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Lar é onde se nasce

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS

ANA CAROLINA FRAZÃO

LAR É ONDE SE NASCE

CAMPINAS 2018

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ANA CAROLINA FRAZÃO

LAR É ONDE SE NASCE

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Saúde Coletiva: Políticas e Gestão em Saúde, na área de concentração Política, Gestão e Planejamento.

ORIENTADORA: JULIANA LUPORINI DO NASCIMENTO

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA ANA CAROLINA FRAZÃO E ORIENTADA PELA PROFª. DRª. JULIANA LUPORINI DO NASCIMENTO.

CAMPINAS 2018

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

ANA CAROLINA FRAZÃO

ORIENTADORA: Juliana Luporini do Nascimento

MEMBROS:

1. PROFa. DRa. Juliana Luporini do Nascimento

2. PROF. DR. Gustavo Tenório Cunha

3. PROFª. DRª. Antonieta Keiko Kakuda Shimo

Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva: Políticas, Gestão em Saúde da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

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AGRADECIMENTOS

Às mulheres que influenciaram profundamente a minha vida:

À minha mãe, por me conduzir ao mundo com todo amor, e por sempre estar presente e acreditar no meu potencial.

À minha orientadora Professora Juliana Luporini do Nascimento, por ter me acolhido de maneira respeitosa, valorizando minha experiência pessoal, e principalmente por toda paciência, não me deixando desistir e dando os “puxões de orelha” merecidos.

Às maravilhosas enfermeiras obstetras com quem já tive o prazer de conversar e conhecer, por terem me apresentado à realidade do parto domiciliar de forma tão calorosa e cheia de amor, compartilhando comigo a essência do que é o parto.

A todas as mulheres que já tive o prazer de conhecer e cuidar em meu trabalho, que me permitiram refletir sobre a realidade do atendimento à mulher brasileira e sonhar junto com elas por um serviço mais humano e de qualidade.

Às mulheres que se disponibilizaram para esta pesquisa, que me receberam, acolheram e dividiram suas histórias comigo.

E também ao meu companheiro e futuro marido, por ter compartilhado muitos finais de semana destinados à pesquisa ao meu lado, e “segurado a barra” até hoje.

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“Eu tenho o meu caminho. Você tem o seu caminho. Portanto, quanto ao caminho direito, o caminho correto, e o único caminho, isso não existe”.

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RESUMO

Introdução: Não fomos ensinados a refletir sobre o que é nascer. Todo mundo sabe o que é nascer, no entanto, são poucos os que param para discutir como devemos nascer. As estatísticas revelam que se você for gestante no Brasil, existe 55% de chances de ser submetida a uma cirurgia cesariana, e se você tiver condições financeiras mais favoráveis e for usuário do sistema complementar de saúde do país, suas chances de ser submetida a este procedimento cirúrgico sobem para 88%. Não há justificativas clínicas para um percentual tão elevado dessas cirurgias, e estima-se que no Brasil, quase um milhão de mulheres são submetidas à cirurgia cesariana sem indicação obstétrica todos os anos, sendo que estas mulheres perdem a oportunidade de serem protagonistas do nascimento de seus filhos, sendo expostas a maiores riscos de morbidade e mortalidade materno-infantil. Objetivo: Conhecer e entender as significações e motivações envolvidas na escolha pelo tipo de parto domiciliar de um grupo de mulheres na cidade de Campinas. Metodologia: Essa pesquisa valeu-se da metodologia qualitativa, e foi elaborado considerando-se dois momentos de coleta de dados. Primeiramente, entrevistamos mulheres que estavam planejando viver a experiência do parto domiciliar, com objetivo de identificar os sujeitos da pesquisa e conhecer e entender as significações e motivações envolvidas na escolha pelo tipo de parto domiciliar. A segunda etapa foi pensada supondo que após viver a experiência do parto em casa, a mulher possa ter algum entendimento diferente sobre as expectativas iniciais identificadas na primeira entrevista, respondendo com aprofundamento as motivações e significações que levaram a essa escolha. Para o processo de análise de dados utilizamos a análise de conteúdo. Resultados: Participaram dessa pesquisa seis mulheres entre 26 a 36 anos, e destas, somente duas viveram a experiência do parto domiciliar e puderam participar da segunda etapa deste trabalho. Discussão e considerações finais: trabalhamos com duas matrizes temáticas, no qual foram discutidos assuntos como acesso à informação, tecnologias de comunicação, risco, relações de poder, cultura, a busca pelo natural, entre outros. O acesso à informação e ao conhecimento são essenciais na trajetória da decisão pelo tipo de parto quando consideramos mulheres que tem o desejo de viver o parto domiciliar. É por meio do conhecimento que as mulheres enfrentam o sistema imposto para embasar sua tomada de decisão, em busca de um parto humanizado e seguro. No entanto, somente o acesso a informação não determina a escolha pelo parto domiciliar, ao considerar que a sociedade pautada no risco e a legitimação do poder médico continuam mantendo as mulheres distantes da opção pelo parto em casa. Existe uma tendência crescente sobre o parto domiciliar, e as mulheres que planejam o parto em casa reconhecem que é um movimento crescente. O lar permanece como uma opção assertiva para o nascimento, trazendo grande significado e uma nova experiência para a mulher que opta por esta modalidade. Esta pesquisa traz mais subsídios para os profissionais da saúde envolvidos na assistência a mulher gestante, e é mais uma fonte de informações para as mulheres que desejam se aventurar pelo parto domiciliar.

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ABSTRACT

Introduction: We were not taught to reflect about how it is to be born. Everyone knows what it is to be born, however, there are few who stop to discuss how we should be born. Statistics show that if you are pregnant in Brazil, there is a 55% chance of undergoing cesarean surgery, and if you have more favorable financial conditions and are a user of the country's complementary health system, your chances of being submitted to this surgery procedure rise to 88%. There is no clinical justification for such a high percentage of these surgeries, and it is estimated that in Brazil, almost one million women undergo cesarean section surgery without obstetrical indication every year, and these women lose the opportunity to be protagonists of the birth of their children, being exposed to greater risks of maternal and child morbidity and mortality. Objective: To understand the meanings and motivations involved in choosing the type of home birth of a group of women in the city of Campinas. Methodology: This research was based on the qualitative methodology, and was elaborated considering two moments of data collection. At first, we interviewed women who were planning to experience home birth, in order to identify the subjects of the research and to know and understand the meanings and motivations involved in choosing the type of home birth. The second stage was thought assuming that after living the birth experience at home, the woman may have some different understanding about the expectations identified in the first interview, responding with deepening the motivations and meanings that led to this choice. For the data analysis process we use content analysis. Results: Six women between 26 and 36 years of age participated in this study, of which only two lived the experience of home birth and were able to participate in the second stage of this study. Discussion and conclusion: we worked with two thematic matrices, where we discuss access to information, communication technologies, risk, power relations, culture, the search for natural, among others. Access to information and knowledge is essential in the course of the decision by the type of delivery when we consider women who have the desire to live the home birth. It is through the knowledge that women face the imposed system, in search of a humanized and safe delivery. However, it is not guaranteed that only access to information supports the decision of a home birth, considering that we live in a society that considers risk and the legitimation of medical power continue to maintain women away from the option of home birth. There is a growing trend about home birth, and women who plan to give birth at home recognized that it is a growing movement. The home remains an assertive option for birth, bringing great meaning and new experience to woman who opts for this modality. This research brings more subsidies to health professionals involved in obstetrics arts, and is yet another source of information for women wishing to venture into home birth.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Equipes de atendimento ao parto domiciliar de Campinas e região e sua proposta de atuação ... 37 Quadro 2 - Características dos sujeitos baseado no questionário de identificação ... 45 Quadro 3 - Características dos sujeitos baseadas no histórico obstétrico ... 46 Quadro 4 - Características dos sujeitos: participação nos grupos de casais e vivência do parto domiciliar ... 46

