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JOSÉ RODRIGUES E O CEGO RABEQUISTA 1

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Academic year: 2019

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“Há pedintes cegos de inspiradas frontes, Com estrelas n’alma, com visões mentais, Que atravessam rios, que vão dar com fontes, Que andam por agrestes, solitários montes, Sem errar a estrada, sem cair jamais!...” “In Pulvis” in Os Simples, Guerra Junqueiro.2

Às primeiras linhas do influente tratado crítico Le Peintre de la Vie Moderne [1859], Charles Baudelaire elogia o seu tempo por ter começado a resgatar artistas que o grande público desconhecia:

Par bonheur se présentent de temps en temps des redresseurs de torts, des critiques, des amateurs, des curieux qui affirment que tout n’est pas dans Raphaël, que tout n’est pas dans Racine, que les poetæ minores ont du bon, du solide et du délicieux; et, enfin, que pour tant aimer la beauté générale, qui est exprimée par les poëtes et les artistes classiques, on n’en a pas moins tort de négliger la beauté particulière, la beauté de circonstance et le trait de mœurs. Je dois dire que le monde, depuis plu-sieurs années, s’est un peu corrigé.

Tal declaração lembra a importância capital de olhar aqueles que ocupam um lugar menor no cânone, pois tal como escreveria Joel Serrão, os “pequenos poetas, como se fossem espelhos planos, reflectem em si as circunstâncias peculiares da sua tempora-lidade e da sua própria experiência de modo, – digamos, – passivo”, por oposição ao espelho convexo e côncavo que os grandes poetas usam activamente. Torna-se, com AFONSO RAMOS

Investigador em História da Arte

1O presente artigo foi inicialmente submetido em

Janeiro de 2008 como um dos trabalhos finais da cadeira de História da Arte dos Séculos XIX e XX em Portugal, leccionada pela Professora Raquel Henriques da Silva, na licenciatura de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

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efeito, possível que os artistas menores, esses que “vivem e morrem com o seu tempo, constituam documentação histórica mais segura e mais valiosa do que os maiores.” (Serrão 1980, 36)

Eis o lugar de José Rodrigues (1828-1887) na pintura nacional. Se foi outrora um dos mais respeitados e fecundos produtores de imagens do país, as centenas de obras que deixou caíram no olvido geral – e o paradeiro da maioria delas é hoje incerto. Em socorro da sua memória, Júlio Castilho3dedicou-lhe uma notável monografia – a única disponível até hoje –, logo em 19094. Nela lemos o percurso simples e modesto da sua vida, sem datas excepcionais, entre o seu nascimento e morte na Rua dos Bacalhoei-ros em Lisboa. As origens humildes obrigaram-no a satisfazer um grande número de encomendas que não lhe interessavam, mas que não podia recusar por simples moti-vos financeiros. Numa postura profundamente avessa ao mito do artista romântico, o pintor vivia “agrilhoado (e Deus sabia por quanto tempo) á tarefa diaria, inglória, e obs-cura de reproduzir as feições de uma população anonyma de Lisboa, do Maranhão, ou do Rio de Janeiro” (Castilho 1909, 27) – acrescente-se também a de Luanda, de Lou-renço Marques, ou mesmo a de Liverpool -, muitas vezes apenas com base em daguer-reótipos que lhe chegavam pelo correio. Todavia, se o retrato “não fora a sua vocação, o certo é ter sido nessa especialidade que ganhara notoriedade” (Castilho 1909, 80). Foi, durante bastantes anos, o pintor de retratos mais solicitado em Portugal5, tendo cumprido mais de duas centenas de encomendas, quase sempre oriundas de meios ofi-ciais ou de burgueses endinheirados. A clientela era, na sua maior parte, inculta e pom-posa, com ideias intransigentes sobre o que queria dos quadros, restringindo tanto quanto podia as liberdades criativas do artesão, e exigia prazos reduzidos de tempo a troco de uma remunerações mínima.

