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Refletindo sobre processos criativos a partir da tradução de A linguagem da dança, de Mary Wigman

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE ARTES

SERGIO BRUCK DE MORAES

Refletindo sobre processos criativos a partir

da tradução de A linguagem da dança, de

Mary Wigman

Campinas

2019

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Refletindo sobre processos criativos a partir

da tradução de A linguagem da dança, de

Mary Wigman

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Artes da Cena, na Área de Teatro, Dança e Performance.

Orientadora: PROFA. DRA. ELISABETH BAUCH ZIMMERMANN

Este trabalho corresponde à versão final da tese

defendida pelo aluno Sergio Bruck de Moraes e orientada pela profa. Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann

Campinas

2019

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180 Moraes, Sergio Bruck de, 1972-

M791r Refletindo sobre processos criativos a partir da tradução de A linguagem da dança, de Mary Wigman / Sergio Bruck de Moraes. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

Orientador: Elisabeth Bauch Zimmermann.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Wigman, Mary, 1886-1973. 2. Dança moderna. 3. Dança - Técnica. 4. Dança - Estudo e ensino. 5. Processo criativo. I. Zimmermann, Elisabeth Bauch, 1946-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Thinking about creative processes from the translation of Mary Wigman's The language of dance

Palavras-chave em inglês: Wigman, Mary, 1886-1973 Modern dance

Dance - Technique

Dance - Study and teaching Creative process

Área de concentração: Artes da Cena Titulação: Doutor em Artes da Cena Banca examinadora:

Elisabeth Bauch Zimmermann [Orientador] Juliana Cunha Passos

Ipojucan Pereira da Silva Marisa Martins Lambert

Veronica Fabrini Machado de Almeida Data de defesa: 21-01-2019

Programa de Pós-Graduação: Artes da Cena

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-9717-1583 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/7356207669319046

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Sergio Bruck de Moraes

Orientadora: profa. dra. Elisabeth Bauch Zimmermann

MEMBROS:

1. Profa. Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann 2. Prof. Dr. Ipojucan Pereira da Silva

3. Profa. Dra. Juliana Cunha Passos 4. Profa. Dra. Marisa Martins Lambert

5. Profa. Dra. Veronica Fabrini Machado de Almeida

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca

examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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Agradeço ao grupo de estudo CEPECA/ECA/USP; à minha família e meus alunos; aos professores das bancas de qualificação e defesa, em especial às profas. dras. Cláudia Guimarães e Juliana Passos, e aos colegas de pós-graduação; às sras. Neusa e Letícia e demais funcionários do IA; aos profs. drs. João Azenha, Maria Lúcia Pupo, Leon Kossovitch, Marília Soares, Mariana Andraus e Marcelo Denny. Em especial, ainda agradeço à minha prima Heloísa, tradutora profissional, que me ajudou entre outras coisas a atualizar a linguagem, mantendo o espírito do texto, com dizem os tradutores; e à minha orientadora, que corajosamente acolheu um tema pouco ortodoxo e a quem dedico a tese.

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A presente tese visa o estudo e tradução de A linguagem da dança de Mary Wigman (1886-1973). O livro se compõe de reflexões sobre a dança, ensino da técnica e sobretudo processos de criação de importantes solos, sendo traduzido a partir do alemão e inglês. Já no estudo apresentamos um texto teórico-prático sobre aspectos do processo criativo de Wigman, sua visão da dança e a prática artística do presente pesquisador em diálogo com a linguagem da dançarina. Deste modo, espera-se mostrar a importância deste livro tanto enquanto registro histórico da dança moderna, quanto inspirador de processos de criação em dança e teatro hoje.

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This thesis aims to study and translate The language of dance by Mary Wigman (1886-1973). The book consists of reflections on dance, teaching technique and above all creation processes of important solos and was translated from German and English. In the study, we present a theoretical and practical text on aspects of the creative process of Wigman, her vision of dance and the artistic practice of the researcher in dialogue with the language of the dancer. Thus, it is hoped to show the importance of this book not only as a historical record of modern dance, but also as inspiring of creative processes in dance and theatre today.

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SUMÁRIO

1. Introdução

Elementos da pesquisa ... 09

Meus sonhos de paixão. ... 31

2. Tradução ...36

3. Refletindo sobre processos criativos Mary Wigman e suas contribuições. ... 97

Breve apresentação de meu percurso artístico. ...107

4. Considerações finais Resultados da pesquisa no cenário artístico. ... 116

Resultados da pesquisa na minha prática ... 123

5. Referências ... 137

Anexo A: texto original ... 139

Anexo B: sobre ensaiar ... 194

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1. INTRODUÇÃO

1.1. Elementos da pesquisa

Mary Wigman

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Apresento aqui os objetivos, procedimentos e motivação da pesquisa. Também contextualizo Mary Wigman e a dança expressionista. E depois destrincho elementos da leitura de A linguagem da dança que podem contribuir na minha prática. O objetivo não é a análise histórica ou estético-crítica da dança de Wigman, mas um estudo, numa perspectiva multifocal, de semelhanças e diferenças entre os processos criativos descritos pela dançarina em seu livro e minha própria prática; o que é feito em amostra. Com isso, pretendo averiguar a hipótese da atualidade deste livro, servindo ainda para processos criativos em dança e teatro contemporâneos, mostrando também a abertura do seu modo de proceder e operar. Wigman se utiliza de ferramentas como a sensação e experiência, muito usadas ainda hoje. Não se trata de afirmar que ela foi a primeira ou única no período a usá-las. São na verdade princípios inerentes à evolução das artes, como se pode encontrar a título de exemplo na literatura simbolista ou no método teatral de Stanislavski. No começo do século passado, teatro e dança estavam bastante desenvolvidos em países como Rússia, Alemanha e Estados Unidos. Sobretudo entre os dois primeiros, há de se reconhecer certo intercâmbio. Sem adentrar aqui na questão, a sensação e experiência estão presentes no uso posterior da improvisação e ação física em Stanislavski. Também em Wigman é através de improvisações e conforme as exigências da coreografia que ela pode muitas vezes transformar uma experiência ou sensação num personagem, cena ou frase coreográfica cenicamente interessante. Mais recentemente, Barba (1995: 12) critica a separação no ocidente entre dança e teatro, causando danos a ambas as linguagens. Foi com o tempo que festivais franceses passaram por exemplo a acolher a dança, ao lado do teatro. Também o festival alemão de teatro e dança Euroscene, no qual já trabalhei, é exemplo de esforços focais para diminuir a separação entre ambas as linguagens.

Wigman começou a dançar tarde, se comparado à idade com que normalmente se começa balé. Talvez esse seja um dos motivos que a levou a escolher a dança moderna, então emergente, como alternativa a seu modo de ver a dança. Pois enquanto o balé se preocupava sobretudo em preservar uma tradição cultural, exigindo um domínio técnico rigoroso em anos de formação dentro de um repertório corporal pré-codificado, a dança moderna buscou formas mais livres, que respeitassem a biomecânica e anatomia.1 Em vez de sequências de passo coladas à música, a identidade do intérprete passou a transparecer nas escolhas durante a criação. Não se tratava mais de repetir as sequências até a execução perfeito do que o coreógrafo tinha em mente, mas de transformar o movimento humano em expressão de dança. Wigman ainda se destacou por introduzir elementos teatrais, criando coreografias a partir de

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Me refiro ao balé da época de Wigman, sobretudo a partir dos anos 30 e posterior a A tarde de um fauno de Nijinski.