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ... 12 2 OBJETIVO ... 17 2.1 Objetivos Específicos... 17 3 JUSTIFICATIVA ... 18 4 REVISÃO DA LITERATURA ... 19

4.1 A História da mulher e o controle do corpo feminino ... 19

4.2 Gênero e cultura ... 24

4.3 Do hospital para o domicílio ... 27

5 METODOLOGIA ... 35

5.1 Captação dos sujeitos ... 36

5.2 Coleta de dados ... 38

5.3 Análise de dados ... 40

5.4 Problemática de campo ... 42

5.5 Os Bastidores ... 43

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO ... 45

6.1 Descrição dos sujeitos ... 45

6.2 Análise das entrevistas ... 46

6.2.1 A informação hoje não é paga, mas dá trabalho se informar ... 47

6.2.2 “Está com um cheirinho de novidade” ... 68

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 89

REFERÊNCIAS ... 92

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APRESENTAÇÃO

Acredito que os caminhos que nos trouxeram a este momento foram os mais diversos e inesperados, e envolvem experiências, trabalho, curiosidade e muito sentimento envolvido. Não foi uma trajetória linear, de amor ao primeiro contato na faculdade com o tema, nem uma experiência pessoal e assustadora sobre partos anteriores que me motivam, afinal, ainda não sou mãe – e planejo com paciência e anseios essa próxima etapa da minha vida.

Nasci por meio de um tradicional parto cesariana na maternidade da cidade de Campinas, agendado às 36 semanas de gestação de uma mulher que teria seu primeiro filho e acreditava que havia tomado as melhores e mais certas decisões sobre essa gestação. É claro que deu errado. Foi um dia 19 de dezembro, agendado meticulosamente devido à viagem do obstetra na época do Natal, o que gerou 10 dias de internação em Unidade de Terapia Intensiva Neonatal, e uma mãe de primeira viagem que ainda hoje recorda com fragilidade como foi um período marcante em sua vida viver 10 dias na sala de espera da UTI neonatal para conseguir ver por poucos minutos e tentar amamentar seu bebê recém-nascido. Essa é somente uma história real que retrata uma mulher brasileira, tendo filho em uma maternidade na década de 1980.

O primeiro contato com questões relacionadas à mulher, saúde da mulher, obstetrícia e parto ocorreu durante a faculdade. Ingressei no curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Campinas em 2006, aos meus 19 anos, sabendo que queria estudar algo que envolvesse cuidado.

Hoje, sou enfermeira. Atuo em campos distintos da enfermagem, sendo enfermeira da Vigilância Sanitária do Estado, o que, cotidianamente, se mostra algo totalmente desafiador, exigindo dedicação e busca por novos conhecimentos. Também trabalho como enfermeira da Unidade de Terapia Intensiva no Hospital Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM), ao qual responsabilizo pelo meu interesse crescente e paixão sobre o tema mulher e nascimento. Foi nesse espaço de trabalho que várias inquietações surgiram, vivi novas experiências e conheci novas histórias e profissionais apaixonados.

Aos meus olhos, o nascimento é fascinante. O processo do nascer de uma criança, a transformação do corpo da mulher se preparando para esse momento e o nascimento do recém-nascido representam um conjunto de etapas

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perfeitas, e tudo converge para aquele instante único e inesquecível – o nascer de uma mãe, e o nascer de um filho.

E, ao longo das experiências de trabalho, de estudos sobre o tema, de histórias de mulheres e seus partos, conversas com amigas e estudiosas, cresceu o interesse pelo parto domiciliar. Outra pergunta que me fiz ao iniciar este estudo foi: qual a razão que leva uma enfermeira que atua na Terapia Intensiva a refletir sobre o atual sistema de pensamento hegemônico em obstetrícia?

O que tenho presenciado ao longo desses anos, em muitas ocasiões, é o atendimento às necessidades físicas da mulher sem qualquer explicação sobre a evolução dos eventos, sobre a execução de procedimentos antecedidos ou seguidos de explicações gerais, ou o fornecimento de orientações padronizadas abrangendo as modificações do organismo materno e do recém-nascido, bem como cuidados físicos pertinentes. Sinto que ainda parece ter sido feito muito pouco no sentido de individualizar a assistência de enfermagem obstétrica, de se buscar fundamentação de decisões e ações nas necessidades sentidas pelas próprias pacientes, de se relacionar de modo cooperador, com a finalidade de manter ou modificar práticas que assegurem melhores condições de vida para a mulher, para seus filhos e demais pessoas que a cercam.

Confesso que, como enfermeira de um hospital tradicional, estou acostumada a viver o parto como um processo medicalizado, cheio de interferências e com mulheres pouco atuantes. Já vi ser negado o acompanhante para a mulher pelo simples fato de acharem que acompanhante atrapalha; já presenciei mulheres chorando por não terem conseguido viver o parto que desejavam; já vi mulheres apreensivas pelo momento do parto por terem dúvidas se suas vontades seriam respeitadas; já ouvi frases famosas como “na hora de fazer foi bom, porque agora está gritando?” e outras mais. É justamente essa visão que precisava ser mudada, e eu precisava conhecer sobre outras realidades.

Com isso, comecei meus estudos sobre o parto domiciliar, entrei em contato com lindas fotos de partos realizados em casa, com companheiro, filhos, parteira e cachorro. Fotos tão sublimes, cheias de emoção, que uniam realidades diferentes, e tão marcantes. Descobri colegas engajadas na causa, mulheres tão próximas planejando parto domiciliar, amigas enfermeiras interessadas no assunto, sempre dispostas a conversar. E, quanto mais eu estudava, mais descobria novos adeptos, e percebi que se trata de um grande movimento. Sinto que as mulheres

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estão em busca de uma forma de nascer mais humana, que preencha as lacunas do modelo atual de atenção obstétrica.

Ao me deparar com o edital para o Mestrado Profissional em Saúde Coletiva, em 2015, soube que era o momento de aprofundar o conhecimento e produzir algo relacionado às minhas inquietações sobre parto e empoderamento feminino. Com isso, surgiu a curiosidade em estudar o parto domiciliar, entender o interesse que as mulheres estão demonstrando pelo tema e o que essas escolhas e experiências representam na trajetória da mulher.

Vejo que não sou a mesma de quando elaborei este projeto: enriqueci-me de conhecimento, novas perspectivas e realidades. Conhecer essas mulheres dos relatos foi fantástico. Cada uma trouxe um ponto de vista diferente, uma vivência nova, que desconstruiu aquilo que eu já pensava como uma certeza. Será muito gratificante expor para vocês as conclusões sobre este trabalho.

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1 INTRODUÇÃO

Não fomos ensinados a refletir sobre o que é nascer. Meninos e meninas nascem todos os dias, em todos os cantos do mundo, nas mais diversas circunstâncias e jeitos diferentes. Falar em nascimento é algo tão “comum”, e uso essa palavra entre aspas por entender que comum também pode ter significados diferentes dependendo da circunstância que considerarmos. O que considero aqui é

comum como algo rotineiro, talvez até banal. Todo mundo sabe o que é nascer, no

entanto são poucos os que param para discutir como devemos nascer.

