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A dimensão formadora da viagem no romance Memorial de Maria Moura

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA E LITERATURA BRASILEIRA

ELISÂNGELA SANTOS PETRUCCI PEÇANHA

A DIMENSÃO FORMADORA DA VIAGEM NO ROMANCE MEMORIAL DE MARIA MOURA

NITERÓI 2020

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ELISÂNGELA SANTOS PETRUCCI PEÇANHA

A DIMENSÃO FORMADORA DA VIAGEM NO ROMANCE MEMORIAL DE MARIA MOURA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense como requisito para obtenção do título de Mestre.

Área de concentração: Literatura, Teoria Literária e Crítica Literária

Orientador: Profª. Drª. Maria Elizabeth Chaves de Mello

NITERÓI 2020

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ELISÂNGELA SANTOS PETRUCCI PEÇANHA

A DIMENSÃO FORMADORA DA VIAGEM NO ROMANCE MEMORIAL DE MARIA MOURA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Literatura da Universidade Federal Fluminense, como requisito para obtenção do título de Mestre.

Banca Examinadora:

_________________________________________________ Professora Drª. Maria Elizabeth Chaves de Mello (Orientadora-UFF)

_________________________________________________ Professora Drª. Marlene Gomes Mendes (UFF)

_________________________________________________ Professora Drª. Stela Maria Sardinha Chagas de Moraes (UERJ)

NITERÓI 2020

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Dedico este trabalho a meus pais, Onilton Pereira dos Santos e Eliana da Silva Santos, agradecendo pelas orações, pela torcida, pelo carinho e pela compreensão.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por me permitir chegar até aqui.

Agradeço à minha orientadora, Professora Drª Maria Elizabeth Chaves de Mello que, com competência e firmeza, sempre me incentivou a enfrentar os desafios da vida acadêmica.

Agradeço ao Professor André Dias e à Professora Alyxandra Gomes pelas dicas valiosas.

Às colegas de empreitada, Ana Márcia Linhares e Rosilea Ribeiro, Lívia Vilaça e Marina Pozes por me darem bons conselhos e sempre me apoiarem.

Agradeço ao amigo Pablo Lima pela ajuda na tradução e pelo incentivo de sempre.

Em especial, agradeço a meus filhos, Amanda Santos Petrucci Peçanha e Gabriel Santos Petrucci Peçanha, pelo apoio incondicional, entendendo minhas angústias, ansiedades, aflições, prazos e ausências, além de estarem sempre presentes para me socorrer nas dificuldades, com o aparato tecnológico, fontes bibliográficas e de pesquisa.

Agradeço à Kharine Ribeiro pelo apoio e por sempre ter uma palavra de ânimo nos momentos mais críticos.

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“É uma obra que vai honrar, de agora em diante,

a história da Literatura Brasileira.”

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RESUMO

A viagem constitui um dos temas mais investigados no universo acadêmico. Em várias culturas, o deslocamento se funde com a dimensão formadora do sujeito através do discurso. Desde a antiguidade até os dias atuais, obras clássicas e pós-modernas exploram a necessidade do deslocamento, por ser entendido como uma força latente que impulsiona o sujeito a se conhecer, amadurecer, experimentar, enfrentar seus medos e superar desafios. Esta pesquisa, alicerçada no tema da viagem física ou simbólica, analisa o romance Memorial de Maria Moura, observando, epistemologicamente, a experiência da viagem como metáfora da profunda transformação humana dos personagens. A proposta é observar as formas de representação da viagem como um ato de liberdade e também como forma de resistência às diversas opressões, inseridas na sociedade sertaneja do século XIX. Procuramos, também, analisar a trajetória da autora, Rachel de Queiroz, que observou de perto os tipos humanos e soube retratá-los com grande eloquência em sua vida profissional e literária.

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ABSTRACT

Travel constitutes one of the most investigated topics in the academic universe. In several cultures, the displacement merges with the subject's formative dimension through the discourse. From the antiquity to the present day, classic and postmodern works explore the need for displacement, understood as a latent force, which drives the subject to know themselves to mature, to experiment, to face fears and to overcome challenges. Based on the theme of physical or symbolic journey, this research will analyze the novel Memorial de Maria Moura, observing epistemologically the experience of travel as a metaphor of the profound human transformation of the characters. The proposal is to observe the forms of representation of travel as an act of freedom and as a form of resistance to different oppressions inserted in the country society of the XIX century as well. We will also try to analyze the trajectory of the author Rachel de Queiroz, who through excursions around Brazil observed closely human types and knew how to portray them with great eloquence in her literary and professional life.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... Erro! Indicador não definido.

1 OS CAMINHOS DE RACHEL DE QUEIROZ ... Erro! Indicador não definido.

2 OS PERSONAGENS VIAJANTES/DESLOCADOS ... Erro! Indicador não definido. 2.1 A viagem de Marialva ... Erro! Indicador não definido. 2.2 A viagem do Padre José Maria/Beato Romano ... Erro! Indicador não definido. 2.3 A viagem de Maria Moura ... Erro! Indicador não definido.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... Erro! Indicador não definido.

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INTRODUÇÃO

A vida é uma viagem. Cada romance escrito ou lido é uma viagem. Quando falamos em Rachel de Queiroz, é preciso salientar, primeiramente, que a sua vida seguiu muitos caminhos e, em cada curva, entre vida e narrativa, encontramos a condição humana referendada por atitudes, personagens, vivências, memórias e muita subjetividade latente.

A perspectiva da viagem interna ou externa ganha luz e notoriedade no romance

Memorial de Maria Moura (1992), pela busca incessante da construção dos sujeitos, durante

todo o processo de deslocamento, no espaço dominante do sertão brasileiro. Mergulhar nesse romance é uma oportunidade de olhar criticamente para um romance plural e polifônico, em que poderemos observar um crescimento pessoal dos personagens, em sua trajetória cíclica e labiríntica, na qual o sertão, como ambientação, adquire muitas possibilidades de reflexão.

A recepção da obra vai trazer, para dentro de cada leitor, um sertão diferente. Porém, os personagens Maria Moura, Beato Romano e Marialva vão estimular a vida e a sustância. Onde pulsa rigidez e aspereza, vamos dispensar um olhar crítico e humano; onde a secura da terra fizer rachar a esperança, encontraremos a força do sertanejo ⎯ seja homem ou mulher, lutando pela sobrevivência, ou por um pedaço de terra que considere seguro e seu.

A personagem principal do romance, Maria Moura, durante a viagem pelo sertão, constrói, em seu discurso, em seu memorial, a identidade literária que aglutinaria os aspectos social e pessoal, revelando a profundidade discursiva captada pelas vozes polifônicas, formalizando a multiplicidade e o pluralismo de um povo.

As múltiplas leituras e questionamentos reforçam a relevância do tema, que traz autoconhecimento, conscientização e aprofundamento da sociedade brasileira no século XIX. A rigidez das estruturas políticas e sociais, que assolavam o Nordeste e forjavam na consciência do nordestino o medo, o machismo e a desigualdade, são descortinadas pelas atitudes dos personagens, que se rebelam diante da injustiça e precisam seguir caminhos diferentes, que estabelecem mudanças em suas vidas. Por isso, o deslocamento se faz tão importante para os personagens. Suas vidas mudam, quando eles se movimentam. Existe espaço para dividir suas mazelas e também seus progressos, com o outro. Pelas estradas do sertão do Memorial de Maria

Moura, conhecemos muitas outras histórias que se complementam, que unificam, que trazem

alteridade e crescimento para todos, inclusive para os leitores, que se apropriam desses novos caminhos para crescer junto com os personagens.