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personagens. Mas já Laban2 estabeleceu pela relação do corpo com o tempo e espaço diferentes modos de expressividade. Em Dança da bruxa, o caráter telúrico do personagem revela um modo expressivo. A experiência e sensação servem como material de criação e recurso na execução da dança. A primeira serve sobretudo para descobrir novos materiais a serem explorados no processo criativo e a segunda para refinar a atuação. Mas ambas atuam, indistintamente, em observações de campo, exercícios, ensaios e apresentações. Essas ferramentas ainda permitem uma apreensão da música como estímulo, criando diálogo ou contraponto com a movimentação. Essa relação de liberdade com o suporte musical ainda contribui para despertar a emoção do intérprete.

Discutirei como Wigman relaciona improvisação, experiência e sensação, buscando sua atualidade. Dou o exemplo de Dança de Niobe, onde ela se vale da sua passagem num búnquer para traçar uma relação entre o mito grego e as mulheres que perderam seus filhos na guerra. E de Dança da bruxa, onde um experimento sensorial em sala de ensaio, com uma sensação das mãos querendo agarrar o chão, leva à criação do personagem. A ação ou movimentação do personagem é a forma dada ao intérprete para se expressar. Ainda em Sacrifício, se trata de uma relação inconsciente. Neste ciclo de danças já da fase madura da sua carreira, é só durante uma apresentação que ela adquire consciência da relação intrínseca entre as danças e uma visita feita pouco antes às Cataratas do Niágara; sobretudo a sensação de arrebatamento que esta visita lhe causou. O resgate da experiência decorre, de um lado, da estetização da vida e, do outro, do retorno a uma origem primitiva, como em danças satíricas na Grécia antiga. Essas características se apoiam numa valorização do indivíduo, em oposição ao rápido crescimento da indústria cultural e cultura de massa no período. Buscou-se dar um sentido de transcendência ao espaço da apresentação, com uma organicidade na movimentação entre centro e periferias do corpo que se opunha à visão mecanicista.

Wigman teve papel ativo na renovação da dança, se interessando especialmente pela subjetividade de seus intérpretes. Está entre as primeiras coreógrafas a explorar a improvisação nos seus processos criativos. Se a coreografia era então geralmente só sequências de passos a partir de uma música escolhida, a improvisação traz novos padrões de composição, podendo-se alterná-la às frases coreográficas. Muitas vezes um gesto que nasce

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Rudolf Laban (1879-1958) foi um professor, dançarino e coreógrafo, que estabeleceu as bases da dança-teatro na Alemanha. Também como estudioso do movimento, criou a chamada Análise Laban de Movimento, tendo ainda exercícios a partir do princípio do esforço aplicados em trabalhadores de fábricas inglesas. Wigman diz sobre ele por exemplo ter sido um guia que lhe abriu portas, lhe mostrando a dança como lugar onde ela escolheria viver e crescer (WIGMAN; SORELL, 1984: 30).

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espontaneamente é mais significativo que outro pré-elaborado. Além disso, se considera aspectos técnicos e estéticos quando se improvisa, como o trabalho de grupo e valorização da expressão em detrimento da forma, propriamente; além da influência do teatro nas escolhas coreográficas da dançarina.3 Técnicas de dança moderna ainda são praticadas com grande frequência, resultando em espetáculos contemporâneos. Nessa linha, Forsythe por exemplo se propõe a ampliar o repertório corporal e capacidade de improvisar a partir de princípios e exercícios específicos.

Esse é o estado da arte da pesquisa. Ainda para entender as contribuições de Wigman na produção cênica atual, atualizando e divulgando sua dança, se buscou aqui praticar procedimentos improvisacionais com música, movimento e criação de personagem, numa metodologia aplicada à linguagem contemporânea. Assim, conceitos vindos da tradição são inseridos num processo atual. A dança moderna se referenciou inicialmente no caráter litúrgico e festivo da dança grega antiga, mas logo sistematizando e formalizando tal liberdade de movimento. Procedimentos de teatro e dança se entrecruzam, como mostra a busca expressiva de Wigman. A aproximação com o teatro é ainda posteriormente reforçada, como no uso reiterado de Pina Bausch da improvisação. Por exemplo, quando assisti Água senti que cenas mais teatrais, como de uma dançarina que contava no proscênio suas peripécias com uma cadeira, provocavam surpresa e reação do público, servindo de respiro a outras mais movimentadas com o grande elenco.

A dança possibilita refletir sobre a vida, pois é dela afinal que retira seu material de criação. O que me parece caracterizar o bom espetáculo é acionar continuamente as próprias experiências de vida do espectador, num intercâmbio mútuo que modifica seus valores mais internos. Com isso, nem as imagens no palco são uma instância em si mesma, nem o artista é idolatrado como entidade. Sem dúvida, é próprio da imagem suscitar contemplação, mas sua atualidade advém antes da apreensão sensível que bagagem cultural do espectador. Ela tem efeito no nosso modo de viver na medida em que o ritmo dos movimentos do intérprete na música nos desperta para o sentido real dessas imagens. Ao inserir o cotidiano no palco, Bausch (2007b: [s.p.]) aproxima mais e mais a dança da vida.

Partindo da relação entre experiência e reflexão, iniciei pela tradução do livro. Relato da prática da dançarina, ele é como que uma viagem pelos seus longos anos de trabalho. A dinâmica desse percurso, que não é só conhecimento vivido mas memória e atividade em grupo, se revela no seu estilo de contar sua história e criações. Pois, como se dá

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Uso na tese dançarino ao me referir à dança moderna. Já na tradução do livro não faço diferenciação, usando sempre bailarino, termo de maior alcance.

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o registro na dança? A primeira exigência dessa arte de narrar em palavras o próprio fazer e credo artístico é pensar em termos de imagem e movimento. O caráter autobiográfico é próprio da descrição de vivências singulares. O intérprete no palco codifica e comunica experiências a partir da própria sensibilidade. O conceito surge da prática. Em Wigman, sistema não tem sentido fechado e absoluto, mas enquanto rastreamento de exercícios e resultados.

Se adotou como método inicial a Practice as research, que toma a prática como procedimento básico de investigação e o pensar concomitantemente ao fazer. Mais uma vez, não se trata da discussão exaustiva do pensamento e obra de Wigman, mas sim aplicação de alguns de seus procedimentos e ideias em estudo de casos. Cabe reforçar que a experiência e sensação não são conceitos definidos por Wigman em seu livro. E tal como são reconhecíveis nos procedimentos coreográficos da dançarina, eles também se encontram em outras áreas no período. Diferente por exemplo de Laban ou Graham, Wigman não se empenhou em sistematizar rigorosamente um vocabulário próprio de trabalho ou procedimentos técnicos à parte do processo criativo. Em por exemplo O nascimento da tragédia, Nietzsche destaca a importância não apenas da “intelecção lógica”, mas “certeza imediata da introvisão” na compreensão da origem da tragédia na Grécia antiga (NIETZSCHE, 1999: 27). Guardadas as devidas proporções, se combina aqui a leitura do livro com o entendimento da dança moderna e produção cênica de Wigman a partir da experiência e sensação. Assim, deduções obtidas na primeira tarefa servem de base não só para a “introvisão” de sua dança, como seu uso prático hoje. Por isso, considero aqui minha própria prática artística e aprendizado intelectual decorrente desta. Ainda ao tratar de O nascimento da tragédia em sua autobiografia, Nietzsche enfatiza a relação entre a história e sua experiência íntima, servindo a primeira de réplica para a segunda.

Tem importância aqui o sentido pragmático do aprendizado, unindo a reflexão e sua aplicação (número/racional e fenômeno/empírico). Deste modo, dados coletados do livro traduzido e pesquisa bibliográfica não buscam só destacar os méritos artísticos da dançarina, a partir de informações mais facilmente à mão e sem relação com seu processo criativo. Tendo por base a assertiva de Nietzsche, adoto como critério aspectos mais recônditos que me aproximem das suas escolhas, explicitando o porquê e como criou certas coreografias. Metodologicamente, quanto à tradução do livro, foi feita a leitura atenta a partir da sua estrutura, parágrafo a parágrafo, com uso de estratégias básicas de tradução, como fluência, flexibilidade semântica e respeito ao espírito original do texto. O respeito à palavra de uma artista de tal grandeza exige o trabalho integrado da busca lexical precisa, estabelecendo a

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relação da matriz gramatical com o desenvolvimento inevitável da linguagem.

