• Nenhum resultado encontrado

Revista Filosófica. de Coimbra. Publicação. semestral. Vol. 14 N. 28 Outubro de Artigos

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Revista Filosófica. de Coimbra. Publicação. semestral. Vol. 14 N. 28 Outubro de Artigos"

Copied!
19
0
0

Texto

(1)

Publicação semestral

Vol. 14 • N.° 28 • Outubro de 2005

Artigos

Mário Santiago de Carvalho - Metamorfoses da ética peripatética:

Estudo de um caso quinhentista conimbricense: As Disputas sobre os livros da 'Ética a Nicómaco' ... 239 Diogo Ferrer - Filosofia Transcendental e Universidade . O Plano

Dedutivo para um Instituto de Ensino Superior a Estabelecer em Berlim de Fichte ... 275 Carlos Morujão - A Logica Modernorum : Lógica e Filosofa da

Linguagem na Escolástica dos Séculos XIII e XIV ... 301 Giannina Burlando - Recepción suareciana de Aristóteles: per-

cepción, representación y verdad ... 323 Alain David - Penser l'époque avec Lévinas et Derrida... 349 Estudo

José Reis - O Tempo em Heidegger ... 369 Recensões ... 415

(2)
(3)

Gérard SONDAG, Duns Scot. La métaphysique de Ia singularité . Paris:

J. Vrin ( Bibliothèque des Philosophes) 2005, 238p.

Dadas as dificuldades ( de incompletude e de transmissão ) da sua obra e a subtileza do seu pensamento , está longe de ser fácil escrever uma monografia sobre o filósofo e teólogo João Duns Escoto ( 1265/66-1308 ). Apraz - nos, por isso, saudar o recente apare- cimento da obra em recensão , da autoria de G. Sondag, docente de Universidade Blaise- Pascal ( Clermont ), que, decerto também porque iniciou a sua actividade de «escotista»

sobretudo como tradutor , oferece ao leitor francófono uma síntese coerente e relativamente acessível de um dos maiores pensadores franciscanos de todos os tempos . Ao lado de páginas de uma espantosa acessibilidade , lemos discussões pormenorizadas e bem infor- madas que estão longe de ceder à facilidade . Esta quase impossível combinação , aliada a uma actualizadíssima informação bibliográfica, confirmam GS como um nome de referên- cia no universo escotista da francofonia . Sob o título complementar , « A metafísica da singularidade », GS optou por uma apresentação sistemática da obra escotista ( a opção comporta os seus riscos, evidentemente). Tendo por ponto de partida a questão epistemológica (p. 21-75), passa-se de seguida para o problema da possibilidade de uma metafísica ou filosofia primeira (p. 77-129), na base da edificação de uma teologia (p. 131- -164), a partir do qual se introduzem , por ordem , uma teoria do ser criado (« créable») (p. 165- -176), a psicologia (177-204) e a ética ou uma «teoria da vontade» (p. 205-221). É-nos proposto assim um Duns Escoto vocacionalmente metafísico , e isso dada a sua condição de teólogo cristão, evitando - se, em consequência , a bizarra e anacrónica leitura que faz do franciscano um metafísico estrito e profissional. Os riscos inerentes à linha de opção indicada não se explicam só (ou nem tanto) pelo ponto de partida crítico ( tal como referi- mos na nossa tese doutoral sobre Henrique de Gand, ele parece - nos inultrapassável); nem, muito menos , pela dependência da teologia em relação à metafísica , sem que esta não eli- mine aquela , mas lhe dê a possibilidade da sua edificação ; ou sequer (o que já não será tão óbvio ) por algumas das soluções preconizadas a atalhar as habituais dificuldades de inter- pretação do Doutor Subtil. Ponto mais frágil , encontrámo - lo nalgumas tónicas derivadas do critério mais correcto ou fiável para aferir da « actualidade » de Escoto em termos de progresso , segundo GS : uma ideia é nova sempre que depois da sua apresentação é impos- sível voltar atrás (vd. p. 223-4). Outro aspecto mais ou menos feliz da monografia diz respeito ao facto de Escoto aparecer inserido num diálogo tradicional e diacrónico. A quem conhece alguns dos nossos estudos, saltará , no entanto, à vista, que não podemos acom- panhar o autor, sem mais, na expressão « pensamento franciscano» (vd. v.g . A Síntese Frágil, p. 20, n . 5). É claro que enunciado assim nada apontaríamos em reserva àquele critério, mas, como se disse, o mesmo não podemos afirmar quanto à justificação de algumas

Revista Filosófica de Coimbra - n.'28 (2005) pp. 415-426

(4)

novidades, aparentemente irreversíveis. Sem que com isto queiramos deslustrar minima- mente esta excelente contribuição de GS, enumeremos uma ou outra reserva sobre as ideias filosóficas «progressivas» de Duns Escoto, tal como o A. as enumerou: o conceito unívoco de ser; a teoria das naturezas comuns; a doutrina da individualidade e das diferenças últi- mas; a doutrina teológica dos modos intrínsecos do ser; o conhecimento intelectual intui- tivo; a definição da liberdade pela sincronia dos possíveis. Sem dúvida que, para a metafísica, a doutrina da univocidade do ser tal como Escuto a enunciou representou uma aquisiçào incontoraável. Todavia, isto não significa, como alega GS, que ela seja una alternativa real à doutrina da analogia, designadamente na sua direcção teológica de imita- çào ou de similitude (caso de Hoaventura); o ponto crítico, para nos, não está em dizer que a analogia da similitude pressupõe sempre uni conceito unívoco (cela va de soí!).

Outrossim em precisar que não falamos da mesma univocidade nas duas situações (em Escoto ela é elevada à condição de teoria 1undante), o que, portanto, mina ainda mais o frágil critério da vantagem (sic!) que GS descortina cm tal teoria. Também não deixa de ser fraca a apresentação da teoria da analogia, como «enigmática», a partir de Aristóteles.

