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DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Sérgio Eduardo Lima Prudente

Dimensões da vergonha no avesso da psicanálise: uma

contraexperiência política do sujeito

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Sérgio Eduardo Lima Prudente

Dimensões da vergonha no avesso da psicanálise: uma

contraexperiência política do sujeito

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social. Orientação da Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa (Núcleo de Psicanálise e Política do Departamento de Psicologia Social)

SÃO PAULO

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Nome: Prudente, Sérgio Eduardo Lima. Dimensões da vergonha no

avesso da psicanálise: uma contraexperiência política do sujeito

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social. Orientação da Prof. Dra. Miriam Debieux Rosa (Núcleo de Psicanálise e Política do Departamento de Psicologia Social)

Banca Examinadora:

_________________________ Dra. MIRIAM DEBIEUX ROSA (PUC-SP e USP)

_________________________ Dr. IVAN ESTEVÃO (USP)

__________________________ Dr. RINALDO VOLTOLINI

(USP)

__________________________ Dr. JOSÉ LUIZ AIDAR PRADO (PUC-SP)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos autores que me acompanham em minhas pesquisas.

Agradeço à professora Dra. Miriam Debieux por acreditar e aceitar orientar este pesquisador e seu projeto. Seu trabalho como orientadora foi muito além de conduzir a pesquisa, discuti-la e direcioná-la. Foi um trabalho que proporcionou um espaço político/analítico em que a angústia envolvida na pesquisa pôde se transformar em criação. Obrigado!

Agradeço ao professor Dr. Renato Mezan que orientou o primeiro ano do meu doutorado. Seu conhecimento, bom humor e sua aposta em minhas ideias foram fundamentais para eu seguir em frente em momentos de dúvida e hesitação com relação ao projeto.

Agradeço ao Maître de Conférences Eric Bidaud, por me receber na Unité Transversale de Recherche Psychogenèse et Psychopathologie da Université Paris 13 - Nord (Villetaneuse) para o estágio sanduíche, e no Espace Analytique para seu seminário. A estadia em Paris foi fundamental para a realização desta tese.

Agradeço aos professores Dr. Ivan Estevão (USP) e Dr. Rinaldo Voltolini (USP) pela valiosa arguição e fundamentais sugestões na banca de qualificação. Agradeço ainda aos professores Dr. José Luiz Aidar e Dra. Regina Fabbrini, por aceitarem participar da banca de defesa.

Agradeço aos professores Dr. Luís Cláudio Figueiredo, Dra. Raquel Gazolla e Dra. Fúlvia Rosenberg (in memoriam), pelos desafios rigorosos e pela experiência intelectual.

Agradeço aos professores do departamento de psicologia social da PUC-SP e à secretária Marlene, por todo apoio e suporte no decorrer desse doutorado.

Agradeço aos camaradas Stelio e Márcio, pela amizade, discussões e elaborações que atravessam o meu percurso e minhas ideias.

À Claudia Simionato pela revisão, leitura acurada e apontamentos que me fizeram trabalhar.

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Agradeço à Natalia e à Esther pelo fundamental apoio na minha ida a Paris. Agradeço a Julien Hamelin por me receber em Paris e pelo suporte no momento em que precisei. Agradeço aos amigos do quatrième et cinquième étage de la Maison du Brésil, principalmente ao Marcelo, ao Vinícius e à Marília, pelo companheirismo e amizade.

Agradeço aos colegas do Núcleo de psicanálise e política da PUC-SP e do Laboratório de psicanálise e sociedade da UPUC-SP pelas discussões, convivência e produção conjunta.

Agradeço à Claudia, ao Vinícius, à Lúcia e à Joana, pelos bons encontros do cartel sobre a mais-valia e o mais-gozar.

Agradeço à Sandra Groistein (EBP-SP) pelo carinho e pelas trocas psicanalíticas e ao João Haddad, pela valiosa leitura e críticas desta tese, e a Miriam Pinho, pela amizade e interlocução preciosa.

Agradeço a Ligia Gorini por acolher minha angústia em terras estrangeiras. Agradeço a Maria Josefina por fazer do corte e da vergonha uma experiência de criação.

Agradeço a David Menezes Prudente, meu pai, e à Ana Maria Lima Prudente, minha mãe, pelo que as palavras não conseguem dizer. Agradeço aos meus irmãos André, Ivan e Daniela, por tornarem minha distância mais tranquila, por cuidarem das coisas. Agradeço à minha vó Dalva (in memoriam) que diante da morte nunca hesitou, e sua partida só revelou o privilégio dos bons encontros, inexoravelmente finitos, mas, por isso mesmo, profundamente valiosos.

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Nome: PRUDENTE, Sérgio Eduardo Lima. Dimensões da vergonha no avesso da psicanálise: uma contraexperiência política do sujeito. 2015.

310 f. Tese de Doutorado em Psicologia Social (Núcleo de Psicanálise e Política) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, 2015.

RESUMO: Esta tese pretende apresentar um estudo sobre a vergonha do ponto de vista da psicanálise de orientação lacaniana. Como ponto de partida e fio condutor para a pesquisa, tomamos como referência a observação de que a vergonha é “o buraco onde brota o significante-mestre,” proferida em 1970, por Lacan, em seu seminário O Avesso da Psicanálise. Esta escolha nos coloca diante de duas perspectivas que atravessamos nesta tese: 1) a construção de uma elaboração conceitual sobre a vergonha e sua relação com a noção de buraco, furo, falha, castração e repetição, que nos possibilita elaborarmos um ponto estrutural da vergonha no sujeito; 2) levando-se em conta a contingência histórica em que Lacan fez a observação acima, ou seja, momento em que fazia uma crítica direta aos estudantes e à produção da ciência no mercado, situamos o elemento estrutural da vergonha em relação a uma subjetividade do sujeito no capitalismo, ou seja, uma subjetividade voltada para o apagamento das referências, dos traços, da singularidade, que engendra uma degenerescência do significante-mestre. Esta segunda perspectiva nos permitiu avançar no aspecto clínico/político/ético da vergonha tomando como fundamento os momentos em que ela foi proposta como elemento fundamental na clínica e na direção da cura. Aliado a isto, a vergonha foi apresentada como contraexperiência político/clínica para o sujeito, levando-se em conta o discurso do analista como o que pode fazer frente ao discurso do capitalista, justamente por recuperar a experiência singular de gozo e seu traço singular.

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PRUDENTE, Sérgio Eduardo Lima. (2015). Dimensions of shame in the other side of psychoanalysis: a political counter-experience of the

subject. Thesis (PH.D. in Social Psychology). 310 f. Pontifical Catholic

University of São Paulo, São Paulo.