Quanto às bases teórica e prática, importa sobretudo a atualidade das ideias e procedimentos estudados. Além do cotejo entre o livro e produção cênica, uso exercícios da minha prática. Um exemplo é um exercício que explora experiências passadas. Primeiro, cada um conta três medos da infância. Depois, o grupo escolhe um ou dois desses medos e os encena. Este é um meio de levantar material cênico para criar a partir de depoimentos pessoais, comum no processo colaborativo. Além disso, o conceito só é buscado aqui quando há uma necessidade quanto ao entendimento do livro ou prática realizada ou estudada. Nunca o conceito só pelo conceito. Finalmente, foram adotados princípios pedagógicos de Bausch, com ênfase na improvisação voltada a levantar material para a cena.

Considerando que o país é cada vez mais frequentado por companhias de dança-teatro internacionais, algumas de singular importância e herdeiras da tradição iniciada por Wigman e outros na Alemanha, a pesquisa se justifica não só pela escolha do objeto de estudo, mas por um momento oportuno para sua realização. Durante as comemorações do centenário da primeira montagem de A sagração da primavera com Nijinski há poucos anos na Alemanha, além de novas coreografias para a música de Stravinski, foi feita a reconstrução coreográfica da versão de Wigman. A pesquisa contribui, assim, para difundir a arte alemã no país, especialmente aquela já a partir do século passado, proporcionalmente pouco considerada. Também oferece ferramentas de criação não só para artistas, como professores, pesquisadores e outros profissionais da área. Finalmente, ela é coerente com meu perfil e percurso artístico-acadêmico enquanto pesquisador.

Nesse sentido, considero o que de Wigman pode ser usado no teatro e dança contemporâneos.4 Lembro como o modo de trabalhar de Bausch (2007b: [s.p.]) também de fatores externos que interferiram na criação. Por exemplo na coprodução com outros países, ela se deparou com o desconhecido, o traduzindo em dança. No meu caso, o que descobri de novo em Wigman? O que do seu método ou maneira de trabalhar se identifica com minha prática? Por exemplo, eu busco tonificar o centro do corpo, com leve contração do abdômen.

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Além de Bausch, a prática de Wigman tem pontos de convergência com Forsythe. Este desenvolve propostas atuais, que dinamizam a aprendizagem do intérprete. Além de ampliar seu repertório de movimentos como já dito, desenvolve o rigor na improvisação. Usa, por exemplo, letras do alfabeto para criar frases coreográficas. Para Wigman, ter controle dos movimentos, incluindo seu conhecimento psicomotor, não tira mas sim contribui para a verdade da cena. Finalmente, cito o exercício dos pequenos vetores, que criei com Sabrina Cunha. Nesse exercício, você movimenta rapidamente as partes do corpo para diferentes direções da sala. Opõe-se uma parte à outra, como se uma seta saísse do cotovelo, depois cabeça, joelho etc. As articulações estão soltas e a respiração controlada. Durante o doutorado, esse exercício se desdobrou numa movimentação na diagonal, onde as várias articulações são movimentadas ao mesmo tempo em círculos. Esse exemplo mínimo reforça a pesquisa prática aqui realizada, podendo ser relacionada ao trabalho de Forsythe a partir do cubo de Laban, detalhado mais a frente.

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Posso usar a imagem de um anjo que me puxa com uma corda pela lombar, ou penso que estou subindo o zíper da calça. A imagem tem especial utilidade no aprendizado técnico. Ela expressa o momento, evocando um conteúdo emocional e intelectual. A imagem faz parte do meu trabalho, tal como de Wigman. Como busco despertar a imaginação? Posso fazer perguntas: por que e quando eu danço? Pelo meu desejo como intérprete de criar belas imagens, por exemplo? Imaginar é ver com nosso olho interior. Além de nos possibilitar pensar livremente, nos leva a criar com autoridade. Ultrapassando a realidade, defrontamos com o desconhecido e o enfrentamos. É uma atividade tão necessária quanto ver ou comer, que pode ser amplamente desenvolvida. Quando nos é frequentemente solicitado imaginar, nos tornamos naturalmente mais criativos. Imaginando damos uma nova feição ao que nos é apresentado, servindo muitas vezes como propulsor do ensaio.

Como algo latente que subjaz tanto à dança de Wigman como ao meu trabalho, a imagem deixa de ser só mental, se concretizando na cena. Tomo como exemplo meu trabalho durante a pesquisa sobre o trecho inicial de A metamorfose. Kafka e Wigman viveram em épocas e regiões próximas, se envolvendo de uma forma ou outra com as questões da guerra na Europa. Quanto a Wigman, voltarei constantemente a sua exploração do tema da guerra. Já em Kafka, noto a presença da guerra na história de Gregor. No trecho inicial aqui encenado, se estabelece o conflito central, ocorrendo no final o reconhecimento onde uma nova situação leva a uma reviravolta na história. É quando Gregor abre a porta do seu quarto e sua família pode vê-lo transformado. De certo modo, a transformação de Gregor, que culmina com sua morte no final do livro, é um crime. Ainda que não haja qualquer referência direta, o clima opressor devido às tensões políticas durante a Primeira Guerra forma um pano de fundo ideal para a história. Nesse sentido, o comportamento dos Samsas restrito ao pequeno apartamento e sem qualquer luxo ou ambição é consequência da coerção social a que estão submetidos, sendo a transformação do protagonista emblema de uma vida oprimida.

O instinto animal de Dança da bruxa de Wigman pode ser transformado aqui numa imagem de violência e primitivismo, em oposição mesmo ao raciocínio humano: quando a vida parece não oferecer mais oportunidade para expressar a sensibilidade para com o outro, a animalidade surge como única saída. Essa característica quase grotesca ultrapassa tratamentos às vezes excessivamente realistas que podem esconder meandros intricados e mesmo tumultuosos do inconsciente. Nesse sentido, o expressionismo foi um movimento que trouxe a tona os conteúdos interiores dos personagens, lhes dando uma expressão emocional e intencionalmente exagerada. A expressão é deformada, pois o interior do personagem está confuso. Em A metamorfose e Dança da bruxa, traços expressionistas possibilitam criar

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imagens com certo despojamento. Também a criação de imagens elimina eventuais traços verborrágicos dos longos discursos internos de Gregor. Por exemplo, o personagem mostra sua própria imagem corporal na repulsa que sente inicialmente por seu corpo de barata. Pode-se finalmente dizer que a relação entre ficção e música na dança de Wigman adquire caráter universal, pois guia e conecta com uma dimensão superior da vida. O mito serve na cena de exemplo à nossa conduta.

Além da imaginação, desenvolvo no meu trabalho o uso do espaço, através por exemplo das quatro direções: frente, trás, direita e esquerda. Perceber a região das costas pode trazer a visão de 360° necessária ao palco. Também, desenvolver o senso de direção e a coordenação motora é fundamental nas relações espaciais entre os intérpretes e entre estes e o palco ou cenário. Ainda o desenvolvimento da expressão serve aqui para transmitir o que sinto profundamente, meus mais sinceros sentimentos. Pesquiso ainda uma sensualidade que não se reduz ao assédio. Para tanto, é preciso primeiro desbloquear, destensionar e desmecanizar os movimentos. Trabalho o corpo com consciência, percebendo por exemplo as compensações de tensão. É preciso evitar o uso vicioso da técnica, onde o corpo só executa sem exprimir conteúdo. Também a expressão exige o domínio dos códigos de como se mover no palco, nas suas inúmeras variações. Reconhecendo as qualidades e deficiências desse modo de trabalhar, posso adaptá-lo ao que me é solicitado em cena. Importante é que a expressão seja lapidada pela repetição criteriosa.