Independentemente do facto de as páginas que dedicou à teoria das naturezas comuns passarem a ser doravante obrigatórias, não conseguimos compreender como é que uma tal teoria pode representar uma «saída do platonismo». Igualmente a merecer ulterior discus- são, estamos em crer, estará a solução preconizada para uma desontologização do possível (i.e. retirar o ser do possível ao ser-possível, o que é possível não é real). Diversamente, já nos parece ter sido muito feliz a leitura da doutrina da constituição do indivíduo, bem contraposta às interpretações contemporâneas de teor 'individualista' e devidamente situ- ada em clave metafísica. Em conformidade, os indivíduos da mesma espécie não se distin- guem entre si radicalmente, a distinção radical situando-se antes nas diferenças individu- ais, as únicas que são efectivamente últimas, mas também determinantes e positivas: «os indivíduos humanos diferem 'per se' (i.e. não por acidente) mas não 'primo' (i.e. no prin- cípio - o que sucede só com as diferenças individuais que não chegam para formar uma espécie)». Sentimos o mesmo apreço pelo sublinhado conferido à desimplicação da liber- dade e da contingência, o que tem como efeito perceber o verdadeiro horizonte daquela mais no espaço da interioridade ou vontade humana. Para terminar, deixemos ao leitor interessado informação sobre a ainda recente publicação das Actas do Colóquio «Duns Scot à Paris, 1302-2002» (Turnhout: Textes et Etudes du Moyen Age, 26).

Mário Santiago de Carvalho

Alessandro D. Conti , Esistenza e Verità. Fonne e strutture del reale in Paolo Veneto e nel pensiero filosofico del tardo medioevo , Roma: Istituto Storico Italiano per il Medio Evo ( Nuovi Studi Storici, 33) 1996, 324pp.

Embora com algum atraso relativamente ao seu aparecimento - desde 1996 que A.C.

tem dado à estampa inúmeras publicações sobre Paulo de Veneza (1369-1429), entre as quais poderíamos citar o último trabalho de que temos conhecimento (« Paul of Venice's Theory of Divine Ideas and Its Sources » in Documenti e Studi sulla Tradizione Filosófica Medieva /e 14: 2003 ) - é entusiasticamente que acolhemos aqui a presente dissertação. Ela afigura - se-nos uma competente e exaustiva apresentação da metafísica de, talvez, um dos melhores lógicos medievais, decerto graças ao tirocínio de três anos que passou em Oxford, o qual lhe permitiu não só definir a crítica ao nominalismo como sobretudo haurir do

pp. 415-426 Revisa Filn.cri/ìha de Cuimhrn - n.° 28 (2005)

(5)

espírito realista oxoniense. Com efeito, a defesa de um isomorfismo linguagem e mundo, mas também a adopção da noção escotista da distinção formal, lida à luz da teoria da iden- tidade e da distinção de Wyclif, justificam o escrutínio de uma «original lógica das intensões de base essencialista» (p. 21) em Paulo de Veneza. Dada a importância nuclear da proble- mática essência/existência para o estabelecimento da metafísica de um qualquer pensador, insistamos em como, nessa teoria ou na revolução operada em torno da respectiva teoria da identidade, um papel relevante deve ser assacado a Henrique de Gand, cuja solução, depois de apurada por Duns Escoto, chegará modificada a Paulo de Veneza via Burleigh e Wyclif. Nessa foz há-de ler-se, então, o culminar de uma metafísica das essências de características neoplatónicas, que defende o primado do universal frente ao singular: «afirmar que a essência e a existência diferem apenas 'secundum rationem ' é uma forma diferente de afirmar que o universal e o singular identificam- se 'realiter ' e distinguem-se

`formaliter'...» (p. 177). Para o leitor menos informado, recordemos, ainda, que o Eremita aqui tratado foi um escritor fecundo, contando-se, entre as suas obras, ao menos os seguin- tes títulos (vd. p. 9-20): Logica parva (ou Sunmtulae), Antepraedicamenta, Logica magna, Quadratura seu quaituor dubia, Sophismata aurea, Sennoni, Quaestiones rxii de Messia adversos /udeos, Super 1 Sententiarunt Johannis de Ripa lecturae abbreviatio, Stunma philosophiae naturalis (ou Stunma naturalium). Em sete capítulos muito bem coordena- dos e exemplarmente redigidos, A.C. reconstrói uni sistema metafísico coerente apoiado nos seguintes pilares: «ente e categorias» (p. 33- 68), «potência e acto» (p. 69-88), « uni- versais e singulares» (p. 89-152), «a composição de essência e ser» (p. 153-178), «a substância singular e o princípio de individuação» (p. 179-209 ), «as formas acidentais»

(p. 211- 255) e «o 'complexe significabile'» (p. 257-293). O método adoptado em cada um destes capítulos é invariavelmente o mesmo, dele resultando quase sempre uma pequena monografia histórico-filosófica , muitas vezes apoiada numa versão breve do princípio do círculo hermenêutico: apresentação do problema, contextualização histórica, concepção do Veneto, proposta de interpretação da sua motivação profunda. Este trabalho nem sempre era fácil, haja em vista que, nalguns casos, Paulo de Veneza só tratou o tema de modo indirecto (um exemplo a reter, entre outros, será o de 'substância'). Apesar de tudo, no resultado final, A.C. pode, em rigor, propor-nos a sua tese, quer sobre o lugar do autor italiano na filosofia medieval - a saber: representante ilustre do realismo tardo-escotista na tentativa de preservar o «modelo 'forte' de razão» (p. 299), quer dizer, da que dá conta exaustiva da complexidade do mundo natural e da sua ordem a partir de procedimentos heurísticos de tipo rigidamente dedutivo - quer, sobretudo, sobre o «programa ontológico»

de Paulo de Veneza. Sobre este último, A.C. sublinha, como se disse já, a revisitação crítica do essencialismo intensionalista de Wyclif, à luz da tradição medieval e tomando em consideração tanto o pendor anti-nominalista do realismo mais contemporâneo quanto o trabalho de Gualter Burleigh (seja na questão ente/categorias, no tema dos universais, na composição essência e ser, etc.). Por todas estas razões, a obra pode ser também, aqui e ali, lida como uma monografia sobre o pensamento lógico-metafísico na viragem dos séculos XIV/XV, período (sobretudo o último) sobre o qual não abundam estudos aturados.

Como se viu pela referência bibliográfica acima, cabe sublinhar que A.C. continua a pri- vilegiar a abordagem dos diálogos do autor com os seus coevos, e, tal como já nesta sua dissertação, manuseando acertadamente fontes manuscritas várias e importantes . Uma afir- mação em particular dá bem conta do lugar que A.C. atribui, por fim, à «geografia filosó- fica» de Paulo de Veneza: um alegado sincretismo que, ao buscar uma difícil síntese de exigências , à primeira vista muito díspares, o coloca na linha das grandes escolas doutrinais de Duzentos , característica da grande parte da cultura universitária europeia dos primeiros decénios do século XV (p. 8). Com tamanha competência para a reconstrução do sistema metafísico do filósofo italiano medieval, o que faz desta obra de A.C. um trabalho de

Revista Filosófica de Coimbra - n.° 28 (2005) pp. 415-426

(6)

referência obrigatória , só nos resta aguardar anunciada monografia similar sobre a epistemologia e a filosofia natural de Paulo de Veneza , que deverão ser caracterizadas, talvez , como uma forma de «aristotelismo ecléctico ». Como temos repetido em tantas ocasiões, não nos interessa tanto a afinação desse `lugar ' a partir dos tradicionais -ismos da historiografia , quanto - essa sim - a afinação resultante exclusivamente do estudo dos textos do autor nos seus diálogos histórico - críticos. Mas em ambos A.C. manifesta a neces- sária prudência e competência.