ABSTRACT: This research proposes to present a study about shame from the point of view of lacanian psychoanalysis. As a starting point and guiding principle, we take as a reference the observation that shame is “(…) the hole from which the master signifier arises”, given in 1970 by Lacan, in his seminar

The Other Side of Psychoanalysis. This election puts before us two perspectives, explored in this present investigation: 1) the construction of a conceptual elaboration concerning shame and its relation to the notions of hole, crack, castration and repetition, that allows us to develop a structural point of shame in the subject; 2) considering the historical contingency in which Lacan stated his observation about shame mentioned above, that is, the moment when he was addressing direct criticisms against the students and the production of science for the market, we situate the structural element of shame in relation to the status of the subjectivity engendered under capitalism, that is, a subjectivity oriented for the obliteration of references, traces, singularity, that promotes a degeneration of the master signifier. This second perspective allowed us to enter the political/clinical/ethical aspect of shame, grounded in the passages of Lacan's work where shame was proposed as a fundamental element for the clinic and for the direction of the cure. The sprouting of shame was also proposed as a political/clinical counter-experience for the subject, considering that the discourse of the analyst is the one which can face the discourse of the capitalist, precisely because it can recover the singular experience of jouissance and its singular trace.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

i. Apresentação ... 12

ii. Perspectivas ... 17

iii. Objetivo ... 26

iv. Estrutura dos capítulos ... 28

Capítulo 1. A vergonha: o avesso da imagem e o avesso da luva ... 32

1.1 Do Pecado da imagem de si ... 33

1.2 O Fort-da e o desejo ... 39

1.3 A vergonha e as primeiras experiências narcísicas ... 53

1.4 A ferida da imagem ... 56

1.5 O pudor ... 58

1.6 A tosse pudica do paciente de Ella Sharpe ... 62

1.7 Do véu que encobre o nada ... 71

1.8 O avesso da luva ... 86

Capítulo 2. A vergonha e o avesso do objeto ... 91

2.1 O olhar é esse avesso da consciência ... 92

2.2 Olhar em Sartre ... 96

2.3 O olhar em Lacan ... 102

2.4 Sartre e Lacan – divergências em torno da vergonha ... 112

2.5 Vergonha – o rubor e o desaparecimento ... 116

2.6 Zêuxis e Parrásio ... 117

2.6.1 La Règle du jeu ... 122

2.7 A face julgadora – Olhar e voz ... 127

2.8 Sonhos típicos: o sonho vergonhoso de nudez ... 135

2.8.1 O sonho e o ponto de estrutura ... 142

2.9 Lacan com Kierkegaard ... 148

2.9.1 O acting out ... 149

2.9.2 Tiquê e Autômaton ... 151

2.9.3 Lacan e Kierkegaard - considerações sobre a repetição do novo ... 155

2.9.4 A repetição da diferença ... 164

2.9.5 A repetição da vergonha ... 169

2.9.6 Uma questão vergonhosa ... 173

2.9.7 A vergonha e o que se transmite ... 187

Capítulo 3. A vergonha e o avesso no discurso ... 191

3.1 Vergonha como contraexperiência do sujeito – enlaces entre a vergonha e o proletário, no laço social ... 192

3.2 A arrogância ... 193

3.3 Da arrogância na subjetividade do sujeito à guinada do discurso ... 196

(10)

3.3.2 Discurso do mestre moderno – a mudança de lugar do Saber ... 202

3.3.3 Discurso do mestre moderno – a rejeição da castração (o discurso do capitalista) ... 208

3.4 O sintoma social - o proletário ... 212

3.4.1 A vergonha no discurso do capitalista ... 215

3.5 O espetáculo do mundo e o desaparecimento da vergonha ... 219

3.6 Sobre a honra ou pelo que morreríamos ... 229

3.7 O sujeito sem-vergonha e o serviço dos bens ... 236

3.8 A supressão do Sujeito no homem quantidade ... 246

3.9 Da dor de existir ao buraco onde jorra o significantes-mestre ... 268

3.9.1A dor de existir ... 269

3.9.2 A vergonha dolorida ... 274

3.9.3 Le Trouet les trumains ... 278

3.9.4 O jorro do significante-mestre ... 284

Considerações finais ... 292

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Apresentação

Quando da treva dos enganos Meu verbo cálido e amigo Ergueu a tua alma caída, E, plena de profunda mágoa, O vício que te envolvera; Quando açoitaste com a lembrança A consciência que olvida, E me fizeste o relato De tudo o que houve antes de mim, E, de repente, o rosto oculto, Repleta de vergonha e horror, Tudo desabafaste: um pranto De indignação, de comoção... (N. A. Niekrassov)

O interesse pelo tema da Vergonha teve início na minha pesquisa de mestrado, intitulada Problemáticas da questão moral em Crime e Castigo1. Nesta pesquisa procurei investigar elementos cuja articulação entre impulsos destrutivos e contingências da cultura – principalmente a moral utilitária motivou um crime e as consequências que se seguiram a ele. Um dos aspectos que mais chamou atenção foi a divergência entre este trabalho e as outras leituras produzidas a respeito do romance Crime e Castigo. O principal ponto de discordância reside no fato de que comumente a culpa é creditada ao contexto moral/cultural em que se passa o protagonista do romance. Contrariamente, defendi a ideia de que a culpa não era posta em questão, mas sim a vergonha. Esta leitura se baseou tanto nas evidências presentes nas páginas da obra, quanto no contexto social russo do final do século 19, que formaram o estilo “romance filosófico” de Dostoiévski.

Ainda em Problemáticas da questão moral em Crime e Castigo, o tema do crime olhado do ponto de vista da vergonha vai de encontro ao que podemos chamar de uma “teoria do crime” dentro de uma tradição freudiana. Se seguirmos a obra de Freud, encontraremos o ato criminoso sempre ligado

                                                                                                                1

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ao sentimento de culpa, como uma via de reconhecimento pela autoridade, ou de tentativa de ser punido para pagar uma dívida passada. A ideia principal reside no crime como fundador da cultura onde se mata o pai e se sofre a consequência da culpa. No entanto, algumas vias de discordância de que toda sociedade tem a culpa como elemento central surgiram indicando um caminho que leva justamente à vergonha como elemento marcante. Dentre elas, apresento: 1) a crítica nietzscheana à culpabilização da cultura através do cristianismo. Nietzsche localiza, a partir de sua genealogia da moral, o processo em que a cultura aristocrática, heroica e trágica grega é infiltrada pelo ressentimento e a culpa; 2) os estudos antropológicos de Ruth Benedict2 e E. R. Dodds3, que fazem a distinção entre uma “cultura da vergonha” e uma “cultura da culpa”. Benedict faz seu estudo sobre a sociedade japonesa durante a segunda guerra, e Dodds – inspirado por Benedict – faz um estudo na mesma linha, só que da Grécia antiga. Ambos os autores destacam o peso constituinte e regulador presente na oposição complementar da dupla de afetos vergonha/honra em sociedades em que a culpa não aparece como questão4.

É nesta senda que o tema da vergonha se tornou de grande interesse para uma pesquisa de amplitude maior. Como já havia traçado considerações a respeito do elemento afetivo/cultural da vergonha na pesquisa de mestrado, a possibilidade de continuação da pesquisa sobre a vergonha ganhou um caráter ampliado em relação às formações da cultura, aos discursos e ao aspecto contemporâneo em que a exposição dos corpos e o consumo dão a tônica dos modos de ser dos sujeitos.

No campo de tensão presente na articulação da dimensão extra-individual da cultura com a dimensão singular do psiquismo humano, a psicanálise, principalmente Freud e Lacan, foi suporte principal para construir um terreno sob o qual esta tese se sustenta. Todavia, houve pela frente um obstáculo a ser vencido: na psicanálise não há uma produção teórica robusta sobre a vergonha, como ocorre no caso da culpa. Além disso, nem Freud                                                                                                                

2

BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 2011. 3 DODDS, E.R.

Os gregos e o irracional. São Paulo: Escuta, 2001. 4

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nem Lacan teorizaram sobre esse afeto de forma a torná-lo um conceito. Por isso, para estabelecer um campo consistente para levarmos a pesquisa adiante, tivemos de delimitar conceitualmente a vergonha, de modo a torná-la um operador para as questões levantadas. O processo de conceituação na psicanálise visa à apreensão de um aspecto da realidade para servir de sustentação para o analista/pesquisador lidar com elementos novos ou que se encontram em articulação diferente das anteriores. Diante disso, apoiamos o ponto de vista de Lacan ao observar que: “o conceito se modela, com efeito, por uma aproximação da realidade que ele foi feito para apreender, só por um salto, por uma passagem ao limite, é que ele chega a se realizar”5.

