XXV ENCONTRO NACIONAL DO
CONPEDI - BRASÍLIA/DF
TEORIA CONSTITUCIONAL
GISELA MARIA BESTER
MARCUS FIRMINO SANTIAGO
Copyright © 2016 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito Todos os direitos reservados e protegidos.
Nenhuma parte destes anais poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.
Diretoria – CONPEDI
Presidente - Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa – UNICAP Vice-presidente Sul - Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – PUC - RS
Vice-presidente Sudeste - Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim – UCAM Vice-presidente Nordeste - Profa. Dra. Maria dos Remédios Fontes Silva – UFRN Vice-presidente Norte/Centro - Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes – IDP Secretário Executivo - Prof. Dr. Orides Mezzaroba – UFSC
Secretário Adjunto - Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto – Mackenzie
Representante Discente – Doutoranda Vivian de Almeida Gregori Torres – USP
Conselho Fiscal:
Prof. Msc. Caio Augusto Souza Lara – ESDH
Prof. Dr. José Querino Tavares Neto – UFG/PUC PR
Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches – UNINOVE Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva – UFS (suplente)
Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas – UFG (suplente)
Secretarias:
Relações Institucionais – Ministro José Barroso Filho – IDP
Prof. Dr. Liton Lanes Pilau Sobrinho – UPF Educação Jurídica – Prof. Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues – IMED/ABEDi Eventos – Prof. Dr. Antônio Carlos Diniz Murta – FUMEC
Prof. Dr. Jose Luiz Quadros de Magalhaes – UFMG Profa. Dra. Monica Herman Salem Caggiano – USP Prof. Dr. Valter Moura do Carmo – UNIMAR
Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr – UNICURITIBA
T314
Teoria constitucional [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UnB/UCB/IDP/UDF;
Coordenadores: Gisela Maria Bester, Marcus Firmino Santiago, Menelick de Carvalho Netto – Florianópolis: CONPEDI, 2016.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-5505-202-6
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: DIREITO E DESIGUALDADES: Diagnósticos e Perspectivas para um Brasil Justo.
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Teoria Constitucional. I. Encontro Nacional do CONPEDI (25. : 2016 : Brasília, DF).
CDU: 34 ________________________________________________________________________________________________
Florianópolis – Santa Catarina – SC
XXV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - BRASÍLIA/DF
TEORIA CONSTITUCIONAL
Apresentação
O Grupo de Trabalho Teoria Constitucional congregou, no dia 8 de julho de 2016, na sala
AT04 da Faculdade de Direito da UnB, a apresentação dos treze trabalhos nele aprovados,
bem como debates subsequentes entre os e as presentes.
Os artigos apresentados e ora publicados contemplam diferentes e relevantes aspectos da
teoria constitucional contemporânea. A mutação constitucional é o marco teórico de três
estudos, que abordam temas como a tensão entre as mudanças interpretativas e o
fortalecimento normativo constitucional; a releitura das regras sobre imunidade parlamentar
feita pelo Supremo Tribunal Federal; e novamente uma análise de precedente desta Corte, na
celeuma referente ao princípio da presunção de inocência e à correlata garantia constitucional
do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Reflexões sobre o poder constituinte fornecem as bases para, em um momento, discutir os
limites ao poder de reforma e a necessidade de equilíbrio entre reforma e conservação do
texto constitucional; e, em outro, contemplar as teorias de John Rawls e de Jürgen Habermas
e suas contribuições na busca pela formação de uma base consensual capaz de legitimar o
constructo constitucional.
A jurisdição constitucional e o papel do Poder Judiciário são abordados sob três aspectos:
uma crítica, à luz da teoria luhmaniana, à prática do STF acerca da modulação dos efeitos das
decisões de inconstitucionalidade; uma análise do ativismo judicial e do desequilíbrio
presente nas relações institucionais; e uma defesa do sistema de controle difuso de
constitucionalidade diante da especial abertura participativa que este proporciona.
Questões referentes ao modelo constitucional brasileiro são contempladas em três outros
artigos: a história constitucional é revisitada, em um resgate do processo constituinte
brasileiro de 1987/88, na busca dos fundamentos acerca do sistema de veto presidencial; os
limites e as condições para exercício da liberdade de iniciativa previstos na Constituição
Federal de 1988 são estudados à luz dos preceitos do neoconstitucionalismo; e as relações
federativas restam discutidas a partir de uma perspectiva realista, em busca dos elementos e
A realidade latino-americana não fica de fora, sendo lembrada e discutida em texto que
aborda a ainda recente Constituição boliviana e a experiência do seu previsto tribunal
indígena, em busca de uma melhor compreensão acerca desta instituição e de sua possível
influência no sistema brasileiro.
A correlação entre Estado e crise é também abordada em um dos artigos apresentados.
Nos debates, em perspectiva crítica ao "status quo" reinante no atual cenário
jurídico-político-institucional brasileiro, fez-se, em sintonia das diversas manifestações, uma reafirmação da
defesa da força normativa da Constituição de 1988, em toda a sua riqueza de conteúdos que
não podem ser flexibilizados, ignorados ou ultrapassados, nem mesmo pelo STF, em prejuízo
do sistema de direitos e garantias instituído pelo constituinte originário.
Brasília, DF, 10 de julho de 2016.