Mário Santiago de Carvalho

Santiago Orrego Színchez, Li actualidad del ser ett la 'Primera Escuela de Salamanca'. Con lecciones inéditas de Vitoria, Solo v Cano. Pamplona:

Ediciones Universidad de Navarra S.A. (Colección de Pensamiento Me- dieval y Renacentista, 56) 2004, 513pp.

Inserida em prestigiada colecção da Universidade de Pamplona, a presente disserta- ção de doutoramento de um jovem e promissor autor chileno , assume uma importância enorme, quanto mais não seja pela publicação do Apêndice (p. 327-497) onde o leitor passa a ter acesso à edição e tradução de nove textos manuscritos, centrais na tese, os quais representam um substancial alargamento em relação à conhecida edição de L. Kennedy (1972). São eles: de Francisco de Vitória (1492?-1546), Commentaria in Primam Partem Divi Thomae (BUGranada, Cód. B-005), Commentaria in Tertiam Partem Divi Thomae (BAVaticana, Ms. Ottob. Lat. 1056), a versão de 1539 de novo dos Commentaria in Primam Partem Divi Thomae (BUPSalamanca, Ms 182 e BUBarcelona, Ms. 831); de Domingo de Soto (1495-1560), Scholia in Tertiam Partem Sancti Thomae (BAVaticana, Ms. Ottob. Lat. 782), Commentaria in Primam Partem Divi Thomae (idid. Ms. Ottob.

Lat. 1021 e 1042); e de Melchior Cano (1509-1560), Commentaria in Primam partem Divi Thomae (BAVaticana, Ms. Ottob. Lat. 286) e Adnotationes in Primam Partem Divi Thomae ( BUSalamanca , ms. 58 ). Estes três autores constituem a habitualmente designada

«primeira escola salmanticense » ( integram a « segunda», Bartolomeu de Medina e Domingo Banez, pensadores condicionados pelo Capítulo Geral de 1551 em Salamanca). Aquela é avaliada por Orrego Sánchez como um « tomismo aberto », i.e., «um `tomismo essencial' que procura distinguir, primeiro , a doutrina da fé, por um lado, da doutrina especifica- mente tomista, por outro lado; segundo , o fundamental do derivado ou secundário, nas teses do Aquinate; e terceiro, o próprio São Tomás da escola tomista» (p. 114). Podemos assim perseguir de perto o caminho que une a Paris do século XIII à Salamanca do século XVI, via que exige a menção de, pelo menos, Henrique de Gand, Egídio Romano, Duns Escoto, Capréolo, Ockham, Gregório de Rimini, Soncinas, o Ferrariense e sobretudo Caietano. Contudo, como não podia deixar de ser, o que interessa a OS é, primeiro, a determinação dos autores e dos temas gerais que permitem a identificação de uma

«metafísica salmantina » e, depois, compreender o seu conteúdo , que expõe sistematica- mente . No primeiro fito, encontramos , como aliás se percebe já pela lista dos temas tradu- zidos e editados em apêndice, o lugar privilegiado da Suma Teológica Ia (com relevo para q. 3, a.4) e III' (mormente q. 17, e seus temas cristológicos). Sobre esta metafísica que surge do próprio núcleo da teologia, acresce a informação de um percurso histórico-lite- rário, correcto e actualizado, por autores como, além dos já mencionados acima: Pedro de Sotomayor, Maneio de Corpus Christi, João de Guevara (como é sabido estes dois últi- mos contam-se entre os principais mestres de F. Suárez), Francisco Zumel, João Vicente

pp. 415 - 426 Revista Filosófica de Coimbra - n.' 28 (2005)

(7)

de Astorga, Diego Mas e Pedro de Ledesma, estes dois últimos considerados autores de tratados sistemáticos de metafísica (sobre este tópico vd. pp. 47, 57, 103). É claro que, não obstante a importância que OS confere à necessidade deste seu estudo para se com- preender o carácter de charneira que atribui às Metaphysicae disputationes de F. Suárez, a metodologia parece - nos por si só insuficiente , haja em vista a obra de Pedro da Fonse- ca, anterior à de Suárez e por este tida em consideração . Seja como for, compreendemos que a investigação de OS é mais regional e «escolar», cumprindo, deste ponto de vista, tudo aquilo a que se propôs. Salienta-se , por isso, a tese nuclear da obra (pp. 113-292), em que OS acompanha com acribia e indiscutível minúcia interpretativas o pensamento dos três autores que formam o objecto material da sua dissertação, a fim de descortinar os traços distintivos da ontologia salmanticense: a recusa da distinção real ('como uma coisa de outra ') no quadro da inseparabilidade e intimidade da essência e do ser no ente; a dis- tinção propriamente real da essência e do ser nas criaturas ; a inclusão extrínseca do ser no ente criado ; a negação do ser como ' parte ' do ente; por fim, a articulação de interioridade e exterioridade numa nova formulação da distinção real. Como está bem de ver , não é este o lugar para discutirmos pormenorizadamente a interpretação de pontos tão sensíveis, e mesmo subtis, numa proposta que visa ( e consegue ) sobretudo evidenciar a riqueza da primeira fase da metafísica que se fazia em Salamanca em torno do ensino de textos teo- lógicos capitais de São Tomás . A complexidade histórica deste problema é por demais evidente, e não sabemos se o A. foi capaz de a resolver de forma definitiva , haja em vista a clara pluralidade de perspectivas mesmo dentro de uma só escola. Todavia, unia coisa podemos asseverar , a sua competência para, outrossim , resolver, quiçá definitivamente, a complexidade literária do problema em causa, descoberta só possível , não tanto pelo seu ponto de partida teórico-hermenêutico ( os trabalhos de C. Fabro dos anos 50 e 60, a que se opõe com maior ou menor felicidade ), quanto pela nova perspectiva formal que nos deixou. Esta decorre directamente daquelas críticas que, como as de Fabro , tendiam a subestimar a produção em causa lançando-lhe a pecha do obscurecimento da noção tomasina de «esse» . Para terminar , lembremos tão-só, para suscitar o interesse para a leitura deste magnífico trabalho entre nós, como a escola de Salamanca sempre esteve ligada à escola de Coimbra , facto também testemunhado pelos manuscritos, alguns, que o A . mostra conhe- cer (mas talvez em segunda mão, via Kennedy ), e provenientes de Portugal. É o caso de BNL 3.023 e da Biblioteca da Ajuda 44-XII-20 (que o A. prova não serem atribuíveis a Vitória), além do Ms. 123-1-17 da Biblioteca Pública de Évora e, da autoria de Pedro de Ledesma, BNL 4 . 951. Estamos , no entanto , em condições de testemunhar , que OS acaba de alargar a sua pesquisa nas Bibliotecas lusitanas ( especialmente a da Universidade de Coimbra e a Pública de Évora ), encontrando - se agora em condições de contribuir ainda mais para o conhecimento dos laços que unem as duas «escolas » ibéricas.