A conceituação da vergonha no campo da psicanálise nos serviu como guia para transitar em um campo em que podemos encontrar desdobramentos distintos – complementares ou não – das ações de afetos como a vergonha e a culpa em uma sociedade. Nosso enfoque foi justamente traçar um percurso por meio do recorte da vergonha.

Esta escolha nos levou para uma questão que abre uma dimensão ontológico/discursiva que marca posições do sujeito na sociedade, traçando aspectos subjetivos e íntimos que pretendemos trazer para uma observação da nossa sociedade atual.

Ao colocar a vergonha como elemento central na observação de alguns fenômenos, sociais introduzimos a possibilidade de alocar três elementos presentes no laço social, a saber: a imagem, o corpo e o olhar. Na psicanálise, desde o conceito de pulsão em Freud até o conceito de gozo em Lacan, a fronteira entre o psíquico e o somático se tornou apenas um recurso pedagógico de separação conceitual. Se levarmos em conta o gozo, encontramos ainda uma outra dimensão que extrapola a clínica para o campo social, que é a forma como a linguagem aparelha o gozo colocando-o em formas discursivas que marcam lugares, posições e funções. É pela via da imagem do corpo e do olhar, que a vergonha surge como elemento essencial para pensarmos justamente a pulsão e o gozo de um sujeito que habita a linguagem.

                                                                                                                5

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A psicanálise foi por muito tempo acusada de se deter somente sobre o psiquismo e a palavra, relegando ao corpo um lugar secundário em suas teorizações, desprezando, portanto, sua devida importância. Esta constatação, porém, pressupõe um modelo dualista de pensamento, no qual razão se opõe a afeto, e mente se opõe a corpo6. Abrindo mão de tal dualismo e levando em consideração a crescente importância dada ao corpo nos últimos tempos, acreditamos ser necessário investigar, à luz da psicanálise, alguns fenômenos culturais contemporâneos que envolvem o corpo como objeto ao qual constantes modificações são infligidas.

Em A Ciência e a verdade7, Lacan adverte que a psicanálise é um sintoma de nossa época, o que a impossibilita de agir como uma espécie de remédio social. Diante do empuxo ao dar-se a ver que engendra a vergonha, tanto pela impossibilidade de gozo quanto pelo apelo à imagem, a psicanálise pode assumir justamente esse papel, de incômodo, de sintoma que revela um mal-estar. Ao encerrar o Seminário XVII, o próprio Lacan afirma que “morrer de vergonha é um efeito raramente obtido.”8 Neste momento, o autor discute a perda do valor dos significantes mestres na civilização, mostrando uma possibilidade de um caminho para “aquilo que não merece a morte”, ou seja, “a vida como vergonha a engolir porque não merece que se morra por ela.”9

Diante disso, ao considerarmos o momento cultural, o apelo à imagem tornou-se uma das vias de administração da vida, em que há uma generalização do panóptico por meio da vigilância – imagética e moral. Diante disto, temos a construção de uma noção de valor dentro de uma perspectiva em que a vergonha é colocada em relação com a aparência – do corpo, do poder de consumo – e não mais em relação à honra e ao pudor. É importante salientar que, ao falarmos em honra e pudor, não estamos caindo no saudosismo de tempos passados quando as coisas supostamente funcionavam direito. Nossa intenção é problematizar a mudança, o processo de transformação que evidencia travessias que constituem processos políticos/sintomáticos. Uma delas é a que nos permite dizer que hoje em dia                                                                                                                

6

ELIA, L. (1995) Corpo e sexualidade em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Editora UAPÊ. 7

LACAN, J. (1966) A Ciência e a verdade. 8 LACAN, J.

O Seminário. Livro XVII. (1969/1970). p.191. 9

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há um apelo a vestir o corpo10 proposto pelo mercado das aparências, participando de uma modalidade de gozo como objeto do saber do mercado que manda consumir.

Pretendemos, com esta pesquisa, contribuir para refletir sobre a função da vergonha no corpo e no social, especialmente a partir de seu aspecto de ferida narcísica, de defesa, de estranhamento, de sintoma, de repetição e conflito, bem como entender o que a teoria psicanalítica tem a dizer sobre a vergonha e suas vicissitudes no capitalismo tardio.

Tal pesquisa se situa também no campo “de problemáticas que envolvem uma prática psicanalítica que aborda o sujeito enredado nos fenômenos sociais e políticos, e não estritamente ligado à situação do tratamento psicanalítico”11.

Dessa forma, visamos estabelecer e problematizar as redes de relações conceituais no campo das formações psíquicas e sociais. Lembremos que Freud fez uso recorrente12 da análise de fenômenos coletivos com intuito de compreender processos individuais. Além disso, podemos lembrar ainda a estrutura moebiana que o sujeito possui em relação a uma exterioridade que não existe como tal.

                                                                                                               

10 Nos referimos aos modelos e formatações de corpos eleitos como modelos imagéticos como, por exemplo, o corpo magro, ou o musculoso. A esses corpos, comumente são introduzidos próteses, ou dietas rigorosas cujas finalidades são as de coincidência com os modelos propostos. Cabe salientar que há uma variação de tais modelos de corpos, muitas vezes em espaços curtos de tempo. Como resultado, observamos uma espécie de tentativa de alcançar um caráter plástico e moldável do corpo, baseado no reflexo de imagens que cristalizam suas formas. Seguindo esta tendência, notamos a profusão de discursos de auto-ajuda, motivação e obediência, profundamente moralistas por associarem categorias estético/morais como “força de vontade”, beleza, superação, bom caráter e forma física, a um indivíduo saudável. Por outro lado, aos que contrariam essas categorias é reservado a culpa, a preguiça, a fraqueza de caráter, a pouca força de vontade, a feiúra, e a falta de saúde. No bojo deste cenário existe um grande mercado de academias, médicos, psicólogos, esteticistas, suplementos alimentares, medicamentos, moda, e mídia, que acirram ainda mais os imperativos impostos pela via mais imediata de laço e relação com o outro, a saber, a imagem de si.

11

ROSA, M. D. A pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos: metodologia e fundamentação teórica. Revista Mal-estar e Subjetividade / Fortaleza / V. IV / N. 2 / P. 329 - 348 / SET. 2004.

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Perspectivas

A experiência do ser vivente passa necessariamente pelo corpo. Como uma expressão de afeto, a vergonha afeta o corpo habitado pela linguagem. Portanto, para sentir vergonha é preciso ter corpo. Esta condição necessária marca o corpo como uma presença no mundo – aspecto que já foi assinalado por autores como Sartre, Merleau-Ponty, Lévinas, entre outros. Este corpo no mundo efetiva uma existência, tarefa a qual o simbólico é insuficiente para realizar. Assim, o corpo materializa o sujeito em um lugar no qual ele não é evanescente, não é apenas simbólico.

Mas é esta condição que o faz estar para além do simbólico, fazer deste insuficiente para sintetizar a existência do ser vivente. Lévinas (1982) assinala esse transbordamento do corpo pela experiência de evasão. Tal evasão põe o ser diante da insuficiência própria do existir, o que implica a inadequação da satisfação da necessidade e a descoberta do ser como existência, como um ato primeiro. A evasão é sobretudo a do peso existencial que faz o sujeito crer que está aliviado da aflição do reencontro com o que existe emaranhado em seu corpo como falha:

(...) o momento onde o prazer pára após um intervalo supremo onde acredita-se ser completo no êxtase integral (...) ele é integralmente desapontado e envergonhado de se descobrir existente13.

o sentido da falha no prazer é sublinhado pela vergonha14.

