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Velhice: anatomia política dos discursos dominantes

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VELHICE: ANATOMIA POLÍTICA DOS DISCURSOS DOMINANTES

Isolda Belo

Se a morte é certeza para todos os seres vivos, no caso de brasileiros - e, principalmente, nordestinos -, a sua ação parece vir antecipada. Em parte, por decorrência da expectativa média de vida no país: 54,6 anos para o Nordeste e 69,2 anos para o Sul (PNAD/ 1984) o que, além de evidenciar as desigualdades internas, revela a sua distância dos índices encontrados nos países centrais, onde a população idosa chega a atingir - em boas condições de saúde - a média de idade próxima ou superior aos 80 anos.

Além deste dado objetivo, parece haver, ainda, uma morte diferente e anterior á morte fisica, como se existissem féretros sociais, que enterram o homem antes de seu fim biológico. Há o fim da vida social, através da marginalização do idoso, da obstaculização ao exercício de sua cidadania, embasados em uma lógica, que atribui às limitações fisicas, a origem de todas as fronteiras impostas ao velho. Uma lógica que transforma o desgaste biológico humano, em responsável único, por todas as perdas que se efetivam neste período,

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tendo, por conseqüência, o encaminhamento de soluções para a problemática, através de medidas apelativas à sociedade pelo respeito e amor aos "seus velhinhos" ou, na criação de instituições segregatórias, aparentemente tidas como de apoio a esse segmento.

Este trabalho procura questionar as verdades que legitimam a expulsão do idoso dos diversos canais de participação, e que apresentam o término da vida social e política como conseqüência única do desgaste fisico e da iminência da morte. Parte-se do pressuposto de que não são apenas os fatores biológicos os responsáveis pela perda de poder da pessoa velha, procurando-se revelar a importância fundamental dos elementos políticos e econômicos presentes neste processo.

Existem discursos específicos sobre a velhice, que se constituem em um instrumento capaz de justificar e contribuir para a gradativa expulsão da pessoa velha. Não se pretende aqui, negar a proximidade da morte e de seus medos que a velhice parece representar. Na verdade, o que se contesta é a onipotência desses fatores nas causas que levam o idoso à marginalização. O nosso objetivo é desvendar as lacunas existentes no pensamento dominante, que justifica o banimento da pessoa idosa, através única e exclusivamente de fatores biológicos. Dos discursos

É consensual a constatação de que ocorrem perdas substanciais para o indivíduo, no momento em que este atinge a faixa etária próxima aos sessenta anos. Comumente, a esse fato, corresponde uma explicação, que se limita a justificá-lo através da diminuição das capacidades físicas da pessoa. E um pensamento tido como óbvio, pelo senso comum, de que a segregação do velho decorre de um fator natural, imutável, que reside em seu próprio corpo e na forma como este foi cuidado no transcorrer da vida. Há uma associação imediata entre velhice e corpo desgastado; pensar em velho, remete à imagem de um corpo decadente. Desse modo, o aspecto fisico é o elemento presente de forma inquestionável, em todas as reflexões a respeito da marginalização do idoso.

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Ao mesmo tempo, não apenas no senso comum, mas em grande parte dos textos especializados, é freqüente a utilização de tipos ideais de pessoas idosas e suas velhices: Chaplin, Sartre, Beauvoir, Albert Sabin, são alguns dos inúmeros exemplos citados em estudos que tratam da questão. A tentativa de convencer, através destes modelos, sobre a possibilidade, ou mesmo, a certeza, de ser prodigioso este período, parece ser apenas mais um mecanismo de omissão das dificuldades inerentes ávida da pessoa velha, na medida em que sugere que cabe ao idoso a opção entre ser ou não prestigiado e produtivo.

Esse caráter individualizante e, também, enfático no biológico, obscurece um possível questionamento acerca dos mecanismos que impulsionam a expulsão do idoso das diversas estruturas de poder, da mesma forma que parece revestir de plenitude a velhice desses "heróis da terceira idade", omitindo as dificuldades sentidas para as pessoas "comuns" ao vivenciarem esse período.