Mário Santiago de Carvalho

Emmanuel Faye , Heidegger 1'introduction du nazisme dans la philosophie : autour des séminaires inédits de 1933-1935, Paris, Albin Michel, 2005, 567 pp.

O recente livro de Emmanuel Faye, Heidegger, l'introduction da nazisme dons Ia philosophie , inscreve - se na continuação de um conjunto de estudos elaborados e publicados com a intenção de - através de uma metodologia próxima de um jornalismo sensacionalista - desacreditar a personalidade e o pensamento de autores alemães que , sobretudo na década

Revista Filosófica de Coimbra - n.° 28 (2005) pp. 415-426

(8)

de 30 do século XX, por diferentes razões, tiveram relações de simpatia, ou de pelo menos não hostilidade manifesta, com o regime nacional - socialista . O método é simples e poderia ordenar - se em quatro fases principais . Em primeiro lugar, surge o anúncio de um escrito inédito ou esquecido , ingenuamente ignorado por incautos ou deliberadamente ocultado por apologetas , que trará clareza sobre as reais intenções do autor visado , assim como sobre o verdadeiro sentido de toda a sua obra . Para além do presente livro de Faye sobre Heidegger , na sua alusão aos "seminários inéditos de 1933 - 1935", o também recente livro de Yves-Charles Z arka sobre Carl Schmitt 1 (/n détail nazi duns la pensee de C'arl Schmitt, Paris, PUI , 2(1051 constitui o exemplo riais eloquente deste anúncio . l?m segundo lugar, procede-se a wna abordagem de alguns passos da obra do autor , relidos de uma forma catártica, em interpretações que são - lendo em conta a mera leitura da obra -- insustentá- veis, mas que são, a cada passo, apoiadas quer pela manifestação de um sentimento de indignação , quer pelo frequente uso de adjectivos como " odioso" , " monstruoso ", " peri- goso", "brutal", "nazi", atribuídos ao autor e à sua obra . Em terceiro lugar, é a própria biografia do autor que é considerada : em geral, nada de novo ou de desconhecido se acres- centa, mas a biografia deve ser agora reavaliada em função do escândalo provocado pela pretensa nova descoberta . Abre- se aqui o terreno para a especulação mais imaginativa.

Finalmente , em quarto lugar, retira - se a conclusão da análise , fundada quer na pretensa novidade da documentação apresentada , quer na releitura da obra à luz do escândalo sus- citado por esta mesma documentação : a obra de um tal autor não pode ser estudada como uma obra jurídica , ou literária, ou filosófica, mas deve ser considerada antes apenas como um testemunho documental do nazismo.

Consideremos então o livro de Faye segundo estas quatro fases , mas seguindo a ordem inversa à sua enumeração . Antes de mais , pode-se dizer que a conclusão que Faye retira da sua análise é absolutamente explícita, sendo repetida e relembrada em vários passos:

«O estudo aprofundado dos seus escritos revelou-nos progressivamente que, longe de marcar unicamente a linguagem , a realidade do nazismo com que fomos confrontados lendo Heidegger inspirou na sua integralidade e alimentou até às suas raízes a sua obra, de tal modo que já não é possível dissociá-la do seu envolvimento político» (p. 18). E esta con- clusão tem, na perspectiva de Faye , consequências . Por um lado, as investigações acerca do pretenso nazismo intrínseco à integralidade da obra conduzem Faye «a pôr em questão a própria existência de uma "filosofia " de Heidegger » (p. 444). Por outro lado, essas mesmas investigações convidam Faye a escandalizar - se pela presença das Obras Comple- tas de Heidegger ( Gesamtausgabe ) em bibliotecas de filosofia , na medida em que «não é outra coisa que uma conjura do espírito nazi aquilo de que os seus escritos preparam o advento » ( p. 455 ). Do mesmo modo que havia uma discussão , na Alemanha dos anos 30, acerca da catalogação de autores judeus nas bibliotecas , surgindo a sugestão da criação de uma secção intitulada "judaica ", dir-se - ia que Faye se prepara para sugerir a criação de uma secção intitulada "nazismo ", onde deveriam ser depositadas as obras de autores como Heidegger , Carl Schmitt , Erik Wolf , Oskar Becker ou Ernst Jünger.

A tese fundamental acerca do nazismo intrínseco a toda a obra de Heidegger, a qual está para o desenvolvimento do livro não propriamente como uma conclusão , mas como um pressuposto, conduz Faye a considerar a vida de Heidegger, particularmente o período do seu reitorado na Universidade de Freiburg ( sobretudo nos capítulos 2 e 3), fundamen- talmente a partir dos trabalhos de Hugo Ott . A adesão de Heidegger ao Partido Nazi (NSDAP ) e o episódio do reitorado , assim como o seu empenho em articular a chamada Machtergreifung nacional-socialista com a sua contraposição a uma "filosofia da subjectividade ", são referidos aqui como manifestações de um nazismo que perpassa pelos passos da vida e obra de Heidegger antes mesmo da nomeação de Hitler por Hindenburg, em Janeiro de 1933 . Contudo , a argumentação de Faye é , no que diz respeito à sustentação

pp. 415-426 Reri.s6, Filusrilica de Coimbra - nn." 2 (2005)

(9)

desta tese, extremamente frágil. É certo que Faye se afasta das especulações de Victor Farías, no seu conhecido livro Heidegger e o nazismo, acerca das pretensões de Heidegger de fazer dentro do Partido Nazi uma defesa das SA, cujo poder se desvanece em 1934 (p.