Prof. Dr. Menelick de Carvalho Netto - PPGD UnB
Profa. Dra. Gisela Maria Bester - PPGD UNOESC
Prof. Dr. Marcus Firmino Santiago - PPGD Centro Universitário do Distrito Federal / PPGD
COMPREENDENDO A LIVRE INICIATIVA COM BASE NO NEOCONSTITUCIONALISMO
UNDERSTANDING THE FREE ENTERPRISE BASED ON NEOCONSTITUCIONALISM
Diogo Basilio Vailatti 1
Resumo
O neoconstitucionalismo pode ser entendido como uma nova forma de compreender o
Direito que é centrada na supremacia do texto constitucional, bem como procura reaproximar
o Direito e a moral. Desta forma, para compreender as responsabilidade e permissões que a
Constituição Federal atribui para a iniciativa privada torna-se primordial delinear a livre
iniciativa dentro deste método de hermenêutica constitucional. Para tanto, o presente estudo
valeu-se de uma análise revisional e bibliográfica para, por meio do método dedutivo,
procurar compreender a livre iniciativa com base no neoconstitucionalismo, verificando quais
são as implicações de tal associação.
Palavras-chave: Ordem econômica, Livre iniciativa, Hermenêutica constitucional,
Neoconstitucionalismo
Abstract/Resumen/Résumé
The neoconstitutionalism can be understood as a new way of understanding the law that is
centered on the supremacy of the Constitution and demand reconnecting the law and morality
To understand the responsibility and permissions that the Constitution assigns to the private
sector, within the economic order becomes paramount outline free enterprise within this
constitutional hermeneutical method. Therefore, this study took advantage of a revisional and
literature review for through the deductive method, seek to understand the free enterprise
under the bias of neoconstitutionalism, checking what are the implications of such an
association.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Economic order, Free enterprise, Constitutional
hermeneutics, Neoconstitutionalism
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo compreender a extensão e amplitude do instituto
livre iniciativa, previsto dentro da Constituição Federal de 1988, sob o viés do
neoconstitucionalismo. Para tanto, a análise inicia-se da passagem do constitucionalismo
positivista para o neoconstitucionalismo para, após verificar qual seria o papel das regras e
dos princípios neste último, alcançar o objetivo almejado.
O problema enfrentado pela pesquisa é o de verificar qual o papel da livre iniciativa
enquanto princípio-fundante da ordem econômica. A hipótese da pesquisa é a de compreender
tal instituto partindo-se do neoconstitucionalismo, muito embora este não seja o único método
de hermenêutica constitucional existente, verificando quais são as implicações de serem
ambos os conceitos entrelaçados.
Para alcançar a resposta almejada, o artigo será divido em três partes. Na primeira,
analisar-se-á o surgimento do constitucionalismo até sua transformação no
neoconstitucionalismo. Na segunda, verificar-se-á possíveis interpretações das diferenças
entre regras e princípios, bem como da forma de compreender qual prevalecerá em eventual
colisão. Por fim, na terceira parte, com base nas premissas até então traçadas, dedicar-se na
análise da livre iniciativa, de forma que se cheguem em algumas conclusões sobre seu papel
dentro do neoconstitucionalismo.
Já a relevância da pesquisa encontra-se na necessidade de compreender e reafirmar
as diretrizes do modelo econômico adotado pela Constituição Federal para a iniciativa
privada, o qual sempre gera intensos debates acalorados em períodos de crise econômica, sob
o viés de um dos métodos de hermenêutica constitucional mais estudados na modernidade.
Procurando realizar tal investigação, o presente trabalho utilizou-se de uma pesquisa
revisional e bibliográfica para, valendo-se do método dedutivo, encontrar bases para as
respostas almejadas.
1 CONSTITUCIONALISMO POSITIVISTA E O NEOCONSTITUCIONALISMO
Contrapondo-se às concepções de um sistema político absolutista, além de buscar
concretizar os direitos que até então eram considerados inerentes ao homem, mas que ainda
não estavam estruturados pelo sistema jurídico, as revoluções burguesas (americana de 1776 e
constitucionalismo1 ao passo que resultaram na elaboração da Bill of Rights em 1776,
ratificada em 1791, e na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão em 17892.
Em suma, tais declarações consagravam direitos e garantias individuais fundamentais
que limitavam o poder soberano, de forma que ambas são ponto de partida para o desenvolver
da limitação do poder almejada pelos textos constitucionais.
Neste sentido, percebendo o fenômeno em questão, em especial no que tange às
concepções vislumbradas nos textos acima citados e que, posteriormente, influenciaram
diversos países por todo o mundo, nas palavras de Canotilho (1997, p. 51) “o
constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado
indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social
de uma comunidade.”
Contudo, em que se pesem os avanços resultantes da disseminação de tais ideias, uma
vez que hoje, em pleno século XXI, todos os países, até mesmo os que não são democráticos,
possuem uma Constituição (MARTINS, 2005, p. 11), o constitucionalismo concebido no
século XVIII também resultou em problemas de cunho político e jurídico em função do seu
afastamento da concepção de justiça e da aproximação do critério de validade. Tais problemas
foram repensados com o advento do neoconstitucionalismo, o qual resultou em novos
desafios para os operadores do Direito, conforme melhor será explanado adiante.
Continuando na análise do constitucionalismo, suas concepções resultaram em um
sistema no qual as constituições eram ainda majoritariamente flexíveis, portanto, facilmente
modificáveis pelo poder legislativo (dominado pela burguesia em função do voto censitário),
bem como não se possuíam ainda mecanismos de proteção democráticos que transformassem
partes de seus núcleos em estruturas intangíveis, o que facilitava sua manipulação.