As práticas sociais estão diretamente relacionadas com o conhecimento que a sociedade possui do real. Em qualquer nível de abrangência em que se efetivem, as relações sociais produzem conhecimento que se mostra fundamental para a dinâmica do exercício do poder. Este, por sua vez, não se exerce acima dos homens, mas sim, através deles, em sua vida cotidiana, caracterizando os micro-poderes (Machado, 1986; p. XII). Sendo assim, a reflexão sobre as idéias presentes no senso comum, permite o desnudamento dos interesses implícitos nestes saberes - aparentemente neutros e difusos - que perpassam o cotidiano. O conhecimento deste saber, presente na prática diária, permite a análise da maneira como as técnicas do poder atuam nesses níveis, ao mesmo tempo em que fornece elementos para a compreensão da forma como se encontram acoplados e são investidos pelos fenômenos mais globais.

Em um artigo de Millôr Fernandes, tem-se um exemplo representativo das principais concepções presentes no senso comum sobre a velhice, sintetizadas em "dez mandamentos". Referem-se, basicamente, a fatores como dependência, assexualidade, segregação, descompasso com o ritmo "moderno" e ameaça de morte, quando

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não, o seu registro em vida:

"...você está realmente velho, quando:

1.Não acredita mais em amor à primeira vista mas prefere nem pensar em amor à última vista;

2. Acha que onze e meia já é madrugada;

3. As mulheres te fazem confissões sobre outros homens; 4. Diz menos: vamos lá. E muito mais: não vale a pena; 5. Troca o cooper pelo massagista;

6. Uma mulher declara que vai te amar pelo resto da vida e você pensa (mas não diz): "Grande vantagem";

7. Alguém, com a maior naturalidade do mundo, te pega pelo braço ao atravessar a rua;

8. Pensa em largar tudo e percebe que tudo já te largou há tempo; Verifica que quase todos os candidatos à presidência são mais

moços que você;

10. Todos os teus amigos já tiveram seus quinze minutos de glória na capelinha do São João Batista". (Millôr, 1986, p.16);

A velhice encarna um fenômeno estático, não processual, como se este não fosse um período de vida decorrente de um processo, mas sim, algo que se opõe ao período da juventude e maturidade, de maneira inteiramente nova, diferenciada. O indivíduo perde sua identidade social anterior, deixando de ser concebido enquanto profissional, membro da família etc., para se transformar unicamente na categoria: velho. Evidencia-se uma estigmatização, ou seja, a ênfase acentuada em um

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aspecto considerado negativo, capaz de invalidar todos os outros atributos existentes.

Por outro lado, o "velhinho" de que tanto se fala tem, ainda, sua imagem associada à infantilidade, respaldando um tipo de relação social impregnada pelo paternalismo, que impõe o distanciamento do idoso, no que diz respeito à tomada de decisões. Encontram-se termos utilizados para encobrir o preconceito existente e, ao mesmo tempo, instrumentalizar a sua exclusão, tais como, "pessoa de certa idade", "idade avançada", "vô" e outros, que acentuam mais ainda a necessidade de lhe impor uma posição à margem de qualquer responsabilidade no que se refere à participação ativa na sociedade. São dois extremos que se encontram: o velho "caduco" e inútil é o mesmo vovô que deve merecer o respeito (excludente) de todos.

Há também a tentativa de negação da velhice, associando-a a um estado de espírito: quando o velho é reconhecido socialmente pelo desempenho positivo de certas atividades, possui sua imagem automaticamente associada a do jovem; "velho com espírito jovem"; "velho moço" etc. Com base na concepção dominante, não é possível ser velho e produtivo ao mesmo tempo. Daí a relação inversa: se ele produz, aceita-se a produção, omite-se a senescência. Somente a juventude pode ser apresentada como sinônimo de vitalidade e

produtividade.