241). Contudo, se ele reconhece assim, honestamente, que não é possível encontrar qual- quer base documental para tais especulações, este reconhecimento apenas dá lugar a novas especulações com idêntica falta de sustentação. É assim que, por exemplo, Faye sugere - conjugando os factos de Heidegger ter tido o Semestre de Inverno de 1932-1933 como semestre livre, assim como de escrever a Elisabeth Blochmann dizendo ter nesse período

«importantes actividades universitárias entre outras» (p. 98) ou de escrever a Bultmann, em 1932, no período de maior crise e instabilidade na República de Weimar, afirmando ter preocupações políticas (pp. 245-246) - que Heidegger pode ter aproveitado o tempo livre para se aproximar do movimento nazi e do próprio Hitler, escrevendo alguns dos seus discursos. Não é aqui apresentado qualquer documento que sustente uma tal hipótese, a não ser a semelhança de terminologia que é sobretudo epocalmente determinada, mas a confirmação de uma tal sugestão é apresentada por Faye como um trabalho «que seria indispensável realizar um dia» (p. 244).

O tratamento por Faye da obra de Heidegger é, do mesmo modo que os aspectos da sua biografia, guiado fundamentalmente pela tentativa de desmascarar o seu pretenso —nazis- mo" enraizado e escondido. No fundo, uma tal tentativa baseia-se apenas no estabeleci- mento de uma associação directa entre a recusa por Heidegger de partir do ente humano como sujeito e consciência, tal como aparece no seu distanciamento em relação à fenomenologia de Husserl e na sua determinação do Dasein como ser-no-mundo, por uni lado, e a defesa de uma redução do homem a mera expressão individual de uma comuni- dade que o subordina e violenta, por outro. Para Faye, a recusa por Heidegger de encarar a essência do homem como sujeito não poderia deixar de implicar uma absolutização da comunidade, resultando daí necessariamente urna perspectiva racista e viilkisch sobre o homem. É assim que, na sua abordagem de Sein und Zeit, o §74 é encarado como o centro da própria obra, na medida em que o estar-lançado (Geworfenheit) do Dasein, enquanto ser-com (Mitsein), ganha aqui a forma de uma comunidade na qual é partilhado um des- tino comum (Geschick): para Faye, esta alusão por Heidegger à comunidade significa, ao mesmo tempo, «a vontade de destruir o pensar do eu» e a defesa da «indivisibilidade orgânica da Gemeinschaft do povo» (p. 32). Na verdade, uma abordagem de Sein und Zeit que não seja toldada por pressupostos previamente assumidos permite inviabilizar a interpretação de Faye: ao longo de toda a sua obra, Heidegger afirma explícita e repetida- mente que o Dasein não é nem o homem enquanto sujeito individual, nem uma comunidade enquanto ente humano colectivo, mas o próprio ser que - na sua irredutível diferença em relação ao ente - acontece no "aí" de uma história.

A confrontação de Heidegger com o biologismo, que traz implícita uma confrontação com o racismo nacional-socialista, expressa justamente esta recusa de Heidegger em fazer um ente - seja o sujeito humano individual, seja uma qualquer comunidade de homens - ocupar o lugar do ser. Ao pressupor que a recusa por Heidegger da representação do homem como sujeito implicaria uma configuração da comunidade como todo orgânico unido pelo

"solo" e pelo "sangue", e a consequente elevação desta comunidade ao estatuto de "valor supremo", Faye não pode deixar de afirmar que a confrontação de Heidegger com o biologismo não significa, no essencial, uma confrontação crítica com o nazismo: a con- frontação de Heidegger com o biologismo teria apenas o significado de uma confrontação com uma compreensão liberal e darwiniana da vida, vigente numa esfera anglo-saxónica, e não de uma crítica ao racismo e a uma perspectiva võlkisch da comunidade (pp. 161 e ss.). A ânsia de provar uma tal tese - desmentida pela simples leitura da obra de Heidegger - conduz Faye a atribuir a algumas passagens desta mesma obra um sentido exactamente

Revista Filosófica de Coimbra - n.° 28 (2005 ) pp. 415-426

(10)

contrário àquele que elas possuem . Veja-se , por exemplo , o comentário de Faye à seguinte passagem dos textos de Heidegger sobre Ernst Jünger, publicados em 2004 no volume 90 das Gesamtausgabe : « O homem não é menos sujeito , mas é- o mais essencialmente , quando se concebe como nação , como povo , como raça , como unia humanidade posta de qualquer modo sobre si mesma ». Diante de uma tal passagem , onde se toma clara a crítica de Heidegger à proposta võlkisch de estabelecer o povo ou a raça como ente supremo e centro desse mesmo ente, a Faye apenas se lhe oferece observar : « Na enumeração dessa frase , a raça é apresen- tada como unia maneira perfeitamente legítima de conceber o homem» (p. 475).

li na sua insistência em encontrarem Heidegger a defesa de um pensamento vólkisch e de uni racismo biologista ( de uma "biologia alemã" e não de unia "biologia darwiniana e anglo-saxónica ) que a argumentação de Fayc se revela mais frágil. E esta fragilidade resulta de dois pontos fundamentais . Por um lado, é sabido que os principais dirigentes nazis concebem o nazismo como uma doutrina biológica, chegando Rudolf Hess a caracterizá - lo como "biologia aplicada' : assim, se ele surge como uma "biologia" destinada a proteger a estrutura orgânica da comunidade de povo, um pensamento que conteste à comunidade - como a qualquer ente individual e colectivo - o estatuto de "senhor do ente ", criticando neste contexto o "biologismo ", não pode deixar de aparecer como imedia- tamente crítico daquilo a que se poderia chamar a °biopolitica " nacional-socialista. Que Heidegger tenha esperado entusiasticamente do nacional - socialismo, nos seus momentos iniciais, uma ultrapassagem da "metafísica liberal", em que é o homem individual e não a comunidade que aparece como " senhor do ente", em nada diminui a importância do seu confronto com o racismo biologista e o pensamento vôlkisch desse mesmo nacional - socia- lismo, confronto esse pelo qual ele critica explicitamente o pensamento vdlkisch por par- ticipar da mesma essência que o pensamento liberal . Por outro lado, nas lições entre os anos de 1933 e 1935, que Faye analisa no seu livro ( capítulo 4 ), juntamente com passa- gens que tornam patente as suas esperanças em relação ao movimento nacional - socialista, assim como a importância dada à política concebida como acção edificadora de um Estado, em articulação com o poetar e o pensar (p. 174), é possível encontrar passagens em que a confrontação de Heidegger com o biologismo nazi emerge já de forma clara . Considere- se, por exemplo , a crítica que Heidegger dirige a Erwin Guido Kolbenheyer a 30 de Janeiro de 1934, exactamente um ano após a nomeação de Hitler por Hindenburg (cf.

