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Giorgio Strehler = apropriação e ressignificação de elementos da tradição teatral na formação do encenador = Girogio Strehler: ownership and ressignification of elements from theatrical tradition in the formation of a director

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Artes

Adriane Maciel Gomes

GIORGIO STREHLER: APROPRIAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DE ELEMENTOS DA TRADIÇÃO TEATRAL NA FORMAÇÃO DO ENCENADOR

GIORGIO STREHLER: OWNERSHIP AND RESSIGNIFICATION OF ELEMENTS FROM THEATRICAL TRADITION IN THE FORMATION OF A DIRECTOR

Campinas

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GIORGIO STREHLER: APROPRIAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DE ELEMENTOS DA TRADIÇÃO TEATRAL NA FORMAÇÃO DO ENCENADOR

GIORGIO STREHLER: OWNERSHIP AND RESSIGNIFICATION OF ELEMENTS FROM THEATRICAL TRADITION IN THE FORMATION OF A DIRECTOR

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Artes da Cena na Área de concentração de Teatro, Dança e Performance

Thesis presented to the Institute of Artes of the University of Campinas in partial fulfilment of the requirements for the degree of Doctor, in ARTES DA CENA, in the area of TEATRO, DANÇA and PERFORMANCE

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL

DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNAADRIANE MACIEL GOMES, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. ISA ETEL KOPELMAN

ORIENTADORA: PROFA. DRA. ISA ETEL KOPELMAN

Campinas

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Acordo CAPES \ Fundação Araucária (FA) CP 18-2015

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca

do Instituto de Artes

Juliana Ravaschio Franco de Camargo - CRB 8/6631

Gomes, Adriane Maciel, 1975-

G633g Giorgio Strehler: apropriação e ressignificação de elementos da tradição teatral na formação do encenador / Adriane Maciel Gomes. – Campinas, SP: [s.n.], 2017.

Orientador: Isa Etel Kopleman.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Strehler, Giorgio, 1921-1997. 2. Encenação. 3. Stanislávski, Konstantin, 1863-1938. 4. Commedia dell'arte. 5. Teatro - História. I. Kopelman, Isa,1946-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Girogio Strehler: ownership and ressignification of elements from theatrical tradition in the formation of a director

Palavras-chave em inglês: Strehler, Giorgio, 1921-1997 Stagings Stanislávski, Konstantin, 1863-1938 Commedia dell'arte Theater-History

Área de concentração: Teatro, Dança e Performance Titulação: Doutora em Artes da Cena

Banca examinadora: Isa Etel Kopelman Inês Alcaraz Marocco Marcelo Ramos Lazzaratto Raquel Scotti Hirson Nair D'Agostini

Data de defesa: 24-07-2017

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Apoio:

Programa de Doutorado Sanduíche- PSDE- CAPES (Processo: 10712-14-3. Ano: 2015)

Programa de Apoio a capacitação docente das Instituições públicas de Ensino Superior do Paraná (Doutorado- Acordo CAPES-FA-Edital CP 18-2015)

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“Esta vocação totalizante para o teatro, esta dedicação absoluta ao palco, me levou a ver na arte alguma coisa além do produto. [...]. Por isso o teatro sempre me pareceu uma arte incrível, uma das invenções mais elevadas na sua terrível imperfeição”.

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A Profª Drª Isa Etel Kopelman, que aceitou embarcar comigo nessa aventura strehleriana, pela disponibilidade, pelas orientações, pelas inúmeras leituras e as delicadas e precisas conversas nesse período de conflitos e conquistas. Serei sempre grata pela confiança e generosidade.

Aos professores artistas da banca de avaliação: Profº Drº Marcelo

Lazzaratto, por toda a disponibilidade e atenção para com a pesquisa. Profª Drª Raquel Scotti Hirson, pelo carinho e amizade, pela leitura de antes e agora, pelas

provocações e indicações para a pesquisa. Às minhas sempre Mestras e amigas Profª Drª Inês Marocco e Profª Drª Nair D’Agostini, que me ensinaram o amor pelo teatro (nas pequenas e nas grandes aventuras), me fizeram compreender o verdadeiro sentido de compartilhar na vida e na arte. A Profª Drª Ana Cristina Colla - “professora Cris” - pela disponibilidade e carinho e à sua família por todo o aconchego nos primeiros passos em Barão. Ao querido e generoso Profº Drº Eduardo Okamoto.

Ao professor Fausto Malcovati, pela confiança e tutoria durante o período de pesquisas na Itália. A Silvia Colombo, responsável pelo arquivo fotográfico e histórico do Piccolo Teatro di Milano, pela generosa atenção e disponibilização de materiais. Aos funcionários do Civico Museo di Trieste - Fondo Giorgio Strehler. Aos gentis artistas e pesquisadores italianos que abriram as portas de suas casas e de suas memórias do trabalho com Strehler: Giulia Lazzarini, Enrico Bonavera, Paolo

Bosisio, Agnese Colle, Ferruccio Soleri, Fausto Malcovati, Giorgio Bongiovanni.

Ao professor Roberto Tessari, pelas boas histórias e pelo aprendizado.

Ao Cami Querido (Camilo Scandolara), pela amizade que supera os turbilhões de emoções, pelos livros presenteados, pelas inúmeras leituras, pela doçura do dia a dia, pela ajuda nas traduções, pelas perguntas estranhas e as longas pausas, pelo convívio e pela imensa paciência que só os bons irmãos não de sangue sabem ter. Aos meus amados “cocolinos” Bandit e Frida, fiéis companheiros.

Ao Simi (Carlos Simioni), por ter aberto as portas da sua casa e de seu coração para as idas e vindas e para o que der e vier. Amo-te!

À minha família, meus irmãos Helinho, Jejão e Rodrigo e, em especial, à minha mãe, por tentar entender e respeitar todas as minhas ausências.

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Londrina, em especial: Ceres Vittori, Heloisa Bauab, Fernando Strático, Laura

Franchi, Mauro Rodrigues, Margha Vine, Thais D’Abronzo e Aguinaldo de Souza.

Aos estudantes do Curso de Artes Cênicas da UEL.

Aos “delicinhas” dos pesquisadores artistas do PATUANÚ – Núcleo de Pesquisa em Dança de Ator, que a cada encontro dividem um pouco de suas energias e tornam o caminho mais iluminado.

Aos amigos que compartilharam anseios e que sempre estiveram dispostos a ajudar nas mais diversas “loucuras” e que abriram as portas de seus lares para me aconchegar, criaram pausas nas suas rotinas para um café, um bolinho, um drink, um bom papo, boas risadas, traduções, ajudinhas urgentes desesperadas e abraços:

Luciano Zampar, Silvia Pancera e Lorenzo, por terem sido um coração pulsante em

dias frios e pelo carinho de sempre. A Joice Aglaé Brondani, amiga de longa data, parceira nos drinks, nas aventuras e nas performances na Itália. Ao Marcelo

Bulgarelli, pela amizade e por ter me presenteado com o primeiro livro a respeito de

Giorgio Strehler. A Stefania Mariano e Claudio Prima, pelo carinho, boas risadas e amizade de Oltremundo. À Carol e ao Fran pelo encontro. Janaina Ribeiro pelo sorriso e as boas energias necessárias para resistir. À sempre disposta Cynthia

Margareth, pelas caronas, pelos cafés corridos e pelo incentivo. A queridíssima Cassiane Tomilhero e ao Marcelo Pinta, pela hospedagem que me deu sorte e as

panquecas daquela noite, jamais esquecerei. Ao João Fabbro, “caçador de calangos”, parceiro das aventuras em Barão, nos estudos e nos cafés com bolo. Mais uma vez e sempre, à “Dorogaia Elizabeth”, à “Fofa Cheka” e ao “Nardo” por estarem com o coração e a mente abertos nas horas mais difíceis. Ao Lucas Pinheiro

Porpis, pela presença virtual contínua, por me ajudar em todas as dúvidas a qualquer

hora e por dividir o “desespero” e a alegria do final da pesquisa. Aos amigos de plantão, interestadual, Camila Fontes, Michele Zaltron e Gustavo Muller, pela enorme disponibilidade, agilidade e generosidade.

