” e que “isso se tornou tão evidente na minha vida”. A vivência dessas experiências trouxe um crescimento que gerou para ele a certeza íntima de que os livros que dizia psicografar deveriam ser atribuídos aos Espíritos. Essa “certeza íntima” se adapta à primeira afirmação de James sobre autoridade, pois trata-se de “autoridade absoluta” para ele que a experimentou.

A experiência mediúnica vivida pelo médium mineiro em sua descrição define de for-ma clara também a for-marca da inefabilidade quando ele diz que se trata de um estado de “certeza íntima [...] pessoal e intransferível”. Na mesma entrevista, em outra parte, o médium discorre sobre um incidente que ocorreu em um avião e relata a presença de seu mentor espiritual Emmanuel e diz:

Então aí entra o espírito de Emmanuel. Parece que é uma coisa de anedota, uma coisa fantástica, mas é a verdade, ele entrou no avião. [...] Então passou no meio do pessoal e o pessoal não via, como a maioria dos nossos amigos natural-mente não está vendo a presença dele aqui (XAVIER, 1984, p. 46).

Nessa passagem ele reforça que a visão do seu “mentor espiritual” é algo que somente ele percebe, em detrimento dos demais presentes.

Embora as vivências do médium mineiro sejam total autoridade para ele, para muitos, ele não foi uma unanimidade. Mesmo entre os espíritas não faltaram críticas e desconfianças a respeito da confiabilidade do que ele dizia, isso pode ser visto em sua carta a Wantuil de Freitas, datada de 23/11/1944:

[...] O que me dizes, referentemente à atitude de certos confrades que descambam para o terreno das provocações declaradas, é a cópia do que sinto também. É muito triste vermos companheiros, com tantas expressões de cultura evangélica, arvo-rarem-se em lutadores e combatentes sem educação. Logo que houve o agravo da sentença (caso H. Campos), observando a agressividade de muitos, escrevi mais de cinqüenta cartas privadas e confidenciais aos amigos da doutrina, com res-ponsabilidade na imprensa espiritista, rogando a eles me ajudarem, por amor de Jesus, com o silêncio e a prece e não com defesas precipitadas e, confesso-te, que algumas dessas cartas foram escritas com lágrimas por mim, tal a desorientação de certos amigos que facilmente se transformam em provocadores e ironistas,

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es-quecendo os mais comezinhos deveres cristãos. [...] Como sabes, meu caro Wan-tuil, nem todas as publicações poderiam ser corretas, no caso escandaloso, e nem todos os jornalistas me procuraram com boas intenções. Mas como sabes também, e conforme assevera o nosso Emmanuel, ‘na tarefa mediúnica, não podemos agra-dar a todos, mas não devemos desagraagra-dar a ninguém’. Minha situação era muito delicada e mesmo assim não faltaram inúmeros confrades que me escreveram car-tas impiedosas e irônicas, quando liam reportagens em desacordo com a verdade dos fatos, como se eu devesse controlar todos os jornais que escreveram sobre o acontecimento. Alguns me perguntaram acremente se eu não estava obsediado e se já não havia enlouquecido. [...] Continuemos, meu amigo, em nossos trabalhos, edificados na consciência tranquila (SCHUBERT, 1986, p. 34).

Outro exemplo é da carta de 18 de abril de 1960 do escritor paulista Jonas H. Landahl, com longo artigo anexado, que faz uma crítica à obra Evolução em Dois

Mun-dos psicografada por Chico Xavier e Waldo Vieira. Com os seguintes dizeres: Acostumado a tê-lo sempre perto, através dos livros, bem como das colabora-ções que empresta a todas as revistas espíritas sua maravilhosa mediunidade, tenho-o como uma pessoa íntima e venho confessar-lhe que pequei contra ami-zade que me inspira. [...] Estou plenamente convicto de que agí com a inteira razão ao revoltar-me contra ‘Evolução em Dois Mundos’, e meu pecado é não me haver dirigido diretamente ao amigo em primeiro lugar. Perdoe que, logo pela primeira vez, lhe escreva para sensurar (sic) um trabalho vindo por inter-médio de seus dons mediúnicos (MEMORIAL CHICO XAVIER, 2018).