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Partindo desse princípio investigativo, chegamos ao processo de subjetivação da autoria feminina, que ganha voz e assinatura de Rachel de Queiroz, através de um processo longo para conseguir abrir estradas para as mulheres, na escrita. A autora vai implementar, em suas narrativas modernistas, uma demarcação de território estético-literário, forjado na busca por direitos, voz e, principalmente, protagonismo feminino. Uma subjetivação que a própria Rachel buscava na sua vida pessoal e profissional. Essa sensibilidade e olhar diferenciados produziu um efeito importante e estimulou a abertura de espaços, para a mulher, em vários setores da sociedade, além de estabelecer um marco na história literária da capacidade criativa. O romance analisado apresenta uma ampla galeria de tipos humanos, histórias e narrativas cruzadas, que culminaram na construção das memórias de uma personagem feminina que, pela própria força e determinação, pode ser comparada à própria escritora. A implicação direta entre esses dois sujeitos, personagem e autora, elucida a reflexão sobre a voz fora da narrativa, demarcando a autoria feminina e a voz, dentro da narrativa, reforçando a empatia entre as duas. A evolução e o amadurecimento, demarcados no caminho de Maria Moura, ao longo do romance, revelam traços característicos de um ativismo e protagonismo muito avançado para o século XIX ⎯ tempo da narrativa, que também se relaciona à trajetória pessoal de Rachel. Evidencia-se, no século XX, a autoria feminina como uma realidade peculiar e também transgressora. A candidatura, a eleição e a entrada de Rachel de Queiroz, como primeira mulher, na Academia Brasileira de Letras, em 1977 ⎯ numa época em que esse espaço era totalmente masculino ⎯, representou uma mudança significativa na sociedade brasileira. Existe também, neste sentido, uma aproximação entre autora e personagem, pois a Moura também adentra o mundo masculinizado do sertão brasileiro, transformando-se, logo após, em Dona Moura, que impõe respeito e igualdade. Essas duas figuras femininas foram iniciadas num batismo de independência, por sua escolha de caminhos.

O ponto que merece destaque no romance refere-se à escolha de abordagem de Rachel de Queiroz por personagens femininas, dotadas de coragem e senso de justiça e que fazem suas escolhas de caminhos transgressores da norma social, movidas pelo amor ou pela dor. Vejamos, por exemplo, o caso das personagens Marialva e D. Bela, que se enchem de coragem e ousadia e se lançam em suas buscas pessoais, impulsionadas pelo amor. Já as personagens Firma e Moura são motivadas por sentimentos negativos e pela dor, além do instinto de sobrevivência. Muitas outras personagens foram desenhadas com pinceladas de ousadia, coragem, desejos e muita humanidade, marcando a chegada na Literatura Brasileira e na história da sociedade, de um tempo de mudanças e de mulheres, que lutam pelos seus diretos e espaços.

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São muitos os questionamentos propostos no romance Memorial de Maria Moura. A própria estrutura narrativa, que nos permite ouvir várias vozes narrando histórias que se cruzam no vértice de uma história maior, a da protagonista Maria Moura, já nos garante um olhar crítico, engajado e inovador, no fazer literário. O caráter inovador e subjetivo da obra é sentido do início ao fim do romance. Pela frente, temos um caminho não só de aventuras e descobertas teóricas e literárias, como também um aprofundamento crítico e reflexivo, que nos remete à desconstrução espacial, temporal e literária da cristalização de antigas estruturas sociais, culturais e morais, que nos acorrentavam a antigos paradigmas.

A contemporaneidade é um campo fecundo para novos olhares, novas vozes, novas representatividades, e a literatura tem muito a ganhar e problematizar com esses novos embates. Podemos acompanhar, no romance analisado, mais uma inovação da autora, quando ela o finaliza de forma aberta, inconclusiva, ou sugerindo que cada leitor seja um fruidor, reestruturando o próprio pensamento de uma perspectiva nova e provocadora. A batalha final, travada por Maria Moura, no final do romance, significa, também, a viagem final, a escolha final, a liberdade de escolha de caminhos ⎯ seja ele bom ou ruim ⎯ para chegar aonde deseja. Esse alcance só é possível pela consciência e pelo autoconhecimento adquiridos durante a viagem.

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1 OS CAMINHOS DE RACHEL DE QUEIROZ

A escritora Rachel de Queiroz sempre foi uma alma livre e a sua pena sempre imprimiu uma escrita sobre os temas pelos quais ela cultivava mais simpatia ou empatia com sua terra, sua gente e, principalmente, com o Brasil.

Eu sou um produto da minha terra, não é? Não teria como ser diferente. E falo a linguagem que o povo fala na minha região. Nesse sentido estou longe daquele regionalismo que hoje já contamina até o Cordel. Eu me louvo de ser espontânea (ARÊAS, 1997, p. 26).

Essa espontaneidade da autora está implícita em seus sete romances, suas centenas de crônicas, livros infantis. É necessário pontuar que sua obra, do primeiro romance, O Quinze (1930), até o último, Memorial de Maria Moura (1992), pode ser lido como um conjunto de viagens reais e/ou simbólicas, históricas ou sociais, geográficas lineares ou circulares, que imprimem a sua identidade literária na condição humana, transmutada em cada vereda do sertão. Ler seus romances significa comprar uma passagem para penetrar no mundo nordestino, até então pouco explorado, mas tão rico em histórias, falares, paisagens, exotismo e criatividade. O sertão queiroziano apresenta uma peculiaridade que o torna especial e crítico, representando um desafio a mais para os leitores.

A viagem sempre foi um tema muito presente e familiar para Rachel de Queiroz. Analisando sua trajetória pessoal, buscamos elucidar que, desde muito jovem, a autora já colecionava lembranças, memórias e aprendizados advindos de suas viagens. Seu pai, Daniel de Queiroz, era juiz de direito e, devido à função, era frequentemente transferido para cidades e até estados diferentes. Sua família o acompanhava em cada uma dessas mudanças, que não permitiam que seus filhos e esposa fincassem raízes em um novo lugar, por muito tempo. Em contrapartida, eles acabavam assimilando e adquirindo novos saberes, novas culturas e muitas memórias. Como boa leitora, Rachel tratava de novos e intrigantes caminhos, através da leitura, o que a fez desenvolver um valioso portfólio cultural e literário, somado à sua criatividade e memórias.

Rachel de Queiroz nasceu no dia 17 de novembro de 1910, em Quixadá, no Ceará. Logo depois, seu pai foi nomeado promotor e toda a família se deslocou para Fortaleza. Em 1917,

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fugindo da terrível seca, a família se mudou para o Rio de Janeiro, lá permanecendo durante poucos meses. Depois, mudam-se novamente para Belém do Pará, onde permanecem por dois anos. Só em 1919, a família regressa à Fortaleza, para suas raízes nordestinas. Aos 20 anos de idade, em 1930, Rachel publica seu primeiro romance, O Quinze, o que garantiria sua estreia, com força, no cenário literário brasileiro. Todo esse preâmbulo é importante, para compreendermos a importância da escrita queirosiana. Sua simplicidade sofisticada presenteia os leitores com um universo cultural diversificado, relativamente novo, sob o ponto de vista de uma mulher falando e refletindo, criticamente, sobre si própria, sua gente e seu espaço geográfico e social.

Revisitar a obra de Rachel de Queiroz, a partir de uma análise dialética, nos permite ir além do lugar comum e observar a sua inovação singular, na linguagem, e sua ousadia para tratar questões históricas e sociais, tão enraizadas quanto difíceis. Todos esses preceitos dialogam com sua escrita objetiva, dura e direta, que desafiava os padrões estabelecidos e renovava os valores sobre o próprio ofício da escrita. Sua escrita revelava, ainda, antigas feridas socioeconômicas, próprias do sertão nordestino, espaço tão esquecido, politicamente. O Quinze já revelava seu lado acusador e crítico.

A ligação de Rachel com o movimento modernista começou a partir de O Quinze. Esse romance fez com que os olhares críticos se voltassem para as mudanças nas quais, Rachel era a única representante feminina. E o que mais predomina em sua escrita é a renovação. Rachel não ficou indiferente aos aspectos estéticos modernistas ⎯ um movimento que visava tirar o Brasil da estagnação artística, caracterizou-se, primeiramente pelo anarquismo e atitude desafiadora (COSTA, 1982, p. 99).

Pensemos em Rachel de Queiroz além do estilo, como uma mulher profissional da escrita, que exerceu seu ofício nos anos 1930 ⎯ período das grandes mudanças artísticas e da ebulição política e cultural ⎯ esquerdista e sertaneja convicta. Ela exalava humanidade e apresentava-se como paradoxo, em alguns momentos, cheia de complexidade e atitudes ⎯ modernidade também em suas escolhas de caminhos ⎯ o que culminava sempre na liberdade, quer de expressão, quer de escolhas pessoais ou políticas. Neste último ponto, ela foi vítima de muitas críticas e questionamentos, pois a alternância em seus posicionamentos políticos lhe trouxe muitos dissabores.