(CAMPUZZANO, 2009)
2
Constitucionalismo é expressão polissêmica que, em suma, comporta três acepções. Originalmente, surge como um sistema que pretende limitar o poder arbitrário. Em um segundo momento, como uma concepção filosófica que impõem que existam constituições escritas em todos os países. Posteriormente, enxerga-se o constitucionalismo como o campo de estudo das evoluções históricas constitucionais de determinados países. Desta forma, para fins de compreensão, toda a vez que o presente trabalho utilizar do termo constitucionalismo, estar-se-á referindo-se à primeira acepção. (TAVARES, 2006, p. 2)
3
Sobre a opção entre colocar tais declarações como marcos para um recorte do início do constitucionalismo
moderno, explica José Afonso da Silva (2000, p. 155): “Na Inglaterra, elaboraram-se cartas e estatutos assecuratórios de direitos fundamentais [...]. Não são, porém, declarações de direitos no sentido moderno, que só
Mais do que isto, muito embora objetivassem limitar os detentores do poder, as
constituições ainda eram vistas como uma simples carta de intenções políticas. Portanto, ainda
eram tratadas como estruturas de limitado alcance e de pouca aplicabilidade de suas normas.
Sob tal prisma, em sua origem, o constitucionalismo estava ainda apenas atrelado aos
ideais iluministas que influenciaram as revoluções americana e francesa (liberdade, igualdade
e fraternidade), em especial aos direitos de cunho individual liberal, o que resultou em
(a) a nível político, a ideologia liberal que, sutilmente manipulada pela nova classe social emergente, perdeu seu cunho emancipador e revolucionário para continuar atrelada aos interesses econômicos do decadente liberalismo instalado; e (b) no âmbito jurídico, do positivismo legalista, que aliado ao reconhecimento dos conteúdos iusnaturalistas de tradição liberal contratualista, resultou no monopólio da produção jurídica por parte do aparato estatal, no princípio da legalidade, na onipotência da lei e na primazia do poder legislativo, função que, na prática, ficou confiada à burguesia e a um modelo de representação política baseado no sufrágio censitário e, por último, na identidade entre justiça e validade a qual todo direito válido era por si mesmo legítimo. (CAMPUZZANO, 2009)3
Desta forma, o desenvolver do positivismo, concepção filosófica presente nas
revoluções francesas e americanas, levaria, posteriormente, sua expansão para as demais áreas
do conhecimento científico, o que também afetaria diretamente o Direito, uma vez que se
passou a validar por completo todo o sistema posto desde que se obedecesse ao devido
processo de inserção da norma dentro do ordenamento.
Em sua essência, o positivismo científico buscava que a ciência fosse uma forma de
conhecimento puramente objetiva da realidade que exclui por completo o juízo de valores do
seu campo de estudo. Dentro de tal concepção, o cientista abandonaria qualquer forma de
compreensão moralista ou metafísica da realidade para compreender a realidade de uma
forma meramente experimental. (BOBBIO, 1995, p. 135 – 136)
O livro Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen pode ser considerado um dos principais
trabalhos responsáveis pela transposição sistematizada do modelo positivista para o Direito ao
buscar analisá-lo centrado no critério de validade das normas, o qual, de forma científica,
baseava sua investigação em um sistema escalonado que contava com a Constituição em seu
4 Tradução livre. No original: “
topo normativo. No prefácio da primeira edição de tal obra, de 1934, salienta o autor sobre
seus objetivos com tal forma de estudo:
Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que - aberta ou veladamente - se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão. (KELSEN, 1999, p. 7) 4
O papel central atribuído para a Carta Magna na obra de Kelsen, muito embora tenha
contribuído para consolidar e desenvolver o conceito de força normativa das normas
constitucionais, ainda estava atrelado a um sistema hermético que buscava aproximar o
pensamento jurídico ao das ciências naturais. Em tal sistema, o problema da justiça
afastava-se do Direito, adentrando-afastava-se em questões de cunho político e sociológico, o que diminuía o
campo de alcance constitucional.
Desta forma, o constitucionalismo praticado do século XVIII até a segunda metade do
século XX estava ainda umbilicalmente ligado ao positivismo das revoluções burguesas que
posteriormente foi sistematizado por Kelsen. Isto apenas começaria a ser revisto com o
fenômeno de inserção e valorização dos princípios dentro das constituições em decorrência da
necessidade de uma releitura moral do Direito como resposta as atrocidades cometidas na
Segunda Guerra Mundial, tanto em relação aos judeus quanto aos massacres de Hiroshima e
Nagasaki.
Justamente em função de tais tragédias, o conteúdo e o papel da Constituição
começaram a ser revistos, o que resultou em uma nova forma de compreender o Direito. O
pós-positivismo levou ao neoconstitucionalismo, o qual se constitui em nova corrente
filosófica que objetiva, em suma, fortalecer a Constituição, bem como retomar o campo dos
valores para dentro do estudo jurídico. Nas palavras de Uadi Lammêgo Bugos (2011, p. 80)
pode-se atribuir as seguintes características para tal movimento:
5
No preâmbulo da 2ª edição da Teoria Pura do Direito, o próprio Kelsen (1999, p. 9 - 12) admitiu que a Segunda Guerra Mundial foi responsável pelo ressurgir das vertentes filosóficas que apontam para o direito natural como superior ao positivo. Em função de tal debate, o autor procurou ater-se ao seu estudo na obra “A
(i) Equivale a uma nova teoria do Direito Constitucional; (ii) promoveu a decodificação do Direito, cujos ramos saíram da órbita infraconstitucional, passando para o campo constitucional; (iii) inaugura um novo período da hermenêutica constitucional; (iv) reflete a pujança da força normativa da Constituição; (v) corresponde a uma nova ideologia ou método de análise do Direito; (vi) retrata o advento de um novo sistema jurídico e político; (vii) inaugura um novo modelo de Estado de Direito; e (viii) reúne novos valores que se pronunciam vigorosamente.
