MILAGRES JUDAICO-CRISTÃOS ROMPENDO AS LEIS DA FÍSICA
Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
Ao longo da extraordinária construção da linguagem-cultura judaica que admitiu o milagre, ligado ao dom, pressupôs a possibilidade da fuga do conhecido, do natural, do esperado.
Essa ruptura é o motivo da aclamação e do júbilo!
A estrutura da fé na liturgia judaica não é o simples milagre, mas sim a criação como a existência concreta e a estrutura da moral e da ética.
De modo geral, o mundo visível, mensurável, marcando a experiência empírica, e o invisível, contido no espaço ficcional, onde o milagre é identificado, estão presentes na teologia dogmática. O primeiro, o mensurável, marcado à obediência das quatro forças fundamentais da natureza (gravitacional, eletromagnética, pequena-força, grande-força);
o segundo, não mensurável, acima de todas as leis da natureza, por essa razão, milagre.
No Antigo Testamento, Deus Iahweh, estabeleceu o ritmo das estações, dos dias e das noites, para orientar a semeadura, criou e determinou o curso eterno dos astros, a dimensão e o íntimo de todas as coisas, as leis do céu e o poder da descendência. Entretanto, os frutos do saber só seriam concedidos junto à obediência.
A herança do judaísmo observa duas tendências na leitura dos milagres. A primeira admite a Bíblia cheia deles, devendo constituir fonte de reflexão à pequenez do homem. A segunda está relacionada com as interpretações místicas, contidas no Zohar (Livro dos Esplendores, escrito em torno do século XII, na Espanha). Nesta última, os rabinos não aceitaram a
necessidade do sinal, porque existe harmonia absoluta entre o Criador e a sua obra.
Os primeiros padres da cristandade fizeram outra fantástica reconstrução teórica dos sinais do AT. Os milagres de Cristo, em particular os das curas, descritos pelos quatro evangelistas, assumiram grande importância na apologética da nova religião.
Séculos depois, o tomismo entendeu a importância do milagre, na fé, como fato extraordinário produzido por Deus. Os anjos bons e os santos poderiam ser agentes na promoção dos acontecimentos situados à margem das leis naturais. Por outro lado, distinguiu o milagre do prodígio. Este último, simples simulacro, não era fruto do poder divino. Fundando o juízo de valor, Thomás de Aquino dividiu os milagres em absolutos ou de primeira ordem e relativos ou de segunda ordem. Só reconheceu os primeiros como verdadeiros porque superaram em si mesmos todas as idéias da natureza criada. Só Deus poderia assumir a autoria. Os relativos seriam determinados mediante as forças do universo sensível, ligadas à antidivindade.
O milagre apologético, sempre de primeira ordem, é aquele que serve de louvor. Deve ser perceptível e confirmar a origem divina da revelação. Tem particular interesse o aspecto físico, porque é observável nos corpos. Logo, a cura de uma doença, considerada fatal e irreversível, pode ser entendida como milagre, um sinal de Deus.
A abordagem tomista foi duramente criticada por diversos filósofos. Voltaire, no Dicionário Filosófico, tomou a argumentação dos físicos para contestar. Afirmava ser falso pensar no milagre como transgressão das leis matemáticas, criadas pela divindade, porque são coerentes e imutáveis.
Espinoza também recusou a veracidade do milagre. Apoiado na premissa de que era impossível a intervenção extraordinária para mudar o curso da criação transcendente, reafirmou o
engano da prática milagrosa.
CURADOR DIVINO E A SERPENTE:
A LUTA MÁGICA PELA VIDA
Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
O mais importante curador divino, na Grécia antiga, foi Asclépio, filho de Apolo, considerado, durante vários séculos, o deus da Medicina. Os doentes que recuperavam a saúde nos templos desse deus grego tornaram públicos os agradecimentos por meio de esculturas especificando o nome do doente e a cura milagrosa obtida. Existem duas particularmente bem documentadas: o caso da cegueira de Phalysios e a das varizes de outro paciente anônimo.
Muitos afrescos, retratando Asclépio, contêm a serpente enrolada no bastão. A associação da cobra à medicina já estava presente na sociedade babilônica, mil anos antes da pólis grega. Na Babilônia de Hammurabi, o deus da cura Ningishzida, da região de Lagash, era representado por duas serpentes enroladas numa vara de madeira.
A imagem de Asclépio, ligada ao réptil, dava força aos desprotegidos. Curadores e enfermos veneravam-no, nas cidades gregas. Milhares de peregrinos doentes e deserdados marchavam em procissões, para suplicar nos altares as graças da saúde e da fartura.
É possível estabelecer duas imagens simbólicas, ligando a serpente ao ensejo de recusar a morte. A primeira, ao fato de poder viver acima e abaixo da terra, mediando dois mundos
diferentes, em estreito vínculo com a localização subterrânea do mundo invisível. A outra, mais importante, está fincada na crença do renascer, por meio da renovação periódica da pele.
Na Babilônia, a epopéia de Gilgamesh, relacionada com os grandes feitos desse rei, em torno dos anos 2750 a.C, o herói, cansado depois de inúmeras peripécias na busca da planta que proporcionaria a vida eterna, ao acordar, na beira do rio, vê o vegetal ser comido pela serpente, e, impotente, resta-lhe a d m i r a r o r e n a s c e r d o b i c h o e o c o n v e n c i m e n t o d a inevitabilidade da morte.
Na Índia antiga, no Rig Veda (I 79,1), escrito entre 1700 e 1100 a.C., os Adityas são descritos como descendentes da serpente porque, ao perderem a pele velha, eles venceram a morte e adquiriram a imortalidade. Esse extraordinário texto, é conhecido como Livro dos Hinos, é o documento mais antigo da literatura hindu.
Esse extraordinário elo entre os curadores com a serpente é uma das heranças metafóricas arcaicas mais interessantes empurrando a luta atávica contra os limites da vida. O poder do curador, representado pela serpente, é o símbolo vivo desse enfrentamento, para modificar o determinismo irremovível da morte.
Asclépio conquistou a fama inimaginável; possuía a delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirurgião.
Todos os doentes que não obtinham cura em outros oráculos procuravam os serviços desse deus curador. Muito mais cirurgião, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Na famosa trilha de curas extraordinárias, ressuscitou alguns mortos e por essa razão foi fulminado por Zeus com os raios dos Ciclopes. Zeus matou Asclépio porque temia que a ordem natural fosse mudada.
Asclépio, sempre ligado à serpente, se tornou o maior dos curadores do panteão grego; era celebrado em grandes festas
públicas, no dia 18 de outubro.
Após a conquista da Grécia pelas legiões romanas, foi mantida a narrativa teogônica entre curadores divinos e a serpente: rebatizaram Asclépio de Esculápio.
Após a cristianização do império romano, o dia 18 de outubro, ligado aos curadores divinos greco-romanos, renasceu associado ao nascimento Lucas, o apóstolo medico Lucas, e se manteve até hoje como o Dia do Médico.