Esse tipo de crítica a Chico Xavier não foi incomum e há inúmeros outros relatos que corroboram a segunda afirmação de James sobre a experiência mística não emanar autoridade alguma “que obrigue os que estão fora a lhes aceitarem as revelações sem nenhuma crítica” (JAMES, 1991, p. 348).

Quanto à terceira questão sobre autoridade apresentada por William James, cujo prin-cipal ponto é a abertura de uma “possibilidade de outras ordens de verdade”, destacamos o trecho da entrevista do Pinga fogo, no qual o jornalista João de Scantimburgo pergunta:

Senhor Chico Xavier, Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns, dá o nome de psico-grafia direta à escrita em que o médium, de posse de lápis ou caneta, passa a escre-ver, segundo o fundador do Espiritismo, por meio da comunicação de um Espírito. Admitindo-se, para iniciar a entrevista, que as obras publicadas pelo senhor tenham sido psicografadas, pergunto: quantos livros o senhor psicografou e de que autores. Peço, se possível a relação de alguns ou da maioria deles (XAVIER, 1984, p. 31).

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Tal pergunta, além da própria entrevista em si, com alcance inédito no país até aquele momento, deixa claro o ponto levantado por James sobre a possibilidade de se pensar em “outras ordens de verdade, nas quais, na medida em que alguma coisa em nós responda vitalmente a elas, possamos continuar livremente a ter fé” (JAMES, 1991, p. 348). É possível afirmar isso visto que muitos que de-ram a audiência ao Pinga Fogo acreditavam na autoridade emanada por aquele homem do interior de Minas Gerais.

Pode parecer estranho que mesmo entre os espíritas existam dúvidas a respeito das comunicações de Chico Xavier, mas entendemos que isso faça parte da pró-pria estrutura doutrinária do Espiritismo, pois Allan Kardec estimulava a ve-rificação e a constatação de que as experiências sejam verídicas e cabíveis. Kardec, que nunca apresentou sinais de mediunidade ou de êxtase, reconhecia a possibilidade da existência de um fenômeno, mas julgava necessário buscar a veracidade das informações fornecidas por aqueles que vivenciaram as ex-periências, pois, para ele, seus portadores não eram nada mais nada menos do que médiuns.

Todo aquele que, tanto no estado normal, como no de êxtase, recebe, pelo pensa-mento, comunicações estranhas às suas ideias preconcebidas, pode ser incluído na categoria dos médiuns inspirados. Estes, como se vê, formam uma variedade da mediunidade intuitiva, com a diferença de que a intervenção de uma força oculta é aí muito menos sensível, por isso que, ao inspirado, ainda é mais difí-cil distinguir o pensamento próprio do que lhe é sugerido. A espontaneidade é o que, sobretudo, caracteriza o pensamento deste último gênero. A inspiração nos vem dos Espíritos que nos influenciam para o bem, ou para o mal, porém, procede, principalmente, dos que querem o nosso bem e cujos conselhos muito amiúde cometemos o erro de não seguir. Ela se aplica, em todas as circunstân-cias da vida, às resoluções que devamos tomar. Sob esse aspecto, pode dizer-se que todos são médiuns, porquanto não há quem não tenha seus Espíritos prote-tores e familiares, a se esforçarem por sugerir aos protegidos salutares ideias

(KARDEC, 1987, p. 199).

Nessa passagem, Kardec fala de inspiração tanto em estado “normal” quanto de “êx-tase” e classifica os extáticos como sendo médiuns inspirados. Em um co-mentário à resposta atribuída aos espíritos, da questão 443, em O Livro dos

Espíritos, diz que:

O que o extático vê é real para ele. Mas como seu Espírito se conserva sempre sob a influência das ideias terrenas, pode acontecer que veja a seu modo, ou me-lhor, que exprima o que vê numa linguagem moldada pelos preconceitos e ideias

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de que se acha imbuído, ou, então, pelos vossos preconceitos e ideias, a fim de ser mais bem compreendido. Neste sentido, principalmente, é que lhe sucede errar (KARDEC, 2008, p. 266).