Se acrescentarmos a estes duzentos retratos, os mais de quarenta quadros que pintou, entre paisagens, naturezas-mortas e alegorias histórico-religiosas, entendemos o ritmo da sua produção. Segundo os cálculos de Júlio Castilho, o artista concluía duas pintu-ras por mês, para além do tempo que dedicava a fazer gravura e desenho, a leccionar em escolas (no Colégio do Bom Sucesso e no de S. Domingos de Benfica) e a dar aulas particulares a várias senhoras. Terá sido, para dizer o mínimo, uma “carreira espinhosa e arida [que] deveu doer muito” (Castilho 1909, 27). (FIG. 1)

Para ilustrar o conflito da sua vida artística, Júlio Castilho chama-o piedosamente de “águia engaiolada” (Castilho 1909, 96). Mas em vez de nos determos sobre o seu fardo de Sísifo, centremo-nos antes na sua obra-prima, O Cego Rabequista, que foi o que de mais próximo teve de um golpe d’asa, ou, pelo menos, assim o vem entendendo a his-toriografia nacional que a destaca repetidamente como obra maior do Romantismo em Portugal. Se este quadro, como defende Armando de Lucena, “define o pintor”, a nível artístico, técnico e biográfico (Lucena 1943, 79), as suas singularidades raramente são notadas, ou porque se torna vítima do sociologismo, ou porque integra narrativas maiores que a usam como ilustração da miséria e melodrama nacional.

Rodrigo Paganino havia escrito no Jornal de Belas Artes sobre a filosofia enunciada pelo quadro, mas é Manuel Maria Bordalo Pinheiro quem lhe dedica um artigo,

discu-3Júlio Castilho, o filho do célebre literato do ultra--romantismo, António Feliciano Castilho, que foi também um dos retratados por José Rodrigues num “émouvant portrait d’aveugle”, como escreveu um crítico parisiense coevo. (Castilho, 1909:84). 4“Pego hoje na penna para commemorar um filho illustre da Arte nacional (…) É indispensável fa-zel-o lembrado, visto como estas gerações ultimas quasi lhe esqueceram o nome, e desconhecem as pesadas tarefas que lhe absorveram a existência (…) A própria reputação de José Rodrigues, tão intensa outr’ora, esmoreceu e descorou; injustiça inconsciente, que é necessário reparar” (Castilho, 1909: 11)

Castilho, Júlio,José Rodrigues, pintor portuguez: studos artísticos e biographicos, Lisboa, Moderna, 1909.

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FIG. 1 - José Rodrigues – O Cego Rabequista, 1855. Óleo sobre tela, 170 x 122 cm. Museu do Chiado – MNAC, inv. 515.

© José Pessoa, DDF/IMC. tindo o seu valor pictórico “de um verdadeiro merecimento artístico, digno de pôr-se

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opor-tunidade de comprar a obra quando foi reexibida no Grémio Artístico de 1898. Poste-riormente, seria adquirida pelo Conde do Ameal, e finalmente pelo Museu Nacional de Arte Contemporânea (Museu do Chiado), em cujo acervo permanece desde então. Em dois anos apenas, 1855 e 1856, o romantismo plástico português via concluídas quatro das suas obras mais significativas. Além do quadro que nos ocupa, o Só Deus! de Francisco Metrass, A Cólera Morbus de Vítor Bastos, e por último, Cinco Artistas em Sintra de Cristino da Silva, onde figuram todos estes artistas (França 1999). Mas este é um grupo heterogéneo, e José Rodrigues distancia-se cada vez mais do género de pintura paisagística, aderindo a um novo modo de representação, inaugurado pelo pin-tor suíço Auguste Roquemont, que procurava mostrar os costumes populares e os valo-res castiços do país, com um empenho algo etnográfico e de vincada preocupação social. Entre os protagonistas, – e note-se que alguns deles provinham de um meio popular – contam-se António Alves Teixeira, Francisco José Resende, António José Patrício, Leonel Marques Pereira6, cujas obras alcançaram então “considerável sucesso público” (Silva 1995, 332).