Essa liberdade, tão prezada por ela, é uma marca profundamente arraigada à sua identidade literária que ela transferiu, claramente, às personagens femininas, em suas narrativas. Eventualmente, esse paralelo pode servir de base a um estudo mais dialético e comparativo, entre a autora e suas criações femininas, sobre mulheres fortes que não aceitavam

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cabresto. A leitura de sua obra é tanto um desafio, como um treino do olhar crítico sob vários aspectos, mas, principalmente, porque a crítica subestimou, ou até remeteu a escritora a um possível apagamento crítico e até literário, devido à sua mudança de lado, no campo político ⎯ de esquerdista atuante, no Partido Comunista, a conservadora de direita ⎯ o que a própria autora retrucou, em entrevista ao Programa Roda Viva, em 1991, no Canal Brasil, dizendo que essa mudança era uma questão de maturidade e entendimento, no seu posicionamento político. Para realizar uma crítica aprofundada, com um olhar apurado sobre sua obra, fica evidente que precisamos desvencilhar o estigma do romance, meramente regionalista, e aprofundar articulações com seu alcance ativista e revelador, com uma linguagem moderna e cheia de inquietações humanas e humanizadoras. A vida contemporânea e suas complexidades estão latentes, no corpus da sua obra. Assim, não podemos deixar de analisar tal prerrogativa.

Para Barbosa, as protagonistas de Rachel, em geral, não veem, por exemplo a solução de seus problemas no casamento. Mostram-se, por vezes, críticas a esta instituição de base tradicional. Mesmo pressionadas, as protagonistas tentam encontrar maneiras alternativas de realização, além daquelas permitidas. Maneiras que vão desde a profissionalização, até a busca por aventuras, viagens e outras paisagens, o deslocamento físico e passional. É uma negação que vai desde a conscientização e a não aceitação dos limites impostos, até a ruptura total: a transgressão (GUERRELUS, 2011, p. 23).

Essa busca incessante das protagonistas femininas queirosianas é muito simbólica e pulsa modernidade, além de trazer muita reflexão sobre os problemas que o sertão enfrenta. Maria Moura trava uma luta contínua contra o patriarcado, mas também é uma luta pessoal e íntima para se autoafirmar como mulher e sertaneja, livre de qualquer amarra social ou psicológica.

A sinuosidade da obra

A obra Memorial de Maria Moura se aproxima muito da narrativa folhetinesca do século XIX, apresentando capítulos curtos, mas cheios de ação e tensão, conflitos amorosos, linguagem simples e direta. O diferencial que traz modernidade é a estética queirosiana, que convida o leitor a mergulhar na alma, no psicológico inquieto e cheio de questionamento dos três narradores: Maria Moura, Beato Romano e Marialva. Essa viagem, proposta pela narrativa,

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é reveladora tanto para os personagens, como para os leitores, manifestando-se como referencial afetivo-geográfico, que relaciona os lugares onde se está, com o estado em que os personagens estão nele. Os itinerários de saída, deslocamento e chegada, esse ir e vir marcam a subjetividade e o desenvolvimento da liberdade alçada por cada um dos personagens-narradores que compõem a história.

A relação de Rachel de Queiroz com a literatura começou muito cedo, no núcleo familiar. As múltiplas leituras, realizadas pela autora durante sua infância e adolescência, contribuíram para o desenvolvimento de seu dom natural para ouvir, contar e escrever histórias. Para Candido, “a dimensão social da obra se exprime em dois sentidos: a influência do meio sobre a obra e dela sobre o meio e os indivíduos” (2000, p. 21-22). Podemos imaginar que essa perspectiva inunda toda a escrita de Rachel, haja vista a importância da terra natal em sua obra e a construção atenta dos tipos humanos, mimeticamente representados. A autora é uma desbravadora de novos caminhos, sobretudo no campo literário, mas também na seara política e social, nas quais causou muito frenesi, com seus posicionamentos polêmicos.

O corpus literário de Rachel de Queiroz comporta sete romances: O Quinze (1930), As

três Marias (1939), João Miguel (1932), Caminho de pedra (1937), O galo de ouro (1950), Dôra Doralina (1975) e Memorial de Maria Moura (1992). Escreveu mais de cem crônicas,

inicialmente no Jornal O Ceará, a partir de 1927, e depois na revista O Cruzeiro, no Rio de Janeiro. Escreveu também peças teatrais, contos e livros infantis, mas nunca perdeu o foco no referencial humano, nas suas raízes fincadas no Ceará e na irreverência na linguagem narrativa. Por ser mulher e nordestina, já estava em desvantagem no mundo masculino da intelectualidade brasileira. Somado a isso, o fato de ser escritora já evidenciava um desafio a mais, para adentrar o mundo literário. A ousadia nunca a abandonou, e então, a jovem de 19 anos, desconhecida do cenário literário brasileiro, nos anos 1930, lançou o seu primeiro romance O Quinze, que gerou impacto imediato e estremeceu as estruturas da crítica. Houve até mesmo uma desconfiança quanto a sua real autoria. Foi nesse momento, com essa entrada triunfal no caminho das Letras, que Rachel de Queiroz conseguiu o seu lugar no grupo modernista. Os romances posteriores seguiram uma temática bem alinhada com o primeiro, com significativos acréscimos adquiridos de sua maturidade literária, trazendo questionamentos implícitos e explícitos, de costumes e instituições, em que, na maioria das vezes, a figura feminina tem um lugar de destaque, externando uma ousadia subjacente.

Seus romances representam uma boa mistura de temas e de questões sociais polêmicas, fruto de pesquisas e muitos estudos. A autoria feminina de Rachel de Queiroz e a experiência de luta pelo seu espaço corroboram para que a protagonista do romance também seja uma

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mulher. No sertão cearense, luta com todas as armas que pode por liberdade, autonomia e respeito, num mundo fálico, violento e que, tradicionalmente, enxerga mulheres como objetos, desprovidas de inteligência, submissas e fracas. Essa tendência estética por uma arquitetura de personagens femininas se destaca pela argúcia e força, tornando-se em uma identidade literária da autora.

Rachel por Rachel

Em muitas entrevistas concedidas a jornais, emissoras de TV e suplementos literários, Rachel de Queiroz era taxativa, ao definir-se como uma pessoa pessimista diante da vida. Segundo seu depoimento ao Caderno de Literatura Brasileira (1997), “sou uma crítica muito severa do que escrevo. Não tenho mesmo o menor entusiasmo por aquilo que ponho no papel” (1997, p.25). Diante dessa declaração da autora, podemos questionar esse pessimismo sob, no mínimo, duas perspectivas: será que a vida pode ter transformado a autora em uma pessoa pessimista, ou esse pessimismo era natural de sua essência? Para tentar responder a esse impasse, devemos aprofundar estudos, observando a subjetividade da autora, tanto no campo pessoal, com as informações presentes em entrevistas e depoimentos, como na desenvoltura literária evidenciada em sua escrita.

A ponderação sobre sua arquitetura literária mostra pegadas subjetivas, na formação de personagens e também na ambientação dos romances. Geralmente, as personagens femininas sofrem perdas, amadurecem e escolhem seus caminhos, mesmo que, para isso, precisem sacrificar um amor, um bem, uma vida. Os olhares dessas personagens também são, de certa forma, pessimistas diante da vida. Existe uma dureza nas características: elas são rudes, amargas, mas não perdem a força, o foco, o caminho traçado para elas. Em sua vida pessoal, Rachel também sofreu perdas importantes, como a morte da filha, Clotilde. Rachel foi forte, trabalhou pelo seu profissionalismo como escritora e amadureceu.

Partindo deste princípio investigativo e comparativo, chegamos ao processo de subjetivação, pela voz feminina de Rachel de Queiroz, que implementou, através de suas narrativas modernistas, a demarcação de território estético-literário forjado na busca por direitos e protagonismo feminino. A angústia, a negação, a tristeza, o silenciamento e o sofrimento de algumas personagens é suplantado pela força, pelo objetivo, trabalho duro e enfrentamento, em busca de um lugar na sociedade. Os contornos formadores dos personagens vão trazendo o sertão, como ambientação natural, para dentro de cada um de nós.

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A reflexão de Mendes (1998) diz que Rachel aplicava rigidez e muita objetividade em seus romances. No seu processo de criação, a admirável escritora nos mostra, tanto em 1937 quanto em 1992, a incansável luta à procura do melhor texto. Essa força é uma marca de caráter e personalidade, que Rachel conseguia traduzir na objetividade textual, mas que, sobretudo, a motivou a seguir adiante em sua vida pessoal, mesmo com perdas e lutos. A autora é um exemplo significativo de pioneirismo e autonomia feminina, no século XX. Durante toda a sua trajetória como profissional das letras, Rachel desenvolveu muitos predicados, além de colecionar boas amizades, dentro e fora dos campos literário e jornalístico e manteve-se firme quanto às convicções políticas e pessoais. Essa subjetividade latente pode ser confirmada na síntese de seus romances, na qual enumera uma série de questões, como a forma de narrar, a própria autoria feminina, a implementação de protagonistas autênticas, com voz e atitudes desafiando o mundo masculino, além da desconstrução, na forma de transcorrer o tempo e o espaço na narrativa. É possível entender que a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, em 1977, marcaria, para sempre, a trajetória literária feminina e a sua competência na Literatura Brasileira.