Kardec, duvidando da fidelidade do que o médium inspirado pode informar, afirma ser possível tornar isso de certa forma empírico, utilizando-se de diversos mé-diuns diferentes, desconhecidos entre si, que, ao serem questionados sobre o mesmo ponto, deram a mesma resposta ou relataram a mesma experiência (KARDEC, 2013, p. 15)16. A isso ele dá o nome de controle universal do

en-sino dos espíritos, e que esse método deverá sempre se aplicar a qualquer comunicação espírita. É por essa razão que mesmo as comunicações de Chico Xavier são às vezes colocadas em xeque, pois o segundo princípio da autori-dade apresentada por James também vale para Kardec que entende que toda experiência relatada poderá ser exposta a uma condição de crítica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi demonstrado, é indubitável a polissemia do termo “mística”. Por essa razão, na introdução, deixamos claro o nosso ponto de vista a respeito de uma abordagem do termo por duas dimensões: uma fisiológica ou fenomênica e a outra experiencial ou transcendente. Toda a abordagem que fizemos, par-ticularmente no que diz respeito às definições psicológicas de Willian James, navega pela primeira dimensão, a fisiológica/fenomênica, percorrendo os me-andros da consciência de um indivíduo. Esse ponto de vista, contudo, não é único - como podemos ver na declaração de Velasco:

As razões desta pluralidade de significados da palavra “mística” são numerosas e facilmente compreensíveis. Em primeiro lugar, a enorme pluralidade de fenômenos aos que se aplicam; além do mais, a pluralidade de pontos de vista: médico, psico-lógico, filosófico, teopsico-lógico, histórico, cultural, a partir dos quais, dada sua grande complexidade, são estudados os fenômenos. Por último, a pluralidade de sistemas de interpretação desses feitos extraordinariamente densos, que originam interpreta-ções e valorainterpreta-ções mui variadas (VELASCO, 1999, p. 19, tradução nossa17).

É por essa razão que, ao finalizar este artigo, não nos atrevemos a intitular esta última parte de “conclusão”, pois o assunto ainda requer maiores aprofundamentos e análises. Entretanto, demonstramos, através dos pontos trazidos, do ponto de vista da dimensão fisiológica/fenomênica, a presença de uma epistemologia da mística que se aplica ao Espiritismo. Para tanto, estabelecemos uma inves-tigação sobre os fenômenos mediúnicos atribuídos ao médium espírita Chico

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Xavier, comparando-os às análises sobre mística e estados não usuais de cons-ciência. Demonstramos associações relevantes acerca da presença dos traços normalmente associados à mística com essa doutrina e, mais especificamente aqui, com o médium mineiro Francisco Cândido Xavier - abordagem essa que entendemos ser inédita, deixando clara a presença de elementos que rela-cionam a consciência como um de seus elementos fundamentais de maneira geral, sejam esses estudos feitos do ponto de vista de essencialistas, constru-tivistas ou de fenomenólogos, como, por exemplo, Bernard McGinn (2012, p. 21), em que afirma:

Quando falo de mística como envolvendo uma consciência imediata da pre-sença de Deus, estou tentando salientar uma reivindicação central que apa-rece em quase todos os textos místicos. Os místicos continuam a afirmar que seu modo de acesso a Deus é radicalmente diferente daquele encontrado na consciência comum, mesmo da consciência de Deus atingida através das co-muns atividades de prece, sacramentos e outros rituais. Como crentes, eles afirmam que Deus de fato se faz presente nessas atividades, mas não de modo algum direto ou imediato.