Aos amigos e amigas que agitei ao pedir, sem vergonha, mil favores e ajudas; os sempre dispostos a tudo (ou quase tudo): Helena Ribeiro, Diego Zadra,

Renan Salvetti, Du Leite, Rosane Dornelles, Chico (Francisco Barganian), Antônio Rodrigues, Rafael Gaona, Cri (Cristiane Werlang), Japonesa (Karina Yamamoto), Liza Menzl, Patricia Galucci, Marcia Silva, Cleber Laguna, Fernando Martins,

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Corrêa. A minha querida e gentil professora de italiano Vanessa Araújo.

Aos colegas, funcionários e professores do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da UNICAMP. A Ludmila Castanheira, Lídia Olinto, Flávio

Campos, Paula Mathenhauer por toda a atenção, caronas e por me fazerem

entender as burocracias...

Às crianças que dividiram sorrisos nesse caminho e me fizeram, e fazem, lembrar que a simplicidade na vida deve ser mantida: Pedro, Manu, Théo, Lorenzo,

Enrico, Nicolo, Guilherme, Theo, Alice, Maya “Ritinha” e a Minhoca (que está

vindo). Espero que consigamos um mundo melhor!

Ao apoio da CAPES por meio das Bolsas: PSDE - Doutorado Sanduíche e Programa de Apoio à Capacitação Docente das Instituições Públicas de Ensino Superior do Paraná (Acordo CAPES / Fundação Araucária).

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Esta pesquisa apresenta aspectos da trajetória de Giorgio Strehler (1921-1997), um dos principais encenadores da segunda metade do século XX e um dos fundadores do Piccolo Teatro di Milano. O estudo aborda o resgate, a apropriação e a transformação de alguns dos procedimentos da tradição teatral (especificamente a commedia dell’arte e o sistema de K. Stanislávski) em encenações de Strehler. Neste contexto, serão examinados os recursos por ele usados nos seguintes espetáculos: Arlequim Servidor De Dois Patrões, O Jardim das Cerejeiras e A Tempestade, nos quais se busca verificar alguns fundamentos das poéticas de encenação de Strehler principalmente no que se refere à instauração de novos modos de composição baseados na síntese de princípios da tradição com as inquietações artísticas de sua época.

Palavras-Chave: Giorgio Strehler; Encenações; K. Stanislávski; Commedia Dell’arte;

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This research presents aspects of Giorgio Strehler´s trajectory (1921-1997), one of the main directors of the second half of the 20th century and one of the founders of Piccolo Teatro di Milano. The study deals with the redemption, ownership and transformation of some procedures from the theatrical tradition (specifically the commedia dell'arte and the system of K. Stanislavski) in Strehler's stagings. In this context, the resources used by him will be examined in the following spectacles: Harlequim, Servant of Two Masters, The Cherry Orchard and The Tempest in which one tries to verify some fundamentals of Strehler's poetics of staging, mainly concerning the establishment of new modes of composition based on the synthesis of principles of the tradition with the artistic uneasiness of his time.

Keywords: Giorgio Strehler; Stagings; K. Stanislavski; Commedia Dell’arte; Theatrical

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TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO: PERCURSO CRIATIVO DA ENCENAÇÃO DE

GIORGIO STREHLER ...13

CAPÍTULO I: GIORGIO STREHLER: TRAJETÓRIA E FORMAÇÃO DE UM ENCENADOR ...21

1.1 Giorgio Strehler: apontamentos biográficos ...25

1.2 A escolha de seus mestres ...37

CAPÍTULO II: ARLEQUIM SERVIDOR DE DOIS PATRÕES: O RESGATE DA COMMEDIA DELL’ARTE E O TRABALHO COM A MÁSCARA ...50

2.1. As encenações de Arlequim Servidor de Dois Patrões, de Strehler ...63

CAPÍTULO III: O JARDIM DAS CEREJEIRAS ...80

3.1 A elaboração do espetáculo ...86

CAPÍTULO IV: A TEMPESTADE ...106

A TRADIÇÃO, A RENOVAÇÃO E A DISPOSIÇÃO PARA O DIÁLOGO ...135

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ...149 BIBLIOGRAFIA GERAL ...152 APÊNDICE ...160 ANEXOS Anexo A ...168 Anexo B ...193 Anexo C ...194 Anexo D ...195 Anexo E ...196 Anexo F ...197

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TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO: PERCURSO CRIATIVO DA ENCENAÇÃO DE GIORGIO STREHLER

“Adorei o cheiro do palco, as tábuas, os projetores. Fui fascinado pela obscuridade da plateia, pelos atores em cena. Amo a poesia e a palavra, e ouvi-las ressoar no teatro foi meu verdadeiro prazer. Amo o teatro porque ele é diretamente humano! Amo o teatro porque fazemos aí o humano a cada noite e, no fundo, jamais me distanciei do teatro.”1

(Giorgio Strehler)

Primeiro movimento: um encenador do século XX

Esta tese focaliza o processo criativo do encenador italiano Giorgio Strehler (1921-1997). Mais especificamente pretende verificar, em algumas de suas principais encenações, a assimilação (pelo resgate e pelo diálogo) e a transformação (por um processo de ressignificação) de elementos específicos da tradição teatral.

Em suas trajetórias como reformadores da arte teatral, muitos dos encenadores do século XX evidenciaram pontos em comum. Aqui, refiro-me, particularmente ao resgate da commedia dell’arte como estudo do ator e ao diálogo com os conhecimentos teatrais sistematizados por K. Stanislávski. De modo geral, esses encenadores (em seus percursos singulares) inauguraram novas metodologias para a arte da atuação que serão abordadas no decurso deste trabalho.

A commedia dell’arte passou a ser revisitada, principalmente, pela centralidade que nela é dada ao trabalho cênico do ator e da atriz. Como tal centralidade foi uma das buscas da renovação teatral do século acima referido, a valorização das práticas da commedia gerou também o resgate de elementos técnicos, o que veio a possibilitar a assimilação e a transformação de seus usos. Da mesma forma, as propostas de K. Stanislávski acabaram por fecundar interpretações, apropriações e desdobramentos. Se fosse acompanhar criteriosamente os seus continuadores e questionadores, terminaria por notar a presença de distorções, desgastes e mistificações em torno das propostas originais. Porém, o envolvimento e

1 Giorgio Strehler em entrevista a Myrian Tanant, In Giorgio Strehler: a cena viva. Tradução Isa Kopelman. São

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o interesse pela busca de renovação é uma evidência de que tais práticas constituíram uma base inegável do fazer teatral daquela época.

Diante disso, o primeiro movimento desta tese parte da premissa de perceber Giorgio Strehler como representante influente no processo dialógico (resgate e transformação da tradição) que o aproxima do fazer teatral desenvolvido pela maioria dos encenadores do início século do XX. A seguir, partindo de tal percepção, cumpre analisar os modos pelos quais a tradição se tornou propensa a novas propostas, abordagens e modificações através das principais encenações de Giorgio Strehler.

O contexto em que suas apresentações foram realizadas era o de uma Itália que se reerguia após a segunda guerra mundial, cercada de ruínas em um cenário de desgraça extrema que, como uma ferida exposta, doía no coração de uma sociedade que havia sobrevivido e que buscava recuperar a valorização da vida e de suas possibilidades de continuidade na tentativa de recuperar a tranquilidade perdida. Nesse período, as manifestações artísticas estavam asfixiadas e, de certa forma, acuadas pelas marcas deixadas pela devastação. Em 1947, Giorgio Strehler, Paolo Grassi (1919-1981) e Nina Vinchi (1911-2009) resolveram colocar em prática um ambicioso projeto da criação de um teatro público que tivesse como proposta acolher a todos, (um teatro para todos), com o intuito muito claro de resgatar o valor e o orgulho da sociedade a qual pertencia através da arte e do teatro e, assim, surgiu o Piccolo Teatro di Milano.

Cabe ressaltar que o meu interesse pelo trabalho artístico de Giorgio Strehler se dá por perceber uma aproximação com os processos vivenciados em minha formação, bem como nas práticas que tenho desenvolvido como pedagoga teatral e artista.