Na velhice, portanto, ocorre uma alteração nas práticas sociais, em que o idoso é afastado dos canais decisórios, tendo que ser aquele indivíduo que se retira pacificamente do presente, relembra os "bons tempos passados", e participa do hoje apenas no que diz respeito a pequenas tarefas que lhe são concedidas pelos mais jovens. A sua inserção é rejeitada de forma "sutil", isto é, mascarada por conceitos que sublimam esta rejeição. O velho já não deve realizar certas atividades ou tomar determinadas decisões "para ser poupado", "para evitar que se canse muito", "para não ter contrariedades", e tantas outras justificativas, que escondem a imposição de seu distanciamento dos processos de poder: "Não se discute com o velho, não se confrontam opiniões com as dele, negando-lhes a oportunidade de

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desenvolver o que só se permite aos amigos: a alteridade, a contradição, o afrontamento e mesmo o conflito ( ... ) Se a tolerância com os velhos é entendida assim, como uma abdicação do diálogo, melhor seria dar-lhe o nome de banimento ou discriminação" (Bosi, 1979: p. 36).

A relação do mundo dos jovens com os velhos (e dos velhos com os próprios velhos), toma-se paradoxal, diante da organização do próprio sistema: ao mesmo tempo em que a sociedade industrial e tecnológica exige do indivíduo uma constante atualização, impõe àquele com mais de sessenta anos, um alheamento do presente. O velho já não pode participar do mundo que é dos jovens, porque, em tese, o seu sistema de valores pertence a outra geração, e qualquer reciclagem é tolhida pela segregação que a sociedade lhe impõe. Este isolamento atinge uma situação extremada, no processo de institucionalização do idoso em regime de internamento, quando ocorre uma ruptura quase por completa de todas as relações e práticas anteriores, que são substituídas por uma vida em coletividade, onde lhe é retirada a autonomia e reforçada uma posição de dependência.

De acordo com os dados obtidos por pesquisa realizada pela Fundação JoaquimNabuco em instituições asilares (Belo: 1990),39,6% dos velhos entrevistados consideram inviável a participação do idoso na sociedade. Para 14,1% dos que apontam a possibilidade de sua inserção, ela só é permitida aos idosos com poder aquisitivo suficiente para "fazer caridade". Em 12,5%, ainda, fica restrita ao papel de contador de histórias. Assim, mesmo aqueles que acreditam em alguma forma de ação do velho, esta só pode se manifestar através de comportamentos submissos, passivos: "Espera-se do velho atitudes dignas, limpâs, serenas, doces, como se na velhice fosse alcançada a beatitude" (Canoas, 1983).

Essa concepção pode ser melhor compreendida, através das informações obtidas na mesma pesquisa, que se referem aos indicadores da velhice, isto é, às características que os próprios idosos atribuem para formação de uma auto-imagem de velho: 33,9% dizem não se sentirem idosos. Apesar de estarem morando em instituições geriátricas e de terem atingido uma idade que os localizaria neste segmento,

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utilizam como referência o estereótipo presente no senso comum, em que o velho aparece destituído de qualquer atribuição positiva. Neste caso, se eles têm saúde, e de uma certa forma se sentem participando do cotidiano, imediatamente, não se consideram velhos. O indivíduo só se reconhece (e reconhece o outro) enquanto idoso, no momento em que é desencadeado um processo patológico de envelhecimento.

De acordo com Beltrão (1984), há dois tipos de envelhecimento: o patológico e o eugênico. No primeiro tipo, ocorrem doenças incapacitadoras para os indivíduos; enquanto que na forma eugênica, há um desgaste natural, embora não gerador de incapacidades. Com isto, demonstra-se o equívoco cometido, quando se estabelece a relação automática entre velhice e doença, uma vez que é possível, viável e tem sido freqüente em países como a França, por exemplo, atingir esta faixa etária apenas com limitações de natureza física, que não impedem (ou não impediriam) a plena participação na sociedade.