Já Ana Paula de Barcellos (2007) aponta que, enquanto nova forma de compreender
o Direito Constitucional, tal movimento agrupa duas características de estrutura e conteúdo
essenciais: metodologia-formal e material. Em função do primeiro grupo apontado, as
Constituições são atualmente entendidas como normas jurídicas dotadas de imperatividade,
bem como são estruturas rígidas e que servem de base para interpretação e validar todo o
ordenamento restante. Em decorrência da segunda característica, as Cartas Políticas adotam
valores de forma explícita em seu texto e, em função da variedade de seus conteúdos, tais
valores entram em conflitos gerais e específicos dentro dos casos concretos.
Neste sentido, a Carta Política, mais do que simplesmente impor limites ao poder do
Estado ou organizar e formar a vida política, torna-se instrumento jurídico de valores
fundamentais que possibilitam ordenar a sociedade de maneira justa. (BÖCKENFÖRDE,
1993, p. 40-41)
Há aqui, portanto, uma superação do paradigma da validade meramente formal do
Direito, no qual o mero cumprimento do processo legislativo levaria ao advento das normas
jurídicas, uma vez que agora o ordenamento fica sustentado nos mais variados valores
constitucionais, os quais podem inclusive declarar outras normas inconstitucionais. (CAMBI,
2011)
Logo, percebe-se que o neoconstitucionalismo nada mais é do que uma evolução
histórica do constitucionalismo que resultou na pujança e centralidade do texto constitucional,
bem como procurou reaproximar o Direito e a moral, ou seja, aqui não se fala simplesmente
de limitar-se o poder arbitrário, mas em um modelo centralizado nos valores da Constituição.
Dentro deste contexto:
valores morais e políticos (fenômeno por vezes designado como materialização da constituição), sobretudo em um sistema de direitos fundamentais autoaplicáveis. Tudo isso sem prejuízo de se continuar a afirmar a ideia de que o poder deriva do povo, que se manifesta ordinariamente por seus representantes. [...] (MENDES; BRANCO, 2014, p. 61)
Inserida neste panorama, a Constituição não é mais simplesmente vista como
responsável apenas pela organização e estruturação do Estado, bem como por conceder
direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos, mas como um instrumento que
orienta a sociedade para um fim ético que assimile a identidade da comunidade política de
maneira totalitária, de forma que se concretize a dignidade da pessoa humana. (MIRANDA,
1996, p. 14)
Da mudança de paradigma entre o Estado que seguia um modelo constitucional
positivista hermético e afastado dos valores para o Estado que segue o neoconstitucionalismo,
novos desafios surgem para o sistema democrático existente, bem como para o poder
judiciário5, como pontuado por Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2014, p. 62):
O atual estágio do constitucionalismo se peculiariza também pela mais aguda tensão entre constitucionalismo e democracia. É intuitivo que o giro de materialização da Constituição limita o âmbito de deliberação política aberto às maiorias democráticas. Como cabe à jurisdição constitucional a última palavra na interpretação da Constituição, que se apresenta agora repleta de valores impositivos para todos os órgãos estatais, não surpreende que o juiz constitucional assuma parcela de mais considerável poder sobre as deliberações políticas de órgãos de cunho representativo. Com a materialização da Constituição, postulados ético-morais ganham vinculatividade jurídica e passam a ser objeto de definição pelos juízes constitucionais, que nem sempre dispõem, para essa tarefa, de critérios de fundamentação objetivos, preestabelecidos no próprio sistema jurídico.
Com o fenômeno de inserção dos mais variados valores dentro da Constituição,
aliado ao seu papel central dentro do processo de interpretação do sistema jurídico e com a
necessidade de efetivar o conteúdo nela previsto, uma vez que não se fala mais em uma Carta
de meras intenções políticas, mas em um texto que deve ser colocado em prática, exige-se dos
operadores do Direito um embasamento teórico que possibilite diferenciar os tipos de normas
jurídicas, de forma que se possibilite um sistema de fundamentação teórico objetivo.
Desta forma, como o presente trabalho pretende adentrar-se no conteúdo da livre
iniciativa, previsto na Constituição Federal, inserido nessa nova forma de ver o Direito
constitucional, algumas distinções serão importantes para compreender o papel de tal conceito
6 Em que se pesem eventuais dificuldades práticas de efetivá-lo, um modelo de jurisdição constitucional aberto
no momento de aplicação do ordenamento, bem como quando este entrar em conflito com
outras previsões da Carta Maior. Destarte, para melhorar compreender tal conteúdo, no
próximo tópico, analisar-se-á as funções dos princípios dentro do panorama aqui traçado.