Notemos o quanto o corpo está implicado na vergonha. Insistiria que o corpo é condição necessária e causa material da vergonha. Este aspecto já foi bem apontado por autores da sociologia como E. Goffman15 e Vincent de Gaulejac16. O primeiro, em O Estigma, destaca a incidência do

                                                                                                                13 LEVINAS, E.

De l’évasion. Paris: Fata Morgana, 1982. p.108. 14

Idem, p.110. 15

GOFFMAN, E. O estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro, 1988.

16

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estigma como elemento em torno do qual se pode construir uma identidade deteriorada. O segundo com um amplo estudo sobre a vergonha intitulado As origens da vergonha, que, entre diversos aspectos, traz o caso de uma garotinha chamada Bernadette, que dizia que a vergonha “gruda na pele”.

Charles Darwin, em A expressão das emoções nos homens e nos animais, observou isto que “gruda na pele” através do rubor da vergonha. Para ele, “o rubor é a mais especial e a mais humana de todas as expressões”17. Apesar de Darwin também encontrar essa expressão em macacos, o caráter humano e social deste traço é notável para o biólogo, sendo um fator que denota a socialização que unifica uma espécie.

Essa experiência vergonhosa no corpo é também encontrada na literatura. Sem esgotar a lista de autores possíveis para o tema, destaco principalmente dois dos principais “autores da vergonha”, a saber, Dostoiévski e Kafka. Com Dostoiévski, inauguramos o interesse pelo tema a partir do romance Crime e Castigo. Durante a pesquisa de mestrado intitulada Problemáticas da questão moral em Crime e Castigo, percebemos o destaque epistemológico que a psicanálise dá ao tema da culpa, a ponto de eclipsar a vergonha. Como já mencionamos, todo o incômodo fisiológico/moral de Raskólnikov18 é comumente creditado à culpa, no entanto, defendemos a ideia de que a culpa não era posta em questão, mas, sim, a vergonha.

A vergonha é uma marca nas novelas de Dostoiévski. A vergonha do impulso ao jogo em Um jogador, ou a vergonha que paralisa a fé de Stravogin em Os Demônios, a vergonha da pobreza e do rebaixamento social de Golyádkin em O duplo, ou mesmo a vergonha aristocrática falida do homem do subsolo em Memórias do subsolo são todas acompanhadas da sudorese, vertigem, rubores e da ignomínia dos personagens. As sensações de estranhamento, de mal-estar, e inadequação são parte do espetáculo estético das histórias dostoievskianas. Aspecto que Kafka também apresenta, apesar que de um modo mais direto. Dentre os vários contos de Kafka, destaco o conto Metamorfose, pelo processo de transformação e

                                                                                                                17

DARWIN, C. A Expressão das emoções no homem e nos animais. (1872). Tradução: Leon de Souza Lobo Garcia. São Paulo: Cia das Letras, 2000. p.265.

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estranhamento do corpo, todo ele acompanhado da vergonha que vem verbalizada principalmente pelos parentes de Gregor Samsa. Mas a questão da vergonha em Kafka se encontra principalmente em sua Carta ao pai, cujo conteúdo é um relato expresso da mais lancinante dor de existir acompanhada da vergonha. Kafka, nesta carta, relata a vergonha de sua insuficiência diante de seu pai sem falhas. Desde sua infância, frente a si mesmo, o menino Kafka experimentava a miséria entre não corresponder às expectativas de perfeição e, ao mesmo tempo, não poder abandoná-las.

Esse amplo espectro da vergonha parece nos indicar uma espécie de afeto deslocado que surge no corpo, como estranho, como marca, como mal-estar.

Mas temos que levar em consideração um aspeto fundamental. A vergonha como afeto ligado às pressões sociais se vincula a elementos das cultura que evidenciam certos modos de engendramento. Estamos nos referindo aqui à ideia do antropólogo E.R. Dodds que, em seu livro Os gregos

e o irracional, inspirado na obra O crisântemo e a espada, de Ruth Benedict, fez um estudo da sociedade grega antiga, no qual ele dividiu dois tipos de cultura: a cultura da culpa e a cultura da vergonha. A importância de levarmos em conta este estudo reside no fato de podermos desvencilharmos vergonha e culpa como duas noções distintas.

Dodds apontou como na cultura aristocrática grega o prestígio social e a honra eram elementos de distinção fundamentais nos campos político, ético e social. Atos impulsivos e desvairados eram descritos como movidos pelos deuses, o que desvencilhava o cidadão de um responsabilidade individual. O daimon enlouquecia o homem (atê, a paixão louca), fazendo-o joguete dos caprichos dos deuses, em ações que comprometiam a timê (consideração pública) causando a vergonha.

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companheiros, ou que o leve a “estragar sua imagem”, é experimentado como algo insustentável19.

O estudo de Dodds, pelo menos no que se refere à vergonha, pode ser questionado mediante um outro estudioso, Walter Otto20, em sua obra Teofania – o Espírito da religião dos Gregos Antigos. Existe todo um campo semântico em torno da religião grega que permeia a palavra aidós, traduzida como vergonha. O principal ponto de questionamento se dá no quanto a referida vergonha está ligada à ideia de vergonha propriamente dita, como a que Dodds destacou, ou a noção de modéstia, do intocável, do venerável (aidioi). Evidentemente nos falta fôlego e formação para entrar nesta discussão – não é nossa intenção ir além do destaque do valor da vergonha nos gregos como algo central nesta cultura.

Podemos, então, convergir corpo e cultura para situar a vergonha em um campo da linguagem. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles deixa isso bem claro: a vergonha vem da prática de ações vis, que atentam contra o pudor, este sempre de acordo com ações de excelência21. Em Retórica, o filósofo reitera classificando os atos desonrosos como vergonhosos22. Neste último, nos chama atenção o fato de as paixões, como a vergonha por exemplo, serem efeitos da linguagem e estarem em um livro sobre retórica. Aristóteles define vergonha como: “uma forma de aflição ou perturbação gerada por ações deploráveis – realizadas no presente, no passado ou no futuro – capazes de nos desonrar”23.

Assim, notamos uma composição entre a linguagem e o corpo que pode chegar à consequência da aflição, do sofrimento e de um mal-estar circunscrito na história e na fala. É nesse panorama que chegamos a Freud, ainda nos escritos pré-psicanalíticos, mais precisamente no rascunho J (1895)24, em que ele descreve o caso de uma jovem cantora acometida por

                                                                                                                19

DODDS, E. R. Os gregos e o irracional. São Paulo: Escuta, 2002. p.26. 20

OTTO, Walter F. Teofania – O espírito da religião dos Gregos Antigos. São Paulo: Odysseus, 2006.

21 ARISTÓTELES.

Ética a Nicômaco. São Paulo: Editora Atlas, 2009. p.102. 22

ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Edipro, 2013. p.142. 23

Idem, p.142.

24 MASSON, J. M. (ed.),

(21)

sensações de mal-estar e angústia. Seu sofrimento estava apoiado na má convivência com seus colegas de ópera, mais precisamente com o tenor que havia passado a mão em seus seios dias antes dos seus ataques. A paciente sofria de vergonha principalmente por seus orgasmos com seu marido terem a ver com a vergonha de ter sido tocada.