José Rodrigues necessitava assim de um tema apropriado ao sentimentalismo român-tico que procurava apresentar. Encontrou-o, habilmente, na figura do violinista cego que transitava, de aldeia em aldeia, à procura de esmola, e que conseguia ser simulta-neamente popular, religioso, romântico e miserável, como a tela pedia. Este tema, repe-tidamente utilizado na pintura ocidental, de Georges la Tour ou Bruegel a David Wilkie, é atravessado de um forte moralismo, uma vez que tem na sua origem uma fundação bíblica, enunciada numa célebre parábola aos fariseus (Mateus 15:14), onde se defende que não são os olhos mas sim a fé que pode oferecer a verdadeira visão.

Na literatura oitocentista portuguesa são também vários os exemplos que testemunham a entrada desta figura para o imaginário popular. Além de personagens menores em Camilo ou Feliciano de Castilho, refira-se sobretudo o “rebequista d’aldea” de Luís Augusto Palmeirim, ou, em paralelo ao dramatismo de Rodrigues, o conto infantil “O Rabequista”, escolhido por Guerra Junqueiro numa selecta popular para crianças7. Esta ligação ao universo literário ajuda-nos a perceber a construção destas personagens, uma vez que nos reportamos a uma cultura com “escassos hábitos de visualização, pro-pondo-lhe quadros como se de romances populares se tratasse” (Silva 1997, 47). Facto pelo qual, aliás, J.-A. França aproxima este quadro de um certo “sentimentalismo social que o palco do teatro de D. Maria II de boa mente debitava (França 1999, 355). A escolha premeditada do rabequista, enquanto símbolo eloquente da pobreza, é nesta tela o principal de vários mecanismos de identificação de um povo muito pobre, sofredor, porventura fatalista, que se revê e enaltece no miserabilismo desta trindade. A eficácia desta figura tinha sido aliás confirmada por William Wordsworth, em 1807, quando compôs um dos seus poemas mais arrebatadores depois de ter assistido ao poder encantatório de um cego violinista perante uma multidão de Londres, e logo equiparado a uma espécie de Orfeu moderno que era capaz de aliviar o sofrimento das classes oprimidas8. Eis que o pintor dos burgueses e aristocratas oferece um retrato aos anónimos, uma “obra trespassada de ardente amor pelos humildes, que a geração

6Veja-se inclusivamente um quadro deste último, Festa na Aldeia, onde um rabequista anima uma cena popular.

7Vide Junqueiro, Guerra, Contos para a infância, Lisboa, Typographia Universal, 1877.

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romântica contemplou com lágrimas nos olhos” (Pamplona 1987, 82). Transformar--se-ia rapidamente numa dessas imagens que se insinua na consciência comum nacio-nal, e que “por uma razão ou por outra alcançaram uma espécie de estatuto mítico, pela voga, autoridade e irradiação que tiveram ou continuam a ter”, pertencendo, por direito próprio, a uma possível imagologia portuguesa (Lourenço 2007, 18). Em 1855, Lisboa era uma cidade arruinada. Na primeira metade do século tinha sido palco de uma série de acontecimentos trágicos, com as invasões francesas, o domínio inglês, a revolução de 1820, e as revoltas e contra-revoltas entre 1834 e 1851. Para mais, com o fim do império brasileiro e do seu comércio, os sinais de decadência eram evidentes, com muitas ruínas e prédios inacabados, epidemias frequentes (cólera, tifo, febre-amarela) e custos de vida que encareciam seriamente. Uma nova geração de inte-lectuais portugueses ficava alertada para os problemas sociais que se colocavam e que eram urgentes resolver, antes que se constituísse uma grave questão social como a que agitava a França, a Inglaterra e a Alemanha. Em verdade, era tanta a miséria que, para tentar diminuir os casos frequentes de assalto, o Governo iniciou em 1847 a distribui-ção diária de 2500 pães e criou a Sopa Económica. (Santos, 1979)