2 ADENTRANDO NOS PRINCÍPIOS E NAS REGRAS DENTRO DO
NEOCONSTITUCIONALISMO
Para compreender o papel do princípio dentro do neoconstitucionalismo, importante
destacar que sua função vem sendo alterada ao longo da história conforme cada corrente
filosófica ganhava destaque e projeção, como explicado por Nathalie de Paula Carvalho
(2010, p. 5869) ao ressaltar sobre sua ligação com cada forma de compreender o Direito:
[...] (1) direito natural; (2) positivismo legalista e (3) pós-positivismo. Em (1), os princípios eram tomados como axiomas jurídicos, que tinham como principal meta atingir o conceito de bem. Tal idéia foi combatida pelo segundo momento (2), o positivismo legalista (séc. XIX e XX), com a Escola da Exegese, onde os princípios eram considerados fontes meramente subsidiárias, com a função integradora ou programática, o que ocasionou um esvaziamento da sua função normativa e provocou a separação entre o Direito e a moral. Em (3) surge a força normativa autônoma e preponderante dos princípios, servindo de arcabouço para o ordenamento jurídico, retomando a racionalidade prática no Direito.
Dentro deste panorama, ao positivar valores em formas de princípios, “[...] as novas
Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em
pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas
constitucionais.” (BONAVIDES, 2004, p. 264)
Portanto, na visão do neoconstitucionalismo aqui traçada, os princípios
constitucionais são responsáveis por aproximar Direito e moral, fazendo com que não seja
possível realizar uma leitura da Constituição e das demais normas do ordenamento que não
seja em função dos valores de uma determinada comunidade que estão positivados
(princípios), ou seja, sob esta concepção, o processo de hermenêutica torna-se eminentemente
uma busca real por justiça. (SARMENTO, 2006, p. 79)
Todavia, ao serem positivados dentro do ordenamento, os valores e os princípios
ganham certos contornos diferentes no momento de interpretação. Muito embora continuem
representando os conteúdos que lhe deram origem, em virtude dos diversos valores previstos
[...] valores e princípios, conquanto apresentem uma relação de similitude, diferenciam-se em um ponto essencial. Aquilo que no mundo dos valores é prima facie o melhor, é no modelo dos princípios prima facie devido. Por analogia, aquilo que no modelo dos valores é definitivamente o melhor, é no modelo dos princípios definitivamente devido. Essa constatação informa que os princípios e os valores diferenciam-se, respectivamente, somente em virtude de seu caráter deontológico (proibição, permissão e direito a algo) e axiológico (corresponde ao que é bom). E aqui surge o ponto fundamental dessa diferenciação: como no direito o que importa é o que é devido – e não simplesmente o que é bom – há uma nítida vantagem de se trabalhar com os princípios (mandamentos de otimização), à medida que esse modelo expressa mais claramente o caráter do dever ser, diminuindo-se, consequentemente, a margem de falsas interpretações. (DUQUE, 2014, p. 139) (grifos no original)
Em que pese o processo de reconhecimento do caráter normativo dos princípios,
ainda subsistem diferenças6 entre regras e princípios no sistema jurídico, tanto na forma de
sua redação quanto na força de seu conteúdo ou até no seu caráter lógico.
Justamente em função de tal concepção, os princípios e as regras são estruturas
diversas que não podem ser confundidas. Sobre tal distinção, versa Ronald Dworkin (2002, p.
39):
A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.
E prossegue o autor:
[...] Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma
7 Sobre tal tema, Virgílio Afonso da Silva (2003, p. 609) aponta que tais diferenciações, muito embora não sejam
parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante que ele é. (DWORKIN, 2002, p. 42-43)
Partindo da mesma diferenciação, mas se contrapondo em relação à forma de
compreendê-la exposta por Ronald Dworkin, pondera Luís Roberto Barroso (2005):
Princípios não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas específicas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios. A definição do conteúdo de cláusulas como dignidade da pessoa humana, razoabilidade, solidariedade e eficiência também transfere para o intérprete uma dose importante de discricionariedade. Como se percebe claramente, a menor densidade jurídica de tais normas impede que delas se extraia, no seu relato abstrato, a solução completa das questões sobre as quais incidem. Também aqui, portanto, impõe-se a atuação do intérprete na definição concreta de seu sentido e alcance. (grifou-se)
Com base em tais premissas, chegam-se as seguintes conclusões sobre tais formas de
compreender as duas normas em questão:
Ronald Dworkin distingue regras e princípios por um critério que advém da lógica do
intérprete, ou seja, dependerá do aplicador do Direito verificar se, diante do caso concreto, o
comando normativo manifesta-se como regra ou princípio. Em função de tal recorte
metodológico, de um mesmo postulado, podem-se desenvolver ambas as espécies normativas.
Já para Luís Roberto Barroso, os princípios são estruturas normativas caracterizadas
pela sua abstração, ou seja, enquanto as normas regulam situações específicas, os princípios
indicam determinados valores, ações e objetivos que devem ser concretizados.
Muito embora tais distinções sejam sutis em uma primeira leitura desatenta, resultam
em diferenças substantivas no momento de sua aplicação. Para a primeira teoria apontada,
qualquer postulado valorativo pode assumir tanto função de princípio quanto de norma
dependendo da leitura e interpretação realizada dentro do caso concreto, enquanto para a
segunda, em função da generalidade e abstração que lhe são peculiares, o princípio sempre
será um princípio, independentemente do intérprete.