Rachel sempre foi uma escritora bastante acessível e uma grande colaboradora da imprensa. Portanto, é possível constatar, em momentos diversos, a opção por escrever e criar tipos humanos, dentro da sua realidade. Ela expressa paixão e ousadia, na revista Maracajá (1929), em que se posicionava por um nacionalismo que considerava atrelado à sua visão de mundo e também fazia uma crítica bem acentuada ao Modernismo de 22, voltado ao cosmopolitismo.

Eu canto a alma da minha Terra e a alma da minha gente. Canto meu sol ardente, amoroso e ruivo, que é o mais pessoal e característico de todos os sóis do mundo. [...] Além do que, só compreendo e admiro uma manifestação artística quando é espontânea e sincera. E, sinceramente, espontaneamente, meu coração só pode sentir e cantar o que sente e canta a minha raça. [...] Eis porque sou nacionalista, eis porque dentro do meu nacionalismo ainda me estreito mais aos círculos do meu regionalismo. É que sinto que quanto mais próxima a paisagem, quanto mais íntimo o motivo de inspiração, quanto mais integrado o artista com o modelo, mais fiel, mais espontânea, e sincera será a sua interpretação. Eis porque eu canto o sertão [...] (QUEIROZ, 1929, p. 8).

O discurso queirosiano expressa o ser humano simples, mas que ganha uma dimensão profunda, quando sua pena realça aquela realidade esquecida e pouco explorada. As ideias simplistas sobre o sertanejo, seus dramas, suas dores, a mulher, a viagem, entre outros temas, ganham uma atenção especial.

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Rachel conseguiu se estabelecer como “cânone” na Literatura Brasileira. Porém, sua criação literária atrela-se, especialmente, à vida, ao viver com toda humanidade possível. A identificação com essa vida latente e tão próxima de nós torna a sua obra muito mais profunda e reflexiva. Não há quem não conheça um padre adúltero, uma negra forra que lutou bravamente pela sua sobrevivência, ou uma mulher que enfrenta todos os obstáculos, para ver seu sonho realizado. Esses e outros tipos humanos ganham vida abundante nos romances da autora.

O narrador racheliano não se restringe ao nascimento ou à morte—isto é o natural. Sua preocupação é com o processo, o(s) momento (s) exato(s) em que o cotidiano ou o inusitado passam. Cotidiano, que sorrateiramente, escondem importantes transformações, ainda que nós- ou as personagens se dêem conta delas antes que cheguem ao final da página, o novo recomeço, o movimento repetido, o continuar efetivo que é viver. É este modo de investigar o ser humano, em sua forma mais seca, mais simples, mais objetiva que preenche nossos olhos de leitor, que convence nossos ouvidos, que nos faz humildemente parar e escutar. E engana-se quem pensa que isso é falta de profundidade psicológica. A profundidade encontra-se nas entrelinhas, e na capacidade do leitor de dar vida àquelas personagens que parecem tão cruas, que seguem, porque precisam seguir [...] (GUERELLUS, 2011, p. 14).

Ela se considerava uma anarcóide-romântica ou uma doce anarquista ⎯ termo que a própria Rachel usou para definir sua personalidade como escritora, numa forma contraditória de dialogar com o mundo através da sua literatura ⎯ , mas tinha pleno compromisso com a sua escrita e, por isso, assim como outros escritores modernistas, buscava uma identidade pautada nas raízes da sua terra natal.

Eu me lembro da gente vendo o trem passar com os jagunços, todos armados, com aquelas roupas de cangaceiro. Menina pequena, eu gostava do jeito com que nos tratavam; a meu pai com respeito, a mim com carinho... Atrás daquela violência, havia ternura e afetividade. Eram homens castigados pelo meio, pela brutalidade de uma vida instável e de grandes carências. (...) Todo homem de luta no sertão é muito cortês. (...) Quando menina, como falei, eu não tinha consciência real daquela estrutura de perversidade política. Mas sempre me tocou o lado humano das coisas (NERY, 2002, p. 37-38).

A autora Heloisa Buarque de Holanda, numa palestra em comemoração ao centenário de nascimento de Rachel de Queiroz, no Instituto Moreira Sales, destaca que a autora levava o sertão dentro se si, de tal forma vivo e abundante, que ultrapassava a fronteira do literário; ela era a própria expressão desse sertão. Sendo assim, nunca deixou de ter contato com suas raízes, mesmo morando no Rio de Janeiro. As histórias que presenciou na infância, a biblioteca da sua mãe, Dona Clotilde, as viagens, o olhar apurado para o ser humano, enfim, esses elementos foram responsáveis por fazer surgir os seus personagens.

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A mãe, D. Clotilde, lia muito; possuía uma biblioteca selecionada, assinava revistas, recebia as novidades literárias do Rio e até de Paris, e orientava a filha nas leituras. Por isso, desde muito nova, Rachel pôde conhecer Camilo, Eça, Herculano, Zola, Balzac, Machado de Assis, as “mulheres inglesas”, como diz, a sua “grande paixão”, Dostoievski, que mais tarde irá traduzir. Nessa fase de leituras constantes, de iniciação literária no sertão, a literatura passou a valer para ela como uma realidade viva. É esta realidade que estará sempre presente na obra de Rachel, levando-a a afirmar: “importante é viver”. A liberdade humana é o seu grande tema, que está no centro da criação do romance, na crônica, no teatro e até na literatura infantil (MENDES, 1998, p. 24).

Embora fosse categórica ao declarar, diversas vezes e em várias entrevistas, que não gostava de reler suas obras, a leitura e a escrita estavam marcadas em seu destino. Até mesmo pela educação familiar, isso foi constatado na citação acima.

Outra questão polêmica, que divide opiniões sobre a autora é a sua taxativa definição como antifeminista. Em entrevista ao Programa Roda Viva, na TV Cultura, em 1991, deixa claro que não tem a intenção de propagar o feminismo em sua obra, muito embora as suas figuras femininas possam suscitar tais apresentações e posturas, numa interpretação mais alinhada com ideologias feministas.

Rachel de Queiroz: Não sou feminista. Acho que a sociedade tem que crescer em

conjunto. A associação mulher e homem é muito boa e acho um grande erro combater o homem. Aquela brincadeira que a gente diz, “que o homem foi feito para servir à mulher”... foi mesmo [risos], de forma que nunca fui feminista. Sempre discordei das feministas. E como acho que a condição humana é uma condição de sofrimento e de decepção e que a idade só traz amarguras e renúncias e conformismo, então as minhas mulheres, como os meus homens também... Só que me dedico mais a histórias femininas, na verdade. Os meus personagens principais são sempre mulheres (PROGRAMA RODA VIVA, 1991).

Mesmo negando ser feminista, sua atuação na sociedade marcava uma conduta adversa às palavras. A sua independência levou-a muito cedo, desde 1927, a tornar-se colaboradora do jornal O Ceará e, desde então, Rachel escrevia como forma de sobrevivência.

Rachel de Queiroz: Claro que você escreve para ser lida. Além disso, quando você é

um escritor profissional, que só sabe escrever, não tem outra profissão. Você precisa que renda alguma coisa. Com o livro eu não iria viver, por isso é que sempre fiz jornalismo. Na verdade, é a minha profissão. Quando me perguntam, sou jornalista profissionalmente. [...]

Jorge Escosteguy: A senhora se gratifica mais como cronista ou como romancista?

Como é mais reconhecida inclusive?

Rachel de Queiroz: De modo geral, não me gratifico, não; não tenho nenhum prazer

em escrever nada. Só escrevo mesmo porque é só o que sei fazer, de forma que [ser] cronista dá muito menos trabalho do que [escrever] o romance (PROGRAMA RODA VIVA, 1991).

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A morte é também um tema recorrente nas obras, e a autora se posiciona vendo a morte como libertadora. No Programa Roda Viva (1991), afirma que “a morte é a grande

companheira. É esperada. Tomara que já chegue”. Essa referência à morte dialoga com o final do nosso livro de análise, Memorial de Maria Moura, pois traz uma batalha final como libertadora, para Moura. As dores da vida, o sofrimento amoroso e a decepção com Cirino levam Maria Moura direto para a sua guerra pessoal, de forma consciente: “Se tiver que morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro muito mais” (QUEIROZ, 1992, p. 482). Existe também a renúncia da vida e o enfrentamento dos eventos ruins. O vasto repertório de personagens femininas fortes, porém pessimistas, que caminham para desfechos ruins, funcionam como marca registrada da autora, na qual trabalha sempre com a impossibilidade da realização plena e de um final feliz.