Proponho um modo de encaminhar processos criativos calcado nas possibilidades de descobrir, inventar e criar no palco. Imaginação e expressão são duas faces que se completam na total interiorização e exteriorização do intérprete. Ambas ao mesmo tempo em cena.5 Em propostas como do teatro físico, onde a encenação é linguagem autônoma e o palco lugar de imagens, o teatro se afasta da literatura. É na mesma medida que se aproxima da dança. Em linguagens híbridas como a performance, estão incluídas expressões de dança, como em espetáculos de que participei a serem detalhados mais a frente. O que Wigman diz sobre a tarefa de coreografar tem uso no teatro. Ela diz: “É a visão interna em que se apresenta o tema? É o pensar enquanto composição espacial? O prazer artístico de modelar as figuras em movimento que povoam o palco? Ou é simplesmente uma comichão por um trabalho proposto; o estímulo a partir de uma dada música, que aciona o ímpeto criativo?”

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Durante muito tempo, o corpo foi renegado como vício da carne ou fonte de erro. Mas aqui o caminho para ser sincero ao criar passa pelo corpo. Para Wigman, se trata de um momento “onde tudo que é físico parece

suspenso e leva a uma espiritualização, que eleva a criação da dança ao nível do encantamento e transfiguração” (abaixo: 91) (A referência “abaixo” ou “acima” diz respeito à tradução do livro presente no corpo da tese.) Na verdade, corpo e mente devem trabalhar aí conjuntamente. Um bom exemplo é o body mind centering, técnica que busca o movimento orgânico, ocupando a mente com a percepção interna do corpo.

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(abaixo: 53; Anexo C).

Ainda outros fatores se atrelam a minha escolha do tema de pesquisa. Primeiro, lembro que o intérprete acorda trabalhando. Saudar o sol ou correr no quarteirão; sentir o ar entrando e saindo dos pulmões ou pensar no que do dia anterior pode ser aproveitado no espetáculo; perceber se o corpo está em condições para o trabalho ou lembrar de memória um texto que se está decorando ou frase coreográfica do último ensaio. Nem sempre o palco copia a vida. Uma simples cópia pode resultar num estereótipo, sem verdade própria. Também algo que julgamos errado na vida pode ser certo no palco e vice-versa. De todo modo, é vivendo cada momento que acumulamos experiências que nos permitem criar. E se alguns intérpretes buscam a espontaneidade do dia a dia, indo observar situações que se aproximam do que viverão no palco, outros se esmeram na disciplina da forma, se concentrando na repetição plástica em horas de ensaio. Estes são os dois aspectos do faz de conta de criar. Montar um espetáculo exige tempo. Entre quatro paredes, trabalhamos diligentemente numa direção até que algo especial surge. É diferente por exemplo da televisão, onde são mais comuns as decisões de momento.

Talvez minha primeira lição de palco tenha sido no futebol. Ali, aprendi a me posicionar no campo, atento a qualquer contratempo, mantendo o fôlego por toda a partida e criando estratégias com os colegas do time. Estar em cena exige o mesmo grau de atenção, poder de ataque e paixão do futebol. A infância é o lugar das lembranças perenes, das brincadeiras antes do julgamento, como mãe-da-rua, passa-anel e corre-cotia. A criança não é só um adulto em miniatura. Como a bailarina na caixinha de joias, ela tem seu próprio encantamento. Seu mundo é o do círculo e seu pensamento do “por que não?”. Quantas técnicas não buscam recuperar tais qualidades, como sua capacidade de se maravilhar? Quantos exercícios não visam produzir o mesmo estado de excitação e descoberta? Lembrar as canções, histórias e brincadeiras que nos foram então ensinadas. Repetindo, imitando e desafiando as situações que vivencia, a criança dá sentido ao mundo. Lugar do presente e da lembrança, o palco não exige a mesma coerência lógica das decisões na vida.

Aprendi com meu pai a gostar das coisas práticas da vida e com minha mãe a querer conhecer tudo que é novo e velho. Sentado na prancheta na pequena gráfica da família, gostava de desenhar autorretratos, enquanto não tinha de atender o telefone que tocava ou um cliente que chegava no balcão. Infeliz com as discussões sobre a diagramação da página, gramatura do papel e impressão colorida ou p&b, comecei a faculdade de teatro. Fiz iniciação científica sobre dança-teatro e depois mestrado voltado à improvisação. Especialmente no mestrado focado na criação para o palco de uma história de Kafka, pude adotar e comprovar

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procedimentos que são aqui novamente utilizados. Mas ainda na graduação, li para as aulas de dança Dançar a vida, tomando contato com o trabalho de Wigman. Nesse livro, Roger Garaudy (1980: 104) mostra que

Quando Mary Wigman, durante a Primeira Guerra Mundial, estudou dança com Von Laban em Ancona, na Suíça, aprendeu com ele seu método de análise dos movimentos possíveis do homem, inscritos em formas geométricas estritas e contidos num icosaedro de cristal como numa gaiola mágica.

Também que

Mary Wigman estudou a “eurritmia” de Dalcroze em Hellereau, mas inverteu a concepção das relações entre a música e a dança. Para respeitar a especificidade da dança, a música deve, como a dança, nascer dos movimentos da vida. Mary Wigman chegava a dançar sem música alguma, sendo o ritmo de movimento marcado apenas pela percussão de seus pés descalços no chão. Ou então utilizava instrumentos orientais: instrumentos de sopro arcaicos, tambores hindus, gongos de Bali (id., id.: 108).

Garaudy (id.: 118) aprofunda a origem do processo criativo de Wigman, mostrando seu contato com outros artistas e teóricos. Em relação a Laban, diz ainda que

Como Mary Wigman, Von Laban é particularmente sensível aos limites dos movimentos. Uma de suas descobertas principais é a da relação entre as diversas orientações do movimento e a organização harmoniosa de suas seqüências no espaço. Suas leis da harmonia no espaço podem aplicar-se às proporções arquitetônicas, à plástica do escultor, à perspectiva do pintor, às estruturas musicais, porque incluem as regras da proporção, da plástica, da perspectiva e do ritmo. Ele cita Jooss, lembrando que este

foi um dos que levaram à prática com mais força as teorias de Von Laban. Assistente e primeiro bailarino de Von Laban quando este, em 1921, dirigiu o Teatro Nacional de Mannheim, Kurt Jooss colaborou com ele no desenvolvimento da análise das leis físicas dos movimentos de dança.

Convencido de que a dança era essencialmente teatro, de que ela deveria expressar a verdade profunda de uma época e ajudar essa verdade a se expandir e se afirmar, Kurt Jooss via no expressionismo, como Mary Wigman, a forma de dança correspondente às exigências da nossa época (id., id.: 120-1).

Garaudy (id.: 125) ainda relaciona a dança de Wigman com a de Graham e Doris Humphrey, dizendo que

Os gestos da vida não são transpostos para movimentos de dança somente porque são animados, do interior, pela força de uma civilização e de um mundo emergente, mas também porque o artista imprime a este movimento o ritmo voluntário de sua vida, criadora e militante, em favor do advento do homem humanizado.

Martha Graham, Mary Wigman e Doris Humphrey conceberam este ritmo de três modos radicalmente diferentes.

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O ritmo fundamental para Martha Graham é o ritmo respiratório, o do primeiro ato da vida biológica. O conflito, para ela, está dentro do homem.

O ritmo fundamental para Mary Wigman é o ritmo emocional, que nasce de uma paixão domada, de motivações do gesto no esforço para livrar-se de uma realidade externa sufocante. O conflito está dentro do homem, mas em sua relação com um mundo exterior que o esmaga. O ritmo fundamental para Doris Humphrey é o ritmo motor, que se forma na relação entre o corpo e o espaço. O movimento primordial é, para ela, um esforço para resistir à gravidade, símbolo de todas as forças que ameaçam o equilíbrio do homem e sua segurança. O conflito é entre o homem e seu meio.