A causa destes conflitos constantes estava, segundo Herculano, na pobreza do país, e só o fomento material poderia resolver tais problemas. Fontes Pereira de Melo põe em marcha estas ideias, tentando reduzir a sensação de periferia europeia – que também pairava sobre as artes, com uma Academia que não conseguia cumprir a promessa de financiar várias estadias de artistas no estrangeiro –, com inusitadas campanhas eco-nómicas que exigiam dos cidadãos um esforço sem paralelo. Todavia, O Cego Rabe-quista oferece uma incisiva observação realista deste panorama, ao expor “os mitos e fracassos do Portugal da Regeneração” (Silva 1997, 47), e configurando, de certo modo, um despertar político do longo idílio romântico. Tanto como agente activo do seu tempo, representando uma população que, face à escassa protecção social, ape-nas podia viver da caridade pública ape-nas ruas da capital, e como agente passivo, simul-taneamente, dado que, como notou J-A. França, evidencia a renitência da arte portuguesa em acompanhar o ritmo internacional e integrar a cena de género no con-texto da cidade, onde estas cenas seriam então recorrentes, preferindo imaginar e ence-nar uma gruta inserida na paisagem, “sintetizando assim costumes urbanos e sítios rústicos num suburbanismo em que a cidade portuguesa se define” em Oitocentos. (França 1980, 15)

O quadro desvia-se da cena típica de costumes populares, ao afirmar-se antes como uma celebração dos humildes, equivalente pictórico de um Os Simples de Guerra Jun-queiro, numa profunda reverência pela vivência humilde, pela situação de desprote-gimento, por uma pobreza confrangedora, que aborda em múltiplos quadros, a saber: “Velho Militar Mendigando”, “O Rapaz Pedinte”, “O Pobre da Púcara”, “O Sapateiro”, “O Mendigo”, etc.

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estu-dar fora do país, revela um “estilo esforçado”, hesitante e ecléctico, a que corresponde uma “execução muito ingenuísta”, que tolhe os intentos realistas da obra. (Silva 1997, 47). A aparência geral da obra é na verdade oleográfica, algo que aproxima muito esta tela de uma gravura, como reparou J-A. França (1966, 270). No entanto, é possível reconhecer uma influência dominante de duas escolas de pintura, a italiana e a espanhola. Associa-se frequentemente a esta obra o nome de Giacomo Ceruti (1698-1767), pela sua predilecção por temas de mendigos na rua, mas também pela organização das figuras e sobretudo considerando o fundo de paisagem que se vislum-bra do lado direito.

Todavia, porventura mais do que a “transparente inspiração italiana” que J-A. França encontra nesta obra, as suas fontes imagéticas parecem localizar-se sobretudo na pin-tura espanhola (França, 1966 : 270). Manuel Maria Bordalo Pinheiro havia declarado, aliás, que, “o merito deste quadro só pode ser bem avaliado por aquelle que conhecer a eschola espanhola” (Pinheiro 1860, 30). Na linha directa do tenebrismo da pintura barroca espanhola, o claro-escuro reforça aqui o realismo das figuras, ao mesmo tempo que as dramatiza e empola. A referência central será o artista sevilhano Bartolomé Este-ban Murillo (1618-1682), cujas pinturas de género haviam circulado com bastante popularidade pela Europa do século XVII. Note-se a clara semelhança com a imagem dos Rapazes Pedintes Comendo Uvas e Melão (c. 1645/46), a partir da qual José Rodrigues parece reutilizar o espaço cenográfico obscuro, espécie de gruta para ins-talar a trindade de misérables, em tudo conveniente à ambiência que pretende criar – e que também utilizou, por exemplo, nos seus Pescadores Cantando e Tocando n’uma Gruta ao Rez da Praia ou em Os Salteadores na Caverna. Contra a escuridão do fundo, ambos os pintores destacam o primeiro plano através de predominantes ocres amarelos e castanhos, esmaecidos quanto o espírito das figuras, dentro de uma rígida esquematização construída pelo desenho, técnica cuja mestria de Rodrigues era repetidamente elogiada pelos jornais da capital. (FIG. 2)