Sabemos que nascer implica um processo biológico, que é o momento de chegada de uma criança ao mundo e a passagem de uma mulher para a condição de mãe. Vejo que a modernidade tem dado novo status às questões relacionadas à maternidade, com muitas polêmicas envolvendo nascimento, categorizando as mulheres em boas mães ou não, e também situações opostas, desmistificando padrões preestabelecidos pela sociedade no quesito maternidade.

Tradicionalmente em nosso país, o parto normal é conduzido no ambiente hospitalar, vinculado a procedimentos de rotina como: tricotomia, punção venosa e administração de ocitocina, enema ou clister, repouso no leito, jejum, rompimento artificial das membranas amnióticas, parto na posição litotômica, excesso de manuseio perineal durante o período expulsivo e a proibição da presença de um acompanhante, dentre outros. Com isso, percebemos como o conceito de “normal” acaba tendo, muitas vezes, um excesso de intervenções e medicalização1.

Pensando na realidade brasileira, a imagem que temos de nascimento envolve um hospital, a figura de um médico cercado por outros profissionais da saúde, um bebê e uma mulher. Deixei a palavra mulher por último propositalmente, enfatizando como a mulher fica em segundo plano se tratando do ato de parir uma criança.

Diante disso, trabalhamos também com o conceito de parto natural ou parto humanizado, quando se presta uma assistência holística, em que se valoriza o momento, o carinho, respeito e dignidade de que o evento necessita. Nesse sentido, o ambiente adequado também é fundamental, a fim de que possa proporcionar à parturiente o conforto necessário e a sensação de segurança, liberdade dos seus movimentos e privacidade1.

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Essa concepção de nascimento que envolve o ambiente hospitalar, a figura médica e tecnologias de intervenção seguem por toda a formação do indivíduo, e provavelmente não será questionada em nenhum momento da vida. Exceto, talvez, se você for mulher e engravidar.

Nesse caso, as estatísticas mostram que, se você for gestante no Brasil, há 52% de chances de ser submetida a uma cirurgia cesariana, e se você tiver condições financeiras mais favoráveis e for usuário do sistema complementar de saúde do país, suas chances de ser submetida a uma operação cesariana sobem para 88% 2. Não há justificativas clínicas para um percentual tão elevado dessas cirurgias, e estima-se que, no Brasil, quase um milhão de mulheres são submetidas à cirurgia cesariana sem indicação obstétrica todos os anos, sendo que elas perdem a oportunidade de serem protagonistas do nascimento de seus filhos, sem muitas vezes terem consciência disso, além de serem expostas a maiores riscos de morbidade e mortalidade materno-infantil2. É possível entender, então, por que o Brasil é considerado líder mundial em cirurgias cesarianas pela OMS3.

Ainda mais, pode ser chocante descobrir que em outros locais do mundo a operação cesariana não é vista como uma opção para as mulheres. Talvez se considerarmos profissionais da saúde e universitários engajados na causa da humanização, esse assunto já seja familiar e não uma surpresa como expus, no entanto, para a maioria das mulheres que representam o Brasil, tal informação ainda é uma novidade. Como assim não é normal agendar a data da cirurgia cesariana?

Na Inglaterra, por exemplo, a mulher tem a opção de escolher o local de parto de sua preferência. Ela pode optar por ter o parto no hospital, em casas de parto/unidades obstétricas que podem ser anexadas a hospitais ou não, e também pode escolher pelo parto domiciliar4. Caso a mulher não apresente nenhuma

complicação durante sua gestação, ela será acompanhada pelas midwife, traduzido literalmente para o termo parteiras no nosso português, que seriam profissionais capacitadas para a arte do nascer. A mulher pode escolher onde deseja ter o parto, não o tipo de parto. A operação cesariana somente é indicada nos casos de impossibilidade de se realizar o parto normal. A mulher pode escolher se quer ter o parto na água, de cócoras, sentada, na casa de parto, em casa ou no hospital, menos se pode ser cesariana. O médico, só aparece em casos de complicações. É uma realidade muito diferente da vivida pelas mulheres brasileiras. A modalidade do parto em casa também é opção para as mulheres da Holanda5 e Austrália6.

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Alguns artigos internacionais têm demonstrado que o parto domiciliar planejado e de baixo risco não oferece maiores riscos para a mãe e o bebê em relação ao parto hospitalar, sendo verificadas menos intervenções médicas no binômio quando as mulheres estão acompanhadas por equipe de parto domiciliar preparada e qualificada para a assistência7,8.

No Brasil, o mais próximo dessa realidade trata da experiência do Hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte. Desde dezembro de 2013, foi criado o Programa para Partos Domiciliares feitos pelo hospital, 100% financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). As enfermeiras obstetras levam para as residências os equipamentos necessários, como banheira para parto na água e banquinho para parto de cócoras. Vinte e quatro horas depois do parto, elas retornam ao lar para realização dos testes do coraçãozinho, olhinho e bilirrubina. Quando há necessidade de remoção, as gestantes são levadas de ambulância diretamente para o Hospital Sofia Feldman9. Essa é uma iniciativa pioneira no Brasil, que mostra uma realidade ainda pouco conhecida pelas nossas mulheres.

Como profissional de saúde, é muito comum me deparar com comentários de mulheres jovens, gestantes, que referem o desejo de agendar a cirurgia cesariana, queixando-se que se tivessem planos de saúde particulares não precisariam passar por essa situação. E que situação seria essa? Elas se referem ao trabalho de parto normal.

Nessa observação, gostaria de ressaltar o pensamento senso-comum de que as mulheres que utilizam do serviço complementar de saúde, o privado e particular, não precisam passar pela situação do parto normal. De fato, no sistema privado de atenção à saúde, 96,5% das mulheres que desejavam uma cesariana realizaram esse tipo de parto, independentemente do diagnóstico de complicações durante a gestação ou trabalho de parto10.

No entanto, apesar de as taxas de cirurgias cesarianas serem altas no Brasil, principalmente nos serviços privados, não refletem o desejo das mulheres como preferência pelo tipo de parto inicial11. É uma grande contradição a suposição de que as mulheres do privado não desejam passar pelo trabalho de parto normal, no entanto, é essa a informação que foi propagada para as mulheres pelas tecnologias de comunicação e informação, como a televisão e internet.

Acredito que em muitas ocasiões as mulheres se encontram perdidas, sem compreender seu potencial como mulher e o poder do seu corpo, ficando à

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mercê de categorias profissionais que ditam o que seria melhor para cada uma delas. Geralmente, a opinião de cada uma é a última a ser considerada, e, por pior que seja, muitas não têm nem consciência de que o momento do parto poderia ser diferente e enriquecedor. É tudo encarado como “normal” e “faz parte de ser mulher”.

E, concomitantemente, sinto uma corrente crescente de maior interesse pelas mulheres brasileiras em se empoderar, informando-se sobre aspectos relacionados ao corpo feminino, gravidez e maternidade. As mulheres têm demonstrado o desejo de serem protagonistas do próprio parto, e, com isso, cresce a força do movimento pró-parto domiciliar no Brasil.

Ao longo da minha experiência como enfermeira, pude observar e refletir sobre a assistência à mulher nas maternidades. As instituições exibem sua cultura própria, que se fundamenta em bases empíricas e tecnológicas, que conduzem a um verdadeiro mar de rotinas. Os rituais se mostram presentes em todos os momentos da assistência ao parto dentro do hospital.