Gesamtausgabe , vols. 36 / 37, p. 210 ); ou a retoma das críticas a Kolbenheyer nas lições do Semestre de Inverno de 1934 - 35, às quais se juntam então críticas a Spengler e mesmo a Alfred Rosenberg (cf. Gesamtausgabe, vol. 39, pp. 26-28). A fragilidade da argumen- tação de Faye , na sua proposta infundada de que a crítica de Heidegger ao biologismo não traduz uma crítica ao racismo võlkisch e à "biopolitica " nacional-socialista , traduz-se sobre- tudo no facto de o livro nem sequer mencionar passagens centrais como estas.

Em vez de partir daquilo que Heidegger efectivamente diz sobre o nacional - socialismo e o biologismo , a análise de Faye centra - se sobretudo na terminologia usada : para Faye, a linguagem e terminologia usadas por Heidegger , ao usar termos como Stamm , Gestalt, Art, Geschlecht -segundo Faye, com base não se sabe em que fontes, Heidegger preferi- ria Geschlecht a Rasse por causa da origem latina desta última ( p. 162) -, são já manifes- tações óbvias do seu racismo e da sua "visão do mundo " nazi . Neste domínio , é importante observar que o vocabulário político do nacional-socialismo cunhou termos - como Volksgenosse ou Volksgemeinschaft , por exemplo - que se tornaram correntes na lingua- gem alemã da época . Contudo, importa notar também que muitos termos políticos presentes no contexto do aparecimento do Estado nacional - socialista são termos comuns - o próprio termo Führer é corrente na República de Weimar e significa simplesmente " líder" - e que, consequentemente , a sua utilização diz pouco acerca do pensamento do autor que os usa.

No desenvolvimento da sua análise , a concentração de Faye sobre alguma terminologia

pp. 415-426 Revista Fitos I ra de Coimbra - n.° 28 (2005)

(11)

usada pelo Heidegger dos anos 30 leva-o a estabelecer associações inteiramente arbitrári- as e sem qualquer sentido . O melhor exemplo deste tipo de associações encontra-se numa reflexão de Faye acerca da palavra "guardião" (Hüter), usada por Heidegger tanto no seu discurso do reitorado como em seminários e cursos . O emprego de um tal termo conduz Faye à seguinte observação : «" Guardião" ( Hüter) é uma palavra que então se encontra empregue num contexto racial ou político : o raciólogo nazi Hans K. Günther publica assim, em 1928, uma apologia do eugenismo racial sob o título Platão como guardião da vida (Platon als Hüter des Lebens), e Carl Schmitt, em 1929, O guardião da constituição (Der Hüter der Verfassung), com uma edição aumentada em 1931 , onde descreve pela primeira vez a "viragem para o Estado total" (Wendung zum totalen Staat)» (pp. 202- 203). Faye joga aqui manifestamente com o desconhecimento pelos seus leitores das obras por si mencionadas , pois a simples leitura de tais obras conduzi-los - ia obviamente à con- clusão de que elas não têm qualquer relação nem entre si, nem com a obra de Heidegger.

No caso de Carl Schmitt, a alusão ao "guardião da constituição' consiste na proposta de compreender o art. 48° da Constituição como uma atribuição ao Presidente do Reich da tarefa de usar quaisquer medidas excepcionais para restabelecer a ordem e a segurança no Estado, e para defender a própria Constituição: em 1932, Schmitt identificará explicita- mente a proibição das milícias paramilitares nazis pelo Presidente Hindenburg e pelo governo de Brüning, a 13 de Abril de 1932 (cf. Legalitãt und Legitimitãt, Berlim, Duncker &

Humblot, 1993, p. 68), como uni exemplo do exercício pelo Presidente do seu papel de

"guardião da constituição". Além disso, em Der Hüter der Verfassung, o conceito de

"Estado total" aparece certamente pela primeira vez; contudo , ele surge associado não a uma defesa do nazismo ou de um Estado étnico racialmente homogéneo , mas à crítica de um "Estado total de partidos", ou seja, à crítica de uma situação política na qual o Estado, não tendo autoridade suficiente para se distinguir da sociedade, era ocupado por organiza- ções e movimentos sociais que, como era o caso do Partido Nazi ou do Partido Comunista, procuravam politizar a totalidade da vida social. Aliás, se fosse necessário provar o absurdo de partir do termo Hüter para associar as obras de Schmitt e de Heidegger a um "contexto racial", poder-se-ia também evocar a resposta de Hans Kelsen ao livro de Carl Schmitt:

seria estranho que Kelsen , um autor judeu e liberal, tivesse empregue justamente um tal termo, pretensamente marcado por um "contexto racial ", para publicar, na sua polémica com Schmitt, o texto Wer soll der Hiiter der Verfassung sein?. Tais associações terminológicas têm tanto sentido como meditar sobre a eventualidade de a palavra alemã para "carta de condução" (Führerschein) conter em si, de forma oculta, uma evocação do Führerprinzip.

Nos capítulos 5 e 8, Faye procede à análise dos dois seminários inéditos de Heidegger que dão motivo ao subtítulo do livro: respectivamente , o seminário do Semestre de Inverno de 1933-34, intitulado Ober Wesen und Begriff vou Natur, Geschichte und Staat [Sobre a essência e o conceito de natureza , história e Estado], e o seminário do Semestre de Inverno de 1934-35, intitulado Hegel, über deu Staat [ Hegel , sobre o Estado]. Os excertos citados por Faye permitem inferir que não se trata de textos irrelevantes para a consideração da obra de Heidegger . Eles manifestam , por um lado , o empenho de Heidegger - já ampla- mente documentado por estudos biográficos - na construção do Estado nacional-socialista, e a sua esperança na adopção de uma alternativa política à vida pública (Offentlichkeit) de uma sociedade liberal e "inautêntica ". Mas, por outro lado, tais excertos contribuem sobretu- do para compreender o modo como Heidegger pensa o Estado nacional - socialista a que adere em 1933. E é nesta compreensão que Faye parece não estar minimamente interessado, na medida em que aparece exclusivamente movido pela tentativa de provar, independente- mente do que de facto digam os textos, a tese "inquestionável " do pretenso racismo e anti- semitismo de Heidegger.