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O MEMORIAL E A INOVAÇÃO RACHELIANA QUEIROSIANA

A palavra “memorial” vem do latim memoriale e significa a escrita da memória, a escrita de fatos relevantes. É o gênero textual que registra as trajetórias da vida.

O memorial é um gênero textual rico e dinâmico que se insere na “ordem do relatar”, isto é, gênero que relata fatos da memória, documentação de experiências humanas vivenciadas. O memorial pode ser considerado, ainda, como um gênero que oportuniza as pessoas a expressarem a construção de sua identidade, registrando emoções, descobertas e sucessos que marcam a sua trajetória. É uma espécie de “diário”, no qual você pode escrever suas vivências e reflexões. É também um gênero que pode ser usado para que você marque o percurso de sua prática, enquanto estudante ou profissional, refletindo sobre vários momentos dos “eventos” dos quais você participa e ainda sobre sua própria ação (ARCOVERDE; ARCOVERDE, 2007, p. 2).

Memorial de Maria Moura é uma elaboração narrativa de pleno exercício da memória,

que se consolida a partir das histórias de três narradores-personagens: Marialva, Beato Romano e Maria Moura. As viagens subjetivas de cada um acabam se cruzando em vários momentos e, no curso da narrativa, essas vozes constroem a história, mostrando as versões individuais para se afinarem e culminarem no memorial de Moura.

Curiosamente, Rachel de Queiroz não apreciava o gênero memória. Em tom de conversa, a autora confidencia para sua irmã Maria Luiza sua resistência ao tema e chega até mesmo a questionar se realmente é um gênero literário, uma questão para posterior discussão e aprofundamento.

Nunca pretendi escrever memória nenhuma. É um gênero literário – e será literário mesmo? – onde o autor se coloca abertamente como personagem principal e, quer esteja falando bem de si, quer confessando maldades está em verdade dando largas às pretensões do seu ego – grande figura humana ou grande vilão. Mas grande de qualquer modo. O ponto mais discutível em memórias são as confissões, gênero que sempre abominei, pois há coisas na vida de cada um que não se contam. Eu, por exemplo, “nem às paredes do quarto as contaria”, como diz o fado (QUEIROZ, 1998, p. 11).

No romance Memorial de Maria Moura, a autora vai justamente explorar a memória, dando enfoque e liberdade a Maria Moura e também aos outros personagens, para relembrar, reviver e narrar os fatos mais marcantes de suas histórias, dando espaço e mobilizando os três narradores para construírem essa narrativa. O foco narrativo em primeira pessoa vai ao

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encontro da ideia de construir uma história verossímil, que contribui para revelar o passado e, ao mesmo tempo pensar, criticamente, sobre esse passado.

A construção do memorial mostra-nos um campo semântico amplo, por onde passam reminiscências, tragédias pessoais, solidão, angústia, limitações, enfrentamentos, apagamentos, entre tantos outros sentidos, que se aglutinam e ecoam pelas vozes narrativas que se cruzam no campo literário, e nos ajudam a preencher as fraturas expostas pela própria complexidade da história. É possível perceber múltiplas camadas, no viés memorialístico, que descrevem a situação de cada narrador.

Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas identidades físicas são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conformação singular do corpo e no som singular da voz. Esta revelação de “quem” em contraposição a “o que” alguém é –os dons, qualidades, talentos e defeitos que alguém pode exibir ou ocultar—está implícita em tudo que diz ou faz. Só no completo silêncio e total passividade pode alguém ocultar quem é;[...] (ARENDT,2007,p. 192)

Cada um com a sua subjetividade, vai revelando o seu sertão, a sua dureza diante das dificuldades encontradas no caminho, e o seu olhar sobre a condição opressora em que estão. Mas o memorial é de Maria Moura. A reflexão aqui imposta é olhar a construção dessas memórias, não somente pela seleção da protagonista, mas histórias que se encontram e constroem algo maior, revelando um discurso que vai, aos poucos, mostrando que o memorial de um pode ser o reflexo conjunto do memorial de todo sertanejo. João Cabral de Mello Neto já falava, no seu grande poema Morte e Vida Severina (1954), que no sertão temos muitos Severinos e seu poema expressava, em linhas gerais, a vida e a morte numa terra de grandes dificuldades e opressão sociopolítica. Nesta alusão, podemos pensar que o romance também segue essa linha de movimento, construindo, na subjetividade narrativa memorialística, um caminho que desenha a vida e a morte de Maria Moura. Isso, sem esquecer o entrelaçamento de outras memórias, que vão formando o panorama desse sertão como lugar limítrofe, entre histórias cruzadas. A morte nem sempre é deflagrada no romance como sendo física, mas como passagem para uma nova realidade ou condição, que o sertanejo precisa enfrentar com a bravura que lhe é peculiar. Sendo assim, a memória tem um papel preponderante, no romance, porque um memorial é feito de memórias selecionadas. Porém, o apagamento dessas memórias também pode ser resgatado através das outras vozes, que formam a tríade narrativa.

Sou incapaz de vivenciar a imagem do mundo onde vivi e já não estou. Posso, claro, imaginar o mundo depois da minha morte, mas não posso vivenciá-lo internamente

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no tom emocional que minha morte, minha ausência, introduzirão. Precisarei vivenciar o outro, ou os outros, aqueles para quem minha morte, minha ausência, será um acontecimento na sua vida. Quando tento perceber, em termos de emoção (de valor), o evento da minha morte no mundo, fico sob o domínio da alma de outro possível, já que não estou sozinho, entregue à contemplação do todo da minha vida no espelho da história (da mesma maneira que não estou sozinho quando contemplo minha imagem externa no espelho). O todo da minha vida não tem significado no contexto dos valores da minha vida. Nascer, viver-ser neste mundo, e, finalmente, morrer — tudo isso não se realiza em mim e para mim. O peso emocional da minha vida, em seu todo, não existe para mim mesmo (BAKHTIN, 2003, p. 70).

Esse jogo narrativo traz inovação, porque a poética do memorial explicita não só a experiência pessoal à escrita, mas o próprio exercício da memória e sua consolidação, através do discurso. O deslocar-se aproxima as pessoas através do sofrimento, dos caminhos escolhidos ao acaso ou à força. São várias vozes abafadas que serão reverenciadas neste memorial.

O aprofundamento subjetivo e psicológico proposto no romance evidencia trajetórias e percursos mentais e emocionais, revelados na narrativa pelo aprofundamento das relações dos narradores com o sertão. São fatos históricos aliados ao discurso ficcional, que vão além do individual, mas revelam a desigualdade social, a ausência do estado, o poder político opressor e a violência. Podemos constatar, na construção narrativa, um Nordeste/sertão sendo transformado em uma construção histórico-literária de carências, mazelas e sofrimentos, o que não deixa outra alternativa aos personagens-narradores a não ser seguir adiante, lutar e tentar sobreviver. Maria Moura sempre será uma memória viva desse tempo de luta.

Hoje, o que mais eu quero, é deixar o passado pra lá. Afinal, só na hora da morte é que é preciso a gente pensar nos pecados.

Já o que me interessa mais, hoje em dia, é a segurança. Meus ouros, meu dinheiro escondido. Estes anos todos de luta, muita luta. E este retiro que eu posso garantir a quem precisa. Como estou garantindo a esse padre... (QUEIROZ,1992, p. 17).

O memorial é revelador de várias considerações sobre a vida de Maria Moura. Como narradora-personagem, já amadurecida pelas batalhas travadas na vida, sua narração pode ser vista como um contradiscurso, que segue uma direção contrária ao conservadorismo praticado em todo o Nordeste. A menina Moura, que colocou fogo no seu sítio Limoeiro, queria escrever a própria história. Ao longo da narrativa, assume caminhos transformadores, tanto da sua realidade como mulher, quanto da sua condição de pobreza. Moura é uma protagonista inquieta, adversa, que ameaça, que peca, que transgride, pois o seu foco é assumir um posicionamento contrário ao poder institucionalizado.