Quando a mulher chega ao hospital, o primeiro procedimento é a admissão. Marido e familiares são separados da parturiente, e essa é submetida à preparação para o parto, que consiste do registro de informações úteis do ponto de vista clínico e obstétrico, das condições físicas da mulher e do feto. Nesse momento, são prescritos procedimentos e rotinas que incluem utilização de roupa privativa do hospital, jejum, colocação de um cateter venoso periférico, toques vaginais, exames de monitoramento fetal e aguardar em um local frio e sem confortos. O corpo da mulher torna-se propriedade e responsabilidade da equipe que a assiste e dita o comportamento adequado. Da mulher se espera a passividade na convivência com as intervenções.

A sala de parto é um arsenal de instrumental cirúrgico e equipamentos. Nada é familiar. A legislação brasileira diz que as maternidades devem ter quartos PPP (pré-parto, parto e puerpério), que seriam salas com infraestrutura adequada ao trabalho de parto humanizado, com equipamentos que aliviam a dor e estimulam a evolução natural do parto. Nessa sala, o acompanhante é bem-vindo. A gestante deveria permanecer na sala antes do parto, durante o parto, e no puerpério imediato, evitando, assim, uma peregrinação por salas e ambientes hospitalares12. No entanto, são ainda poucas as maternidades do Sistema Único de Saúde (SUS) que oferecem essa estrutura às parturientes.

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Talvez muitos respondam para as inquietações deste estudo que as mulheres buscam um parto normal ou natural por considerarem que “gravidez não é doença”. Esse discurso vem sendo utilizado no cotidiano das pessoas, e uso aqui da reflexão de Dias13, em sua tese, sobre tal afirmação: “o quanto ela (a gravidez) se

aproxima mais do paradigma de doença em nossa sociedade atual, que do paradigma da saúde”.

Refletindo sobre o porquê a gestação se aproximou mais do paradigma da doença que da saúde, veremos, a partir de um apanhado histórico no decorrer do referencial teórico, que a flutuação da gravidez frente a tais paradigmas tem raízes históricas, culturais e sociais, uma vez que, em tempos mais remotos, enquanto a gravidez e o parto eram assuntos de mulheres, e enquanto o parto ainda era parte do espaço domiciliar, a aproximação se dava mais com a saúde do que com a doença13.

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2 OBJETIVO

Conhecer e entender as significações e motivações envolvidas na escolha pelo tipo de parto domiciliar de um grupo de mulheres na cidade de Campinas.

2.1 Objetivos Específicos

a) Compreender em que medida a escolha pelo parto domiciliar favorece ou não a criação de uma nova cultura de nascimento;

b) Verificar a influência das redes de informação na escolha pelo tipo de parto domiciliar.

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3 JUSTIFICATIVA

Justifica-se este estudo pela importância que o nascimento representa na vida das mulheres e pelo fortalecimento do movimento de humanização do parto, com grande influência em mudar tendências e culturas, crescendo o número de mulheres que desejam e optam pelo parto domiciliar. Acredita-se que uma nova tendência esteja se formando, com mulheres empoderadas e informadas, em busca de uma assistência à saúde diferenciada, acolhedora e especializada. São mulheres que já sabem o que querem e que defendem o parto em casa com “unhas e dentes”, divulgando o conceito de nascimento em casa e conquistando a cada dia mais mulheres adeptas. Essa suposta “nova cultura” é nova por estar se reestabelecendo na sociedade moderna, ao mesmo tempo é antiga, ao considerarmos que antes da “cultura da cesárea” as mulheres pariam em casa com parteiras.

Entender como se constitui essa forma de pensar, quais são as fontes de apoio que a mulher identifica, como ela iniciou nessa jornada em busca do parto natural domiciliar e como suas expectativas podem se confrontar com a realidade vivida pode trazer mais subsídios para os profissionais da saúde envolvidos na assistência à mulher gestante, que buscam qualificar seu atendimento, e compreender como essa possível tendência na sociedade pode mudar gerações e transformar uma realidade caracterizada por violências obstétricas e relatos de frustração relacionados ao parto.

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4 REVISÃO DA LITERATURA

Não existe nada no fato de ser “mulher” que naturalmente una as mulheres. Não existe nem mesmo uma tal situação – “ser” mulher. Trata-se, ela própria, de uma categoria altamente complexa, construída por meio de discursos científicos sexuais e de outras práticas sociais questionáveis14.

4.1 A História da mulher e o controle do corpo feminino

O parto como processo humano corporal não tem mudado nos poucos milhões de anos da existência humana. Todavia, em termos culturais e sociais, está em constante mutação, uma vez que está inserido em um complexo contexto marcado por mudanças sociais e econômicas e atitudes culturais em relação à vida, à morte, à saúde e à doença, bem com ao risco. [...] É, sobretudo, um ato cultural na medida em que reflete os valores sociais prevalecentes em cada sociedade, em uma dada época13.

A Igreja cristã, por exemplo, desde a sua concepção mostra Eva, a primeira mulher e pecadora original, a culpada por ter corrompido a humanidade, e por isso deveria ser penalizada com castigos: “E à mulher disse (Deus): Multiplicarei grandemente a dor da tua concepção; em dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará”15. A Igreja desde sempre coloca a mulher em

uma situação de condenação, sempre destinada a sofrer e pagar pelos seus pecados. Com isso, ao parto foi acrescentado o significado de trabalho e penitência.

E esse sofrimento era tanto individual quanto coletivo em tempos em que um nascimento mobilizava toda uma comunidade. A vizinhança, a família e as comadres cercavam a parturiente para encorajá-la, ajudá-la e sossegá-la. No Brasil, quase não havia médicos, e o parto era “coisa de mulheres”; homens não podiam ver o corpo nu da mulher16.

Mães viviam o momento do parto imersas em insegurança material e afetiva, sem proteção para as dificuldades. Nada de remédios nem de anestésicos. Para bem parir, tomavam-se caldos de galinha com lascas de canela. Devidamente alimentada e em repouso, a parturiente esperava “lançar umidades”. Havia duas boas posições: de pé, com as pernas afastadas e curvadas, apoiada num móvel, ou de joelhos, no chão. Nada de gesticular ou caminhar para não desperdiçar forças. Quando deitadas ou sentadas, exaustas por causa do esforço, podiam ser socorridas por comadres e parteiras. A posição horizontal significava a ajuda mútua que cercava a mulher caso estivesse acompanhada. Já o agachamento seria a posição ideal para as gestantes que estivessem sozinhas16.

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Até 1750, as parteiras eram provavelmente mais competentes que os médicos, representando o que havia de melhor em termos de conhecimentos e prática até então existentes. Com a entrada da medicina na obstetrícia, inicia-se uma competição entre médicos e práticos, esses últimos satirizando e condenando a prática delas. Sem acesso ao conhecimento, às universidades e subordinadas aos cirurgiões e físicos, elas foram aos poucos perdendo a hegemonia da prática obstétrica. E, com o advento do capitalismo industrial, a prática médica se consolidou e legitimou17.

Na Europa Ocidental, a taxa de mortalidade materna era bastante elevada, e as gestantes viviam na incerteza sobre o risco da morte. A medicina precisou de todo o século XIX para desenvolver técnicas cirúrgicas e o uso de anestésicos, além do combate à infecção puerperal, para então dominar a prática obstétrica. Foi o processo de hospitalização do parto que contribuiu no desenvolvimento do ensino médico e sua apropriação do saber, sendo interessante reconhecer que, antes do século XVIII, os ricos recebiam atenção médica, inclusive cirúrgica em casa, e os pobres temiam a admissão no hospital como se fosse uma sentença de morte, tamanho era o risco das práticas hospitalares. Com relação à prática obstétrica, a infecção puerperal representou uma verdadeira epidemia a ser combatida e o maior risco das internações hospitalares17.