Neste sentido, o critério de Luís Roberto Barroso, diferentemente do adotado por
Ronald Dworkin, parece criar uma diferenciação mais lógica entre regras e princípios, uma
vez que, do contrário, não existiria qualquer critério diferenciador que não fosse subjetivo
E, dentro do processo de subsunção, qualquer que seja teoria adotada para sua
distinção, os princípios entram em choque com as regras com certa frequência7, uma vez que:
[...] Os princípios são, por conseguinte, mandados de otimização que se caracterizam porque podem ser cumpridos em diversos graus e porque a medida ordenada de seu cumprimento não depende só de possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O campo das possibilidades jurídicas está determinado por meio de princípios e regras que jogam em sentido contrário. (ALEXY, 1993, p. 14)
Ao passo que princípios e regras são normas que jogam em sentido contrário, no
momento em que existir uma antinomia entre ambas, o intérprete pode adotar duas formas de
solução do conflito dentro do neoconstitucionalismo. A primeira, na qual os princípios sempre
prevalecem sobre as regras:
Princípio - já averbamos alhures - é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É do conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo
Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa ingerência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada. (MELLO, 2009, p. 948-949)
Ou a segunda, em que as regras sempre vencem os princípios, como ressalta
Humberto Ávila (2009, p. 5):
No caso de regras constitucionais, os princípios não podem ter o condão de afastar as regras imediatamente aplicáveis situadas no mesmo plano. Isso porque as regras têm a função, precisamente, de resolver um conflito, conhecido ou antecipável, entre razões pelo Poder Legislativo Ordinário ou Constituinte, funcionando suas razões (autoritativas) como razões que bloqueiam o uso das razões decorrentes dos princípios (contributivas). Daí se afirma que a existência de uma regra constitucional elimina a ponderação horizontal entre princípios pela existência de uma solução legislativa prévia destinada a eliminar ou diminuir os conflitos de coordenação, conhecimento, custos e controle do poder. E daí se dizer, por consequência, que,
8 Aliás, ao positivar uma grande quantidade de valores que parecem antagônicos em um primeiro momento,
num conflito, efetivo ou aparente, entre uma regra constitucional e um princípio constitucional, deve vencer a regra.
Enquanto expressão dos valores positivados no ordenamento, em que pese o
posicionamento adotado por Humberto Ávila, violar qualquer princípio é muito mais danoso
do que qualquer regra. Do contrário, estar-se-ia afastando mais uma vez o Direito do critério
de justiça.
3 A LIVRE INICIATIVA INSERIDA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: IMPLICAÇÕES
DO NEOCONSTITUCIONALISMO
Como recorte metodológico, na última parte da exposição, aproximando-se de tudo
aqui já delineado, o presente trabalho traçará o conteúdo da livre iniciativa, de forma que
possa ser compreendida sua extensão e aplicação dentro do neoconstitucionalismo.
A livre iniciativa encontra-se prevista no artigo 170 da Constituição Federal, o qual
versa sobre os objetivos e diretrizes da ordem econômica brasileira. Desta forma, enquanto
previsto em tal dispositivo, pode-se perceber que a livre iniciativa deixa de ser simplesmente
mero valor, alcançando, desta maneira, caráter normativo dentro do texto constitucional8.
Versa o artigo em comento:
Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional; II – propriedade privada;
III – função social da propriedade; IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas, sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. (BRASIL, 1988) 9
9
Dentro do histórico constitucional brasileiro, direta ou indiretamente, a livre iniciativa esteve prevista em todas as constituições brasileiras. Por outro lado, em relação à ordem econômica, nem todas as Cartas Políticas instauraram um modelo que procurasse conciliar os direitos econômicos e sociais, o que apenas teve maior destaque e atenção dentro do texto das constituições de 1934 e 1988. (AFONSO, 2008)
10
Enquanto valor fundante da ordem econômica, compreender qual é abrangência da
expressão livre iniciativa ganha notoriedade para entender o conteúdo e objetivos do modelo
adotado pelo Estado brasileiro. Ainda mais quando, ao adentrar-se na leitura do dispositivo
em questão, percebe-se que o Brasil “[...] optou pelo modelo capitalista de produção, também
conhecido como economia de mercado (art. 249), cujo coração é a livre iniciativa.”
(MORAES, 2013, p. 838)
Assim sendo, a livre iniciativa pode ser concebida, segundo José Afonso da Silva
(2005, p. 793) como “[...] a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a
liberdade de contrato [...]”. Já Miguel Reale (1988, A-3), assim visualiza o referido instituto:
[...] não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. [...]
Eros Roberto Grau (2003, p. 184), contudo, verifica que a livre iniciativa possui
contornos tanto como liberdade de comércio e indústria quanto liberdade de concorrência. No
primeiro, ter-se-ia faculdade de criar e explorar atividade econômica a título privado sem
qualquer sujeição senão em virtude de lei. Já na segunda, haveria faculdade de conquista da
crientela para quem aja com lealdade concorrencial e também neutralidade do Estado em
relação aos concorrentes, desde que existam condições de concorrência.
Portanto, em decorrência de tais concepções, via de regra, ao Estado impõem-se o
dever de não intervir na esfera privada, bem como de estimular o seu desenvolvimento, de
forma que a atuação estatal, dentro da ordem econômica, muito embora seja importante,
apenas e tão-somente, será subsidiária e com o objetivo de incentivá-la em alcançar seus
propósitos. (FERREIRA FILHO, 2012, p. 299)
Seguindo tal raciocínio, dentro do artigo 170 da Constituição, pode-se verificar que a
livre iniciativa está presente em dois momentos distintos. Em um primeiro instante, aparece
dentro do “caput” do referido dispositivo para, posteriormente, surgir em seu parágrafo
primeiro.