Do percurso das motivações

O tema desta tese se liga aos estudos na área artística que foram de meu interesse desde a graduação2 quando a professora Nair D’Agostini3 apresentou-me

2 Educação Artística – Licenciatura plena em Artes Cênicas – Centro de Artes e Letras – CAL – Universidade

Federal de Santa Maria – UFSM – RS (1993-1997).

3 Nair D’Agostini: Doutora em Literatura e Cultura Russa – FFLCH – USP. Professora aposentada do Curso de

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aos encenadores russos do início do século XX colocando-me a par dos desdobramentos contemporâneos de suas metodologias. E foi também ela, que de modo inspirador, acenou para as relações de tradição, apropriação e ressignificação do fazer teatral na atualidade.

E por meio da experimentação prática da direção teatral, sob a orientação de D’Agostini, atingi o nível de compreensão dos elementos do sistema de K. Stanislávski (e os modos de aproximação da sua realidade com a nossa) como um processo de atualização constante da ética do teatro. Tais experimentações – em forma de exercícios de direção teatral – desenvolvidas na Universidade, centravam-se fundamentalmente no entendimento do sistema de Stanislávski.

Outros suportes importantes me foram oferecidos ainda na graduação; um deles agora se liga diretamente à pesquisa: o aprendizado com a professora Inês Marocco4 que me ilustrou com a história, a confecção e o porte das máscaras teatrais, e lançou sobre mim as primeiras sementes de uma identidade com a commedia dell’arte.

Estas duas perspectivas somadas aos cursos teóricos e práticos da área teatral, e outros estudos e orientações assimilados na graduação e pós-graduação, alicerçaram a minha pesquisa atual e forneceram a abertura para diálogos na atuação como artista, como professora e como pesquisadora.

Recupero aqui, portanto, minhas crenças artísticas, que norteiam – a partir da minha formação – a investigação sobre o tema do resgate e da transformação da tradição no seio do trabalho (inaugural e profícuo) do encenador Giorgio Strehler. Vejo também que este movimento de aproximação já constituía a base de interesse das minhas atividades como docente5, no Curso de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Londrina, na área de direção teatral. De fato, unindo as pontas dos fios, o conhecimento que fui buscar tem me possibilitado a ampliação do meu campo de ação; o que ocorre por meio da orientação das pesquisas práticas dos estudantes,

Estatal de Teatro, Música e Cinema de Leningrado, atualmente Academia de Arte Teatral de São Petersburgo – SPGATI, fundado em 1779.

4 Inês Alcaraz Marocco: diretora teatral. Graduada em Direção Teatral pela UFRGS. Doutora em Doctorat en

Esthétique Sciences et Technologie des Arts - Université de Paris VIII (1997). Formação na École Internationale de Théâtre, Mime et Mouvement Jacques Lecoq (1983/1984). Atualmente é professora do departamento de Arte Dramática e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – UFRGS – Porto Alegre – RS.

5 Professora Assistente na área de direção teatral no Curso de Artes Cênicas – Bacharelado em Interpretação

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como também de processos de direção desenvolvidos sob minha coordenação e em parceria com outros artistas e colegas. Minha compreensão de direção parte desse meu embasamento pois, para mim, o processo de criação de uma encenação está fundamentalmente relacionado aos processos criativos do ator em comunhão com os do diretor. Portanto, evidencia-se que para dirigir (sob a perspectiva que aqui defendo) é preciso experimentar a arte de atuar, assim como o sistema de Stanislávski propõe, mas também, conjugado a ela, outros entendimentos adquiridos no percurso da vivência pessoal de cada encenador, estudante e ouartista.

Os trabalhos desenvolvidos pelos estudantes, sob minha orientação, percorrem o mesmo caminho de minha aprendizagem, isto é, centram-se num processo do exercício da direção teatral que é desenvolvido por meio de uma prática. A partir dos insumos usados para a compreensão do que será encenado e do detalhamento da obra escolhida (dramática ou não), segue-se a investigação do contexto em que ela está inserida, o exame das possibilidades de diálogo com pesquisas teatrais ou também com outras ordens artísticas e, pouco a pouco, cada estudante passa a assimilar que a existência de uma obra teatral não implica em sua ilustração, mas na busca de um modo próprio que começa no diálogo com os conhecimentos, inquietações e desejos que ele traz em si.

Em seguida, se desencadeia uma espécie de libertação (de conceitos e ideias pré-concebidas) e uma imersão na criação da qual desponta uma concepção artística particularizada que deriva da inspiração artística a qual os conhecimentos adquiridos vão sendo agregados até chegar a uma estruturação que corresponda ao somatório de toda a bagagem pessoal que cada um possui dentro em si. Vivenciar esse entendimento corresponde à introjeção da base do processo de análise ativa de K. Stanislávski.

O meu percurso pessoal e profissional vem consolidando minhas inquietações e interesses de pesquisa, pois todos os questionamentos e todas as descobertas que foram surgindo estão diretamente ligados à minha formação e aos meus desejos artísticos. Assim, esse estudo também dialoga com as experiências, com as perspectivas teatrais que me inquietam e com a possibilidade de diálogos com um fazer teatral da atualidade que possibilite o incentivo a uma reflexão sobre a arte de atuar continuamente centrada nas (re) descobertas realizadas através do entendimento prático.

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O encontro com a pesquisa

E tudo começa pela constância com que as descobertas surgem, ou como as possibilidades de serem redescobertas aumentam. Foi seguindo um caminho assim (da prática diária e da percepção dos elementos do sistema na relação entre atuar e dirigir) que comecei a pesquisar, e a estabelecer diálogos baseados na análise da identificação e ressignificação como elementos recorrentes na trajetória do encenador italiano Giorgio Strehler.

Giorgio Strehler não foi propriamente uma escolha intencional já que comecei a me interessar por sua obra, por acaso, durante as pesquisas que fiz na finalização de minha dissertação de mestrado6 sobre Evguiêni Vakhtângov (1883– 1922) 7 e o resgate da commedia dell’arte. Naquele momento específico, Strehler surgiu como exemplo de um dos encenadores da segunda metade do século XX que, em suas encenações, apresentava uma fusão dos procedimentos do sistema de Stanislávski e da commedia dell’arte. Foi pelo diletantismo de descobrir e de desvendar os processos criativos desse “estranho desconhecido”, que comecei a buscar meios que me levassem a saber a história deste artista italiano. E de repente, o que era pouco conhecido tornou-se pesquisa e se revelou como uma fonte quase inesgotável de investigações e revelações que evidenciaram poéticas teatrais amplas e altamente elaboradas, em diálogo constante com a tradição teatral e com as demais experimentações cênicas de sua época que engrandeceram e extrapolaram os limites do contexto teatral italiano.

O processo de pesquisa

Embora o encontro com grande parte da bibliografia que constitui este estudo seja recente, devido à escassez de materiais de sua época em língua portuguesa, busquei informações sobre Strehler nos livros originais em italiano, nos

6 A Princesa Turandot de Vaktângov: a renovação dos princípios da Commedia Dell’Arte no teatro moderno russo. Orientação Profª Drª Arlete Orlando Cavalière. (Literatura e Cultura Russa – FFLCH/USP – SP. 2009).

7 Evguiêni Bogratiónovitch Vakhtângov (1883-1922): ator e diretor russo. Foi um importante colaborador do

Teatro de Arte de Moscou – TAM e das pesquisas desenvolvidas por Konstantin Stanislávski. Desenvolveu seus trabalhos mais significativos nos Estúdios vinculados ao TAM.