Ao colocar estrategicamente o violino no ponto focal da tela, o artista demonstra-se consciente do poder poético e trágico deste símbolo, à semelhança da geração van-guardista que lhe sucede9. Para além da união geométrica e anímica das figuras em função do som agudo, a representação do instrumento permite também traçar duas linhas oblíquas que dividem o quadro em partes iguais, através do arco e do violino. Mas mais importante, no centro da composição, é a personagem do cego, andrajoso e ascético. Diversos sinais, cuidadosamente explorados (e exagerados), atestam a miséria da sua condição: o pé que já não cabe no sapato coçado, a barba rala, dedos rudes, calças remendadas e a camisa suja; e, no entanto, toda a figura é majestosa. A religiosidade com que toca o violino, e o lenço escarlate que lhe coroa a cabeça, são pequenos motivos nobilitantes que lhe salvaguardam a dignidade, mesmo quando as condições de vida não podiam ser piores. Rodrigues parece ter captado essa mítica ambivalência do povo português, que a poetisa cantaria um século depois: “Esta gente cujo rosto / Às vezes luminoso / E outras vezes tosco / Ora me lem-bra escravos / Ora me lemlem-bra reis”10.

9Foram vários os artistas que no princípio do sé-culo XX utilizaram o violino como motivo central das suas obras. Entre eles, refira-se o nome de Picasso, Manet, Degas, Chagall, Braque, Matisse, Juan Gris, Amadeo de Souza-Cardoso ou Almada Negreiros.

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No seu cotovelo direito, uma sombra faz pressupor outra figura que não vemos. Em baixo, uma manta enrugada e o pote de barro que acompanha tradicionalmente a figura ambulante do violinista. Contudo, estes pormenores são diminuídos quando pos-tos ao lado da rapariga angelical, que nos encara directamente nos olhos, com uma mão terna sobre o velho para apoiar a cabeça, e a outra esticada em súplica. Em nenhuma das outras figuras o desespero é tão evidente. De joelhos no chão, com pés descalços, depende da sua expressão persuasiva a subsistência do grupo. A sua fragilidade surge reforçada pela perna robusta onde se apoia, e na sua beleza casta encontramos o con-traponto ao estado lastimoso do cego, como se o pintor pretendesse avisar-nos da urgência em ajudá-la.

Todavia, o grande enigma do quadro levanta-se, quanto a nós, com a figura do rapaz por detrás do cego. Os sinais de indigência são incertos, note-se que ambos os pés e as mãos estão vedados ao observador. Para mais, como explicar a ausência de luz, que banha o cego e a rapariga, votando o rapaz a um lugar sombrio, distanciado do drama

FIG. 2 - Bartolomé Esteban Murillo – Rapazes Pedintes Comendo Uvas e Melão, 1645/46.

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principal? J-A. França considera que este “volta para nós um olhar triste” (França, 1999: 352), mas, em verdade, não vemos senão uma cara plácida, cujos olhos esfíngi-cos fixam o vazio. Como explicar então esta terceira figura, algo marginal na homília dos pobres? Eis, cremos, a importância de olhar de perto a pintura – e logo esta, que tão pouco tem sido olhada e para cujo fim o criador investiu todos os recursos de que dis-punha -, e de lhe estudar o detalhe que aqui, tal e qual escreveu Daniel Arasse, “le détail se manifestait alors comme un écart ou une résistance par rapport à l’ensemble du tableau ; il semblait avoir pour fonction de transmettre une information parcellaire, dif-férente du message global de l’œuvre – ou indifdif-férente à celui-ci.” (Arasse 1996, 6-7) Ora, esse desacordo da figura com o espírito da obra, tem uma origem reconhecível – embora não inteiramente explicável. Percorrendo as poucas reproduções disponíveis das obras do artista, encontrámos um notável auto-retrato seu feito a grafite, com dezanove anos de idade, que porventura nos pode fornecer informações importantes (FIG. 3 e 4). Veja-se (apesar das reproduções desvirtuosas) o enquadramento da cara a três quartos, olhando pelo mesmo lado, o manto, o queixo no mesmo ponto, as linhas idênticas do rosto (com, talvez, a pequena excepção das bochechas mais insufladas,

FIG. 3 - Auto-retrato com 19 anos. (proprietário desconhecido). In Júlio Castilho. 1909. José Rodrigues, pintor portuguez: studos artisticos e biographicos, Lisboa: Moderna.