Tanto a honra quanto o pudor estão em jogo no caso do rascunho J. Esta relação é mantida por Freud juntamente com a repugnância e a moralidade, como forças recalcadoras, pelo longo de sua obra. Mas tal incidência da vergonha se dá principalmente na primeira metade dela, até 1914, no texto sobre o narcisismo. Claude Janin25, em La honte ses figures et ses destins, assinala que, das quarenta e duas ocorrências da palavra

Scham (vergonha, em alemão), somente três se deram após 1914. Segundo

o autor, a questão da vergonha tinha um solo mais propício no começo da obra freudiana, pois ela era muito associada à passividade. Assim, as premissas de uma teoria que leva em conta as violações narcísicas “apassivadoras” como grandes provocadores do sentimento de vergonha estavam mais presentes na origem da obra freudiana.

Aqui abriremos uma breve digressão para esclarecer, com Janin, questões de traduções. Apoiando-se no estudo de Warren Kinston26, Janin destaca certas diferenças entre os sentidos que as palavras vergonha e pudor podem ter ou não, de acordo com a língua. No inglês, vergonha e pudor são designados pela mesma palavra, enquanto no alemão e no francês (aqui incluo o português), usam-se palavras distintas.

Segundo este autor, a palavra alemã Scham corresponde à palavra francesa pudor e “se refere à modéstia, à castidade, à timidez. Na linguagem bíblica, ela se refere aos órgãos genitais. O acento, dentro desta acepção, é colocado sobre a experiência íntima”27. Já a palavra alemã

Schande e a francesa Honte se referem à desonra, ao escândalo, ao crime,

aspectos mais inclinados aos costumes e usos habituais. O incesto, por exemplo, em língua alemã se diz Blutschande (literalmente: “a desonra do sangue”).

                                                                                                                25

JANIN, Claude. La honte ses figures et ses destins. Paris: PUF, 2007. 26

W. KINSTON. A theoretical context for shame. International Journal of Psychoanalysis. 1983, vol. 64, p. 212-226.

27

(22)

No glossário da obra Traduire Freud28, François Cotet considera que o sentido habitual de Scham é “pudor”, mas pode também, às vezes, ter o sentido de “vergonha”. Já Schande pode ser traduzida por “ignomínia” ou “desonra”. De qualquer forma, Janin salienta que as distinções entre Scham e

Schande, do ponto de vista da tradução, são às vezes discutíveis, por exemplo: nove das ocorrências de Schande na Gesammelte Werke

concerniriam à perversão polimorfa da infância. Outras ocorrências concernem aos fantasmas exibicionistas e voyeuristas do pequeno Hans, e outros ainda apareceriam, no contexto similar, no capítulo V da

Traumdeutung alinhadas com os sonhos de nudez, de modo que, para estas

ocorrências, a conotação sexual ligada à Schande necessita de uma tradução em termos de vergonha.

De acordo com Janin, Freud fornece um laço entre vergonha, desonra e ignorância, de uma parte, e vergonha e recusa do saber, de outra. Estes laços, que até hoje são pertinentes, são estudados no capítulo IV de A

interpretação dos sonhos.

Janin29 se reporta a dois sentidos principais da palavra Scham: 1- Sentido anatômico - relacionado ao pudor - em que a palavra

Scham concerne à região genital. Designação que encontramos também na

língua francesa (cf. “partes vergonhosas”, “nervo vergonhoso”, “artéria vergonhosa”, etc.). Uma série de termos são empregados por Freud com concepção sexual, curiosamente todos se referem ao sexo feminino:

- Schamberg: literalmente “montanha da vergonha”, significa: monte de Vênus;

- Schamhaaren: literalmente “cabelos da vergonha”, significa pelos pubianos;

- Schamlippen: literalmente “os lábios da vergonha”, refere-se aos grandes lábios vaginais;

- Schampalte, literalmente “a fenda da vergonha”, referente à vagina.

                                                                                                                28

ANDRÉ BOURGUIGNON, PIERRE COTET, JEAN LAPLANCHE, FRANÇOIS ROBERT,

Traduire Freud, PUF, Paris, 1989, 379 p. 29

(23)

2- Scham para designar um estado de mal-estar psíquico que surge no desvelamento disto que o sujeito gostaria de esconder. Dentro desta acepção, Janin destaca que a palavra Schamlos (sem vergonha, desavergonhado, sem vergogne...) é igualmente referida no sentido de

unverhüllt: estar sem cobertura, nu, desvelado.

Quanto à língua francesa, Janin recorre ao Dictionnaire de l’Académie française para distinguir vergonha e pudor. Considera-se, então, a vergonha como: “confusão, desordem, sentimento doloroso de excitação na alma por uma ideia de qualquer desonra que “recebemos ou que cremos receber”, ou “que nos estaria apenas aos seus próprios olhos.” Sua conclusão, juntamente com Kinston, é que a distinção não é clara entre vergonha e pudor. Aspecto que é corroborado pelo Dictionnaire de la langue française, de Émile Littré, com a definição de vergonha: “desonra, vergonha, humilhação”, que leva em conta também, em termos quase idênticos, a definição do Dictionnaire de l’Académie française: “sentimento doloroso que excita a alma a pensar ou a temer a desonra”. Desta forma, a distinção entre o psíquico e o social não parece claramente estabelecida; parece que o emprego dos termos tais como “sentimento”, “pensava” ou “medo”, acentuados por Littré, denota o caráter psíquico da vergonha em relação a seu caráter social.

Voltando a Freud, destacamos a pesquisa de Victor de Paula Xavier30, que mapeou o sentimento de vergonha na obra freudiana de modo a dar um corpo mais ou menos consistente a uma noção sobre vergonha. Podemos observar, neste estudo, que Freud não formulou uma teoria sobre a vergonha – aspecto que desde o começo de nossa pesquisa vem sendo constatado. No entanto, algumas linhas gerais podem ser traçadas a fim de estabelecer um critério de uso dos termos vergonha, pudor e embaraço, em seus escritos.

Xavier (2010) identificou três maneiras de como Freud pensava e utilizava a vergonha: 1) De modo descritivo, ou seja, na descrição de estudos patológicos e ilustrações de contextos. Podemos encontrar este uso em textos como Estudos sobre a Histeria, Os chistes e sua relação com o

                                                                                                                30 XAVIER, Victor de Paula.

(24)

inconsciente, Luto e melancolia, no caso do Homem dos ratos, em Psicologia de grupo e análise do ego, etc31. 2) A compreensão da vergonha como um instrumento que impulsiona o psiquismo para o recalcamento, que podemos encontrar desde o Rascunho K, passando por A interpretação dos Sonhos,

Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, até a Questão sobre a análise leiga. 3) A terceira acepção é a da vergonha como escolha psíquica no processo de deslocamento afetivo. Esta, desde 1896 em Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, era assinalada como uma via possível.

Se nos detivermos no índice referencial da Standard Edition, podemos ainda observar que a ocorrência mais frequente da vergonha antes de 1914 não se favoreceu dos avanços sobre o narcisismo e da segunda tópica para a construção de uma teoria da vergonha em Freud. As consequências dessa ausência já foram apontadas por Octave Mannoni (1992) em Um espanto tão intenso - a vergonha , o riso e a morte.

Todavia, Janin (2007) destaca que Ferenczi já havia formulado uma relação íntima entre vergonha e traumatismo. Além dele, psicanalistas da escola húngara como Balint e na França, Béla Grunberger e Janine Chasseguet-Smirgel também fizeram considerações sobre a vergonha.