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registros produzidos em vídeos, nas entrevistas que fiz e no contato direto que tive com seus colaboradores de diferentes períodos e com pesquisadores de sua obra, como: Enrico Bonavera, Agnese Colle, Ferrucccio Soleri, Paolo Bosisio, Giulia Lazzarini, Giorgio Bongiovanni e Fausto Malcovati. Também foram fundamentais as pesquisas realizadas no arquivo do Piccolo Teatro di Milano em Milão e no Fondo Giorgio Strehler Civico Museo Teatrale "Carlo Schmidl" – Biblioteca da cidade de Trieste. Essa vivência me ajudou a formular o escopo de minha tese, ora me identificando com as propostas artísticas dele, ora questionando alguns dos caminhos que escolheu, para finalmente optar por ter como objeto de pesquisa a identificação de elementos da commedia dell’arte e, do sistema de Stanislávski presentes nas obras que foram encenadas durante a sua carreira. A escolha pelo estudo de dois elementos da tradição teatral na obra de Strehler se deu ao reconhecê-los em sua trajetória, na apropriação e ressignificação deles em seu contexto histórico/ artístico e em suas buscas estéticas. Como componentes da tradição teatral (o sistema de Stanislávski e a commedia dell’arte) se apresentaram de forma recorrente na trajetória desse encenador, o que me permitiu dialogar com práticas e metodologias do fazer teatral da atualidade.

O tratamento dado por Giorgio Strehler às obras que encenou tinha como princípio um detalhado estudo do texto e das suas circunstâncias propostas para, a partir daí, desenvolver um diálogo com a situação de seu tempo. Esse processo de estudo da obra é análogo àquele proposto por K. Stanislávski no que se diz respeito à análise ativa. Por outro lado, o espaço criado para o jogo e para a improvisação dos atores dialoga diretamente com a commedia dell’arte, e torna as cenas de improviso geradas a partir de situações propostas, o elemento central do processo de criação strehleriano.

O percurso da formação de Giorgio Strehler acompanha às inquietações de muitos dos encenadores que pertenceram como ele à segunda metade do século XX. No entanto, apesar de Strehler ter um grande reconhecimento internacional, o Brasil não contém um bom acervo de sua trajetória teatral.

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A estrutura da tese

O corpo desta tese se articula em quatro partes: na primeira contextualizo e apresento Giorgio Strehler; sua biografia e a sua trajetória artística; a criação do Piccolo Teatro di Milano; as heranças e influências recolhidas com a convivência de alguns de seus mestres e como muito dos ensinamentos, uma vez apropriados por Strehler, ecoaram em seus processos criativos. Tal herança de conhecimento ofereceu-me subsídios para a percepção dos pontos de partida que estruturam sua formação artística, bem como os desdobramentos dos referenciais iniciais no decorrer de sua trajetória.

No capítulo II serão abordadas as encenações que exploraram de modo significativoo contato e o resgate da commedia dell’arte (principalmente as diversas edições do espetáculo Arlequim servidor de dois patrões). No capítulo seguinte será abordada outra encenação que teve uma repercussão bastante enfática no tipo de direção adotada por Strehler: a segunda edição da montagem de O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov. Aqui serão enfatizados alguns dos aspectos mais significativos da obra e sua relação com o processo criativo onde as aproximações com o sistema de Stanislávski se tornam nítidas em função de meus conhecimentos relativos às pesquisas feitas sobre este mestre russo e o contato que tive com o material bibliográfico referente aos processos de encenação de Giorgio Strehler.

No capítulo IV, será abordada a encenação de A Tempestade, de William Shakespeare, apresentando uma fusão de todos os experimentos da tradição teatral particularizados no modo de direção peculiar de Strehler. A escolha dessa encenação foi feita em função da existência de aspectos agregados à ela que foram ressaltados nas edições que apresentamos nos capítulos anteriores. Nela pretendemos colocar em destaque a relação entre o trabalho do diretor com o processo de criação dos atores; a comunhão com os elementos que compõe a encenação e as aproximações e fusão, com os elementos da commedia dell’arte e com os procedimentos do sistema de K.Stanislávski nos diversos contextos da encenação.

Por meio destas encenações pode-se observar a elaboração de uma relação específica da tradição teatral e de sua ressignificação centradas na utilização de procedimentos que agem não só como deflagradores dos processos de criação bem como estímulos, sem se fixar na reprodução das formas já consagradas.

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Na última parte, nas considerações finais, ressalto a herança de Strehler em artistas contemporâneos, por meio das memórias de colaboradores e dos relatos de alguns encenadores. Com base nesses relatos, busco estabelecer possíveis diálogos que encontrem correspondência entre os modos de elaboração dos procedimentos usados na direção de Strehler com os aspectos do fazer teatral da atualidade, principalmente no que se refere à apropriação e ressignificação de elementos da tradição dessa arte.

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CAPÍTULO I

GIORGIO STREHLER: TRAJETÓRIA E FORMAÇÃO DE UM ENCENADOR

O Teatro do século XX caracterizou-se pelo desenvolvimento e sistematização de pesquisas relacionadas à arte do ator. Neste sentido, o elemento central das pesquisas da maioria absoluta dos grandes encenadores da época teve como objetivo a imprescindível necessidade de renovar o processo criativo da formação teatral.Tornaram-se, portanto, fatores determinantes nas experimentações pedagógicas e poéticas ocorridas durante esse século, o surgimento da figura do encenador e a busca por sistematizações metodológicas que pudessem aprimorar o desempenho artístico do ator/atriz.

A centralidade de o ator/atriz no fazer teatral se expande e lança ao teatro novas perspectivas. Nesse contexto despontam muitos dos reformadores teatrais da primeira metade do século XX. Dentre eles podemos citar Konstantin Stanislávski (1863-1938), Vsevolod Meyerhold (1874-1940), Evguiêni Vakhtângov (1883-1922), Jacques Copeau (1879-1949)e seus principais alunos. Apesar dos relatos e escritos desses pesquisadores da arte teatral terem sido publicados e traduzidos tardiamente, a troca de correspondências entre eles era comum, e foi por meio dessa que as inquietações e experimentações começaram a ultrapassar as fronteiras da individualidade. Por intermédio desse movimento de renovação teatral, ocorre um resgate de tradições, tal como a commedia dell’arte que ganha extremo valor pela grande relevância da figura do ator/atriz e de sua capacidade improvisacional. Além disso, os meios de estruturação do espetáculo passam a ser modificados por esses fatores (resgatados da tradição), e também pelo advento da iluminação e pela exploração de diversas formas detexto dramático.

O resgate das fontes da teatralidade visando à renovação da arte cênica, por exemplo, tornou-se uma tônica recorrente ao longo do século XX e, ainda hoje, mantém sua vitalidade e dialoga com outras áreas de conhecimento. O trabalho dos encenadores-pedagogos do início desse mesmo século ecoa nos modos do fazer teatral da atualidade, mesmo que muitos desconheçam as origens de tais heranças. Parece-me que isto se refere principalmente, à percepção do conhecimento de certa

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dimensão de artesania do fazer teatral relacionada à abordagem da tradição como um meio, ou caminho de expansão, como um referencial para constantes buscas de novos modos artísticos.

Desde o surgimento da figura do diretor teatral, muito do que se entende por direção esteve desvinculado de um tipo de proposta de criação participativa, pois os atores e atrizes esperavam que o diretor fornecesse uma espécie de material preciso para que fosse usado na atuação. Por muito tempo, e com muito esforço, a ideia de um diretor com tal perfil foi se dissolvendo, pois foi-se percebendo que não deveria caber aos atores e as atrizes apenas ilustrar ideias pré-concebidas ou seguir um modelo de como colocar o texto em cena, e sim se tornarem parte efetiva do processo de criação.

O surgimento de diversas metodologias de formação de atores, e a sua consolidação, contribuiu efetivamente para essas mudanças como um auxílio para que os atores e atrizes tivessem outros pontos de partida que não apenas os textos ou as meras intuições, para que pudessem se colocar em processo de trabalho8. Neste contexto, os textos poderiam ser, e ainda o podem, um ponto de chegada, um dos elementos para o jogo, mas nunca o elemento que o determina de forma completa e restrita. Isso exigia que o diretor também não tivesse uma atitude de imposição de seus desejos ou de uma interpretação fechada do texto. Ele deveria buscar alimentar-se de materiais criativos para propor um processo de encenação que revisitasalimentar-se outros procedimentos, explorasse os diálogos com outras manifestações artísticas e compreendesse o passado para poder reinventar o futuro.