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Precisamos refletir que a proposta estética aqui estabelecida pela autora coloca o gênero memorial dentro de um outro gênero maior, o romance. Existem subjetividades no romance, nas quais criam-se realidades diferenciadas, e é o narrador que vai escolher o enfoque e a ênfase do que quer narrar. Marialva, com o seu olhar apaixonado, vai narrar as dificuldades do povo sofrido do sertão. Beato Romano assume o caráter confessional e vai realçar o próprio sofrimento. Maria Moura, cheia de coragem, busca por suas terras e poder. Cada interpretação destaca a condição social-econômica que assola o sertão em 1850 mas, sobretudo, vai relevar cada narrador à sua versão, na construção conjunta desse memorial.

As várias histórias e os vários caminhos que compõem a obra analisada geram transformações importantes, na vida de cada narrador, fazendo-nos perceber o quanto de crescimento e amadurecimento ocorre durante a caminhada pelo sertão. Os percursos de caminhada de Maria Moura, Marialva e Beato Romano, pelo sertão nordestino brasileiro, fizeram os personagens ganhar reflexão crítica e conhecimento sobre sua terra e seu povo. Muitas das vezes, a impossibilidade de modificar os desfechos, já traçados pelo destino trágico da condição sertaneja, trouxe bastante sofrimento.

O memorial também pode servir como objeto de análise crítica da nossa própria conduta de vida e, a partir dessa observação, traçar novos rumos ou nos apropriarmos da experiência de outras pessoas.

O memorial não é somente uma crítica que forçosamente avalia as ações, ideias, impressões e conhecimentos do sujeito narrador; é também autocrítico da ação daquele que narra, seja como autor do texto ou como sujeito da lembrança. Portanto, tem muito a ver com as condições, situações e contingências que envolveram a ação do narrador, protagonista das memórias. Além de ser crítico e autocrítico, é também um pouco confessional, apresentando paixões, emoções, sentimentos inscritos na memória (PRADO; SOLIGO, 2005, p. 6).

Esta autocrítica dos personagens é relevante e, a partir dela, refletimos que a mudança é uma condição natural do ser humano. Todos os narradores do romance sofreram esse processo de mudança, pela autocrítica de suas condições, naquele contexto árido e difícil, tanto no aspecto físico como no humano.

O caráter inovador e subjetivo, na obra de Rachel de Queiroz, é sentido do início ao fim do romance. Dessa forma, seu memorial nos traz um caminho de aventuras e descobertas literárias, além de um aprofundamento crítico e reflexivo, que desenvolve uma desconstrução espacial, temporal e literária da cristalização de antigas estruturas. O leitor também tem uma parte preponderante no pacto narrativo, porque cabe a ele costurar essas narrativas polifônicas presentes na obra analisada, com sua própria visão dos fatos.

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A primeira consideração que nos parece fundamental na análise comparatista é a necessidade de o crítico ter consciência de seu lócus enunciativo, o lugar de onde ele acessa o mundo. Esse lugar, como todas as formações socioculturais, é de natureza híbrida e envolve análises tanto em termos multi/interdisciplinares, como também em termos político-culturais. É importante que tenhamos a consciência de que os campos do conhecimento, estabelecidos pela práxis social em nossa trajetória histórica, constituem escaninhos de ordem prática. Não obstante, em razão da dialética de nosso processo histórico, podem vir a espartilhar os horizontes de seu próprio campo, pois que o conhecimento está sempre em interações/fricções... (JUNIOR, 2014, p. 123-124).

O romance é um campo fecundo para novos olhares, novas vozes e representatividades que corroboram com a imagem poética do resgate da memória, como elemento significante. A estética queirosiana nos garantirá, no aprofundamento da leitura, bons embates.

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2 OS PERSONAGENS VIAJANTES/DESLOCADOS

O cruzamento do tema da viagem com a literatura alimenta a experiência humana, seja no plano físico como no plano literário. Esse entrelaçamento é encontrado nas obras de Homero (VIII a.C.): Odisseia, que narra a saga do rei Ulisses, para regressar a seu lar, Ítaca, e também está presente em Ilíada, na qual conta a história dos guerreiros gregos, numa viagem cheia de perigos e aventuras, até Troia, culminando na lendária Guerra, impulsionando o conhecimento do que era desconhecido para os outros e para os próprios protagonistas. A viagem em grandes clássicos ⎯ como Os Lusíadas, de Camões; As viagens de Marco Polo e Robinson Crusoé, de Daniel Defoe ⎯, significa ver, sentir e experimentar, para o seu próprio crescimento pessoal. Logo, a saga de Maria Moura trouxe experimentação de múltiplas possibilidades em sua vida e também na dos outros personagens. A vida se traduz em escolhas de caminhos ou viagens e, nesse sentido, existe uma desestabilização, um perder-se, um estranhamento para, talvez, no final, haver, ou não, um encontro com nós mesmos.

Dos cinco narradores que nos apresentam a cativante história de Memorial de Maria

Moura, nos debruçaremos na dimensão formadora da viagem na história de Marialva, Beato

Romano e Maria Moura. Estes três narradores sentiram-se obrigados a recriar suas próprias histórias, através de novos caminhos. Alguns, como Beato Romano e Maria Moura, são impulsionados pela dor, pela tragédia, pela falta de perspectiva, no ponto crucial, em que estavam estacionadas suas vidas. Ao considerarmos, criticamente, o sacrifício das escolhas de cada personagem, percebemos que viajar era preciso, para tentar se conhecer, mas também era uma necessidade para fugir dos grilhões que os aprisionavam e os perseguiam, na cidadezinha de Vargem da Cruz, no sertão nordestino. Sendo assim, o tema da viagem assume um campo semântico vasto e importante, no sentido de que os personagens vão precisar migrar, vagar, andar, errar, peregrinar e penitenciar, até encontrarem algo para preencher seus vazios existenciais. A estrada, seja ela qual for, é uma possível metáfora cheia de revelações, referências desfeitas, invenção de um novo presente ou não. Na bagagem dos três narradores do romance, poucas coisas significam tanto quanto a memória, pois dela se valerão para recontar suas próprias histórias.

Maria Moura, a protagonista, começa a sua viagem em busca de poder, terras e liberdade. Beato Romano, que um dia fora padre, foge dos seus próprios pecados, buscando caminhos de reconciliação com sua própria consciência. Marialva, prima de Maria Moura,

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que vivia como prisioneira de seus irmãos, foge para viver um grande amor. A viagem como tema de reflexão assumirá, no romance, um duplo sentido: o deslocamento real, que trará uma visão abrangente das mazelas impostas pelas dificuldades sociais e da terra, e a transformação interna dos personagens. Além disso, a recepção da obra fará o leitor também explorar esses caminhos e, juntos, vamos desvendar o imaginário desse sertão, matizado por Rachel de Queiroz.

Nas veredas da narrativa do Memorial de Maria Moura, é possível encontrarmos pontos de interseção entre os elementos simbólicos, como terra, fogo e água, estreitando relações e revelando nuances importantes da história e da memória de Maria Moura e dos outros personagens. O passado e o presente da narrativa são permeados por memórias que se deslocam pelo sertão, através da polifonia das vozes e da ambientação, que são espaços de lembrança, dor, sofrimento e às vezes alegria. A experiência individual de Maria Moura, Marialva e Beato Romano, os quais assumem um caráter polifônico no romance, pode delinear uma transformação pioneira naquele meio social do sertão. Esse repertório de viagens pessoais vai demonstrando paisagens e problemas, além de denunciar o silenciamento de grupos, como índios, negros, analfabetos, artistas, imigrantes, entre tantos outros, que são deixados à margem do sistema institucionalizado e sofrem preconceito até hoje. Halbwachs, sobre a memória coletiva, afirma que:

[...] nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a de outros. Nossa confiança na exatidão de nossa evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse começada, não somente pela mesma pessoa, mas por várias (HALBWACHS, 1990, p. 25).

Os personagens-narradores são viajantes, deslocados dos seus espaços, porém a circulação não ultrapassa os limites do sertão. O sertão apresenta-se, na ficção queirosiana, como a dureza e a rigidez da terra e do homem sertanejo, testando seus limites diante das adversidades e, por vezes, esse sertão configura a própria essência dos personagens. O deslocamento dos personagens é necessário, por imposição de suas escolhas. Sendo assim, a fuga os força a encarar seus medos e os desafia a seguir adiante, por uma questão de sobrevivência. A grande metáfora dessa caminhada figura a evolução dos personagens frente às dificuldades naturais, sociais, econômicas e, principalmente, pessoais. Os elementos naturais ambientados na história fazem referência a um entrelaçamento relevante, entre narrativa e símbolos, pois, segundo Bachelard, relacionam-se com a vida íntima.