O segundo maior percentual obtido (23,2%) registra como principal indicador de velhice, a observância de alterações físicas consideradas negativas em função da analogia com ajuventude. Fatores como "não poder mais dançar", "cansar logo", "ficar feia", foram freqüentemente apontados como elementos que permitem a conscientização sobre sua própria velhice. A ausência de saúde -geralmente associada a uma debilidade do corpo que gerou dependências—, aparece apenas em 13,3% das respostas. No entanto, este último percentual eleva-se substancialmente, quando se tenta saber o que eles indicam como principal desvantagem em ser velho: 27,2% afirmam ser a doença (ou o medo de adoecer). Com relação a esta mesma pergunta, tem-se que 20,6% consideram a velhice como um período de vida inteiramente desvantajoso, negativo.

Questionando de forma inversa, isto é, sobre a vantagem em atingir esta faixa etária, amplia-se mais ainda esta destituição de qualquer valor positivo à velhice: 59,6% dizem não haver nenhuma vantagem.

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as idéias dominantes acerca da velhice são reproduzidas, sem críticas, pelos idosos institucionalizados. Expressando, ainda, a assimilação desse saber hegemônico, observa-se, de um lado, a postura de negação

da velhice, se o idoso não se apresenta em acelerado desgaste fisico. De outro, responsabiliza-se o processo fisico de envelhecimento por todas as perdas que lhe ocorrem. Não há um questionamento sobre sua própria segregação, ou da inexistência de uma melhor infra-estrutura institucional (incluindo aí o atendimento médico-geriátrico de caráter preventivo), ou de falta de recursos, e ainda, quanto à ausência de espaços, lazer, relações sociais e afetivas etc. Não questionam, também, as péssimas condições de vida impostas a uma grande parte da população brasileira que, na verdade, são as principais responsáveis pelo fato de uma parcela significativa de pessoas, atingir esta faixa etária, realmente, de forma doentia. É como se a velhice representasse um fenômeno homogêneo, independente de classe social e de história de vida. A situação em que se encontram os velhos em geral, parece ser apenas decorrência do processo natural de envelhecimento, tornando sem sentido, qualquer tentativa de mudar uma realidade "determinada por Deus". O corpo fica sendo responsável pelas perdas corpóreas e não corpóreas. A espera da morte apresenta-se como única função do idoso, pois apresenta-se há maior suscetibilidade fisica para a contração de doenças, e a proximidade da morte, não se investe no presente, deixando o idoso apenas com estas últimas opções.

Dos discursos científicos

O saber do senso comum extrapola os limites das vivências individuais e das microrrelações, podendo ser encontrado, com freqüência, em grande parte da bibliografia sobre o assunto. Na literatura, assim como em estudos científicos e em documentos escritos por especialistas, encontra-se, em geral, um discurso semelhante sobre o idoso em nossa sociedade.

Na maior parte das obras consultadas, pode-se identificar uma característica messiânica, no sentido de prescrever fórmulas de ação a

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serem seguidas pelo geronte. Apesar de em muitos casos posicionarem-se em defesa do idoso, não é raro apreposicionarem-sentarem uma postura paternalista, preconceituosa e, principalmente, individualista e biologizante da problemática. Em um artigo da Revista Médica Senecta, diz o autor: "O velho sadio não é psicológica nem fisiologicamente velho. O que caracteriza a velhice não é a quantidade dos anos vividos. Nem é o estudo das artérias, como dizia Metchinikof. Nem é a anormalidade endócrina, como queria Pende. O que caracteriza a velhice é a perda dos ideais da juventude, é a dessintonização com a mentalidade do seu tempo, é o desinteresse pelo cotidiano nacional e internacional, é o humor irritadiço, é a desconfiança no futuro, e desamor ao trabalho"(Ávila: 1978; 22).

Seguindo esta afirmação, o ciclo de vida se resumiria à infância e à eterna juventude, dependendo exclusivamente dos cuidados mantidos pela própria pessoa. Mas, o que é pensar e agir como jovem? Quais os critérios - excluindo a saúde ou sua ausência -, para diferenciar as duas etapas?