Talvez seja essa uma das principais características dos encenadores da segunda metade do século XX, quando em diversos países se observou o surgimento de uma série de diretores teatrais que se centraram nas transformações do espetáculo teatral, com ênfase na criação de uma dramaturgia da cena que, sem negar o passado lhe dava continuidade e transformava os caminhos já trilhados. Na busca do diálogo com a tradição, a nossa pesquisa busca apresentar e analisar a obra de um dos

8 Artistas pesquisadores do mundo inteiro eram responsáveis por esse movimento de mudança, tais como:

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principais encenadores dessa época, o italiano Giorgio Strehler, um dos fundadores, em 1947, do reconhecido Piccolo Teatro di Milano.

O surgimento do Piccolo Teatro di Milano teve grande impacto no teatro europeu do pós-guerra. As produções do Piccolo Teatro percorreram a Europa em turnês que difundiam a ideia de um teatro contemporâneo. Era necessário o resgate e a renovação da cultura em um momento em que as apresentações teatrais não tinham mais vez em face da presença impositiva das marcas recentes da destruição que ainda se evidenciavam por toda a Europa. Mas foi exatamente nesse momento de reconstrução da arte que as produções do Piccolo Teatro se firmaram. Mesmo em meio às evidentes dificuldades impostas pelo contexto, Strehler levou em suas turnês a imagem de uma Itália viva e poética que tentava se reerguer.

O modo como as propostas artísticas de alguns mestres e pesquisadores do início do século XX foram apropriadas por Strehler lhe delineou um perfil de encenador de seu tempo: daquele que busca a renovação, ao percorrer caminhos desconhecidos, mas que também dialoga com a tradição teatral ao identificar e escolher seus mestres; aproxima suas experimentações do autodidatismo (devido ao caráter inédito dos procedimentos gerados),ainda que consciente de suas escolhas e referências.

Em constante diálogo com as trajetórias e experiências de encenadores que dedicaram suas vidas às suas descobertas teatrais (e que, compreendo, criaram propostas abertas que não se fecharam em seus contextos históricos, mas se lançaram como potências de desdobramentos e frescor em direção a um novo modo de fazer teatral) Strehler, enquanto criador de sua arte, a ela agregou suas próprias inquietações e manteve vivas e em constante vir a ser, as propostas de sua poética artística, numa consonância incessante com as inquietações humanas de cada período, não se fixando, assim, na eficácia das formas já concebidas.

A abordagem do estudo a respeito de Giorgio Strehler não pode se furtar à particularidade do contexto de uma Itália devastada pela guerra, de uma sociedade desacreditada que, embora com forte tradição artística e teatral, corria risco de ser esquecida. Strehler partiu desse universo que lhe era próximo, e de fácil trânsito, para mostrar as possibilidades que a arte teatral poderia oferecer, inclusive a de ultrapassar as fronteiras. Assim, a maneira como Strehler conduziu seus processos de descobertas teatrais está diretamente ligada ao contexto histórico italiano e à

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apropriação de elementos da tradição teatral como base de suas experimentações, o que acabou tornando seu teatro uma referência mundial.

A noção de “tradição teatral” é utilizada aqui na acepção que lhe deu Franco Ruffini:

É a tradição que nos dá força. Não a tradição entendida como o peso do passado daqueles que nos querem impor o seu modo de viver, mas a tradição como força de poder mudar sem nos tornarmos caos, de continuarmos iguais sem nos tornarmos mortos, isto é, em última análise, de viver. Tradição e vida são sinônimas9.

Embora Ruffini não estivesse fazendo uma referência direta à Strehler, sua definição poderia perfeitamente ser usada para descrever a relação de Strehler com a tradição.

É a partir dos processos de elaboração das montagens de Strehler e do tratamento dado às obras por ele encenadas que se pretende apontar as características desse encenador, tendo como ponto de partida o resgate e a ressignificação dos elementos da tradição teatral em diálogo com seu tempo e com suas inquietações artísticas.

9 RUFFINI, Franco. Conferência no Seminário “Teatro em Fim de Milênio”, Porto Alegre: UFRGS, 1994, p.57

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1.1.Giorgio Strehler: apontamentos biográficos

“Eu pertenço à grande raça dos fanáticos, dos místicos e, ao mesmo tempo, dos revolucionários. Sou o menor deles, o último, pequeníssimo, mas sou daquela raça. Uma raça de grandes sonhos, de grandes lacerações, de grandes êxtases e calafrios e assombros. Não conseguirei mudar nunca”10

(Giorgio Strehler)

Giorgio Strehler nasceu na Itália, na pequena cidade de Barcola, vizinha à Trieste, na região do Vêneto, no dia 14 de agosto 1921. Ainda criança, após a morte inesperada de seu pai, mudou-se para Milão com sua mãe, uma musicista que o influenciou no gosto pela música e no desenvolvimento de uma extensa cultura musical e refinada percepção rítmica. Esta herança artística refletiu-se em seu trabalho teatral dada a aguçada atenção musical que caracterizava suas encenações. Strehler gostava de ser reconhecido como um “regente da cena” e afirmava caracterizar-se por um pensamento rítmico.

Apesar de se considerar um autodidata, parte de sua formação teatral se deu na Accademia dei Filodrammatici onde estudou de 1938 a 1940. Foi nesta ocasião que conheceu Paolo Grassi11

Após o período de sua formação, fez parte de algumas companhias teatrais tradicionais e de outras experimentais que tinham por tradição o teatro de improvisação. Com essas companhias percorreu grande parte da Itália. Participou também de um grupo experimental coordenado por Paolo Grassi, denominado Palcoscenico12. Nesta época, dedicou-se à crítica teatral e publicou artigos nos quais

10 “Io appartengo alla grande razza dei fanatici, dei mistici e nello stesso tempo, dei rivoluzionari. Sono il più

piccolo di loro, l’ultimo, piccolissimo ma sono di quella razza, Una razza di grandi sogni, di grandi lacerazioni, di grandi estasi e brividi e stupori. Non riuscirò a cambiare mai” (tradução nossa). BENTOGLIO. Alberto. Invito al teatro di Strehler. Milano: Mursia, 2014, p.22.

11 Paolo Grassi (1919-1981): Foi diretor teatral, empresário, professor e um importante colaborador de Giorgio

Strehler. Juntos elaboraram e fundaram o Piccolo Teatro di Milano. Renomado empresário teatral italiano, foi diretor do Teatro alla Scala no período de 1972-1977 e Presidente da RAI (denominação abreviada em italiano de Radiotelevisão italiana S.p.A.) Um dos principais nomes do teatro italiano da segunda metade do século XX.

12 Tratava-se de um grupo de vanguarda criado por Grassi em 1941. Seu trabalho voltou-se à busca de uma

renovação radical da dramaturgia, encenando obras de autores contemporâneos como Rebora, Treccani, Pirandello e O’Neill. Além de Grassi e Strehler também participavam do grupo os atores Mario Feliciani e Franco Parenti. As atividades de Grassi com este grupo se encerraram em dezembro daquele mesmo ano devido a sua convocação pelo exército.

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afirma sua posição sobre a discussão dos caminhos do teatro de seu tempo e sobre questões relacionadas à direção teatral.

Figura 1 – Giorgio Strehler (Foto: Arquivo do Piccolo Teatro di Milano-Teatro d’Europa)

Em 1943, convocado pelo serviço militar, foi transferido para a Suíça, para o Campo de Mürren e, logo em seguida para Genebra onde passou a frequentar a classe de teatro coordenada por Jean Bart13 no Conservatório de Artes. Neste mesmo ano usando o pseudônimo de Georges Firmy, fundou a Compagnie des Masques, com alguns jovens franceses.

De acordo com suas próprias palavras apesar de ter, anteriormente, dirigido um espetáculo, Strehler considera sua primeira direção teatral o trabalho14 realizado com essa companhia, pois como não dominava a língua francesa para jogar

13 Jean Bart (1877-1955): Foi ator, diretor e escritor; aluno de Jean Louis Barrault.

14 Neste período os espetáculos que tiveram a direção de Strehler foram: Assassinato na Catedral de Eliot e

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com os atores, e queria muito fazer teatro, resolveu tomar a frente como diretor do grupo. Naquela época teve a ideia de preparar pequenas maquetes para os ensaios nas quais indicava o deslocamento dos atores e as possibilidades de jogo; e assim, Strehler encontrou um modo para pensar a encenação e superar a barreira da língua.