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talvez como forma de retirar alguns anos ao rapaz). Se por um lado reafirma o seu vir-tuosismo no desenho, e recupera um exercício académico de mérito, por outro, a auto-representação de José Rodrigues vem trazer ainda uma maior estranheza e atrac-ção à terceira figura que é por natureza inquietante.

Como o coro na tragédia grega, esta terceira figura parece ser o espectador ideal que se responsabiliza pelo equilíbrio das emoções e pela moderação dos discursos, refor-çando o diálogo intenso que é estabelecido com o espectador. Deixa de ser claro quem é observado e quem é observador. O velho toca para si próprio, isolado do mundo, enquanto a rapariga olha directamente o observador, e o rapaz, alheio ao resto, observa o espaço dentro da tela, de tal modo que o observador hesita entre olhar e ser olhado, perante uma cena que tanto procura como evita. Com o velho a ditar a acção, a rapariga a exigir uma reacção, e o miúdo a estudar serenamente os intervenientes da cena, como se um espectador do próprio quadro, José Rodrigues construiu um monopólio psicológico do olhar que justifica ser esta a obra máxima entre as centenas que deixou.

Tudo isto está concebido para comover, espantar, perturbar – e tudo é hipérbole. Ape-sar da falta de estudo a que este quadro tem sido sujeito, já se levantou a hipótese des-tas crianças serem filhas do cego. Embora nenhum documento o ateste ou refute, e a natureza da situação o faça supor, este apontamento é relevante na medida em que comprova a competência do pintor em criar uma intensidade anímica e sentimentalista fora do comum. As personagens surgem envoltas numa dimensão épica que, de modo premonitório, só voltaremos a encontrar alguns cinquenta anos mais tarde nas obras emblemáticas de José Malhoa.

Após ter concluído esta obra que lhe pusera medalhas ao peito, o levara a Paris e o firmara na historiografia artística nacional, todos os relatos da época concluem que Rodrigues consome os restantes anos da sua vida cansado, doente e amargurado. O criador de O Cego Rabequista “morre antes de morrer” (Castilho 1909, 84), e o seu derradeiro panegírico já havia sido expresso pela pena do seu amigo e fiel admi-rador Manuel Maria Bordalo Pinheiro:

“O sr. Rodrigues conhecerá o que vale quando sahir de Portugal, e quando vir, a par das bellezas d’arte que elle saberá aproveitar, o apreço que se dá a trabalhos que tal-vez não apresentam nem a originalidade nem a força do colorido da sua obra”. (Pinheiro 1860, 30)

Cento e cinquenta anos depois, o desfecho da sua ida a Paris continua incerto – e até mesmo, se ela aconteceu de verdade11– e são portanto desconhecidas as conclusões que tirou das belezas da arte estrangeira. Contudo, se lembrarmos que na Exposição Universal de Paris em 1855 o seu óleo ocupava o mesmo espaço dos de Rousseau, Mil-let, Courbet, Rossetti ou Whistler, a distância temporal apenas parece garantir-nos que O Cego Rabequista exprimia de modo exemplar a arritmia nacional face à evolução artística das principais nações europeias.

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Bibliografia

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Imagem

FIG. 1 - José Rodrigues – O Cego Rabequista, 1855.
FIG. 2 - Bartolomé Esteban Murillo – Rapazes Pedintes Comendo Uvas e Melão, 1645/46.
FIG. 3 - Auto-retrato com 19 anos. (proprietário desconhecido). In Júlio Castilho. 1909

Referências

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