Tanto o autor anteriormente mencionado - que representa parcela significativa dos estudos sobre o tema -, como os discursos que expressam o senso comum, parecem considerar a patologia fisica como único critério para enquadramento de um indivíduo na categoria "velho". Sob essa ótica, a pessoa que se apresenta organicamente saudável tem sobre si, a responsabilidade de destituir-se desta classificação, tornando-se produtivo, autônomo, enfim, "jovem". Omitem-se, dessa forma, os mecanismos políticos e sociais que excluem o indivíduo das diversas estruturas, seja como conseqüência das baixas aposentadorias, seja pelas limitações dos espaços de participação.

Fica evidente que nas diversas esferas sociais, inclusive entre os detentores do poder político, faz-se, normalmente, uma apologia à juventude, em detrimento de uma reflexão mais aprofundada sobre a problemática do idoso, restringindo-a aos elementos biológicos .e trazendo, como conseqüência, o postulado de que o processo de perda de poder que ocorre nessa faixa etária, é decorrência exclusiva da

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diminuição da capacidade flsica. Da associação imediata entre doença no idoso e essas perdas sofridas, emerge a justificativa, majoritariamente aceita, de que a situação de banimento do velho se dá, exclusivamente, em face do desgaste biológico. Tal percepção leva a que se aceite, com uma naturalidade desprovida de crítica, os reduzidos investimentos em setores específicos - voltados para a problemática da velhice -, bem como o caráter de imutabilidade de que se reveste o perfil do idoso.

O discurso acerca da associação entre velhice e incapacidade fisica materializa-se, muitas vezes, na pequena participação de idosos enquanto detentores de poder, situação que, por sua vez, leva a avaliações fatalistas, das quais resultam a progressiva diminuição dos espaços sociais limites ao acesso a direitos básicos, que inclui desde o atendimento médico de caráter preventivo e curativo, até ao poder econômico, drasticamente reduzido com a efetivação da aposentadoria.

Realizando uma análise dos discursos difundidos pelos gerontólogos e geriatras, Haddad identifica uma produção científica que defende interesses classistas, pois identifica a causalidade da problemática da velhice exclusivamente nos fatores biológicos, e sua superação, através de medidas sociais paliativas. Diz ainda a autora: "A gerontologia e a geriatria, apropriadoras dos segredos da velhice, com seu corpo sistematizado de representações e de normas objetivam ensinar os homens a conhecer a velhice e agir de conformidade com as suas prescrições. Buscam a reorganização dos comportamentos educativos em tomo de dois pólos ( ... ) O primeiro tem por eixo a difusão dos preceitos médicos ( ... ) O segundo poderá agrupar, sob a etiqueta de "economia social", todas as formas de direção da vida dos velhos com o objetivo de diminuir o custo social de sua manutenção se propõem exercer o monopólio da velhice, lutando pela saúde do corpo capitalista, defendendo a ideologia capitalista do homem sadio, do homem produtivo"(Haddad: 1986, 53).

A sinonímia entre doença e velhice, presente em grande parte dos discursos, obscurece o fato de que envelhecer não é um processo

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restrito ao corpo, mas sim, que é composto por elementos sociais de fundamental importância. Quando se afirma que é possível ao velho ser jovem - desde que esse tenha saúde e se mantenha perseguindo os valores da juventude -, estão sendo omitidos outros elementos restritivos que a sociedade impõe de forma radical ao velho.