Com o fim da Segunda Guerra, retornou à Itália e passou a dedicar-se principalmente à crítica teatral15. Nesta ocasião já manifestava a Paolo Grassi seu desejo de criar um teatro. Grassi, por sua vez, acreditava que a tarefa de criar um teatro público e estável deveria caber ao município. Mesmo assim, em 1945, criaram o Diogene, um círculo de cultura teatral no qual se dedicavam à leitura de textos de novos autores italianos e estrangeiros e, de um modo geral, discutiam sobre os meios da renovação do teatro italiano16. Esses debates remetem aos cabarés do início do século XX17.

Inaugurou, junto com Paolo Grassi e Nina Vinchi18, em 14 de maio de 194719, o Piccolo Teatro di Milano20 localizado na Rua Rovello21, centro da cidade de Milão, com a peça Ralé, de Gorki. No mesmo ano fez a sua primeira encenação de Arlequim Servidor de Dois Patrões. Essa montagem do Arlequim teve um período de ensaio muito curto, mas mesmo assim talvez hoje em dia se possa perceber que, apesar de ter sido um espetáculo apenas esboçado, foi ele que deu início às

15 HIST, David L. Directors in Perspective: Giorgio Strehler. New York: Cambridge University Press, 2006,

p.06.

16 BENTOGLIO, Alberto. Invito al teatro di Strehler. Milano: Mursia, 2014, p.29.

17 Os cabarés eram muito difundidos na Rússia e Europa. Seus repertórios costumavam ser provocadores e

proporcionavam, assim, um amplo espaço para experimentação teatral.

18 A ajuda do então prefeito de Milão, Antonio Greppi (advogado e escritor de comédias) foi fundamental para a

concretização da criação do Piccolo Teatro di Milano. Apesar de o Piccolo ter sido inaugurado em 1947, o primeiro documento expressando a necessidade de um convênio sobre a situação do teatro na Itália, data de abril de 1948. Nessa discussão contribuíram grupos, artistas, intelectuais e pesquisadores de todo o teatro italiano da época, que compreendiam o teatro como articulador político necessário à sobrevivência do indivíduo. Isto abriu caminho para o reconhecimento oficial do Piccolo como teatro público. BENTOGLIO, Alberto (org). Milano, 1948: un convegno per il teatro. Firenze: Casa Editrice, 2013, p.07.

19 Nina Vinchi (1911-2009): Esposa de Paolo Grassi e uma das fundadoras do Piccolo Teatro. Exerceu as atividades

de secretaria geral e produção do Piccolo no período de 1947 até 1993.Recebeu vários prêmios da cidade de Milão por ter dedicado sua vida ao teatro.

20 O Piccolo Teatro di Milano – Teatro D’Europa, atualmente compreende três espaços: O Piccolo Teatro di

Milano – Paolo Grassi, localizado na Rua Rovello, o Teatro Giorgio Strehler e o Teatro Studio Melato, além da Escola Piccolo Teatro di Milano – Lucca Ronconi, localizada na Rua Giorgio Strehler. Estes últimos estão em uma mesma quadra, todos na cidade de Milão. O Piccolo Teatro está ligado à formação de público, não só da cidade de Milão, mas foi um dos principais divulgadores do fazer teatral italiano para o mundo.

21 O espaço ocupado pela primeira sede do Piccolo Teatro di Milano havia sido um cinema e, antes disso, a sede

da polícia nazista e fascista, o que de acordo com Enrico Bonavera: “é muito significativo, pois agora é um espaço de arte, de regeneração e força. Os antigos cárceres são os camarins”. Em entrevista a autora desta pesquisa. Milão. 2015.

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produções teatrais renovadoras do Piccolo Teatro e que introduziu na Itália um frescor revolucionário do fazer teatral.

Quanto à organização do Piccolo Teatro, segundo a observação de uma jornalista italiana da época, Francesca Pini, coube ao Paolo Grassi, o lado político e econômicoe, ao Strehler, o lado estético e artístico22. Produzir, manter os contatos para arrecadação de fundos e para a concretização de seus ideais artísticos eram funções de Grassi, enquanto Strehler se ocupava da elaboração e estruturação de ensaios. A relação que se estabeleceu entre Strehler e Grassi era muito semelhante à relação de Konstantin Stanislávski e Nemiróvitch-Dântchenko no processo de criação e elaboração de um projeto teatral que dialogasse com as inquietações artísticas pessoais e com as necessidades dos demais, visando uma arte acessível a todos. E, assim, dedicaram suas vidas à concretização de um projeto teatral que também pudesse se efetivar como um meio de transformação da sociedade. Cabe ressaltar também que, desde a elaboração dos primeiros espetáculos do Piccolo, Grassi e Strehler não mediram esforços para alcançar uma dimensão internacional, mediante a apresentação de suas produções em diversas turnês pelo mundo.

Em seu surgimento, o Piccolo Teatro tinha como objetivo um teatro de arte para todos, livre de vínculos com uma programação comercial e com a submissão à censura e ao oportunismo dos interesses das classes mais altas. O Piccolo Teatro instituiu as bases de uma profunda revolução na formação do público; criou descontos para os espectadores e foi ao encontro das pessoas em bibliotecas e fábricas em busca da expansão dos frequentadores de teatro, pois era necessário que a apreciação artística ganhasse um maior número de admiradores. O Piccolo Teatro era um serviço público, de natureza artística, voltado à comunicação através do meio artístico e poético, mas as exigências não se distinguiam dos demais serviços públicos o que, de certo modo, fazia acelerar o ritmo de produção uma vez que o teatro deveria dar retorno aos investimentos realizados.

22 PINI, Francesca. Il tempo di una vita: Conversazione con Giorgio Strehler. Genova: De Ferrari e Devega S.r.l.

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Figura 2 – Primeira Sede do Piccolo Teatro di Milano, Teatro Europa, Teatro Paolo Grassi 23

De acordo com as palavras do próprio Strehler, em entrevista à jornalista Francesca Pini, o desejo era que o Piccolo Teatro fosse uma casa da arte; ressalta-se: casa, e não lugar, dando à palavra “casa” um valor preciso.

[…] sempre acreditei neste Teatro ligado às Instituições, pois para mim o conceito de teatro está muito ligado à ideia de família: aquela dos cômicos, dos homens e das mulheres que fazem teatro juntos e que devem ficar juntos por muitos anos, envelhecer juntos. E crescendo juntos! [...]. Eu tenho um senso profundo do teatro, como sistema coletivo, como família humana, portanto como casa e como lugar24.

Foi nesse espaço, nesse teatro “casa”25, que o processo de experimentação teatral, ao qual Strehler se propôs a dedicar a vida, ligou-se,

23 Foto da autora desta pesquisa. Milão,2015.

24 “[...]sempre ho creduto a questo Teatro legato alle Istituzioni in quanto per me il concetto di teatro è molto

connesso all’idea di famiglia: quella dei comici, degli uomini e delle donne che fanno teatro insieme e che dovrebbero restare insieme per molti anni, invecchiando insieme. E crescendo insieme! [...] Io ho um senso profondo del teatro, come sistema collettivo, come famiglia umana, quindi come casa e come luogo” (tradução nossa). STREHLER in PINI, Ibidem, p.53-55.