Em suas danças, Wigman buscou usar e expressar essas e outras ideias. Por exemplo em Monotonia em giro e Dança da bruxa, mostra o “ímpeto descontrolado” que leva a um “sentimento de possessão”, seja na criação ou execução (id., id.: 109-10; abaixo: por ex. 57-8). Já em Chamado da morte e Ritmo de festa, a possessão surge da “noção da vida frente à morte” (GARAUDY, 1980: 110-11; abaixo: 51 e 66). Finalmente, Garaudy (1980: 150) destaca o caráter dramático de Hanya Holm, ex-discípula e amiga de Wigman. Apenas observo que não se tratava de ser discípulo no seu sentido tradicional, prestando total obediência a Wigman. O maior respeito que se pode ter por esta é se apropriar de seus ensinamentos e desenvolver sua própria dança. Nesse sentido, sua herança parece até hoje irrefutável, sendo revista aqui pelo estudo e tradução de A linguagem da dança. Tendo como objeto a linguagem, o livro trouxe novas formas de escrita do corpo no espaço, sobretudo pela interseção com o teatro. Este caráter híbrido tão presente na arte atual transparece, para além do enunciado, no próprio estilo do texto. Deste modo, espera-se contribuir para atualizar e difundir a arte desta grande dançarina.

Wigman organizou e reelaborou várias anotações no período final da vida. Publicado dez anos antes da sua morte (a primeira edição é de 63, sendo usada aqui a de 86, conforme consta das referências), o livro é um dos resultados dessa sua atividade final. Nota-se que Wigman então não dançava mais, mas continuando a coreografar e dar aulas na sua escola. Sua última apresentação pública foi de fato em 42 com Adeus e obrigado, título do último dos capítulos do livro que são dedicados aos seus solos. Aliás, ela dá ali as razões que a levaram a deixar o palco. Dentro da tradição crítica sobre arte, pode-se também constatar que o livro se insere na produção escrita de grandes artistas que refletem sobre sua própria obra. O que a história classifica de fonte primária. Mais precisamente, encontramos no período tanto escritos autobiográficos pioneiros como de Nijinski e Isadora Duncan, calcados sobretudo nas suas próprias experiências de vida; como, no polo oposto, sistematizações metodológicas como de Stanislavski e Laban, preocupadas em fundamentar

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uma nova linguagem e dar à arte estatuto científico. Sistematizando novos procedimentos de criação, essas metodologias trouxeram, pouco a pouco, a subjetividade para o próprio corpo, enquanto matéria básica de criação. Se iniciou um processo de revisão da tradição, onde teóricos e criadores buscaram definir parâmetros técnicos e de linguagem, sem contudo se fechar numa visão única que desse conta das muitas transformações trazidas pela modernidade. Se tratava de responder à sua época com formas artísticas que dialogassem entre si, mas respeitando suas próprias especificidades.

Com o correr do tempo, surgiram novas publicações de artistas, mas sempre visando definir as tendências mais modernas em relação à tradição dominante. De modo geral, escrever sobre a própria obra pode ser uma maneira do artista clarear para si seu trabalho criativo, o que nem sempre é possível nas atividades do dia a dia, frente às exigências de ensaios e apresentações. Muitas vezes, ele tem uma percepção do seu trabalho que não corresponde à de um olhar externo, como de um pesquisador em artes. Nesse sentido, é sempre muito interessante confrontar o discurso de grandes artistas com sua prática.

Antes de mais nada, o artista é uma pessoa. A partir de Duncan, a dança deixa cada vez mais a reprodução de padrões externos para contar histórias pessoais. Ela dizia dançar sua própria vida. Ao lado da forma, o fluxo da vida dá equilíbrio e amplia o espetáculo, encontrando na dança moderna um celeiro de expressão. Sobretudo a partir de Laban, a busca pela fluência do movimento é sistematizada (análise de fatores e qualidades) por meio da percepção consciente da ordem em que são acionadas as diferentes partes do corpo. Assim, corpo, tempo e espaço comunicam modos de expressividade.

Com o fim da chamada Era de Goethe, sobretudo depois da segunda metade do século XIX, começam a aparecer na Alemanha propostas novas e variadas, que aproximam a arte do cotidiano e agregam elementos tidos como inferiores numa categoria das artes. Com novo projeto político-econômico mas conservadorismo social e cultural, a República de Weimar faz acirrar a oposição entre tradição e inovação. Frente a tal tensão, artistas alemães buscam pela simplificação das formas romper com princípios clássicos e românticos ainda operantes, em especial um modo de representar a realidade preso à figuração de elementos ideais da sociedade (ou seja, uma representação da representação). Movimentos como expressionismo, Bauhaus e a própria dança moderna tentam recuperar o passo da história ao circunstanciar suas criações na mudança de valores trazida pela modernidade. Wigman morou e trabalhou em cidades próximas a Weimar, como Berlim e Dresden, vivendo de perto as mudanças promovidas tanto pelos republicanos como depois nazistas.

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de se notar ainda a influência das duas Guerras Mundiais na arte da dançarina, desde a escolha dos temas até uma redução dos objetos de cena nas viagens. Mas a mudança na ordem política não alterou seus princípios. Se certos artistas, à maneira de Piscator e Brecht, criticavam a busca insana dos alemães por novos territórios (e segundo os historiadores foi sua perda territorial na Primeira Guerra que os levou à Segunda), Wigman parece ter se comportado mais como as mulheres depois de 45, que foram às ruas recuperar os tijolos debaixo dos escombros. Com essa imagem poética, pretendo apenas enfatizar os aspectos emocional e pessoal da sua dança, como em Adeus e obrigado. No capítulo por exemplo sobre Danças de

outono, ela faz um balanço da sua vida, confirmando suas posições estéticas frente ao

conturbado cenário da época. O pioneirismo e atualidade de Wigman podem ser mostrados ainda por sua preocupação em potencializar e dar forma ao conteúdo interior de seus intérpretes, enfatizando sua subjetividade, como é comum ao expressionismo.

O expressionismo, que teve grande representação na pintura como oposição ao impressionismo, destacou elementos oníricos em cena:

No palco, figuras humanas recortadas através de cones de luz, por vezes caricaturalmente, eram depois devolvidas à escuridão, numa tentativa de sugerir a projeção subjetiva a partir de uma consciência central (do artista) sob forte tensão emocional. E os elementos distorcidos da cenografia, além da maquiagem carregada deformando a expressão facial dos atores, reforçavam objetivamente essa projeção (MENDES, 1987: 62-3).

Numa aproximação ao teatro, são características do expressionismo na dança: “o grotesco e a careta, sublinhados por tensão muscular e deformação dos traços do rosto, um exagerado sentido do patético ou de carga cômica” (id., id.: 63). Assim, “O que se impôs mesmo foi o elemento dramático, predominando sobre a própria dança. Como formas alternativas, utilizava-se música composta especialmente para dança, interpretada por orquestras em que prevaleciam instrumentos de percussão, ou simplesmente se rejeitava a música...” (id., id.: 64). A denominação “dança expressionista” tem só função didática, pois deve-se considerar as especificidades de Wigman, que não se restringiu a esse movimento. Por exemplo, pode-se reconhecer a vinculação entre os temas mais recorrentes (a guerra, morte, feminino, mitos ancestrais ou populares e outros temas alemães revisitados, como o campo e as estações do ano) e formas adotadas (dança solo, dança de grupo, dança coral e a dança na ópera, no teatro musical etc).