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Já que as imagens possuem uma matéria: a partir desse pressuposto, pode-se pensar que a literatura possibilita tanto ao escritor quanto ao leitor, ultrapassar as imagens da realidade, ampliando as noções singulares e objetivas, criando sentidos ampliando o real. Portanto o símbolo realiza, na literatura, o papel mediador, tanto no processo de criação quanto de recepção (BACHELARD, 1998, p. 238).

Ao observarmos a presença do sertão/deserto como material simbólico e metafórico para a história, podemos associá-lo à busca pela essência dos personagens, o que também nos lembra a passagem bíblica dos hebreus e a sua caminhada pelo deserto de Sinai, em busca da Terra Prometida. Foram muitos os percalços e sofrimentos, mas houve também crescimento e amadurecimento e, ao final, a satisfação. Assim se deu o deslocamento dos personagens Maria Moura, Beato Romano e Marialva, que conheceram caminhos difíceis, cheios de peculiaridades, porém chegaram a um porto seguro, primeiramente à Serra dos Padres e depois à Casa Forte. A secura da terra, a ausência da água, o sol castigante, assim como a falta de recursos financeiros são fases de privações, durante o deslocamento. Porém, através desses percalços, Maria Moura descobriu valores como lealdade, confiança e união. Beato Romano encontrou caridade, amizade e gratidão. Já Marialva, vivenciou o amor, a esperança e a coragem. A Terra sempre esteve muito presente no imaginário de Maria Moura, como um sonho alimentado por seu pai. Moura estabelece uma ligação vital com a terra, assim como todo sertanejo que, mesmo na escassez de recurso, ainda nutre amor pelo seu pedaço de chão, sua roça, sua terra. Portanto, a conquista da terra é uma revelação de poder, pois Maria Moura sempre deixou claro que era seu objetivo, isto é, ser dona do seu destino, o que significava ter a sua própria terra. É notável que o poder e a força se relacionem intrinsicamente, o que nos leva a concluir que todas as relações de poder, na sociedade sertaneja, apresentam ramificações ligadas quase que, prioritariamente, à terra.

Há um desnudamento dos personagens e também da autora, quando essa ligação forte e peculiar fica evidenciada no romance. Nesse ponto, Rachel de Queiroz destoa dos outros escritores regionalistas da década de 1930, porque o sertão/terra estéril se apresenta, em seus romances, com alma e personalidade, ganhando, por vezes, status de personagem, e não apenas mera ambientação figurativa. Antonio Candido (1918) já esboça essa função humanizadora da literatura, através da qual, segundo ele, é possível vivenciar toda a diversidade e peculiaridade das personagens, em suas vivências. Logo, é possível concluir que o sertão, terra difícil e sofrível, é um espaço propício para fazer surgir um povo forte, guerreiro e lutador. Já a função social da literatura, da qual fala Candido (1918), também pode ser considerada uma marca subjetiva da escrita de Rachel de Queiroz, que reage e denuncia as atrocidades, de forma muito sutil e poética. Assim como na Cruzada das Crianças ⎯ narrativa

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que conta a história de um grupo de crianças que, atendendo a um “chamado” divino, percorrem a Europa rumo a Jerusalém ⎯, as crianças sofrem todo tipo de adversidade.

O romance analisado vai desnudando as mazelas sociais no sertão brasileiro do século XIX, e a polifonia das vozes narrativas vai construindo e denunciando, através do discurso, em cada pedacinho de chão, as carências dos nordestinos, porém Maria Moura se mantém firme no propósito de encontrar a Terra Prometida. Diferente da Cruzada das Crianças, em que o mar é o destaque do sofrimento final, no romance de Rachel, o contraponto do mar fica por conta dos perigos, da terra seca, quente e desértica do sertão. A literatura tem essa função, criar em nós, leitores, essa fruição e alteridade.

Beato Romano, que um dia fora padre e representante legal da instituição religiosa, mesmo desgarrado, precisava também de pouso, sossego, segurança, e a Casa Forte de Maria Moura poderia lhe proporcionar tudo isso. Já a prima, Marialva, nunca teve ambição por terras, mas sim pela segurança de um lar para a sua família, o que a levou até Maria Moura, já que a sua fortificação significava segurança. As personagens Tonho e Irineu, primos de Maria Moura, representam a cobiça pela terra, própria do sertanejo, e cometem atrocidades para terem mais terras e poder. A terra, então, tem um valor simbólico bastante relevante, em um romance que pretende abordar temáticas sociais. Rachel de Queiroz concede um status de personagem à terra/ao sertão, por seu caráter de engajamento e de denúncia social. A terra é tudo para o sertanejo e, por isso, a sua ligação com essa terra difícil é, por vezes, indomável, em uma relação de possessividade, gerando uma relação paradoxal de conflito e afetividade. O segundo elemento que merece destaque, no romance, é o fogo, que significa, em muitas culturas, um rito de passagem, uma provação. Para fugir do jugo dos primos, Tonho e Irineu, que desejavam tomar as terras do sítio Limoeiro à força, Maria Moura planeja sua fuga.

O fogo é o meio para destruir, de vez, toda e qualquer possibilidade de volta. Também funciona como uma mensagem de coragem, remetida aos primos da menina sertaneja, que não se deixará domar por nenhum homem. O fogo marca a morte simbólica da sinhazinha do Limoeiro, da menina, na sua condição submissa e frágil, que só serviria, naquele contexto, para casamento ou relações sexuais, consensuais ou não. O simbolismo da despedida da Casa do Limoeiro é marcado pelo abraço às paredes, e o olhar, já em fuga, para a propriedade sendo consumida pelo fogo. Nesse momento, o fogo mata de vez, a menina, para deixar surgir a mulher, a Dona Moura. A figura da fênix, que ressurge das cinzas, é revisitada no romance, trazendo à tona uma nova personalidade para Maria Moura. Na sequência dos acontecimentos dessa nova vida, Moura somente volta a visitar esses espaços através das lembranças de sua infância e adolescência.

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Eu tinha planejado a defesa e o incêndio, mas agora a minha ideia era vaga. Na primeira hora procurava só respirar bem fundo e tomar o cheiro daquela liberdade. Não me doía tanto quanto esperei, o fogo na casa do Limoeiro; afinal, agora tinha chegado a vez de se cumprir o meu grande sonho. As terras da Serra dos Padres, tudo fresco, olho d’água correndo entre as pedras (QUEIROZ, 1992, p. 79).

Numa nova versão da mulher sertaneja, ela assume o bando com rigor e coragem, deixando para o espaço da memória seus momentos de fragilidade, medo e reflexão. Nesse sentido, as mulheres construídas por Rachel de Queiroz são completamente transformadas pelo meio e assumem os seus caminhos com liberdade e ousadia.

A água, como terceiro elemento simbólico explorado no romance, merece um destaque todo especial, devido à confluência das memórias e espaços, na qual é possível desenvolver a feminilidade de Maria Moura. De todas as imagens poéticas que circundam o romance, a água é aquela que mais expressa a liberdade do seu lado feminino, já que esses poucos espaços fluídos deixam aflorar, na narrativa, a subjetividade de Moura, deixando-a ser autêntica em suas emoções e memórias. As metáforas envolvendo a água pintam um quadro representativo da intimidade, infância e feminilidade de Maria Moura. Sempre que a personagem está em um desses espaços fluídos, ela vive momentos de tranquilidade, segurança, deleite e calmaria. Suas reminiscências são ativadas de forma positiva e até motivadora, trazendo à personagem uma compensação de si mesma na caminhada difícil pelo sertão.

Nem pensava mais nos meus banhos de cheiro, na boa cama com lastro de sola que eu tinha no Limoeiro. Também isso, e tudo o mais, estava agora virado em cinza. Do meu conforto de sinhazinha, nada. A vida era outra, eu estava endurecendo. Já um dia inteiro a cavalo, por maus caminhos, não chegava a me deixar enfadada. Um bom mergulho na lagoa, com Libânia vigiando pra não passar homem perto [...] (QUEIROZ, 1992, p. 124).

Aquele grande sertão encontra-se dentro de Maria Moura, e a sua intimidade com a água seria o momento de fertilização, reflexão, autenticidade.

Podemos observar, também, o simbolismo da água atrelado ao questionamento interior da personagem. Por vezes, há um monólogo bastante revelador de sensibilidade e fragilidade que, no trato diário com seu bando de jagunços, Moura tenta esconder, pela rudeza dos atos e frieza nas decisões. Segundo Gilbert Durand, “o símbolo é, portanto, uma representação que faz parecer um sentido secreto. Ele é uma epifania de um mistério” (DURAND, 1988, p.15).