25 Cabe observar que essa metáfora do “teatro-casa” também aparecia, como uma postura ética, no trabalho de K.

Stanislávski e L. Sulerjístski junto aos estúdios do TAM, como se destaca neste relato de Guiatzíntova (atriz do Primeiro Estúdio): “O homem e o ator em uma única pessoa devem possuir a mesma dignidade; o teatro não é um escritório, mas uma casa para qual cada um leva o melhor de si: estas considerações não eram para Leopold Sulerjístski frases usuais, mas o sentido de toda a sua atividade” (in Mollica, 1989, p.163). A respeito dessa definição de Teatro-Casa, Elena Vássina afirma: “O ‘conceito’ de Teatro-Casa, entidade que reúne palco e platéia como um grupo de ‘crentes’ na mesma ideia estética, social e política, que possui o código comum da

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diretamente ao Piccolo Teatro di Milano. Os primeiros dez anos do Piccolo Teatro foram de intensa produção: quase oitenta peças apresentadas em diversos espaços e lugares da Itália e da Europa. No entanto, a estrutura organizacional se manteve relativamente simples. O Piccolo não era um grande teatro em comparação por exemplo com o Teatro alla Scala26, caracterizado pela suntuosidade das produções e pela estrutura organizacional grandiosa. Para Strehler: “Foi um trabalho duro, mas recompensador. Nosso teatro foi desde o início um teatro pobre e permaneceu um teatro pobre”27.

Nos primeiros vinte anos foram contabilizadas como produções de Strehler, 52 direções teatrais, 16 direções de óperas líricas, 142 viagens para apresentações em cidades italianas e 116 espetáculos em cidades estrangeiras da Europa, África, Estados Unidos e Canadá, com o objetivo de difundir e integrar o teatro mundial. Cabe lembrar que a abrangência do público cativado pelo Piccolo Teatro era imensa, do operário ao empresário, e, desde o momento de seu surgimento, caracterizou-se como uma espécie de revolução no sistema teatral. A proposta era de ser um teatro o mais aberto possível ao mundo e às pessoas, no qual se testemunhasse o tempo histórico em que se vivia expondo, na medida do possível, a problemática contemporânea em uma abordagem sempre propositiva.

Strehler se afastou do Piccolo Teatro no período de 1968 a 1972, devido a acusações em torno de benefícios e privilégios que recebia do sistema político. Um grupo de jovens artistas de teatro passou a questionar a destinação de recursos públicos exclusivos para as atividades do Piccolo Teatro e, diante disso, Strehler optou por se afastar das atividades do teatro. Neste período em que esteve distante do Piccolo Teatro transferiu-se para Roma para criar o Grupo Teatro e Azione28, uma

comunicação” VÁSSINA, Elena. O teatro russo à luz dos problemas de recepção: abordagem semiótica. Revista Repertório: Salvador, 2013, p.42.

26 Um dos mais famosos teatros de ópera do mundo. Foi construído em 1778, por determinação da imperatriz

Maria Teresa da Áustria, após o incêndio do teatro Teatro Ducale. O nome refere-se a uma igreja que antes se erguia no local – Santa Maria Alla Scala.

27 apud HIRST, Directors in Perspective: Giorgio Strehler. New York: Cambridge University Press, 2006, p.07.

28Em uma resenha sobre a produção teatral italiana na temporada 1970-71, Giorgio Pullini destaca a importância

dos “grupos autônomos de atores associados” e aponta o Teatro e Azione como um dos principais dentre eles. Pullini afirma que essa forma de organização baseada na autogestão surgia como “uma das melhores soluções entre os dois extremos de um teatro estável, mas burocratizado e politizado ao máximo, e de um teatro privado e móvel, mas comercializado ou continuamente comprometido por dificuldades econômicas e práticas”. O autor também destaca a “livre responsabilidade” de todos os criadores frente à escolha e a execução do repertório. Pullini, Giorgio. Il teatro in Italia nella stagione 1970-71. Revista Itálica, v 48, nº 4, Columbus, OH, American Association of Teachers of Italian, 1971.

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espécie de cooperativa composta em sua maioria por atores que já trabalhavam com ele e cujo foco era a contestação política e cultural.

Em 1972, retornou como diretor único do Piccolo Teatro a pedido de Paolo Grassi29. No período de retomada Strehlercontou com a ajuda fundamental de Nina Vinchi, pois ela era uma grande conhecedora da estrutura organizacional do Piccolo Teatro e, assim, pode auxiliá-lo em sua nova fase. As encenações que serão abordadas na segunda parte da nossa pesquisa fazem parte do período posterior ao retorno de Strehler ao Piccolo Teatro.

Para dar continuidade às propostas iniciais do grande projeto do Piccolo Teatro, Strehler manteve seu posicionamento político e as implicações decorrentes da sua postura, na vida e na sua história teatral, fizeram dele um homem de esquerda, o que fica claro em suas palavras:

[...] Sempre me mantive socialistae não ligo isto a um partido político, mas a um modo de pensar: ser de esquerda é uma filosofia de vida. Acredito que a sociedade pode ser mudada, que pode ser diferente, que pode haver relações mais serenas entre os homens, que o mundo do trabalho deve ter um papel e deve ser ajudado a existir. [...] Creio que a grande diferença entre a direita e a esquerda consiste, evidentemente, na preocupação pelo bem da coletividade e pelo bem de quem tem menos, daqueles que têm menos e que devido às circunstâncias não podem possuir mais30.

Esse pensamento político e o desejo de mudanças por meio também da política local fizeram com que Strehler se candidatasse ao Parlamento Europeu pelo Partido Socialista, em 1979, com a proposta de construir “uma Europa mais humana, uma Europa para os homens comuns e para a cultura”. No entanto, foi eleito para o senado somente em 1982, ano em que sua candidatura foi lançada de forma quase que independente, com um partido Socialista totalmente reformulado. Permaneceu pouco tempo no senado e todo seu empenho foi dedicado a redigir propostas de leis que garantissem um espaço para a permanência de um teatro público31.

29 Neste período Paolo Grassi passou a assumir a direção do Teatro alla Scala e, posteriormente, a presidência da

RAI.

30 [...] sono sempre rimasto socialista e per questo non intendo un partito politico, ma un modo di pensare: essere

di sinistra è una filosofia di vita. Credo che la società possa essere cambiata, che possa diventare diversa, che ci possano essere rapporti più sereni tra gli uomini, che il mondo del lavoro debba avere un ruolo e debba essere aiutato a esistere. […] Credo che la grande differenza tra la destra e la sinistra consista evidentemente nella preoccupazione per il bene della collettività e per il bene di chi ha meno, di chi possiede meno e di chi a causa delle circostanze non può possedere di più.(tradução nossa) in PINI, 2005. p.98.

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As propostas teatrais de Strehler não se limitavam apenas à Itália, mas rompiam suas fronteiras com o objetivo de expandir a ideia de um teatro de arte para todos. Em 1983, Strehler conseguiu que o governo francês aprovasse, por meio de decreto de lei, a criação de um organismo que recebeu o nome de Théâtre del’Europa. O Théâtre Nation Del Odeon, em Paris, foi disponibilizado para sede da instituição e um conselho de ministros franceses nomeou Giorgio Strehler como diretor. Ele permaneceu à frente deste projeto até 1988, mas paralelamente manteve suas atividades junto ao Piccolo Teatro.

O objetivo central do projeto de Strehler com o Teatro da Europa era lançar, para além das fronteiras, suas inquietações relacionadas ao fazer teatral. De acordo com Cambiaghi, tratava-se de uma proposta abrangente da ideia strehleriana de um teatro humano, capaz de falar aos homens de seu tempo e de perseguir o objetivo de um teatro de arte elevado no conteúdo e voltado à coletividade mantendo uma postura crítica no tocante à comercialização do produto espetáculo32. Esta é uma peculiaridade do trabalho de Strehler destacada por vários críticos: a elaboração de um teatro que fosse de grande valor artístico, mas que também estivesse inserido no circuito comercial, contradizendo, de certa forma, a noção comumente difundida de que um teatro de qualidade deve necessariamente estar à margem.

No primeiro ano de produção do Teatro da Europa, o tema escolhido foi – teatro, ilusão e poder – com o objetivo de lançar aos espectadores uma reflexão a respeito do metateatro e seu poder de ilusão, o teatro como grande metáfora do mundo. Para o espetáculo de inauguração, Strehler preparou uma nova montagem de A Tempestade33, de William Shakespeare. A escolha por essa obra foi feita, não só

pela possibilidade de exploração da temática por ele proposta como também por considerá-la um possível caminho de autodescoberta, tanto para o intérprete teatral quanto para o espectador. Strehler acreditava que as obras de Shakespeare poderiam ser consideradas como um grande exercício de humanidade. Em 1978, Strehler escreve: “A Tempestade agora existe, cada vez mais, como um caminho de conhecimento, a exemplo de seu protagonista, Próspero, em busca da conquista do real, assim ecoando nos intérpretes e nos espectadores”34.