Esse ponto de vista de McGinn, apesar de ser claramente vinculado às doutrinas cristãs, trata da questão da presença da consciência como tema central da mística. Em-bora saibamos que a mística não possa ser reduzida tão somente a uma dimensão fenomênica, podemos constatar, através das questões de autoridade defendidas por William James, que essas expressões de consciência imediatas, mediadas por seus agentes chamados “místicos”, têm influências no mundo ao seu redor. No caso particular da mediunidade no Espiritismo, representada pelo seu maior

expo-ente Chico Xavier, como dissemos inicialmexpo-ente, não se cria associação auto-mática à mística por si só. Não se pode vincular mediunidade e mística pelo simples fato de serem considerados os seus fenômenos “extraordinários”, pois estes, apesar de suas façanhas, não implicam necessariamente uma mudança do indivíduo suficiente para causar nele transformações que o façam percorrer um Caminho Místico, como aborda Underhill:

A união viva com esse Um - que é o termo de sua aventura - é um estado defi-nido ou forma de vida aprimorada. Não é obtido nem pela realização intelectu-al de suas delícias, nem pelos anseios emocionais mais agudos. Embora estes devam estar presentes, eles não são suficientes. É alcançado por um processo psicológico definido e árduo - o chamado Caminho Místico - que envolve na completa reformulação do caráter e a liberação de uma nova forma de consci-ência nova, ou melhor, latente, que impõe ao eu a condição que às vezes é

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in-corretamente chamado de “êxtase”, mas é melhor denominado Estado Unitivo

(UNDERHILL, 1912, p. 96, tradução nossa18).

Portanto, em sua dimensão fenomênica, por meio dos relatos trazidos neste artigo, apon-tamos relacionamentos importantes que nos permitem pensar na possibilidade de uma experiência mística nessa doutrina, pois, além da inefabilidade e qualidade

noética, passividade e transitoriedade, encontramos outros traços importantes como as questões de análise da autoridade da experiência mística. Apesar da posição de Allan Kardec aparentemente negativa sobre isso, percebemos, mes-mo no fundador do Espiritismes-mo, um posicionamento que caminha muito mais para a não banalização do fenômeno com um sentido de fundo, de profundo res-peito aos sentimentos religiosos. Dessa forma, entendemos que é possível, sim, abrir a discussão a respeito da presença da mística no Espiritismo.

CHICO XAVIER, MYSTIQUE AND SPIRITISM: A FEASIBLE DEBATE

Abstract: the mystique topic has a great deal of ambiguity and polysemy, and one

should take care not to generalize its concept by taking any experience as mystical. The aim of this article is to address an epistemology of mystique that allows us to discuss mystique bias in Spiritism. To achieve this goal, we esta-blished an investigation into the mediumistic phenomena attributed to the spi-ritist medium Chico Xavier, comparing the analyses on the mystical and unu-sual states of consciousness of William James, Juan Martín Velasco, Evelyn Underhill, and Bernard McGinn. Overall, we intend to evaluate the possibility to think and discuss Spiritism through the mystique.

Keywords: Mystique. Spiritism. Kardec. States of consciousness. Notas

1 Os Espíritas de maneira geral preferem designá-lo como Codificador do Espiritismo, na medida em que, segundo seus fiéis, o Espiritismo não foi fundado por Kardec, e sim expli-cado, codificado por ele, já que os “fenômenos espíritas” sempre existiram.

2 Mandato mediúnico, para o Espiritismo, é uma espécie de missão especial que recebem alguns médiuns. É descrito pelo espírito André Luiz (1988, p. 149) como uma responsabilidade maior diante das pessoas de forma a funcionar como que um sacerdócio de fraternidade e compreensão para inspirar fé e esperança àqueles que se aproximam do médium missionário. 3 Sandra Jacqueline Stoll e Bernardo Lewgoy são os dois antropólogos tidos como grandes

referências acadêmicas no Brasil quando se trata do assunto Espiritismo.