Revista Filosófica de Coimbra - n.° 28 (2005) pp. 415-426

(12)

Os presentes seminários têm lugar num contexto em que, dentro do Estado nacional-so- cialista, existe uma polémica acerca da relação entre o Estado e o povo, assim como acerca do papel de Hegel enquanto pensador do Estado. Uma posição vdlkisch , vinculada a uma 'orto- doxia' nacional-socialista, concebia o Estado como um mero aparelho instrumental do povo, e o povo como um sujeito idêntico a si mesmo, como uma substância política orgânica, étnica e racialmente homogénea . Uma segunda posição, partindo de Hegel , procurava garantir a institucionalidade e transcendência do Estado em relação ao povo, opondo- se, mais ou menos explicitamente, à colocação do povo como uni sujeito absoluto. Nesta polémica, a posição de ('ara Schniiit poderia ser ciuacierizada conto unia tentativa de introduzir uni meio-termo que nacional-socialista: assim, compatibilizasse a instilucionalidade do Estado com a "ortodoxia"

em Sitiai, &'iie,qun,ç, biilk, ao mesmo tempo que é negado ao povo o estatuto de sujeito polí- tico, sendo assim rejeitada qualquer posição iYilkiSCh diante da crítica de nazis "ortodoxos"

coro Otto Koellrcutter ou mesmo Alfred Rosenherg, Schmitt não alude já ao "Estado total", mas introduz uni terceiro elo - o movimento - como elemento que, extrínseco ao Estado, deveria articular este mesmo Estado com o povo. No contexto de uma tal polémica, os semi- nários comentados por Faye mostram que Heidegger assume uma posição sobre o Estado próxima da de Erik Wolf ou Emst Forsthoff, caracterizada quer pelo apoio à construção de um

"Estado total" que fosse o contrário do "Estado total de partidos" do liberalismo, quer pela rejeição de uma concepção vülkisch e racista do Estado, na qual este não fosse senão, como dizia Alfred Rosenberg, um mero instrumento ao serviço da vida do povo.

Na sua ânsia de apresentar provas documentais acerca do pretenso racismo e anti- semitismo de Heidegger, Faye descura completamente o tratamento teórico dos seminári- os. É por isso que, em vez de procurar distinguir e caracterizar as posições próprias de autores como Alfred Rosenberg, Alfred Baeumler, Carl Schmitt ou Erik Wolf, mostrando as suas aproximações mas também as suas diferenças irreconciliáveis , e tentando articular com estas os seminários heideggerianos , Faye se contenta com caracterizar tais autores como pura e simplesmente " nazis", procurando depois mostrar como Heidegger se encon- traria próximo desse todo pretensamente homogéneo . É assim que decide juntar , como um todo homogéneo, Heidegger, Carl Schmitt e Alfred Baeumler (capítulo 6); ou, também como um todo homogéneo, Heidegger, Erik Wolf, Carl Schmitt e Alfred Rosenberg (capí- tulo 7), partindo aqui até do princípio de que seria possível a um jurista como Wolf ser "dis- cípulo", ao mesmo tempo, de autores tão antagónicos como Rosenberg e Schmitt (p. 299).

Deste modo , no seu livro , Faye identifica algumas passagens importantes dos seminários de Heidegger, mas, preocupando-se apenas por manifestar o seu escândalo com as formulações encontradas, falha inteiramente na compreensão do seu significado e relevância.

A falta de compreensão dos textos que analisa mostra-se, antes de mais, no que diz respeito ao primeiro seminário tratado, na sua abordagem do paralelo estabelecido por Heidegger entre a relação ser-ente e a relação Estado-povo. No contexto da polémica que referimos, a alusão ao povo como um ente que deveria ser entendido apenas como ente e que, nessa medida, não poderia ser posto no lugar do ser, e a crítica manifesta à proposta de autores que, como Rosenberg, viam no Estado apenas um instrumento ao serviço da absolutização do povo, consiste manifestamente numa rejeição da proposta vdlkisch de pensar um povo étnica e racialmente homogéneo como um "valor" absoluto . Contudo, em vez de dedicar atenção ao sentido que o paralelo traçado por Heidegger assume, quer como mani- festação de uma concepção autoritária e anti - liberal do Estado na sua relação com o povo, quer como manifestação de uma crítica a uma concepção vdlkisch do povo na sua relação com o Estado, Faye apenas se preocupa por exprimir um sentimento de escândalo por uma passagem que se lhe torna , nessa medida , incompreensível (p. 217).

No que diz respeito à análise do segundo seminário, a incompreensão de Faye torna- -se ainda mais patente. A frase escolhida como epígrafe do capítulo 8, a qual contém,

pp. 415 - 426 Revista F ' iln.rri^rru de (' nimhra - n." 25 (201)5)

(13)

como correctamente assinala Faye (p. 377), uma crítica a uma passagem de Staot, Bewegung, Volk de Carl Schmitt, dá já uma indicação suficiente da posição de Heidegger no seio da contenda entre uma concepção vülkisch e uma concepção "hegeliana" do Estado:

«Diz-se que em 1933 Hegel morreu; pelo contrário, foi só então que ele começou a viver»

(p. 333). As passagens do seminário citadas por Faye demostram exaustivamente a preo- cupação de Heidegger em assinalar a necessidade de garantir, dentro do Estado nacional- socialista, a racionalidade e a institucionalidade do Estado, distinguindo-o quer da sua con- cepção como mero instrumento da homogeneidade de um povo absolutizado por uma "visão do mundo" vólkisch, quer da sua concepção como assente exclusivamente no princípio do carisma pessoal do Führer. É obviamente neste sentido que se podem compreender pas- sagens do seminário como as seguintes: «Esquece-se que o Estado deve existir para além de cinquenta ou cem anos. Mas então ele tem de ter algo a partir do qual exista. Ele só pode existir pelo espírito. O espírito, no entanto, é transportado por homens. Mas os homens têm de ser educados» (pp. 343-344); «Dentro de sessenta anos, o nosso Estado certamente já não será levado pelo Führer, e o que então acontecerá depende de nós» (p. 346). Con- tudo, apesar do sentido manifesto de tais passagens, e do interesse que elas relevam para o esclarecimento da relação do pensamento de Heidegger com o nacional-socialismo, Faye extrai delas apenas a seguinte conclusão: «Vê-se que o objectivo afirmado desse seminário [sobre Hegel] é o mesmo que o de 1933-1934: a perenidade do Estado instituído pelo III Reich» (p. 344). Com a pobreza e distorção da conclusão mostra-se, com suficiente evidên- cia, toda a pobreza e unilateralidade da análise.