32 CAMBIAGHI, Mariagabriella. L’avventura del Teatro D’Europa. In Giorgio Strehler e il suo teatro. Quaderni

di Gargnano. I protagonisti del teatro contemporaneo. Roma: Bulzoni, 1997, p.104.

33 Esta encenação será abordada no capítulo IV desta pesquisa. 34 in CAMBIAGHI. op.cit, p.104

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A atividade que Strehler desenvolvia em Paris lhe deu, a ele e as suas propostas teatrais, uma grande projeção mundial e a partir de 1986, o Piccolo Teatro di Milano incorporou ao seu nome a designação Teatro D’Europa, nome com o qual permanece até hoje. No entanto, esse título só foi reconhecido pelo governo italiano, em 1991, por meio de decreto elaborado pelo Ministério do Turismo e do Espetáculo.

Os planos de internacionalização do teatro de Strehler se expandiram com a Organização da União dos Teatros da Europa que reuniu diversos teatros de diferentes países. Em seus seis primeiros anos a organização abrangeu quatorze teatros35 e contou com uma subvenção mínima do Ministério da Cultura e da Francofone. De acordo com o seu estatuto, tinha como objetivo principal a criação de uma política que fosse comum a todos com a superação das barreiras linguísticas e culturais proporcionaria, não só trocas de experiências, como também a circulação livre dos artistas entre os países36 que dela faziam parte.

Dessa forma, o projeto do Teatro da Europa consistia no intercâmbio de experiências teatrais entre cidades e países distantes transformando a cena e buscando a criação de um teatro que dialogasse efetivamente com as questões da época. As temporadas anuais deste espaço cênico prezam em ter uma programação diversificada, onde se apresentam vários tipos de produções do mundo, e abrange desde espetáculos de grupos e de diretores renomados a produções de jovens diretores e de escolas de teatro.

Em 1986, Strehler fundou o Teatro Studio que no ano seguinte passou a abrigar a escola37 do Piccolo, um espaço destinado à experimentação que nos remete aos estúdios vinculados ao Teatro de Arte de Moscou. Um ano depois de sua fundação, ele assumiu a direção do mesmo. E o novo espaço agregou atores experientes e também iniciantes. O primeiro ano de atividade deste estúdio-escola foi

35 Dentre esses teatros, cita-se: Centro Dramático de Madrid (Espanha); Teatro Odeon, de Paris (França), Piccolo

Teatro di Milano (Itália); Royal Shakespeare Company e Royal Nation Theatre (Londres); Berliner Ensemble (Alemanha); Teatro Mali, de São Petersburgo (Rússia) e Staty Teatr, de Cracóvia (Polônia).

36 CAMBIAGHI, 1997, p.106-107.

37 A escola do Piccolo Teatro foi fundada por Giorgio Strehler, em 1987, sob a coordenação didática de Enrico

D’Amato. O projeto didático é baseado na premissa de que em qualquer tipo de teatro existem técnicas semelhantes, indispensáveis para agir em cena (atuar no palco). No desenvolvimento da prática e da teoria teatral eles experimentaram critérios comuns para identificar a especificidade do trabalho do ator. Estes critérios pressupunham princípios pedagógicos e técnicos de expressão complementares. O curso é gratuito e a formação se dá em três anos (com oito horas de aulas diárias, em seis dias da semana). A formação dos estudantes envolve aulas práticas e teóricas e estágios nas produções do Piccolo Teatro. Após a morte de Lucca Ronconi, em 2015, a escola passou a chamar-se Escola Lucca Ronconi.

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dedicado a Jacques Copeau e às experimentações com a máscara, bem como ao estudo da tradição da commedia dell’arte. Muitos dos atores que fizeram parte da primeira turma apresentam até hoje a edição do espetáculo Arlequim Servidor de Dois Patrões, ainda em cartaz, sob a assinatura de direção de Giorgio Strehler.

Os processos de montagem desenvolvidos, no estúdio ou nesse teatro-escola, eram abertos, isto é, qualquer pessoa podia acompanhar a criação e a estruturação da encenação, pois para Strehler “os ensaios eram um espaço de transmissão, por isso permitia que fossem assistidos, não só pelos alunos, mas também pelos interessados na arte da encenação”38. Isto ajudou a ampliar a formação de público e de interessados no fazer teatral e afastou o trabalho desenvolvido por Strehler de qualquer conotação mística ou de devoção.

Em relação à intensa produção e aos diversos projetos desenvolvidos por Strehler, ele afirma: “eu sempre soube que nasci um intérprete. Não um criador. Mas não um intérprete que trabalha sozinho. Alguém que trabalha em um grupo”39. A característica do trabalho coletivo estava presente no Piccolo Teatro di Milano desde seu início. Devido à sua formação de ator, Strehler acabou por desenvolver uma maneira de dirigir que se caracterizava pelo constante jogo com os atores durante o processo de criação das encenações. Além das orientações, propunha-se a improvisar junto com os atores e atrizes. Esse modo de interação com os artistas fazia com que Strehler tivesse uma visão de dentro e de fora do processo de criação dos atores/atrizes, além de ser uma estratégia para provocar a criatividade de seus participantes.

Pode-se afirmar que esta foi uma das marcas que particularizaram os processos de criação de Strehler como encenador e que estão relacionadas ao processo improvisacional característico da commedia dell’arte. Esses aspectos serão tratados na análise das encenações de Arlequim Servidor de Dois Patrões.

Em 1996 Strehler deixou de ser diretor único do Piccolo Teatro di Milano e, no ano seguinte, resolveu dedicar-se ao preparo de uma nova edição40 da obra Arlequim Servidor de Dois Patrões para comemorar os 50 anos do Teatro, sendo que

38 HIRST,2006, p.11 39 Ibidem, p.17

40 No decorrer desta tese a palavra “edição” será utilizada para se referir a cada nova montagem da obra Arlequim

Servidor de Dois Patrões, seguindo a terminologia adotada nos próprios materiais de divulgação e registro do espetáculo.

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é a mesma encenação que se mantém até hoje no repertório do Piccolo. Infelizmente, no dia 25 de dezembro de 1997, noite de natal, ele veio a falecer em sua casa de Lugano, na Suíça. Seu velório aconteceu no teatro que leva seu nome, e que Strehler não chegou a conhecer uma vez que foi inaugurado somente em janeiro do ano seguinte. Como era desejo dele, foi velado em um espaço todo branco como via a morte. Foi como seu Jardim das Cerejeiras41e inundado de música.

Pelo Piccolo Teatro passaram atores de diversas gerações, desde os mais reconhecidos atores italianos até uma geração de iniciantes em busca de uma formação. No entanto, isto nunca foi um problema para a realização dos projetos do teatro, pois um de seus objetivos era “ser uma casa da qual se poderia se separar e voltar, um lugar onde se poderia regressar para reabastecer-se depois de uma longa viagem”42

Figura 3 – Piccolo Teatro di Milano – Teatro D’Europa – Teatro Giorgio Strehler43

Após a morte de Strehler, Luca Ronconi44 (que era amigo pessoal de Strehler e acompanhava muitos de seus processos de encenação) assumiu a direção

41 Esta encenação será abordada no capítulo III desta tese. 42 HIRST, 2006, p.10.

43 Foto da autora desta pesquisa. Milão.2015.

44 Luca Ronconi (1933-2015): Ator e diretor. Formou-se na Accademia Nationale d’arte drammatica di Roma.

Fundou e dirigiu o Laboratorio de Proggetazione Teatrale di Prado; dirigiu o Teatro Estável de Turim (1989-1994); foi diretor artístico do Teatro de Roma. A convite de Sérgio Escobar (que em 1998 assumiu a direção geral do Piccolo Teatro) passou a ser o consultor artístico e diretor da escola do Piccolo Teatro, que após sua morte, recebeu seu nome.

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