De qualquer modo, Wigman não foi um acontecimento isolado. Aluna de Laban, fez uso de seus ensinamentos, ainda que de forma não sistemática. Publicou artigos e participou de debates, sua técnica foi divulgada em inúmeras escolas e foi diversas vezes

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homenageada, não só em vida. Em suas inúmeras experimentações, pode-se reconhecer escolhas que a aproximam das vanguardas. Cito desde a união entre arte e vida (o que no seu caso não implica em dissolução uma na outra), a desinstitucionalização da cultura, até a preferência pelo pano solto nos figurinos, em diálogo com o expressionismo ou Bauhaus e total oposição ao tecido armado e supercosturado do balé. Cito como exemplo Face da noite e

A celebração; sem falar na famosa Dança da bruxa, onde o tecido dá a forma cênica exata do

personagem. Ainda que a dança hoje tenha se diversificado enormemente com o fluxo cada vez maior de linguagens, há de se notar a influência de Wigman nas gerações posteriores, em especial na dança-teatro alemã, e o pioneirismo do livro, não só no que se refere ao entendimento do movimento da dança moderna nas suas necessidades internas, como também para o desenvolvimento da composição coreográfica.

Ao lado de Bausch, Wigman é talvez a maior dançarina e coreógrafa alemã. Antes e depois dela, houve sem dúvida outros grandes artistas de dança moderna e balé no país; mas ela se destacou ainda como figura da dança. O livro tem seu valor resguardado e seu conteúdo voltado na maior parte para seus processos de criação justifica uma aproximação tanto teórica como prática. A atualidade da sua dança é também atestada pela continuidade de suas propostas de linguagem e ensino da técnica. Diferente Bausch, Wigman foi uma artista independente, mantendo sua escola até poucos anos antes de morrer em 73. Como já dito, ela deixou muitos descendentes, que se utilizam ainda hoje de suas propostas, mesmo que de forma não ortodoxa.

Passando por Laban, Jooss e Wigman, se reconhece, portanto, uma linha de continuidade, que se desenvolve em novas técnicas e modos de ver a dança e amplia cada vez mais o leque de expressão do intérprete. Por exemplo, pode-se encontrar semelhanças entre Wigman e Bausch, em especial o interesse mais pela personalidade do intérprete que por seus dotes físicos, um se deixar levar pela própria intuição durante os ensaios e o uso, é claro, da teatralidade. A intuição é uma percepção profunda, que muitas vezes nos leva a uma ideia, podendo ser desenvolvida através de exercícios e trabalho. Nota-se ainda a contribuição de Wigman para a composição coreográfica, que então ganhava força. Pelo menos na dançarina, a introdução de elementos teatrais na dança não significou na perda da especificidade desta última linguagem. Ou seja, o uso desses novos elementos visava para ela desenvolver seus próprios meios expressivos. Muitos artistas da época intercambiavam aleatoriamente nas suas criações princípios da música, artes plásticas e até cinema, bem como outras manifestações aparentadas mas menos representativas. Já Wigman se valia de outras artes para aumentar a expressão dos recursos próprios da dança, contribuindo nesse sentido para que sua arte, então

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em desenvolvimento, não se descaracterizasse.

Viajando o mundo sozinha ou com sua companhia, Wigman teve intenso contato com artistas estrangeiros, não chegando infelizmente a se apresentar no Brasil. Ao contrário de outros renovadores como Graham, Cunningham e Limón, sua técnica quase não é ensinada aqui. Pode-se perguntar com a morte de Bausch: qual é o futuro da dança-teatro? Sua continuidade depende não só da força e sintonia das novas composições com o presente, mas também a transmissão dessa tradição viva a partir de novas sistematizações. É desse modo que contemplo os ensinamentos e coreografias (ao menos as mais marcantes) de Wigman, contribuindo para organizar o pensamento sobre a dança dentro das políticas bilaterais entre Brasil e Alemanha. Por outro lado, pode-se dizer sem medo que o interesse crescente nas últimas décadas pela dança contemporânea, não só por parte dos artistas e pesquisadores como também do público brasileiro, tem resultado em produções mais e mais sofisticadas e bem fundamentadas, com destaque para a atuação dos coletivos independentes.

A linguagem da dança é uma mistura de reflexão sobre a arte de dançar, trajetória

artística, compêndio técnico e “livro do professor”. Numa definição sintética, pode-se dizer que seu objetivo é mostrar como a dança se torna linguagem: o que ela consegue através do estudo do equilíbrio entre forma e fluência do movimento, atestando sua dívida com Laban. Portanto, ele não é um mero registro e nem também uma análise estética que vise promover a obra da dançarina. Escrito de maturidade, se vale antes das coreografias para mostrar sua visão da dança, procedimentos de criação e de construção da linguagem; além da coerência do seu percurso profissional. Atrelado aos acontecimentos da sua carreira e período em que viveu, ele se revela como a transmissão de uma sabedoria, adquirida em longos anos de dedicação ao trabalho. Isso é evidente já no primeiro capítulo, onde a dançarina expõe não só o que pretende com ele, mas o que a levou a escrevê-lo e para quem está dirigido. Além disso, ela deixa claro não se tratar de um manual de preceitos para criar uma boa coreografia ou ser um grande intérprete. Na verdade, encontramos a cada capítulo descrições de procedimentos bastante variados, conforme o tema ou forma coreográfica escolhida. Mas, ao final da leitura, é possível subentender um conjunto de regras bem preciso, representando um salto em relação ao pensamento anterior sobre a dança.

Relacionando o fazer artístico, acontecimentos que viveu, e evolução da técnica e pensamento da dança (incluindo a recepção pelo público), os elementos apresentados no livro são parte da própria trajetória artística da dançarina, representando uma ruptura em relação à produção anterior e servindo de inspiração para gerações futuras. Nessa perspectiva vinculada ao fazer, dedica maior atenção às criações coreográficas. Na maior parte, as escolhas nessas

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criações consideram experiências vividas fora do palco ou então sensações provocadas pelo movimento corporal. A dança nasce do movimento corporal, recebendo tratamento estético que resulta num produto a ser apreciado pelo público. Permeada por sua sensibilidade, é a ação do artista que produz o espetáculo ao atribuir beleza ao objeto da vida. A transcendência desse objeto remete a um espaço e tempo de criação.

Nos seus processos criativos, a experiência ainda impregna o corpo de sensações, que são retrabalhadas durante os ensaios para ganhar uma força que comova, e não consterne, o público. Se estabelece certa separação pela manipulação dos recursos cênicos e uso da luz, cenário, figurino, trilha sonora, maquiagem e a própria interpretação, sendo o material de criação poetizado e simbolicamente transformado. Permanecem no livro certas regras de procedimento, passíveis de serem reutilizadas por outros artistas. Resumidamente, Wigman começa expondo sua concepção da dança a partir da relação com a própria vida, apresentando as características desta linguagem e seu uso nas outras artes. Entre outras coisas, fala da importância do solo como a forma mais sintética da dança, passando a descrever a criação de alguns solos importantes da sua carreira. Por fim, dedica um capítulo à diferença entre dança coral e dança de grupo e reflete sobre sua experiência como professora.

Permeando essas reflexões, encontramos exemplos que atestam sua profunda consciência da realidade da qual participava, evitando qualquer falso exotismo; tal como se vê por exemplo no capítulo sobre Dança de Niobe. Ainda, é possível encontrar em The Mary

Wigman book diversos escritos onde a dançarina mostra preocupações bastante concretas,

como a profissionalização do intérprete e sua responsabilidade com aquilo que comunica em cena, a culpa dos alemães frente às duas Guerras Mundiais, o papel da mulher na sociedade, o resgate da cultura alemã, a divulgação da sua técnica em escolas de dança dentro e fora da Europa (são significativas nesse caso as cartas trocadas com Hanya Holm), a “popularização” da dança moderna, o uso da dança em outras linguagens como a ópera e teatro musical, o intercâmbio com outros intérpretes e coreógrafos de dança moderna, entre várias outras; além de trechos de escritos que foram publicados na impressa ou apresentados em congressos. E sem falar ainda em anotações de ensaio onde revela sua quase obsessão pelo trabalho incansável.