Apesar de esses autores eventualmente tratarem da vergonha em suas pesquisas, ela ainda não deixou de ser apenas um item mencionado e pouco estudado. Mais além, como conceito, a vergonha é eclipsada e até assimilada por um outro conceito psicanalítico, a culpa. Isto ocorre em uma tradição de autores que não distinguem Ideal-de-eu e Superego como instâncias diversas. É o caso de Heinz Hartmann e Rudolf Loewenstein32.

                                                                                                               

31 Como o uso que Freud fazia não dizia respeito a um conceito, ou seja, era o uso de um termo comum sem pretensões conceituais, a lista de textos é extensa. Por isso, só citaremos alguns dos mais comuns e conhecidos. No entanto, era presente a profusão de ocorrências da vergonha nas cartas enviadas a Fliess, dentre as quais destaco: o Rascunho J (1895), o Rascunho K (janeiro de 1896), na Carta 66 (julho de 1897), na Carta 69 (setembro de 1897), na Carta 75 (novembro de 1897), na Carta 97 (setembro de 1898, na Carta 102 (janeiro de 1899) e na Carta 105 (fevereiro de 1899).

32 HARTMANN, H. & LOEWENSTEIN, R. Notes sur le Surmoi.

(25)

Serge Tisseron33, que entende a vergonha como uma emoção bruta ligada à perda de referências, chega até a dividir uma tradição norte-americana e um tradição francesa de estudos sobre a vergonha34. O autor observa que a primeira trata a vergonha como um afeto social, enquanto a segunda dá uma ênfase à analidade e ao conceito de Eu-ideal. No entanto, ao escrever sobre os autores franceses, Tisseron cita somente Grunberger, Chasseguet Smirgel, Guillaumin e André Green. Entre os autores franceses destacamos em nossas leituras iniciais, além de Tisseron e os que ele citou, Radmila Zygouris35, que sugere a relação da vergonha com a angústia fundadora da relação de objeto, na transformação do objeto de necessidade em objeto de amor. Ela ainda destaca o caráter de violência real e simbólica da vergonha. Podemos destacar também Brusset36, que diferencia o afeto da vergonha como um afeto primário de um afeto traumático, e André Green37, que aponta para uma revelação de defeitos e fraquezas desmascarando o mundo íntimo para os olhos dos outros. Ainda podemos destacar os estudos de Mannoni, François Duparc, Patrick Merot, Jean-Claude Sempé, Claude Janin, Jean Cournut, Guy Lavallée, Danielle Quinodoz, Christian Seulin, Bernard Penot, Monique Selz, etc.

O que nos chama atenção é que, no estudo de Tisseron (1992), autores da tradição lacaniana, incluindo o próprio Jacques Lacan, são deixados de fora. Sem exercitar especulações sobre as razões desta exclusão, gostaríamos de incluir na tradição francesa, juntamente com Lacan, autores lacanianos que, com base na vergonha, produziram observações importantes sobre o tema. São eles, principalmente: Colette Soler (2011), Jacques-Allain Miller (2004), David Bernard (2011), Marcus André Vieira (2001), Antônio Quinet (2004), Eric Bidaud (2010), Gérard Pommier (2010), Cosimo Trono (2010), Andrea Baldassaro (2010), etc.

                                                                                                                33

TISSERON, Serge. De la honte qui tue à la honte qui sauve. Le coq-héron, 2006/1 no. 184, p. 18-31.

34

TISSERON, Serge, La Honte: pychanalyse d’un lien social. Dunod, 1992. 35 ZYGOURIS, RADMILA.

Ah! As belas lições. São Paulo: Escuta, 1995. 36

BRUSSET B., Honte primaire ou honte traumatique?, Revue française de psychanalyse

2003/5, Volume 67, p. 1777-1780.

(26)

A partir desses autores foi-nos permitido estabelecer um solo afetivo/cultural da vergonha, extrapolando-o para as formações da cultura, os discursos e o presente momento de nossa sociedade. Nesse sentido, a proposta que procuramos desenvolver nesta tese coloca a vergonha como um elemento de elucidação de aspectos subjetivos e sociais.

Objetivo

Partindo do princípio de que a vergonha é um afeto eminentemente social, questionamos a dimensão ontológica que marca tanto posições discursivas na sociedade, quanto aspectos subjetivos íntimos com os quais podemos interrogar a cultura. Portanto, utilizamos a vergonha como um elemento de crítica de aspectos sociais e subjetivos, observando elementos ligados à forma como o narcisismo se articula aos discursos contemporâneos, mais especificamente os que ocorrem dentro de uma racionalidade capitalista. Vergonha, assim, foi tomada como uma chave de análise para aspectos clínicos e sociais.

Isso nos permite delimitar os objetivos do nosso projeto, ou seja,

estabelecer um solo conceitual da vergonha através da psicanálise lacaniana,

de modo que ele nos permita propor a vergonha como uma contraexperiência

política do sujeito.

O termo contraexperiência foi tomado emprestado de Alain Badiou, no livro/entrevista Elogio ao Amor38. Neste livro, o filósofo francês, entre várias considerações sobre o tema, nos permite pensar o amor como uma contraexperiência em uma sociedade que homogeneíza os afetos, vende garantias contra os desencontros, comercializa uma seguridade contra o acaso e as falhas. Seguindo Badiou, com a vergonha, pensamos em uma experiência de repetição do novo através da afirmação de um modo de gozo singular que inclui a incidência da falha narcísica na imagem, para além das pressões da cultura de capitalista que empurram o sujeito para a assunção de uma identidade cuja consistência é regulada pelo mercado.

                                                                                                                38 BADIOU, A. & TRUONG, N.

(27)

Para isto, como forma de traçarmos uma arquitetura para esta tese, escolhemos partir do capítulo final do seminário 17 – O avesso da

psicanálise como ponto desencadeador das direções tomadas em nosso

percurso. Esta escolha se fundamenta no fato de, neste capítulo específico, Lacan falar da vergonha de modo direto, como ele não fez em nenhum outro momento de sua obra. Além disso, este capítulo se localiza em um momento histórico cujas efervescências são capitadas nas críticas que ele faz a partir dos discursos, como por exemplo, a mudança do estatuto do saber no discurso do mestre.

Localizar este ponto de partida é uma estratégia que nos permite retomar teorizações de anos anteriores, desde o começo da obra, até formulações produzidas depois de 1970, que nos auxiliarão em nossas observações a respeito de aspectos clínicos e sociais do sujeito em nossa cultura. Ao fazer esse movimento de vai-e-vem, estamos apontando para o seu caráter lógico como conceito que podemos circunscrever desde as primeiras teorizações e seguir conservando/superando (aufhebung) tais teorizações, até seu uso oportuno e contingente no âmbito de uma crítica ao capitalismo. Desta forma, a vergonha que aparece em um comentário sobre o

Ser e o Nada, de Sartre, no Seminário 1, não apaga nem exclui a vergonha

constitutiva, do buraco, de compreensão mais tardia na obra, na década de 1970. Isto nos permite apostar ainda em uma clínica pela linguagem, com o real e o imaginário. Nossa aposta na vergonha pela estratégia de retomar seus aspectos presentes em épocas variadas é uma aposta na repetição que se opera a partir da diferença. Com Lacan, sustentamos a escolha de recuperar as dimensões da vergonha em termos dialéticos em que somente no aprè-coup damos, hoje, sentido ao que já estava no começo, lá no século XX, ou no XXI... Este modo de leitura encontra apoio na tese de Safatle (2006), de que Lacan não abandona a influência de Hegel depois da década de 1950, mas a mantem, sobretudo, no fim de sua obra, divergindo da leitura que localiza o alcance dialético somente no início de sua obra, quando ele estava sob com a influência de Kojève e Hyppolite39.