De um modo geral, o estudo de Faye vale sobretudo pela sua preocupação por unia reconstituição do ambiente intelectual em que Heidegger se movia nos anos 30, assim como de algumas das suas relações, reconstituição essa que, na sequência dos estudos de Vitor Farías e de Hugo Ott, é útil para a compreensão do seu pensamento e do contexto em que este se integra. Neste sentido, a investigação acerca das relações de amizade entre Heidegger e pensadores de algum modo ligados ao nacional-socialismo, assim como acer- ca das suas polémicas explícitas ou implícitas com outros, constitui uni contributo impor- tante para o estudo da filosofia heideggeriana. Inaceitável é, no entanto, o pachos em que Faye coloca o seu estudo, assim como a utilização de toda a investigação, através das interpretações mais descabidas e unilaterais, como mero reforço de um sentimento de es- cândalo. E mais inaceitável ainda a conclusão que, adivinhando-se em cada página, Faye torna explícita no final do livro: «Uma tal obra [de Heideggerj não pode continuar a figu- rar nas bibliotecas de filosofia: ela tem antes o seu lugar nos fundos de história do nazis- mo e do hitlerismo» (p. 513). Com uma tal conclusão, a qual constitui, ao mesmo tempo, o ponto de partida e o ponto de chegada do seu discurso, Faye transforma aquilo que poderia ser um estudo sério sobre a relação entre a filosofia e a política na obra de Heidegger numa proposta de saneamento absurda e persecutória.

Alexandre Franco de SÓ

Revista Filosófica de Coimbra - ri." 28 (2005) pp. 415-426

(14)
(15)

Artigos

Alain David - Penser I'époque avec Lévinas et Derrida ... 349 Alexandre Costa - Zenão de Eleia e o exercício aa filosofia atra-

vés do paradoxo: um ensaio acerca da intenção filosófica da dialéctica zenónica ... ... ... 255 Amândio Coxito - Luís A.Vernei e Claude Buffier: dois filóso-

fos do senso comum ... 3 Andrzej Wiercinski - Poetry between concealment and unconceal-

ment ... 173 Carlos Morujão - A Logica Modernorum: Lógica e Filosofia da

Linguagem na Escolástica dos Séculos XIII e XIV ... 301 Diogo Ferrer - Filosofia Transcendental e Universidade. O Plano

Dedutivo para um Instituto de Ensino Superior a Estabelecer em Berlim de Fichte ... 275 Diogo Ferrer - Hegel e as Patologias da Ideia ... 131 Giannina Burlando - Recepción suareciana de Aristóteles: per-

cepción, representación v verdad ... 323 Henrique Jales Ribeiro - Russell, Wittgenstein e a ideia de uma

"linguagem logicamente perfeita " ... 81 Mário Santiago de Carvalho - Metamorfoses da ética peripatéti-

ca Estudo de um caso quinhentista conimbricense: As Disputas sobre os livros da `Ética a Nicómaco' ... 239 Mário Santiago de Carvalho - Sobre as origens dos paradigmas

modernos do universalismo e do individualismo (a propósito de `cidadania' e `cultura') ... 43 Moisés de Lemos Martins - Espaço público e vida privada ... 157 Estudo

José Reis - O Tempo em Heidegger ... 369 Recensões ... 227, 415

(16)
(17)

Publicação semestral do Instituto de estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Director: Diogo Ferrer

Coordenação Redactorial: António Manuel Martins e Luísa Portocarrero F. Silva Conselho de Redacção: Alexandre F. O. Morujão, Alexandre F. de Sá, Alfredo Reis, Amândio A. Coxito, Anselmo Borges, António Manuel Martins, António Pedro Pita, Carlos Pitta das Neves, Diogo Falcão Ferrer, Edmundo Balsemão Pires, Fernanda Bernardo, Francisco Vieira Jordão, Henrique Jales Ribeiro, João Ascenso André, Joaquim das Neves Vicente, José Encarnação Reis, José M. Cruz Pontes, Luís A. F. C. Umbelino, Luísa Portocarrero F. Silva, Mariana Ramos Themundo, Mário Santiago de Carvalho, Miguel Baptista Pereira.

Capa: Ana Rosa Assunção

As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos Autores Toda a colaboração é solicitada

Distribuição e assinaturas:

Fundação Eng. António de Almeida Rua Tenente Valadim, 331

P-4 100 Porto

Tel. 226067418; Fax 226004314 Redacção:

Revista Filosófica de Coimbra Instituto de Estudos Filosóficos Faculdade de Letras

P-3000-447 Coimbra

Tel. 239859900; Fax 239836733 E-Mail: rfc@cygnus.ci.uc.pt Preço ( IVA incluído):

Assinatura anual : 19,95 • (Portugal) • 27,43 • (Estrangeiro) Número avulso: 10,97 • (Portugal) • 14,96 • (Estrangeiro)

REVISTA PATROCINADA PELA FUNDAÇÃO ENG. ANTÓNIO DE ALMEIDA

(18)
(19)

da

TIPOGRAFIA LOUSANENSE, LDA.

Depósito legal n .° 51135/92

Referências

Documentos relacionados

Este desafio nos exige uma nova postura frente às questões ambientais, significa tomar o meio ambiente como problema pedagógico, como práxis unificadora que favoreça

Portanto, mesmo percebendo a presença da música em diferentes situações no ambiente de educação infantil, percebe-se que as atividades relacionadas ao fazer musical ainda são

Excluindo as operações de Santos, os demais terminais da Ultracargo apresentaram EBITDA de R$ 15 milhões, redução de 30% e 40% em relação ao 4T14 e ao 3T15,

Fita 1 Lado A - O entrevistado faz um resumo sobre o histórico da relação entre sua família e a região na qual está localizada a Fazenda Santo Inácio; diz que a Fazenda

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam

Verificar a efetividade da técnica do clareamento dentário caseiro com peróxido de carbamida a 10% através da avaliação da alteração da cor determinada pela comparação com

libras ou pedagogia com especialização e proficiência em libras 40h 3 Imediato 0821FLET03 FLET Curso de Letras - Língua e Literatura Portuguesa. Estudos literários

• Capacitação e Transferência da metodologia do Sistema ISOR ® para atividades de Coaching e/ou Mentoring utilizando o método das 8 sessões;.. • Capacitação e Transferência