No caso do Brasil, não foi muito diferente. Até o século XIX, a prática era desenvolvida por parteiras, mulheres também conhecidas por aparadeiras ou comadres, já que era comum torná-las madrinhas dos filhos por elas partejados. Após a instalação da Corte no Brasil, várias parteiras estrangeiras vieram para o país, e a profissão passou a ser regulamentada. A assistência médica restringia-se a partos difíceis e cirúrgicos. As primeiras artes obstétricas que começaram a ser ministradas no país iniciaram logo após a formação dos cursos médicos em 1808, sendo o estudo com enfoque totalmente teórico, no qual utilizavam bonecos para simular situações obstétricas. Já em 1832, as academias médico-cirúrgicas foram transformadas em faculdades de medicina, e iniciaram-se os cursos de parteiras para mulheres, com duração de dois anos. Mesmo assim, muitos se formavam sem jamais terem visto um parto ou terem procedido a um exame obstétrico17.

Por isso, por muito tempo, a obstetrícia permanecia nas mãos das parteiras práticas, e o ensino demorou a se consolidar, em parte por dificuldades como falta de recursos e investimentos, e também devido à resistência das mulheres

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em usar hospitais e enfrentar os olhares masculinos. A hospitalização do parto no Brasil ocorreu somente após a consolidação do ensino prático da obstetrícia, com a criação de maternidades e do discurso médico defendendo a prática hospitalar, ao mesmo tempo em que colocava em dúvida a competências das parteiras tradicionais17.

É intrigante observar que, além das dificuldades técnicas para o desenvolvimento da obstetrícia, a prática era considerada inferior dentro da própria medicina, talvez até por partejar ter sido uma prática de mulheres até então. No entanto, no anseio em controlar a arte obstétrica, os médicos começaram a atacar as parteiras em seus discursos, e as submetiam a regulamentações, transformando sua arte em algo ilegal17.

Mesmo assim, o parto transformou-se em ato médico, e, a partir de 1889, as mulheres começaram a ter acesso ao ensino médico no Brasil. Antes era uma profissão eminentemente masculina, que podia ser exercida também por mulheres, que através do poder médico exerciam o controle social sobre o gênero feminino17.

Aos poucos, os médicos vão tomando frente no gerenciamento da saúde feminina e da reprodução, especializando-se e investindo na normalização das práticas relativas ao corpo feminino. Essa crescente especialização médica sobre o corpo feminino, aliada ao clima intervencionista que caracteriza a medicina, cria uma suposta autoridade de ginecologistas e obstetras que ultrapassa o domínio do físico, do orgânico ou mesmo do psíquico, para se instalar no domínio da moral18.

É Foucault19 que, com suas análises, pode nos ajudar a entender como a

medicina em nossa sociedade capitalista é usada como estratégia de controle social, começando pelo controle dos corpos. Para isso, vamos trabalhar com alguns autores que trazem esses conceitos, procurando relacionar com a realidade vivida pelas mulheres na relação paciente-profissional-parto e nascimento.

O conceito de ‘biopoder’ serve para trazer à tona um campo composto por tentativas mais ou menos racionalizadas de intervir sobre as características vitais da existência humana. As características vitais dos seres humanos, seres viventes que nascem, crescem, habitam um corpo que pode ser treinado e aumentado, e por fim adoecem e morrem. E as características vitais das coletividades ou populações compostas de tais seres viventes. E, enquanto Foucault é de algum modo impreciso em seu uso dos termos no campo do biopoder, podemos usar o termo ‘biopolítica’ para abarcar todas as estratégias específicas e contestações sobre as problematizações da vitalidade humana coletiva, morbidade e mortalidade, sobre as formas de conhecimento, regimes de autoridade e práticas de intervenção que são desejáveis, legítimas e eficazes20.

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Para Foucault, o poder deve ser visto como algo que funciona em rede, que atravessa todo o corpo social. E mais: segundo ele, o poder não pode ser caracterizado meramente, nem fundamentalmente, como repressivo, como algo que diz essencialmente “não”; é preciso perceber seu aspecto positivo (aquele lado que o faz tornar-se ideológico, aceito coletivamente), isto é, o de formação de individualidades e de rituais de verdade21. O poder não seria um objeto natural, uma coisa; seria uma prática social e, como tal, constituída historicamente.

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo22.

Se aproximarmos essa teoria ao longo processo de institucionalização da prática médica e controle do corpo feminino, veremos que as críticas ao processo de medicalização da sociedade surgiram na segunda metade do século XX, quando intelectuais como Illich e Foucault teceram apontamentos sobre a expansão das práticas e discursos médicos em toda a sociedade por meio da determinação de novos diagnósticos, da criação de novos medicamentos, da introdução de novas técnicas de intervenção terapêutica e a criação de novas áreas de pesquisas, como a genética, a imunologia, a biotecnologia23.

Vieira17 descreve que a medicalização do corpo feminino se estabelece no

século XIX, em meio aos discursos de exaltação da maternidade. Por quase três séculos, os médicos se prepararam para ocupar o lugar das parteiras até conseguir efetivamente transformar o parto em um evento médico.

O ponto-chave da medicalização é a definição quando um problema passa a ser definido em termos médicos, descrito a partir da linguagem médica, entendido através da racionalidade médica, e tratado por intervenções médicas. A partir daí formam-se categorias médicas que, de certa forma, não existiam anteriormente, tipos humanos são criados pela ciência, mas também se modulam categorias médicas já existentes, categorias que são elásticas, no sentido de poderem ser expandidas ou retraídas24.

A noção de medicalização pode ser compreendida como uma forma de a medicina se apropriar dos fenômenos relacionados à existência humana e transformá-los em objetos da ordem médica, submetidos a processos de normatização dos corpos, de suas práticas sociais e sexuais. Sendo assim, a medicalização do social e das sexualidades é um processo pelo qual a medicina, por meio de inúmeras tecnologias e estratégias, irá interferir na construção de conceitos, normas, regras de higiene, costumes e comportamentos alimentares, sexuais e

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sociais prescritos para governar a vida dos homens e das mulheres em processos de gerenciamento humano e controle biopolítico23.

Após a Segunda Guerra Mundial, em vista da redução das elevadas taxas de mortalidade materna e infantil, ocorreu a institucionalização do parto, passando do domicílio para o hospital, e, consequentemente, a sua medicalização. A institucionalização do parto foi um fator determinante para afastar a família e a rede social do processo do nascimento, uma vez que a estrutura física e as rotinas hospitalares foram planejadas para atender às necessidades dos profissionais de saúde, e não das parturientes e seus familiares. A gestante passou a compartilhar salas de pré-parto coletivo, com pouca ou nenhuma privacidade, assistidas com práticas baseadas em normas e rotinas que as tornaram passivas e impediram ou impossibilitaram a presença de uma pessoa de seu convívio social para oferecer suporte25.

A crença na Ciência, e considero aqui a medicina, leva a pessoa a crer que o médico assume uma posição de onipotência diante da dita doença do paciente e, por conseguinte, diante do próprio paciente. Este passa a ser visto como devendo necessariamente submeter-se a sua tutela, de modo, por vezes, incondicional. Algo da ordem de uma abdicação temporária – enquanto for “seu paciente” – de sua autonomia, de seu poder de reflexão sobre si mesmo, de decisão sobre si, de conhecimento intuitivo e, sobretudo, vivencial de si mesmo. O corpo passa a ser visto como um amontoado de órgãos, como uma máquina que com defeito precisa ser reparada segundo o que o médico diz. É essa crença que faz com que o médico acredite que pode, ou mesmo deve, se dar ao direito de invadir a autonomia do indivíduo para lhe impor a sua verdade26.