4 Há uma grande discussão a respeito do aspecto científico ou religioso do Espiritismo tratado amplamente tanto no meio acadêmico, como internamente entre os Espíritas (CHIBENI, 2003, p. 315). Essa discussão não surge no Brasil e foi trazida da França quando essa doutrina aporta

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o país, e foi objeto de disputa inclusive na formação da FEB (Federação Espírita Brasileira) em 1889 quando Bezerra de Menezes assumiu a presidência aproximando o Espiritismo no Brasil ao seu aspecto mais religioso (QUINTELLA, 2010). Em nossa dissertação de mestrado discutimos esse assunto com maior profundidade (BARROS, 2018).

5 A definição de mediunidade pode ser feita de várias maneiras, a maioria delas por fiéis e/ ou participantes de determinados grupos sociais ou religiosos, e para evitar qualquer de-finição proselitista, recorremos à dede-finição do psiquiatra Alexander Moreira-Almeida que diz que mediunidade é “[...] uma experiência em que o indivíduo (chamado de médium) alega estar em comunicação com, ou sob o controle de, a personalidade de uma pessoa falecida ou de outro ser não material. Essas experiências, por meio de oráculos, profetas e xamãs, estão disseminadas pela maioria das sociedades ao longo da história, sendo parte das raízes greco-romanas e judaico-cristãs da sociedade ocidental, bem como do hinduísmo e do budismo tibetano” (MOREIRA-ALMEIDA, 2012, p. 233).

6 La palabra castellana «mística» es la transcripción de un término griego, el adjetivo mystikôs, derivado de la raíz indoeuropea my, presente en myein: cerrar los Ojos y la boca, de donde proceden “miope”, “mudo”, y también “misterio”, que remite a algo oculto, no accesible a la vista, de lo que no puede hablarse. La palabra mystikôs nos remonta a la Grecia clásica y, más propiamente, a las religiones de misteríos, ta mystikâ: las ceremonias en las que el mystes, el fiel, es iniciado (myeisthiai) en los grandes misterios.

7 [...] con la palabra ‘mística’ nos referiremos, en términos todavía muy generales e imprecisos, a experiencias interiores, inmediatas, fruitivas, que tienen lugar en un nivel de conciencia que supera la que rige e en la experiencia ordinaria y objetiva, de la unión – cualquiera que sea la forma en que se la viva – del fondo del sujeto con el todo, el universo, el absoluto, lo divino, Dios o el Espíritu.

8 The movement of mystic consciousness towards this consummation, is not merely the sudden admission to an overwhelming vision of Truth: it is rather an ordered movement towards ever higher levels of reality, ever closer identification with the Infinite. ‘The mystic experience’, says Recejac, ‘ends with the words, ‘ I live, yet not I, but God in me.’ This feeling of identification, which is the term of mystical activity, has a very important significance. In its early stages the mystic consciousness feels the Absolute in opposition to the Self [...] as mystic activity goes on, it tends to abolish this opposition [...] When it has reached its term the consciousness finds itself possessed by the sense of a Being at one and the same time greater than the Self and identical with it : great enough to be God, intimate enough to be me’.

9 Entrevista concedida em 17 de agosto de 2019 – TCLE sob número de registro CEP: CAAE: (16654819.7.0000.5137)

10 As referências relativas à Revista Espírita, geralmente são tomadas pelo ano original de sua publicação, e isto torna-se relevante na medida em que, para o desenvolvimento de nosso trabalho, estamos em alguns momentos analisando o desenvolvimento do pensamento de Kardec, do ponto de vista cronológico. Portanto, doravante, quando se tratar da Revista Espírita editada por Kardec, citaremos o ano original da revista seguido do ano de sua versão atual (2007) publicada pela FEB no formato de uma coleção de livros com a(s) página(s) correspondente(s), na tradução de Evandro Noleto Bezerra, a qual foi tomada por referência. 11 A word which is impartially applied to the performances of mediums and the ecstasies of the saints, to ‘menticulture’ and sorcery, dreamy poetry and mediaeval art, to prayer and

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palmistry, the doctrinal excesses of Gnosticism, and the tepid speculations of the Cambridge Platonists [...] soon ceases to have any useful meaning.