Leitura sobretudo para iniciados, A linguagem da dança trata da transformação do real em símbolo. Essa semente factual sobre o produto da fantasia marca o registro das palavras dessa criadora. Sua importância singular frente aos novos processos de criação e produção parece inesgotável, superando a tradição e influenciando procedimentos atuais. Calcado na memória, tal testemunho assume valor histórico fundamental enquanto documento

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artístico, revelando o espírito de uma época, marcada ao mesmo tempo pela triste experiência da guerra e ideias efervescentes de grandes personalidades da história. No livro, os aspectos de uma vida dedicada à dança se unem à força renovadora das criações por ela descritas. Explorando a subjetividade e dotes instrumentais do intérprete, sua dança expressa a emoção, numa dramaticidade que ao mesmo tempo esconde e revela. Através da aguda observação do humano, ela destrincha a organização harmônica do movimento no espaço, sendo o corpo aí receptáculo de experiências codificadas na forma final do espetáculo. A compreensão do progresso dos seus processos criativos e de uma dança que é também vida reconstruída no palco não se desvincula de sua recepção estética.

Wigman teve mais de uma vez sua própria companhia, frequentemente formada por ex-alunos, que transformaram suas ideias em obra de arte nas várias partes do mundo por onde se apresentaram. Ela conhecia as exigências do trabalho coletivo, sem medo de se aventurar em experimentações estilísticas. Num certo sentido, seu estilo se estabeleceu a partir do autoconhecimento e necessidade de ser fiel consigo (abaixo: 43). Esse conhecimento do artista enquanto pessoa implica para ela em aprender a criar e repetir por si mesmo, falando “sua própria língua” (id.: 88). Tais princípios refletem no seu trabalho como professora, que não reduz o ensino ao material de aula. É preciso também aprender a absorver os acontecimentos da vida, lhes reconhecendo seu sentido recôndito (id.: 90). Esse admirar as coisas como quem as vê pela primeira vez se aproxima da curiosidade e encantamento da criança.

Unindo a pessoa e a obra, Wigman transforma o espetáculo em experiência artística. Quando o aluno ou intérprete encontra seu caminho na arte, a intuição atua como guia ao lado do conhecimento (id.: 43). Também é preciso entender o corpo como instrumento, onde a apropriação de dimensões como altura, profundidade, comprimento, largura, frente, trás, lados, horizontal e diagonal garante a dinâmica da composição coreográfica (id.: 46). Do mesmo modo, no teatro as forças dinâmicas do corpo viram sua segunda natureza. Entre os exercícios teatrais para tal fim, destaco o plateau de Lecoq.

O equilíbrio espacial ainda depende do desenvolvimento das partes do espetáculo numa configuração estruturada. Wigman exemplifica essa tarefa na solução coreográfica para os coros masculino e feminino em Monumento aos mortos (id.: por ex. 81-2). Também a forma, luz e cor se relacionam com o espaço em perspectiva, promovendo a expressão dos movimentos no palco. Para atingir tal resultado, recursos são mobilizados durante os ensaios. O esforço do trabalho contínuo deve transformar o material de criação num conteúdo significativo e às vezes surpreendente (id.: 91). Para Wigman, o bom resultado do ensaio

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depende do nível de comunicação entre o diretor ou coreógrafo e intérpretes (id.: 42). Também quanto à técnica, Wigman usa com eficácia em seus solos o recurso de um parceiro invisível; ou seja, um ser imaginário com quem se pode dividir a cena (id.: 51). Paralelamente, cito como recurso expressivo na minha prática a busca do ponto dramático da cena, proposto pelo prof. dr. Armando Silva (ECA/USP) (aulas nas disciplinas interpretação I e II no curso de artes cênicas da ECA/USP, em 1994). Eu o apliquei quando dirigi um espetáculo de cenas teatrais com meus alunos em Mogi das Cruzes. Por exemplo, numa das cenas, do acerto de contas do casal central de Perdoa-me por me traíres, o ponto dramático estava pouco antes do seu final. Ou seja, quando este casal discutia antes de se reconciliar num abraço.

É desse modo que ideias que me parecem essenciais em Wigman repercutem no meu trabalho. E na medida em que se universalizam enquanto referenciais, ganham relevância no esclarecimento de atributos e particularidades de espetáculos de que participei, seja pela similaridade ou contraste. Para mostrar como minhas reflexões a partir de A linguagem da

dança se aplicam em outros contextos e enriquecem minhas próprias vivências profissionais,

me deterei a seguir em pontos precisos do universo da dançarina: 1) a forma e fluência do movimento, processo aberto e autonomia na criação; 2) elementos cênicos na dança, como personagem, figurino, música, texto etc, e sua relação com outras artes, como a ópera e sobretudo o teatro; e 3) ferramentas da dança moderna que também são usadas na dança e teatro contemporâneos, como a improvisação, sensação corporal e experiência (essa inclui a personalidade do intérprete). Esses pontos, diluídos pela tese, serão exemplificados por coreografias de Wigman e espetáculos de que participei.

É possível reconhecer na linguagem de Wigman um equilíbrio entre a forma e fluência dos movimentos no espaço, equalizando o problema da forma e fôrma, como molde que aprisiona. Isso pode ser observado na sua técnica e procedimentos como sendo uma característica da dança moderna. A linguagem da dança foi escrita de um ponto de vista interno, o ponto de vista do artista. Wigman não se concentra, como já dito, em desenvolver um vocabulário específico de trabalho, nem em sistematizar padrões rígidos de movimento para seus processos criativos. Na maior parte, trata no livro da criação de importantes solos e como desenvolve novas ferramentas de composição coreográfica, conforme as exigências de cada coreografia. Ao dizer que a forma não é um fim em si mesmo, mas se modifica durante os ensaios, ela defende a primazia da criação artística, cabendo ao espetáculo suas próprias necessidades.

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coreográficos de suas danças. Em Figura de cerimônia, ao usar uma máscara sem orifício para os olhos, ela teve de se mover de modo muito contido. Contido também porque a máscara apresentava traços neutros, como uma figura neutra de cerimônia. Aqui a máscara determinou a forma do movimento do personagem. Também quanto a Monumento aos mortos, uma dança coral sobre soldados mortos na guerra, Wigman aponta problemas de ensaio na criação dos coros masculino e feminino, que se movem através de uma sonoplastia de ruídos. Nesse sentido, a batida de um tambor se tornou a solução para conduzir a evolução coreográfica do coro. Também o uso de cartas de guerras lidas por intérpretes criou empatia no público. Outras soluções para problemas de ensaio são a transferência de peso em Pastoral para criar a sensação do balanço das ondas do mar, situações de desequilíbrio com o corpo guiado pelo vento em Canto da tempestade, imagens criadas com o corpo no plano médio6 do espaço para representar o touro em Ritmo de festa e oposições no corpo em Canção do destino para expressar o desespero e rebelião contra o destino.

Em Wigman, ainda existe um hieratismo ligado à estetização do movimento, mesmo se este é inspirado numa experiência de vida. Na dança contemporânea, essa estetização geralmente decresce. Como na dança contemporânea, já é possível observar aqui características de um processo criativo aberto. Isto é, um processo onde a intuição ocupa um papel importante e o trabalho não segue um fim prévio. Por exemplo, o processo de

Monotonia em giro começou com um som de gongo, resultando em movimentos rotatórios

como se ela fosse sugada. É similar ao começo, quando ela se sentiu sugada ou hipnotizada pelo som do gongo. Geralmente nos seus processos criativos estímulos iniciais a guiam para uma nova criação. Outro exemplo é Dança da bruxa, onde se refere a um ímpeto criativo. Junto com características de um processo aberto, vale notar que a época de Wigman marca o surgimento da figura do encenador e a ênfase no aspecto visual do espetáculo, como imagem cênica no palco. Para ela, a dança atinge seu objetivo quando se amplia como imagem no espaço.