A partir deste ‘ideal de saúde’, propagado pela mídia e pela indústria médica, qualquer sinal de dor é visto como ultrajante e, portanto, como devendo ser aniquilado; qualquer diferença em relação ao ideal é vista como um desvio, um distanciamento maior, e insuportável, da perfeição colimada, devendo ser ‘corrigida’. Os afetos são mobilizados e manipulados narcisicamente no sentido de suscitar nas pessoas o sentimento e a fantasia de que, caso não siga o ideal coletivo da saúde ideal, estará não só aquém da própria saúde ideal apresentada, mas, sobretudo fora do grupamento humano atual, será um excluído simbólico, não comungará da moda que une as individualidades atuais e, assim sendo, estará aquém dos outros, dos incluídos que, fantasiosamente, não só gozam de uma saúde próxima do ideal, como, quando não for o caso, terão helicópteros para um último e glamoroso passeio ostentatório26.

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E qual o efeito da medicalização do corpo em nossas mulheres nos dias de hoje?

Nossa realidade é marcada por frequentes relatos de violência institucional e das ditas “práticas e condições desumanizadas", verificadas por relatos de tratamento hostil, do excesso de intervenções, do uso indiscriminado de medicamentos indutores do trabalho de parto, do desrespeito à autonomia da parturiente, da falta de suporte psicoemocional e da inadequação da estrutura-física às necessidades de privacidade, conforto e apoio familiar, além das precárias condições de trabalho aos quais os profissionais da saúde estão submetidos27.

4.2 Gênero e cultura

A história das mulheres passou a ser entendida, muitas vezes, como um assunto de mulheres, mais especificamente de feministas, ou como uma história que diz respeito aos aspectos privados da casa, da família, da reprodução e do sexo, em oposição ao que realmente importaria à história, que é o domínio público da existência28.

A questão do gênero é algo que conduziu as sociedades e a posição da mulher dentro dela. Afinal, de que modo o gênero tem tanta influência na história das mulheres?

Scott29 entende o gênero como um saber sobre as diferenças sexuais. E, havendo uma relação inseparável entre saber e poder, gênero estaria inserido nas relações de poder, sendo, nas suas palavras, uma primeira forma de dar sentido a essas relações. Existem diferenças entre os corpos sexuados, no entanto o que interessa são as formas como se constroem significados culturais para essas diferenças, dando sentido a elas e posicionando-as dentro de relações hierárquicas.

O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder29.

A palavra gênero já foi usualmente utilizada como sinônimo de mulheres, e houve em muitos estudos a substituição de mulher por gênero. Isso ocorreu pelo gênero denotar uma erudição e uma seriedade do trabalho, que tem uma conotação mais objetiva e neutra do que “mulheres”. Nesta interpretação supostamente

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“despolitizada” do gênero, este não estaria filiado a um questionamento sobre a desigualdade ou o poder, ou tomaria partido pela “parte lesada”. Gênero “inclui as mulheres sem lhes nomear, e parece assim não constituir uma ameaça” 29. O gênero tem um uso muito mais abrangente, incluindo o homem e a mulher em suas múltiplas conexões, suas hierarquias, precedências e relações de poder.

Ao longo desse breve relato sobre a trajetória do ensino médico nas práticas femininas, vemos que as mulheres tiveram diversos papéis na sociedade. Por muito tempo, o modelo de mulher produzido e divulgado nos textos médicos e de intelectuais do século XIX negava o corpo e a sexualidade feminina, que deveria ser direcionado para a reprodução. Com o desenvolvimento das cidades e aumento das classes mais elitizadas, a mulher passa a ganhar o status de guardiã moral da família, devendo essa cuidar do lar e da família – visto seu caráter mais frágil, passivo e emocional.

O que seria isso senão um relato momentâneo da cultura da época? Como que certos pensamentos se tornaram ditadores de comportamento de toda uma sociedade?

Nesse momento, creio ser importante apresentar como a questão cultural conduz toda a trajetória de nossa história.

Cultura pode ser definida como um conjunto de elementos que mediam e qualificam qualquer atividade física ou mental, que não seja determinada pela biologia, e que seja compartilhada por diferentes membros de um grupo social. Trata-se de elementos sobre os quais os atores sociais constroem significados para as ações e interações sociais concretas e temporais, assim como sustentam as formas sociais vigentes, as instituições e seus modelos operativos. A cultura inclui valores, símbolos, normas e práticas30.

Aproprio-me do questionamento de Geertz31 para trazer significado à

questão da cultura: “O que é a cultura, se não é um consenso?”. Nesse entendimento, Geertz31 nos mostra que o que faz qualquer pessoa ser qualquer

pessoa é que ela e o resto do mundo, num dado momento e até certo ponto para certos fins e em certos contextos, passaram a se ver e serem vistos como contrastantes com o que os cerca.

Geetz acredita que a cultura é formada por construções simbólicas, sendo que a análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos completa. Seu conceito é essencialmente semiótico.

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Fundamenta-se no compartilhamento das ideias, a “teia de significados”, amarradas coletivamente:

Acreditando, como Marx Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais, enigmáticas na sua superfície32.

Geertz32 propõe duas ideias sobre o que seria cultura, ao tentar definir uma imagem mais exata do homem:

A primeira delas é que a cultura é melhor vista não como complexos padrões concretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos –, como tem sido caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções (que os engenheiros de computação chamam “programas”) – para governar o comportamento. A segunda ideia é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento32,

Nesse momento, aparece novamente a palavra controle, que associo aqui com o poder já apresentado anteriormente. De alguma forma, os homens sempre estão em busca de poder e controle para determinar os princípios da época. É assim com a política, com os costumes, com a forma de se portar das mulheres, no relacionamento médico-paciente-mulher, na forma como as crianças devem nascer.

Se podemos definir cultura como uma construção simbólica, são os símbolos e signos que trazem significados de sentido, e que iremos buscar compreender para atingir os objetivos dessa pesquisa. O homem é um produtor de símbolos por excelência, já que esses são o elemento mediador entre si e o mundo33.

O parto, antes de tudo, é um evento social e, como tal, submetido a rituais, códigos e tradições, podendo ser considerado um acontecimento histórico34. A forma de se nascer é também um evento cultural. Envolve tantos aspectos de uma cultura, de uma crença, que a cada dia novas teorias são colocadas em práticas, discussões e debates surgem, transformando o nascimento numa complexa possibilidade de alternativas.

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4.3 Do hospital para o domicílio

Para entender por que nascer em casa tem se tornado uma opção cada vez mais presente para algumas mulheres brasileiras, é necessário entendermos como é parir no Brasil. A verdade é que a realidade é pouco animadora, sendo marcada por frequentes relatos de violência institucional e práticas e condições desumanizadas durante a atenção obstétrica27.

As mulheres tendem a peregrinar entre os serviços de saúde; a assistência ao pré-natal oferecido pela Atenção Básica tende a não conversar com a assistência ao parto que acontece na maternidade; a mulher tende a parir em uma maternidade a qual nunca visitou e com uma equipe de saúde com a qual não tem vínculo. Os processos de trabalho são estabelecidos de modo hierarquizado, e a comunicação de forma verticalizada; a gravidez passa a ser vista como doença, e a mulher grávida assume o papel de doente, sujeita durante todo o processo de gestação e parto a intervenções e decisões da equipe de saúde sobre seu corpo e seu modo de cuidar de si e do bebê35.