12 Para aquele que não se dedica ao estudo do Espiritismo, é importante chamar a atenção de que essa doutrina se considera cristã, a ponto de Kardec afirmar que, apesar de dar crédito às outras religiões, “de todas as doutrinas, o Cristianismo é a mais esclarecida, a mais pura” (KARDEC, [1859]/(2007a), p. 206). Destacando-se que, para Kardec, Cristianismo, Igreja Católica e Protestantismo eram coisas diferentes.

13 When, now, the threshold falls, what comes into view is not the next mass of sensation; for sensation requires new physical stimulations to produce it, and no alteration of a purely mental threshold can create these.

14 [...] if we suppose that the wave of present awareness, steep above the horizontal line that represents the plane of the usual ‘threshold’, slopes away below it very gradually in all directions. A fall of the threshold, however caused, would, under these circumstances pro-duce the state of things which we see on an unusually flat shore at the ebb of a spring-tide. Vast tracts usually covered are then revealed to view, but nothing rises more than a few inches above the water’s bed, and great parts of the scene are submerged again, whenever a wave washes over them. Some persons have naturally a very wide, other a very narrow, field of consciousness. The narrow field may be represented by an unusually steep form of the wave.

15 The field is composed [...] of a mass of present sensation, in a cloud of memories, emotions, concepts, etc. Yet these ingredients, which have to be named separately, are not separate, as the conscious field contains them. Its form is that of a much-at-once in the unity of which the sensations [...] coalesce and are dissolved. The present field as a whole came conti-nuously out of its predecessor and will melt into its successor as conticonti-nuously again, one sensation-mass passing into another sensation-mass and giving the character of a gradually changing present to the experience, while the memories and concepts carry time-coefficients which place whatever is present in a temporal perspective more or less vast. When, now, the threshold falls, what comes into view is not the next mass of sensation; for sensation requires new physical stimulations to produce it, and no alteration of a purely mental threshold can create these. [...] It is like the field of vision, which the slightest movement of the eye will extend, revealing objects that always stood there to be known. My hypothesis is that a movement of the threshold downwards will similarly bring a mass of subconscious memories, conceptions, emotional feelings, and perceptions of relation, etc., into view all at once; and that if this enlargement of the nimbus that surrounds the sensational present is vast enough, [...] we shall have the conditions fulfilled for a kind of consciousness in all essential respects like that termed mystical.

16 Entendemos que isso é questionável do ponto de vista da mística de um modo geral, que entende que a experiência mística é única para o indivíduo.

17 Las razones de esta pluralidad de significados de la palabra “mística” son numerosas y fácilmente comprensibles. En primer lugar, la enorme pluralidad de fenómenos a los que se aplica; además, la pluralidad de puntos de vista: médico, psicológico, teológico, histórico, cultural, desde que los que, dada su gran complejidad, son estudiados esos fenómenos. Por último, la pluralidad de sistemas de interpretación de esos hechos extraordinariamente densos, que originan interpretaciones y valoraciones muy variadas.

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of enhanced life. It is obtained neither from an intellectual realization of its delights, nor from the most acute emotional longings. Though these must be present, they are not enou-gh. It is arrived at by a definite and arduous psychological process - the so-called Mystic Way - entailing the complete remaking of character and the liberation of a new, or rather latent, form of consciousness, which imposes on the self the condition which is sometimes inaccurately called “ecstasy,” but is better named the Unitive State.

Referências

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BARROS, Brasil Fernandes de. Religião e Espiritismo: O conceito de religião da

Doutrina Espírita segundo a concepção de Allan Kardec. 2018. 148 f. Dissertação

(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Pontifícia Univer-sidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.

CHIBENI, Silvio Seno. O espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso. Reformador, Rio de Janeiro, ano 121, n. 2093, p. 315-319, ago. 2003. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.

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