Autonomia também é uma característica da dança de Wigman. Ela diz por exemplo que o jovem intérprete deve buscar sua própria expressão, sem se resignar a ser mero imitador. Dar autonomia não é só estimular os intérpretes a criarem por si mesmos, mas observar o que são capazes de fazer de modo a se tornarem responsáveis pelo que expressam no palco. Um exemplo em Wigman é mais uma vez Monumento aos mortos, onde cada intérprete teve de achar por si mesmo a postura para sua máscara. Na minha carreira,

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desenvolver autonomia tem sido especialmente importante, desde meu trabalho com minha colega Sabrina Cunha. Também durante essa pesquisa, exercitei autonomia ao ressignificar as ideias de Wigman na minha prática. Finalmente, a autonomia se relaciona ainda à exploração da personalidade do intérprete no processo criativo, como mostrarei mais à frente.

A dança hoje frequentemente inclui outras linguagens, além da música. Esse hibridismo já está presente na dança moderna. Wigman desenvolveu por exemplo coros coreografados em óperas. Em Alceste, criou o reino da morte através da dança. A musicalidade é especialmente importante para ela. Ela também criou danças no silêncio, mas muitas de suas danças usaram músicas de grandes compositores, música sacra (como em

Canção seráfica) ou folclórica ou música composta por seus pianistas a partir da própria

movimentação dos intérpretes. Num certo sentido, a música impulsiona fortemente a emoção do intérprete. Quando Wigman coreografou A sagração da primavera, pôs a música em primeiro plano; ou seja, esta deveria conduzir os movimentos. Como a música impulsiona a emoção é um procedimento adequado ao expressionismo, do qual Wigman participou. A música aqui estimula, criando diálogo ou mesmo contraponto com a movimentação do intérprete.

Antes de mais nada, a técnica de movimento em Wigman é uma técnica expressiva, enfatizando uma vez mais a emoção e elementos teatrais. Esse recurso traz reconhecido impacto dramático para seus espetáculos. Isso também quer dizer investigar o próprio corpo e movimentos pessoais surgidos de conteúdos internos. Explorar a personalidade do intérprete é um novo método de criação, diferente por exemplo do balé, onde as habilidades físicas ocupam papel central. Ao expor sua personalidade no processo criativo, o intérprete na dança moderna potencializa e dá forma a conteúdos internos. Wigman critica o virtuosismo que leva ao narcisismo. A virtuosidade surge para ela do conhecimento dos músculos, articulações e respiração. Atualmente, a frase coreográfica é ainda muito praticada por muitos alunos, mas improvisar ajuda quando estes precisam criar movimentos novos e pessoais. Vencendo a resistência quando nos é cobrada autonomia e elaborando o material criativo, atingimos qualidade artística. Por exemplo ao usar pausas, damos cor à dança, ao invés de um movimento intermitente. De certo modo, esquematizamos conhecimentos da vida, sem nos fecharmos no preciosismo da forma perfeita. Isso exige, entre outras coisas, autodisciplina, talento, destreza física, noção do coletivo e prontidão criativa.

Manipulando qualidades próprias e elementos de cena, podemos dar expressão a ideias às vezes muito subjetivas. Em Dança da bruxa, um tecido exótico e uma máscara

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ajudaram Wigman a definir o personagem. Lembro que no palco, o personagem é uma pessoa, com suas próprias qualidades e defeitos. Em A celebração, um figurino geométrico compunha com a tridimensionalidade do corpo. E, como já mencionado, o texto foi usado em

Monumento aos mortos. Para a dançarina coreografar é esculpir o corpo. Como o teatro nesse

período insere tridimensionalidade nos espetáculos (no cenário bem como na interpretação), em Monotonia em giro e outras danças em giro a tridimensionalidade é central nos movimentos rotatórios. Essa diversidade no palco é ampliada pela dança e teatro contemporâneos. Mais e mais os intérpretes desenvolvem a criatividade, mesmo em exercícios técnicos, resultando em regras ou estruturas mais precisas que enfatizam a proximidade com outros colegas de cena e o público; além da inserção de associações pessoais na criação.

A improvisação tem papel especial na técnica composicional de Wigman para solos e danças de grupo. Improvisar amplia os recursos da dança para ela. Por exemplo seu último solo, Adeus e obrigado, era uma dança muito pessoal, que mostrava seu sentimento de renunciar ao palco sem se resignar. Para expressar esse material subjetivo, ela usou movimentos livres, com uma parte do corpo acionando outra. Também em Canto da

tempestade, ela usou movimentos livres nos planos alto, médio e baixo do espaço para

expressar um corpo guiado pelo vento. Aqui a improvisação é direcionada para a construção da cena. Improvisar desenvolve especialmente a presença de palco, permitindo responder às propostas dos colegas. Isso é muito rico para o coreógrafo ou diretor, pois este pode ver o intérprete engajado na cena. É também verdade que Wigman explorou amplamente a frase coreográfica como ferramenta de composição, mas esta estava à disposição de sensações e experiências usadas na criação. Na vigorosa Dança da bruxa, frases coreográficas foram desenvolvidas de experimentos sensoriais em sala de ensaio. Aqui, a sensação causada pelas mãos agarrando o chão se transformaram num sentimento de excitação, que foi precisamente coreografado em movimentos centrais, como da bacia, e periféricos, como da cabeça. A sensação assim enriquece a movimentação. Também em Dança de Niobe, os punhos fechados batendo contra o peito lhe permitiram expressar indignação com a morte na guerra.

Além da sensação corporal, experiências de vida como vivências são importantes estímulos na criação de movimentos, personagens ou cenas. Mais uma vez em Dança de

Niobe, o horror de ter estado num abrigo antiaéreo a levou a uma dança onde uma mãe embala

uma criança. Para Wigman, a dança não é só entretenimento, mas surge, entre outras coisas, do movimento humano e sua emoção, bem como observação da realidade. Observar uma tourada na Espanha, uma catarata de rio nos Estados Unidos e um cemitério na França

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permitiram a ela usar associações pessoais no processo criativo. Wigman mostra profundo senso de observação da realidade na qual está inserida. A observação da realidade também tem sido importante no meu trabalho. Fiz espetáculos onde se discutiu a mecanização da vida moderna, a violência na sociedade e a cinestesia na cidade de São Paulo. A vida caótica de pessoas cheias de esperança. Como em Wigman, recursos são mobilizados conforme o tema do espetáculo, tendo a vida diária papel especial. Essa é uma característica do teatro e dança contemporâneos, onde se busca, mais que a justaposição de movimentos ou cenas, um processo de concentração e seleção através da repetição.

A seguir explicito meu entendimento da dança e o sentido de estar no palco para mim. No capítulo Tradução, apresento a tradução integral do livro de Wigman, com uma nota inicial onde coloco dificuldades surgidas e exemplifico com termos centrais. O capítulo

Refletindo sobre processos criativos está dividido em Mary Wigman e suas contribuições e Breve apresentação de meu percurso artístico. No primeiro subcapítulo, discuto dados

biográficos de Wigman, seus processos criativos e trabalho como professora e figura da dança. E no segundo apresento brevemente minha carreira e discuto espetáculos de que participei. Já o capítulo Considerações finais está dividido nos resultados da pesquisa no cenário artístico e na minha prática. No primeiro subcapítulo, decanto a pesquisa a partir de elementos de Wigman presentes no teatro e dança da época e atuais. Finalmente no segundo discuto por exemplo o uso da improvisação e alguns elementos essenciais para criar e atuar no palco que comprovam a atualidade do livro.

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