                                                                                                                39

(28)

Nosso modo de leitura pode ser melhor ilustrado pela seguinte observação: “o que há de bom, não é? No que lhes conto, é que é sempre a mesma coisa. Não que eu me repita, não é esta a questão. É que, o que eu

digo anteriormente ganha sentido depois.”40

Estrutura dos capítulos

No seminário 17, Avesso da psicanálise, Lacan fala que o “avesso é assoante com a verdade”41. Mas de que verdade se trata? Da verdade que sustenta o discurso. Esta verdade é sempre semi-dita, há uma interdição que se coloca entre a produção e a verdade. Neste sentido, a verdade interdita é a de um mestre castrado e que, por isso, não garante a identidade ôntica do sujeito, sua estabilidade narcísica. Em decorrência da divisão/castração do sujeito, vem sua vergonha, ou seja, a vergonha de não somente ser castrado, mas também a vergonha de um Outro barrado.

Lacan joga com a assonância dos significantes Avesso e Verdade, que é imperceptível em português, mas marcada na língua francesa nas palavras envers e verité42. É desta relação fundamental entre avesso e verdade que decidimos tomar o avesso como um fio condutor deste trabalho. Isto nos permitiu formular uma arquitetura sustentada em três blocos/capítulos intitulados: 1) A vergonha e o avesso da imagem; 2) A vergonha e o avesso do objeto; 3) A vergonha e o avesso do discurso.

No primeiro capítulo, procuramos percorrer o modo como a falha na imagem de si engendra uma entrada no simbólico, tornando-se significante que bascula entre uma imagem de brilho fálico e uma imagem castrada. Para isto, traçamos um percurso mediante o avesso da imagem. Partimos de uma individuação da imagem de si como separação do Outro, mas que, ao situar-se em relação a este campo, o afirma, ou seja, aliena-se a ele. Assim, tanto a imagem especular quanto o eu do sujeito se constituem e se dão a ver sobre em uma relação íntima com a frustação de uma

                                                                                                                40

LACAN, J. O Seminário. Livro XX. p.50. 41 LACAN, J.

O Seminário. Livro XVII. p.57. 42

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identificação dessa imagem com a castração imaginária (-φ). Esta será a marca de uma impostura estrutural que oscilará, através da imagem de si, entre os pólos de insuficiência (castrado, não-ser e não-ter) ao pólo de ter o falo.

A vergonha, neste sentido, se dá no instante de descoberta dessa falta-a-ser vivida na dimensão do ter, que é repetida como experiência de insuficiência. Tratamos ainda, neste capítulo, do pudor como afeto responsável por velar a castração vergonhosa. Destacamos a relação entre pudor e vergonha com o uso do sonho de um paciente de Ella Sharpe, comentado por Lacan. Em seguida articulamos o modo como o véu encobre a falta sempre de maneira tensa, pois, o avesso da imagem especular revela a fantasia que provoca vergonha no sujeito.

No capítulo 2, exploramos o avesso do objeto. Privilegiamos o objeto olhar porque este entra como o elemento que situa a presença do sujeito no mundo e a presença do Outro. O olhar, assim, volta-se sobre o sujeito em um movimento de apreensão da própria imagem por um olhar tomado do Outro, ou seja, o olhar do sujeito é o olhar do Outro. Para investigar melhor esses aspectos, percorremos a fenomenologia do olhar, de Sartre, pois este filósofo destaca a vergonha como um afeto originário capaz de refutar o solipsismo. Em seguida, apresentamos a concepção de Lacan sobre o olhar e apontamos as divergências que ela revela em relação às de Sartre, principalmente em torno da vergonha. Incluímos, de modo breve, considerações a respeito do objeto voz, apontando como ele complementa o olhar, no que se refere ao caráter superegoico e inquisidor da vergonha.

(30)

No terceiro e último capítulo, escolhemos quatro linhas principais como pontos de referência a partir do que Lacan comentou na aula de 17/06/1970: 1) degenerescência do significante; 2) morrer de vergonha é o afeto da morte que merece; 3) não há mais vergonha; 4) vergonha é o buraco onde brota o significante-mestre. Estas quatro linhas foram as balizas principais desta tese.

Até chegarmos em 1970, quando Lacan levanta uma crítica com base na vergonha, procuramos percorrer um caminho que tem como fio condutor principal a linha 4) citada acima, a saber, vergonha é o buraco onde brota o significante-mestre. Esta afirmação aforística de Lacan nos serviu de azimute conceitual que nos permitiu partir das primeiras relações com a imagem, no estádio do espelho, na apreensão da forma/imagem do Eu/eu, abordar a castração na imagem, o engendramento do significante fálico como valor e medida imaginarizada, entender essa imagem como algo que comporta uma ferida narcísica inscrita no nível significante e que é transmitida como “herança maldita” pelo desejo do Outro materno, e ainda, abordar os objetos a do olhar e da voz, e a repetição.

Tentamos construir um estofo que pudesse nos permitir falar sobre os pontos 1, 2, 3 e 4, citados acima. Por isso, o capítulo 3 é o capítulo no qual desenvolvemos a discussão principal da tese. Nele, desenvolvemos relação entre a arrogância e a guinada nos discursos. Retomamos o texto de W. Bion, sobre a arrogância, como ponto de partida para falarmos do sujeito arrogante enganado na ilusão fálica. Este sujeito sofre implicações no laço social devido a seu medo de perder justamente a ilusão fálica que sustenta a mestria. Em seguida abordamos os discursos e a guinada em que o discurso do mestre se transforma em mestre pervertido. Tal transformação aponta o contexto em que Lacan fala em proletário como sintoma social e a vergonha de ver trabalhadores em atividades esvaziadas. Traçamos, ainda, comentários a respeito do espetáculo como sinal de desaparecimento da vergonha, as consequências deste desaparecimento e a ideologia de supressão do sujeito no capitalismo. Ou seja, um sujeito sem vergonha como sujeito quantidade, identificado à mercadoria nos serviços dos bens.

(31)

tomar a vergonha e o pudor como coordenadas clínicas que apontam para a diferença sexual e para não-relação. É neste ponto que retomamos a sentença aforística de que a vergonha é o buraco onde brota o

significante-mestre como um caminho que aponta para a ex-sistência, ou seja, o avesso

ontológico do sujeito, que se sustenta nos termos do RSI e que, para ser real, é preciso que haja um buraco. (LACAN, 1974-1975/s.d.)43.

É, ao apontar para o buraco, que podemos propor que a vergonha pode fazer frente ao discurso do capitalista por meio da efetivação da singularidade como traço distintivo do significante-mestre; em outras palavras, a vergonha sinaliza e marca um modo singular de gozo. Nesse sentido, ao conceituar e localizar a vergonha assumimos uma estratégia que escolheu privilegiar três dimensões principais: a imagem, o objeto e os discursos. Estes três caminhos foram abordados pelo avesso, ou melhor, retomando a psicanálise pelo avesso (l’envers et verité).

Portanto, perseguimos na estrutura, o que é inassimilável no significante, ou seja, um discurso sem palavras. Seguir o avesso é apontar para a relação intrínseca entre objeto, significante, discurso e gozo. Essas três direções formam a estrutura da tese.

Boa leitura!