Durante o período em que permanece sob a tutela da instituição, a mulher é destituída de direitos, sendo-lhe retirada a autonomia, a privacidade, o direito de ir e vir e o direto sobre o próprio corpo, relegada a uma posição de paciente. O que é normal acaba por se diferenciar do que é natural e fisiológico, e os recursos que deveriam ser usados somente quando necessário são transformados em rotina. A subjetividade é desconsiderada dando lugar ao tecnicismo (muitas vezes iatrogênico), e o parto se transfigura em momentos de privação relacional, comportamental e afetiva27.

São inúmeras as alusões a uma possível cultura da cesárea36-38 na qual a

grande maioria das mulheres brasileiras teria preferência pelo tipo de parto cirúrgico. O processo pela decisão pelo tipo de parto no Brasil foi também demonstrado em estudo no qual, do total de mulheres que desejava um parto vaginal no começo da gestação, apenas 58,4% apresentaram esse tipo de parto, sendo que, nos serviços com pagamento privado, somente 22% das mulheres. Além disso, no sistema privado de atenção, 96,5% das mulheres que desejavam uma cesariana realizaram esse tipo de parto, independentemente do diagnóstico de complicações durante a gestação ou trabalho de parto10.

Ressalta-se o excesso de cesarianas eletivas e a baixíssima proporção de mulheres que entram em trabalho de parto, seja de forma espontânea ou

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induzida, sendo apontado que a indicação pelo parto cesárea ocorre durante a gestação por motivos como histórico de cesáreas prévias, bebê grande, hipertensão na gestação, em detrimento de intercorrências clínicas ou obstétricas reais, revelando o alargamento das indicações de cesarianas adotadas pelos obstetras38, 39.

Em mulheres que já vivenciaram a experiência do parto normal hospitalar e natural domiciliar, a grande maioria relata que a experiência do parto domiciliar foi melhor, por motivos como maior rapidez, menos intervenções, a presença de familiares, maior liberdade para movimentar-se e emitir sons durante as dores das contrações uterinas. A mulher quando protagonista do seu parto prefere o ambiente acolhedor e a liberdade do seu lar para o nascimento de seu filho40.

No Brasil, a maioria dos partos acontece em unidades de saúde hospitalares, e as Políticas Públicas pregam por serviços no qual a mulher, seus familiares e o bebê sejam recebidos com dignidade, promovendo um ambiente acolhedor com uma atitude ética e solidária, fazendo desse momento uma experiência plena de respeito, cuidado e acolhimento. Mas a realidade não se concretiza da forma como a Política estabelece e tampouco encontramos uma realidade em que os profissionais priorizam e efetivam na prática o que a política preconiza.

Nesse contexto, a humanização do parto é mais que uma escolha; deveria ser um dever de todos. E essa escolha teve início no Brasil com o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento41, que foi instituído pelo Ministério da

Saúde através da Portaria/GM n. 569, de 1/6/2000.

O objetivo primordial do Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN) é assegurar a melhoria do acesso, da cobertura e da qualidade do acompanhamento pré-natal, da assistência ao parto e puerpério às gestantes e ao recém-nascido, na perspectiva dos direitos de cidadania. Aborda o assunto sobre dois aspectos:

a) a humanização da Assistência Obstétrica e Neonatal como condição primeira para o adequado acompanhamento do parto e do puerpério, sendo dever das unidades de saúde receber com dignidade a mulher, seus familiares e o recém-nascido; e

b) a adoção de medidas e procedimentos sabidamente benéficos para o acompanhamento do parto e do nascimento, evitando práticas

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intervencionistas desnecessárias, que, embora tradicionalmente realizadas, não beneficiam a mulher nem o recém-nascido, e com frequência acarretam maiores riscos para ambos41.

Com a Política Nacional de Humanização da atenção e da gestão no SUS (PNH) criada em 2003, fortalece-se o sentimento de dúvida sobre os modos de exercer o atendimento a saúde, trazendo questões sobre como intervir em modos hierarquizados e autoritários de gestão; formas verticalizadas de comunicação; relações de trabalho precarizadas e tratamentos invasivos e desrespeitosos; ações “terapêuticas” que focam na doença e em sua extirpação, sem levar em consideração o sujeito, suas condições, necessidades e projetos de vida, sua rede de relações sociais; sucateamento dos serviços de saúde; degradação dos ambientes de trabalho; e outros muitos aspectos que compõem o complexo atendimento a saúde35.

Foi com a PNH que se fortaleceu a temática da humanização do parto. Percebeu-se que não é possível alterar os modos de cuidado e de atenção sem que se alterem os modos de gestão e organização dos processos de trabalho. É preciso produzir redes de sujeitos e coletivos participantes e comprometidos com o processo de organização e fortalecimento do SUS; criar espaços coletivos de análise e de intervenção no cotidiano das práticas de saúde, levando em consideração os saberes e os fazeres que ali se tecem, ofertando novos saberes e fazeres, ampliando a capacidade de manejo das equipes nas situações cotidianas e abrindo espaço, assim, para a organização de ações integrais em saúde35.

A PNH permitiu a articulação de estratégias e ofereceu apoio institucional para a humanização do parto e do nascimento, experimentada no Plano de Qualificação de Maternidades e Redes Perinatais da Amazônia Legal e Nordeste Brasileiros (PQM) entre 2009-2011. O Plano serviu de baliza para a elaboração do processo de trabalho da Rede Cegonha (RC), lançada em 2011 pelo governo federal, configurando-se como uma rede de cuidados que visa assegurar à mulher e à criança o direito à atenção humanizada durante o pré-natal, parto/nascimento, puerpério e atenção infantil em todos os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde35.

Desde 2011, a Rede Cegonha, por sua vez, propõe a organização e a qualificação da atenção e gestão materna e infantil em todo âmbito nacional, com

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incentivos técnicos e com financiamento atrelados às mudanças do modelo obstétrico e neonatal. A Rede Cegonha tem a proposta de ser implantada de forma gradativa em todo país, com a finalidade de organizar a atenção à saúde materno-infantil. A RC amplia o PQM sob o ponto de vista da extensão territorial, como também reforça a trajetória já iniciada com o PQM de se trabalhar com o apoio institucional realizado nas maternidades com as equipes, atrelada a uma perspectiva de produção de redes de cuidado materno e infantil35.

A contribuição da PNH para o PQM e para a RC foi desenvolver a função de apoio institucional, partindo justamente do entendimento de que, para mudar o modelo de atenção e de gestão do parto e do nascimento, é necessário:

Analisar e intervir coletivamente em práticas de saúde “desumanizadoras”, tecer, enfim, uma rede coletiva de produção de saúde materna e infantil capaz de transformar uma racionalidade e um cenário de (des)cuidado naturalizado35.

O movimento de humanização do parto e nascimento no Brasil vem crescendo e se fortalecendo não somente através das políticas de saúde, mas também por meio dos movimentos sociais não institucionalizados. A sociedade tem buscado por maior qualificação ao nascer, afirmando a importância da compreensão do parto como evento natural e não como momento meramente técnico, entendendo a necessidade de o parto ser humanizado e baseado em evidências. Fortalece-se a importância do acompanhamento por equipes multiprofissionais humanizadas e por doulas durante a gestação e no parto, como profissionais necessários no processo de subsidiar as mulheres com informações, pois é nesse processo de gestar o bebê que as mulheres vão gestando sua autonomia e seu protagonismo. Dessa forma, aumenta a possibilidade de a mulher ter um parto respeitoso no tempo do seu corpo e do seu bebê.