A água na representação literária de Rachel de Queiroz somente aparece ligada ao discurso da personagem principal. Seria, para Moura, a fonte de energia vital, revigorante e

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reflexiva, em que a dimensão líquida funcionaria como elemento pacificador. A água que Maria Moura busca, incansavelmente, é a terra, a segurança de um lugar, de um lar. Para tal, a personagem sofre grandes transformações, através das suas caminhadas pelo sertão. Ela começa o romance como sinhazinha do sítio Limoeiro e, com força, se transforma em Maria Moura mas, no ápice do romance, já é Dona Moura, da Casa Forte. Essa sede é o que alimenta a sua busca. O final aberto do romance nos leva a crer que essa busca nunca cessa, nem que os espaços de poder, como a Casa Forte, fossem capazes de suprir essa busca da personagem. A terra, o fogo e a água assumem um lugar de memória, que deixa aflorar a personalidade forte e guerreira da personagem Maria Moura. Assim como a protagonista da obra, Rachel de Queiroz também se vale das suas lembranças do sertão, para contar suas histórias e fazer brotar sua subjetividade, no romance. Esses elementos formam os espaços que, através da memorização e polifonia, vão denunciando preconceitos, modificando valores e criando novas perspectivas narrativas. A busca de Moura é também a busca de cada um de nós, pois cada ambiente gera, em nós, uma interação e uma apropriação, que ora nutre nossa satisfação e, em outros momentos, não nos sacia mais e nos impele a buscar novos caminhos e novos desejos.

Mesmo sem uma percepção, apurada inicialmente, Maria Moura não configura uma personagem que ficaria por muito tempo presa a uma situação que lhe desagradasse. A inquietação e a gana por liberdade levaram-na ao movimento vital, em busca de seus objetivos, e à terra tão amada pelos sertanejos; a terra que não fica parada; a terra que causa estranhamento, adversidades, dificuldade e amor; a terra tão ambígua, mas tão essencial para o sertanejo. Moura não se limitava ao comodismo e aos desmandos dos seus parentes, Tonho e Irineu e, por isso, decidiu partir nesta jornada pelas terras do sertão. Essa mudança de lugares, paisagens, espaços era, ao mesmo tempo, necessária e importante para a modificação também pessoal de Moura. Foi a partir desse deslocamento, que foi possível penetrar nos caminhos íntimos dessa personagem forte mas, sobretudo, ousada.

Essa mudança contínua de Maria Moura se processa, também, pela construção discursiva do memorial. O movimento se realiza no ato de recontar a própria história, nos detalhes da sua transformação interna e externa, na relação estabelecida com cada viajante encontrado no caminho, na modificação do olhar, frente a tantas desigualdades encontradas nas estradas, no assumir a liderança dos seus passos; o deslocamento vai transformando a personagem. Segundo Onfray (2009, p.1), “[m]ais tarde, muito mais tarde, cada um se descobre nômade ou sedentário, amante de fluxo, transportes, deslocamentos, ou apaixonado por estatismo, imobilismo e raízes”. Isso significa que podemos classificar os narradores do romance em dois grupos: os

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deslocados por razões diversas ⎯ Maria Moura, Beato Romano e Marialva ⎯ e os que fincam raízes, não mostram grandes modificações pessoais e também não almejam mudanças nos padrões sociais ⎯ Tonho e Irineu.

Para figurar esses dois modos de ser no mundo, a narrativa genealógica e mitológica produziu o pastor e o camponês. Esses dois mundos se afirmam e se opõem. Com o passar do tempo, tornam-se o pretexto teórico para questões metafísicas, ideológicas e depois políticas. Cosmopolitismo dos viajantes nômades contra o nacionalismo dos camponeses sedentários, a oposição agita a história desde o neolítico até as formas mais contemporâneas do imperialismo. Ela atormenta ainda as consciências no horizonte imediato do projeto europeu ou, mais adiante, mas igualmente certo, o Estado universal (ONFRAY, 2009, p. 10).

A história da humanidade está repleta de exemplos de personagens reais ou ficcionais que ansiavam por movimento, experiências e deslocamento, os quais transformavam os olhares sobre a natureza, as pessoas, os lugares, as realidades e, sobretudo, o olhar sobre si próprio. É preciso salientar que Maria Moura desloca-se apenas pela região Nordeste. Logo, existe uma clara limitação de observar a sua própria realidade sertaneja dentro desse perímetro. Apesar da limitação geográfica e espacial das personagens à região Nordeste do país, Marialva, Beato Romano e Maria Moura nos apresentam uma série de realidades, perpetuadas pelo domínio político-social através da desigualdade, a falta de recursos, o abandono e o sofrimento do povo. Antes de seu deslocamento, Maria Moura projeta, na sua mente, estratégias que propiciam a fuga, além de criar um planejamento mental, que são diretrizes para chegar na terra descrita pelo pai.

2.1 A viagem de Marialva

As personagens femininas criadas por Rachel de Queiroz são dotadas de força, ousadia e coragem. Porém, Marialva destoa, a princípio, dessas características e, de certa forma, retoma o estereótipo da mulher romântica.

Marialva é a segunda voz feminina do romance e narra sua vida da perspectiva de uma prisioneira, sem nenhuma liberdade:

Eles todos saem, só eu fico, neste degredo. Trancada neste sítio velho, estas Marias Pretas dos meus pecados, este buraco do cão. Que foi que eu fiz pra me trazerem presa? Tenho ódio do Tonho. É um que, se eu fosse a morte, matava (QUEIROZ, 1992, p. 71).

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Seu cárcere era configurado por um misto de submissão imposta pela sociedade da época e o medo da violência praticada pela própria família. Podemos perceber o machismo latente, pelas palavras do irmão Irineu: “Essa, já se pode dizer que vai acabar moça velha. Vive encostada na nossa casa. E tem lá o ditado: quem come do meu pirão, leva do meu cinturão. Tem que fazer o que se mandar” (QUEIROZ, 1992, p. 49). A única companhia que ainda lhe dava algum alento e proteção era a preta forra Rubina, mãe do seu meio-irmão, Duarte.

Apesar da aparente submissão, Marialva faz reflexões importantes sobre a sua condição de mulher nordestina, solteira, subjugada aos mandos e desmandos dos irmãos. Esse desenvolvimento, psicologicamente rico da personagem, nos leva a crer que o seu discurso se encarrega de elucidar o sofrimento e o tratamento dispensado às mulheres que, sem posses e sem perspectiva, seriam vítimas silenciadas por um machismo latente no sertão. À personagem, nem mesmo o casamento era permitido, porque os irmãos temiam ter que dividir as terras com um possível marido de Marialva. A terra significava mais que a pessoa e os laços sanguíneos, então, qualquer risco que ocasionasse uma possível divisão ou perda das terras do Sítio Marias Pretas, já era tomado como uma afronta mortal. Poderiam exigir uma resposta definitiva e provocar brigas seríssimas, ou até a morte do intrometido. Essa atitude era vista como natural na sociedade sertaneja.

Para o meu mal, eu tinha caído num erro, logo depois do aparecimento do Valentim. No alvoroço da novidade, assim que a Firma chegou da rua, contei tudo, da visita e do visitante, dos pais da feira, da queda desastrada que ele sofreu e da promessa ao Senhor do Bonfim.

A Firma logo arrebitou a orelha. Entre os três — ela, o Tonho e o Irineu — era ela quem mais medo tinha de que eu me casasse, botasse marido dentro de casa, cobrando deles a minha parte de tudo. E ainda mais: eu, novinha, sadia, podia ainda ter uma récua de filhos para virem azucrinar os tios (QUEIROZ, 1992, p. 89).

A personagem sempre foi obediente, conformada com seu destino e sua condição de mulher, sem grandes planos ou sonhos. Um dia, tudo mudou, quando ela conheceu Valentim, um artista de circo que precisava pagar uma promessa feita pela sua mãe e, por isso, tornara-se pedinte. Como num conto de fadas, Valentim foi bater à porta do Sítio das Marias Pretas, justamente quando Marialva estava sozinha na casa.

Era filho da Província do Rio de Janeiro, onde se criou. Com o pai, a mãe e um tio, formavam um grupo de saltimbancos, andando de feira em feira, divertindo o povo e ganhando uns tostões. O pai, português, fazia mágicas e sortes de toda espécie, ajudado pela mãe. O tio era levantador de peso e o número principal dele era se pôr de quatro pés, com a barriga para cima; e aí dois homens da assistência eram

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