                                                                                                                43

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CAPÍTULO 1

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Do Pecado da imagem de si

A beleza é uma coisa terrível e espantosa. Terrível, porque indefinível, e não se pode defini-la porque Deus só criou enigmas. Os extremos se tocam, as contradições vivem juntas. (F. Dostoiévski, Os irmãos Karamázovi)

Lúcifer foi o arcanjo cujo maior pecado, a soberba44, o fez individuar-se, tornar-se um Eu separado dos outros, do nós. Lúcifer assim o faz, ao olhar-se no espelho e maravilhar-se com sua luz. Ao se admirar, Lúcifer individuou-se, tornou-se parte, como um Eu em relação ao outro. Seu pecado da soberba quebra o princípio da criação concebida como todo45,

como Uno sagrado regido pela graça de Deus. Lúcifer, ao individuar-se, precipita-se como um Deus, como senhor de um domínio que é o do seu próprio Eu: melhor reinar no inferno do que servir no paraíso46.

Lúcifer é, na atribuição que lhe é dada como Diabo e na forma de serpente, quem convence Adão e Eva a comer a maçã do pecado, e logo: “Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si.” (Gênesis 3,7).

Essa passagem da Bíblia fala de Adão e Eva logo após comer a maçã. O interessante dela é que aqui fica clara uma nudez anterior que não causava vergonha e pressupõe um abrir de olhos para algo ainda não experimentado. Mas o que Adão e Eva experimentaram? Agambem (2009) fala de uma transgressão e, para isto, ele retoma Santo Agostinho para chegar à veste da graça que cobria os corpos de Adão e Eva antes de pecarem. Esta veste não é uma roupa, mas a própria graça que o homem

                                                                                                                44

Segundo Santo Tomás de Aquino (2004), a soberba é a rainha de todos os pecados. In:

Sobre o ensino de magistro. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.79. 45

A quebra de princípio se dá porque os pecados capitais (são sete) têm a propriedade de engendrar outros pecados, ou seja, são pecados que iniciam séries de pecados, por isso são faltas mais graves diante de Deus. Sobre o ensino de magistro p.75.

46

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recebe no paraíso, responsável por recobrir, na natureza, aquilo que pode ser abandonado pela glória de Deus, a saber:

(...) a natureza abandonada pela glória de Deus e remetida a si própria, se presenta como possibilidade da degenerescência da natureza humana naquilo que as escrituras chamam “carne”, o devir visível da nudez do homem, a sua corrupção e putrefação47.

A pesquisa de Agamben resulta na ideia de libido como rebelião da carne, algo real, irremediável e que faz o desejo do homem ir contra o espírito. Tal rebelião é o ato similar ao de Lúcifer, o de ir de encontro ao Uno divino. A rebelião da carne é a própria individuação no modo em que ela, pela excitação (libido), toma forma como Eu, como imagem de um corpo nu, que perdeu a veste da graça. Adão e Eva, após o pecado, experimentam o corpo animal, antes recoberto pela graça, que mantinha desconhecida a doença, a morte, e a libido, “isto é, a excitação incontrolável das partes íntimas (obscenae).”48

Freud toma a referência de Adão e Eva para destacar esses dois momentos relacionados à vergonha: 1) o momento em que Adão e Eva viviam nus no paraíso, sem experimentar a vergonha, 2) e o momento de sentir vergonha após o pecado. Disso ele faz uma analogia com a vida infantil, no período antes e depois que a criança experimenta a vergonha em relação à nudez:

Quando voltamos os olhos para este período da infância isento de vergonha ele nos parece um Paraíso; e o próprio Paraíso nada mais é que uma fantasia grupal da infância do indivíduo. É por isto que a humanidade estava desnuda no Paraíso e não se sentia vergonha na presença um do outro; até que chegou um memento em que a vergonha e a angústia despertaram, houve a

                                                                                                                47 AGAMBEN, G.

Nudez. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2009. p.79. 48

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expulsão e começaram a vida sexual e as tarefas da atividade cultural49.

Como citamos da Bíblia: “Abriram-se, então, os olhos de ambos”. Mas o que se viu ao abrir os olhos? Não é difícil concluir que o que se viu foi o corpo sem a veste da graça, o corpo nu da natureza humana. Logo, se viu uma imagem do corpo, mais ainda, uma imagem de um corpo próprio, cuja parte íntima foi escondida pelo pudor.

A relação da vergonha com a imagem de si é óbvia. É algo que não depende de grandes justificativas, por ser uma experiência que se pode conferir no cotidiano. No entanto, como essa relação se engendra no sujeito? A partir de que momento a imagem se constitui como algo dentro de uma valoração egoica, como a individuação de Lúcifer, e depois, de uma separação em relação a um outro?

Em Dos nossos antecedentes, Lacan comenta:

Acrescentamos que, um dia, um filme, rodado sem nenhuma relação com nossos propósitos, mostrou aos nossos uma menina confrontando-se nua no espelho: sua mão, como um relâmpago, piscando num viés desajeitado, a falta fálica.

Entretanto, o que quer que cubra a imagem, ela apenas centra um poder enganador de desviar a alienação, que já situa o desejo no campo do Outro, para a rivalidade que prevalece, totalitária, pois o semelhante impõe uma fascinação dual50.

A menininha experimenta a imagem que a individua em relação ao campo do Outro, mas individua em termos, pois ela precisa rivalizar com este campo, o que engendra sua alienação a ele. Mais tarde, em 1975, Lacan volta a esse mesmo filme ao falar do estádio do espelho, e observa que: “falo é o que dá corpo ao imaginário”. O gesto da menininha do filme é novamente

                                                                                                                49 FREUD, Sigmund.

A interpretação dos sonhos (1900). p. 260. 50

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retomado de modo que nos auxilia a entender a experiência do sujeito com a imagem e como esta causa o pudor:

(...) a elisão, na forma de um gesto, a mão que passa pela frente, a elisão disto que fosse talvez um falo, ou talvez sua ausência. Um gesto claramente o retirava da imagem. E isso sensibilizou-me como correlato, se posso assim dizer, desta prematuração. Há aí algo cujo laço é, de certa forma, primordial por relação a isto que se chamará, mais tarde, pudor, mas que seria excessivo fazer parte nesta etapa do espelho51.

Com isso, fica posto como o pudor pode, supostamente, advir, na fabricação primeira da imagem do corpo, e no investimento desta imagem. Neste sentido, o próprio investimento na imagem especular parece ser o fundamento do pudor, sem o qual o sujeito não poderia habitar seu corpo como próprio corpo. Se temos imagem de si, temos pudor, temos uma espécie de cuidado com essa imagem que contém em si uma falta que desde sempre exerce tensão entre o público e o privado: “Que o pudor designa: o privado. Privado de quê? Justamente, de que o púbis só faça passar ao público, onde se exibe como objeto de levantada do véu.”52

Nós temos então, contra a falta no corpo, ou na imagem deste corpo, um investimento na imagem especular e tudo contra essa falta, o pudor. Vieira, em A Ética da paixão, define o pudor como “a arte de fazer materializar-se, ainda que parcialmente, isto que não se pode desvelar.”53 É o que se cobre com o véu, ou com os gestos da menininha do filme comentado por Lacan. Para além do véu, temos algo o qual não podemos revelar, algo na imagem, objeto de um olhar, o que nos causa vergonha.

A vergonha, então, pela via da imagem do sujeito, é o que o pudor

vela, esconde. Logo, o que a vergonha desvela é isto que falta à imagem ideal do corpo escondido, a que o pudor se opõe e que na vergonha se

                                                                                                                51

LACAN, J. (1974-1975/s.d.) R.S.I. O seminário. Inédito. p. 45. 52

LACAN, J. (1974). Prefácio a O despertar da primavera. p. 558. 53 VIEIRA, M.A.

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