No “caput” do referido dispositivo, o valor livre iniciativa ganha contornos de
princípio-fundante da ordem econômica, uma vez que tal expressão possui um comando vago
que precisa de maior apuramento pelo poder judiciário e na doutrina especializada para
compreender sua abrangência e incidência. Não parece que, da cabeça do intérprete, se extraia
uma regra específica do referido dispositivo, pelo contrário, surge um comando com alto grau
de abstração, o qual será melhor delineado apenas pelo processo de subsunção do princípio
para o caso concreto.
Por outro lado, muito embora também seja necessário realizar o processo de
subsunção da regra prevista no parágrafo primeiro para o caso concreto, percebe-se que o
valor livre iniciativa, dentro desta parte do dispositivo, ganha ali contornos mais objetivos.
Nesta parte do artigo em análise, o legislador especificou que, ressalvados os casos em lei,
não será exigida qualquer autorização do poder público para realizar qualquer atividade
econômica, ou seja, tal dispositivo especifica que existe plena liberdade na instalação e
manutenção de comércio ou indústria no direito brasileiro.
Desta forma, percebe-se que o mesmo valor (livre iniciativa), depois de positivado,
surge transformado em supostamente espécies normativas e momentos diversos dentro do
texto constitucional. Em um primeiro momento, enquanto conceito com alto grau abstração,
aparece dentro do “caput” do artigo 170 da Carta Maior. Já em um segundo momento, como
comando específico, surge no parágrafo único do referido dispositivo, assegurando para todos
o livre exercício de qualquer atividade econômica, ressalvando apenas os casos específicos
previstos em lei.
Todavia, considera-se aqui que o constituinte não optou pela elaboração de uma
regra constitucional, mas apenas dar contornos mínimos para o princípio em questão, de
forma que no momento de choque entre uma regra e um princípio, a livre iniciativa será
interpretada como princípio10.
Contudo, simplesmente realizar uma leitura isolada de partes ou até da totalidade de
tais dispositivos dissociada do restante da Constituição Federal pode passar uma falsa leitura
de que a liberdade concedida é plena ou não possui objetivo qualquer, o que não condiz com a
realidade.
Quanto ao contexto em que se devem analisar as regras constitucionais, pondera
Gilberto Bercovici (2000, p. 97) que elas não podem ser consideradas de forma isolada, mas
11 “
inseridas dentro do sistema que estão acopladas. Da mesma forma, os princípios
constitucionais, ao serem interpretados, devem obedecer aos valores que neles postos, mas,
também, o contexto constitucional em que estão inseridos (STRECK, 2004, p. 110).
Regras e princípios constitucionais formam a unidade da Constituição Federal, a qual
é essencial para compreender tanto a Carta Política quanto o restante do ordenamento.
Portanto, as normas jurídicas devem ser compreendidas conforme a totalidade em que estão
inseridas. Nesta linha de raciocínio, pode-se assim sinterizar:
A interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação do direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum. (GRAU, 2005, p. 40) (grifos no original)
Tais premissas sobre como interpretar o sistema jurídico são importantes para
entender que, muito embora seja o particular o protagonista da realização econômica, a
liberdade que lhe é dada possui objetivos dados pelo próprio ordenamento jurídico, tanto no
artigo 3º (construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento
nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais
e promover o bem de todos) quanto no próprio artigo 170 (assegurar para todos existência
digna, conforme ditames da justiças social), ambos da Constituição. Nesta linha raciocínio,
pondera Lafayete Josué Petter (2008, p. 187):
[...] no tocante aos limites impostos à livre iniciativa em hipotético diploma normativo, está em dar a devida guarida à esfera de liberdade do particular – que age, por ser livre, na busca de maior eficiência e lucratividade –, mas, também, admitir seja normativamente valorado o efeito público que marca aquela atividade, agindo de tal forma para que o particular se predisponha na perseguição de fins constitucionalmente valiosos. Daí a conclusão de autorizada doutrina que, mesmo em Estados que professam a livre iniciativa e, portanto, os particulares são os protagonistas centrais da atividade econômica, coadjuvados, por assim dizer, pelo Poder Público, a ação privada já não é concebida como descompromissada com os interesses do todo e de todos [...]
Delineada a livre iniciativa, pode-se perceber que tal valor, ao ser positivado na
Constituição Federal, bem como enquanto princípio-fundante regente da ordem econômica,
dentro neoconstitucionalismo aqui delineado, assumirá o seguinte papel:
a) Supremacia perante as demais normas não alocadas na Carta Maior, bem como
b) Institui liberdade de comércio, indústria, contrato e concorrência. Todos
permitidos para a iniciativa privada buscar o lucro e a eficiência em seu ramo de atuação, os
quais apenas poderão ser limitados por outro valor constitucional explícito ou implícito,
conforme o peso que for atribuído no momento do sopesamento, sendo que, apenas nestes
casos, deverá intervir o Estado justamente para concretizar tais valores.
c) Imputação de objetivo explícito para a livre iniciativa, a qual deverá pautar sua
atuação de forma na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o
desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais e promover o bem de todos e assegurar para todos existência digna,
conforme ditames da justiças social.
CONCLUSÃO
O presente artigo teve por objetivo compreender a extensão e amplitude do instituto
da livre iniciativa sob o viés do neoconstitucionalismo.
Após a investigação, no primeiro item, concluiu-se que o neoconstitucionalismo é
um novo método de hermenêutica constitucional que resulta, essencialmente, na centralidade
do texto constitucional no processo de interpretação jurídica, bem como busca reaproximar
Direito e moral ao positivar valores dentro do texto das constituições.