Contribui para a prática humanizada a recente Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal42 que nasceu com objetivo de sintetizar e avaliar

sistematicamente a informação científica disponível em relação às práticas mais comuns na assistência ao parto e ao nascimento, para fornecer subsídios e orientar todos os envolvidos no cuidado, no intuito de promover, proteger e incentivar o parto normal.

As diretrizes clínicas baseadas em evidências fornecem uma ferramenta adequada de consulta para os profissionais na sua atividade diária, sendo potentes

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aliadas na tomada de decisões. Representam o tripé que se chama de prática clínica baseada em evidência, juntando as habilidades e experiência clínica do provedor de cuidados associadas às expectativas e necessidades únicas das mulheres e suas famílias, mais a informação derivada da melhor pesquisa científica42.

São as informações baseadas em evidências que desfazem mitos sobre procedimentos naturalizados na atenção ao parto e nascimento, que esclarecem à mulher sobre seus direitos e que fomentam o protagonismo. O movimento pela humanização do parto e nascimento preconiza a importância da divulgação de informações científicas que apoiam as práticas baseadas em evidências, já que estão na contramão do modelo da medicalização e do intervencionismo em saúde43.

Nas grandes cidades brasileiras, dar à luz em casa vem se tornando uma opção para algumas mulheres e famílias, principalmente de camadas médias. São pequenas coletividades urbanas que se organizam em função do parto e nascimento dos filhos, dispensando, na maioria dos casos, a presença de especialistas como obstetras, pediatras e anestesistas, que durante a modernidade se consolidaram como profissionais em torno desses eventos. Além disso, há uma grande preocupação nesses grupos em realizar o parto da maneira mais “natural” possível e de forma independente das instituições hospitalares44.

A casa como lugar de nascimento volta, então, a fazer parte do cenário urbano contemporâneo. Trata-se, contudo, não apenas de uma mudança de endereço, mas de uma mudança que envolve uma série de novos comportamentos, valores e sentimentos quanto à maneira de dar à luz que vêm sendo tecidas no seio dessas coletividades44.

Utilizamos aqui, o conceito de casa associado ao de lar. A palavra lar tem origem etimológica na mitologia etrusca, consolidada depois pelos romanos, e representa o fogo sagrado que protege a habitação e é transmitido de geração para geração, por isso, lar tem relação com a palavra lareira. Nas casas ancestrais a lareira era a pedra que servia de base ao lume (lar + eira), logo, o lar transporta um significado muito próprio do fogo e do calor humano45.

A palavra casa se refere ao espaço físico, enquanto o "lar" está mais relacionada com um sentimento, isso faz do lar um repositório das nossas vivências físicas, afetivas e intelectuais. É no nosso lar que está à memória, a história de vida, e que permite a mulher encontrar no espaço um lugar favorável de expressão, e por que não, de parturição.

(34)

Na decisão pelo parto domiciliar, muitas vezes, as mulheres se baseiam em alguma história de parto que já ouviram ou viveram junto a um familiar ou amigo próximo, sendo de grande influência essas histórias na formação da opinião das mulheres ao longo das suas vidas. A opção pelo parto domiciliar planejado nos grandes centros urbanos tem muita relação com as informações coletadas pelas gestantes durante o período da gravidez, informações essas, muitas vezes, não acessíveis à maioria das mulheres. O desejo de ser protagonista do próprio parto, insatisfação com a assistência pré-natal, informações sobre parto humanizado e violência obstétrica, e a participação em grupos de apoio são fatores que contribuem pela decisão do parto domiciliar46.

A casa se configura em um ambiente próximo, familiar e seguro do ponto de vista físico e emocional, onde a liberdade e a autonomia dos envolvidos oferecem maiores condições de manifestação do protagonismo. A casa é um ambiente facilitador do parto natural na medida em que proporciona uma maior sensação de privacidade e conforto, contribuindo para o equilíbrio hormonal, e proporciona a sensação de segurança que está ao “alcance da mão”, que é “conhecido” e tem a solidez daquilo que pode ser manejado27.

Em locais distantes e afastados de grandes centros urbanos, o parto domiciliar procede de maneira essencialmente contemplativa e pouco intervencionista, a partir da concepção de que esse evento faz parte da natureza humana e que, portanto, a mulher é capaz de enfrentar com êxito. Nesse contexto, as mãos são os instrumentos básicos e os artefatos domésticos são os recursos de que se dispõe, como: tesoura desinfetada no fogo ou álcool; unguentos e óleos para lubrificar o canal de parto e para massagens; chás, macerações, engarrafadas e banhos de assento; simpatias e rezas. A utilização de instrumentos simples, que fazem parte do cotidiano das famílias no espaço doméstico, demonstra que os instrumentos sofisticados que foram introduzidos na obstetrícia com o advento da medicalização não são imprescindíveis na prática das parteiras tradicionais. Nessa realidade, portanto, o parto não se configura enquanto um evento a ser controlado, mas assistido27.

Um forte aliado às mulheres que optam pelo parto domiciliar são os grupos de apoio, cada vez mais comuns nos grandes centros urbanos. Corbett43, em sua dissertação sobre os efeitos dos grupos de apoio na jornada para o protagonismo das mulheres no parto, acrescenta:

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As mulheres relataram o quanto às informações foram importantes para a construção do protagonismo, pois, se não buscam, são levadas por uma forma de operar naturalizada pelos médicos e equipes de saúde e introjetada na sociedade como a melhor forma, como o mais seguro e, na maioria das vezes, como a única possibilidade: a cesárea.

A expectativa das gestantes quanto ao tipo de parto está relacionada à maneira como as informações sobre o assunto estão disponibilizadas e acessíveis. As mulheres costumam se sentir desinformadas quanto aos eventos do parto normal ou cirurgia cesariana para que possam vivenciar com segurança e autodeterminação o parto. É necessário ações de educação em saúde que forneçam informações a respeito da fisiologia do parto, para que a mulher se torne consciente do que esperar e desenvolva expectativas realistas e positivas para a atual experiência de parto, com a vivência desse processo de forma menos traumática47,48. Quanto mais completa ou suficiente a informação for percebida pela mulher, maior a satisfação relatada com a assistência ao parto48.

Muitas mulheres referem não ter recebido informações suficientes sobre os tipos de parto durante o pré-natal. Se tivessem recebido mais informações detalhadas, poderiam se sentir mais instrumentalizadas para discutir e participar do processo de decisão pelo tipo de parto37,49-54.

Nesse sentido, a orientação durante o pré-natal é fundamental, assim como o melhor mecanismo para fornecer expectativas reais sobre o tipo de parto e o que se deve esperar.

As mulheres buscam pela alternativa do parto domiciliar, visto que não conseguem estabelecer uma relação igualitária com o profissional de saúde no que tange às suas escolhas e às decisões tomadas no decorrer da assistência prestada, e procuram por alternativas capazes de propiciar essa aproximação com o profissional. Essas mulheres buscam nessa relação confiança e segurança, sentimentos construídos a partir do estabelecimento de vínculo, respeito à sua cultura, às suas escolhas e expectativas55.

Essas mulheres não estão resignadas ao modelo de atenção hospitalar instaurado. Pelo contrário, reconhecem todas as contradições e as fragilidades do sistema e conseguem ultrapassar essas barreiras por meio, principalmente, de um processo de busca de informações55.

Sanfelice55 diz também que a opção pelo parto domiciliar está relacionada ao nível de escolaridade mais alto, o que reflete na facilidade de acesso à

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