Um dos mecanismos de controle reforçado pela sociedade industrial, se encontra na categorização de seus membros conforme sexo, raça, faixa etária etc, de forma a inscrever no próprio homem, padrões de comportamento, que permitem a continuidade da dinâmica do poder. Assim, "pensar em velhice em termos de identidade social possibilita perceber que a velhice é uma classificação, uma vez que há uma atribuição por parte da sociedade e uma auto-atribuição concomitante de identidade etária, separando e arrumando indivíduos dentro de um parâmetro de idade"(Barros: 1981, 30)

Sobre isso, afirma Confort: "Há dois tipos de envelhecimento. O primeiro de caráter biológico ( ... ) aumento da suscetibilidade quanto à contração de doenças ( ... ) Todavia, os elementos responsáveis pelo martírio da velhice na sociedade em que vivemos, normalmente não decorrem do processo de envelhecimento biológico, mas sim do envelhecimento sociogênico -, em outras palavras, dos papéis impostos pela sociedade aos seres humanos assim que estes atingem uma determinada idade cronológica". Diz, ainda, o mesmo autor: "As pesquisas mais recentes revelam que boa parte das modificações mentais verificadas nos velhos, não representam efeitos biológicos do envelhecimento mas sim conseqüências das imposições de papéis (...) A função que atribuímos aos velhos se distingue pelo seu caráter destrutivo". (Confort, 1979, p.9,1 1).

Os discursos que restringem velhice a transformações corpóreas, esquecem que as perdas que decorrem ao indivíduo nesta idade, vinculam-se também a elementos primordiais presentes na hierarquia da lógica capitalista. Enquanto houver o predomínio da idéia de que os problemas do velho são resolvidos exclusivamente por atitudes individuais de busca de saúde e adoção de um comportamento

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considerado jovem, só se estará contribuindo para a continuidade da dinâmica de um poder, que atribui valor ao homem de acordo com a sua utilidade econômica.

Conclusão

Os discursos dominantes sobre a velhice, na medida em que responsabilizam apenas os aspectos biológicos pelas perdas sofridas neste período, omitem questões fundamentais relacionadas com a problemática do idoso na sociedade capitalista.

A restrita utilidade econômica do homem velho neste sistema estimulou um processo de inversão da gerontocracia, respaldado por um saber que apresenta o envelhecimento, apenas enquanto doença e decadência fisica. Os aspectos biológicos, por serem imutáveis, parecem servir como justificativa, para que também seja considerada inalterável a realidade socioeconômica desse segmento. Há que se considerar, igualmente, a existência de diferenciações no interior desse grupo, na medida em que a inserção na produção, o acesso a determinados serviços, o nível de informação, dentre outros fatores, estabelecem condições a partir das quais se configura uma pluralidade de situações envolvendo pessoas idosas. Em outros termos, não se pode encarar o segmento social composto pelos idosos como um todo uniforme, com características bem definidas. Na verdade, tal homogeneização só aparece na visão estereotipada, que busca atribuir um lugar de segundo plano àquelas pessoas.

O quadro de perda de poder e segregação, vivenciado por grande parte dos gerontes, tende a encontrar no determinismo do ciclo vital, a razão que desencaminha possíveis investimentos neste setor. Aspectos que poderiam ser concebidos como limitações específicas de uma faixa etária - e, por isso mesmo, indicadores da necessidade de implementar medidas alternativas, minimizadoras de suas conseqüências -, funcionam, exatamente, como obstáculos para sua efetivação. Em outras palavras, o idoso, ao invés de ter melhorada suas condições

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objetivas de vida - diminuindo, desta forma, os efeitos da maior vulnerabilidade fisica existente nesta faixa etária -, se vê reduzido apenas à perspectiva de doença e morte.

A importância em identificar as lacunas dos discursos dominantes tem por base a análise realizada por Foucault, que demonstra estar o exercício do poder, indissociado da produção do saber. A ênfase em ações repressivas e silenciosas, foi substituída, na sociedade capitalista, por uma "economia política da verdade", capaz de produzir, administrai controlar, geriras relações sociais. A intervenção do poder, segundo o autor, não mais se efetiva, prioiitariamente, através de atos punitivos e violentos; sua eficácia se manifesta em seu aspecto positivo, de construção do homem. O poder não concentra sua ação para destruir elementos e práticas indesejáveis, por meio de uma descaracterização de comportamentos, desejos e necessidades latentes. O seu exercício se realiza, principalmente, de forma inversa, isto é, inscrevendo no próprio indivíduo, saberes e normas que se constituem em "teorias de ação". É o conhecimento, portanto, que viabiliza a repartição dos homens, o treinamento de seus corpos, sua distribuição na sociedade, hierarquizando-os, e deles procurando obter, o máximo da potencialidade de trabalho e o mínimo da capacidade de reação.