Já no segundo item, ao analisar regras e princípios, verificou-se que os princípios são
comandos de maior abstração, os quais representam valores, ao passo que as regras tutelam
situações específicas, de forma que violar um princípio é muito mais grave que uma regra,
uma vez que se estaria violando um valor. Ademais, percebeu-se que a livre iniciativa,
enquanto comando de alta abstração, configura um dos princípios-fundantes constitucionais
da ordem econômica.
No terceiro item, ao dedicar-se em delinear o princípio livre iniciativa para verificar
suas implicações sob o viés do neoconstitucionalismo, notou-se:
a) Que tal instituto resulta na liberdade de comércio, indústria, contrato e
concorrência para a iniciativa privada, o que faz com que o Estado apenas atue de forma
subsidiária dentro da ordem econômica.
b) Em virtude de tal princípio encontrar-se na Constituição Federal, percebeu-se que
constitucionais e sobre todas as normas infraconstitucionais, o que faz com que seja de suma
importância sua observância dentro do processo de subsunção.
c) A livre iniciativa não pressupõe um modelo econômico de liberdade plena em
busca do lucro, mas, na verdade, um sistema que imputa liberdade aliada com o compromisso
em proporcionar melhores condições de vida para todos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AFONSO, Túlio Augusto Tayano. Evolução constitucional do trabalho na ordem
econômica jurídica brasileira. IN: XVII Encontro do Nacional do Conselho Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Salvador). Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, p.
2773–2791. Disponível em: <
http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/tulio_augusto_tayano_afonso.pdf
> Acesso em: 1º de jul. de 2015.
ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do Direito” e o “Direito da
ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador, nº 17, 2009. Disponível em: <
http://www.direitodoestado.com/revista/rede-17-janeiro-2009-humberto%20avila.pdf >.
Acesso em: 02 jul. 2015.
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios
Políticos y Constitucionales, 1993.
BARCELOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das
políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, nº 15, 2007. Disponível em: <
http://www.direitopublico.com.br/pdf_seguro/artigo_controle_pol_ticas_p_blicas_.pdf >.
Acesso em: 02 jul. 2015.
BARONOVSKY, Ricardo Sanchez. Constitucionalismo ciarlare e o Colégio Pedro II. Revista
Jus Navigandi, Teresina, 2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/38060>. Acesso
em: 25 jul. 2015.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. Revista
Jus Navigandi, Teresina, 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7547>. Acesso
BERCOVICI, Gilberto. O princípio da unidade da Constituição. Revista de Informação
Legislativa. Brasília, ano 37, número 145, p. 95-99, 2000.
BOBBIO, Noberto. Positivismo jurídico: lições de filosofia jurídica. Tradução Márcio
Pugliesi. São Paulo: Cone, 1995.
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Teoría e interpretación de los derechos
fundamentales. In: Escritos sobre derechos fundamentales. Tradução de Juan Requejo Pagés
e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden-Baden: Nomos, 1993. p. 45-71.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª edição. São Paulo: Malheiros,
2004.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6ª edição. São Paulo: Saraiva,
2011
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. 2ª edição. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011.
CAMPUZZANO, Alfonso de Julios. Estado de Derecho, democracia y justicia constitucional:
una mirada (de soslayo) al neoconstitucionalismo. Revista de Estudos Constitucionais,
Hermenêutica e Teoria do Direito. São Leopoldo, volume 1º, número 2, p. 8-20, 2009.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4ª
edição, Coimbra: Almedina, 1997.
CARVALHO, Nathalie de Paula. A normatividade dos princípios no pós-positivismo: uma
análise à luz da teoria de Robert Alexy. IN: XIX Encontro do Nacional do Conselho
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Fortaleza). Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2010, p. 5689–5700. Disponível em: <
http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3012.pdf > Acesso em: 1º de jul.
de 2015.
DUQUE, Marcelo Schenk. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boieira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 38. edição. São
GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no Estado Democrático de Direito:
ensaio sobre o seu modo de aplicação. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 36, nº
143, p. 191-209 1999.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 8ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2003.
__________________. Ensaio e discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3ª
edição, Malheiros, São Paulo, 2005.
HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Tradução de Hector Fix-Fierro. México:
Universidad Nacional Autônoma de México, 2003.
HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. 3ª edição. Belo Horizonte: Del
Rey, 1995.
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Tradução Baptista Machado. 6ª edição. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Conheça a Constituição: comentários à Constituição
brasileira. São Paulo: Manole, 2005. Volume 1º.
MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 26ª edição, São Paulo:
Saraiva, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito
Constitucional. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II. 6ª edição. Coimbra: Editora
Coimbra, 1996.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 30ª edição. São Paulo: Atlas, 2013.
PETTER, Josué Lafayete. Princípios constitucionais da ordem econômica. 2ª edição. São
Paulo: RT, 2008.
REALE, Miguel. Inconstitucionalidade de congelamentos. Folha de São Paulo. São Paulo.
19 out. 1988.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª edição. Rio de Janeiro:
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2005.
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos de uma distinção.
Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, São Paulo, número 01, p. 607-630,
2003.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; e ROCASOLANO, Maria Mendez. Os Direitos Humanos:
conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010.
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica em crise. 5ª edição. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2006.
VIGO, Luis Rodolfo; GOMES, Luiz Flávio. Do Estado de Direito Constitucional e