Os saberes produzidos sobre a velhice permitem que as perdas impostas ao velho se apresentem como conseqüências inevitáveis do processo de vida, enfraquecendo, assim, possíveis ações reivindicatórias deste segmento ou de outros setores sociais em sua defesa. Nesse contexto, os discursos específicos exercem uma função política indispensável, pois ao mesmo tempo em que justificam o afastamento dos indivíduos economicamente inúteis ao sistema, refreiam o questionamento acerca da segregação do velho e da forma como esta se realiza. O biológico reflete-se no político, fazendo com que as leis da fisiologia estejam articuladas com o campo do saber e da intervenção do poder.

A função política destes saberes pode vir a ter uma ação mais efetiva, diante do processo de envelhecimento populacional que se

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registra no país, caracterizado pelo aumento numérico dos idosos no conjunto da sociedade. Esta realidade emergente encontra no conhecimento dominante uma afirmativa: o crescimento numérico dos velhos terá por conseqüência a exacerbação das dificuldades relativas aos gastos públicos. Nesse sentido, os discursos biologizantes e individualistas permitem, mais uma vez, responsabilizar o próprio idoso pelos déficits projetados para a Previdência Social. Dessa forma, omitem o questionanlento acerca das causas estruturais que hoje, impedem a "população em idade produtiva" de promover o fluxo de recursos necessários para impedir o quadro previsto que, provavelmente, virá em decorrência de um mercado de trabalho extremamente reduzido, com altos índices de desemprego e subemprego, incapazes de promover este "armazenamento" necessário para o futuro. (Moura, 1989).

Diante do processo de transição demográfica que se efetiva, sem que tenha havido um planejamento social e econômico capaz de gerar condições para atender as demandas daí conseqüentes, é possível prever o agravamento das dificuldades vivenciadas pelos idosos.

Não há domínio, sem que haja resistência. Da mesma forma que o exercício do poder está disseminado por toda a estrutura social, também as lutas se encontram distribuídas através de pontos móveis e transitórios (Foucault, 1985). Esta

microfísica da resistência

existe, onde há o exercício do poder. O mesmo movimento que propicia a penetração do poder em uma multiplicidade de espaços, também produz os focos de resistência, que não podem ser localizados em um ponto central de produção, pois se encontram presentes em todas as relações e práticas sociais: "... se é contra o poder que se luta, então todos aqueles sobre quem o poder se exerce como abuso, todos aqueles que o reconhecem como intolerável, podem começar a luta onde se encontram e a partir de sua atividade (ou passividade) própria. E iniciando esta luta - que é a luta deles - de que conhecem perfeitamente o alvo e de que podem determinar os métodos, eles entram no processo revolucionário" (Foucault, 1986, p. 77).

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No caso específico dos velhos, os movimentos organizados através das associações de idosos e aposentados podem ser considerados como um dos focos principais de reação. Para os residentes em instituições fechadas - em face do grau de isolamento em que encontram, bem como de força do saber dominante ali realizado -, fica dificil encontrar formas de resistência. E possível, no entanto, que o desejo de morte expresso por grande parte deles, e registrado em várias pesquisas, se constitua contraditoriamente, no único caminho viável da opção e luta pela sobrevivência.

Para concluir, é importante ressaltar que, em um contexto onde o poder está indissociado da produção do saber, o questionamento acerca dos discursos produzidos e apresentados como verdades, pretensamente ahistóricas e universais, se revela fundamental, nos processos mais gerais de luta pela "inversão do pode?'.

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Referências

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