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O PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DA REGIÃO DAS MISSÕES 1

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1 O PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DA REGIÃO DAS MISSÕES1

Amilcar Guidolim Vitor2

RESUMO:

O artigo pretende identificar e analisar algumas expressões do patrimônio cultural imaterial da região das Missões, verificando sua relação com o passado jesuítico – guarani e com o período de povoamento da região por grupos de etnias de origem europeia a partir do século XIX. Tendo em vista que a região das Missões possui sítios arqueológicos do período em que se desenvolveram Reduções organizadas por padres jesuítas da Companhia de Jesus em um processo evangelizador e civilizatório junto a indígenas da etnia Guarani, cabe destacar que o patrimônio cultural material é amplamente analisado e debatido em publicações ligadas ao tema. Ao mesmo tempo, se faz pertinente identificar e discutir a importância das expressões do patrimônio cultural imaterial da região das Missões e suas implicações naquilo que se convencionou chamar de identidade missioneira. Para tanto, iremos expor e analisar principalmente a imaterialidade da cultura dos Mbyá-Guarani que habitam atualmente a região, expondo seus saberes e fazeres e seus lugares de memória, como a Tava Miri. Também trataremos da chamada música missioneira idealizada e produzida por artistas locais como Noel Guarany, Jaime Caetano Braun, Cenair Maicá e Pedro Ortaça, os chamados troncos da música missioneira. Por fim, também serão abordados expressões e aspectos da cultura imaterial das etnias de origem europeia que ocuparam a região, com seus rituais religiosos, saberes e fazeres.

Palavras-chave: Patrimônio; Cultura; Missões.

INTRODUÇÃO

A região das missões do Rio Grande do Sul foi cenário de acontecimentos históricos que marcaram não apenas o passado da América do Sul, mas que ainda se projetam para o presente. E essa projeção está diretamente relacionada às expressões do patrimônio cultural,

1História e Patrimônio

2 Professor do Departamento de Ciências Humanas da URI – Campus Santo Ângelo. E-mail: amilcar_vitor@yahoo.com.br

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2 seja ele material ou imaterial. A experiência reducional desenvolvida entre padres Jesuítas da Companhia de Jesus e grupos indígenas Guarani entre o final do século XVII e XVIII nos Sete Povos das Missões permeia a história que se conta nos livros ou em rodas de chimarrão de qualquer cidadão nascido ou que se sinta pertencente aquilo que se convencionou chamar de “ser missioneiro”. É imaginário, é memoria, identidade e patrimônio. Essas palavras são chave para entender o que foi feito com o passado missioneiro reducional, como ele foi interpretado e reinterpretado, representado e legitimado e, com o passar do tempo, edificado, (re)significado, (re)conhecido em forma de patrimônio cultural.

Hoje falamos em patrimônio cultural missioneiro, e quando falamos nisso inevitavelmente nos remetemos às expressões materiais desse passado. Os sítios arqueológicos de São João Batista, São Miguel das Missões, São Lourenço e São Nicolau são exemplos claros disso. São protegidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, mas também estão sob a tutela de instituições locais e por parte da população da região que vê significação na preservação destes espaços, seja como lugares de memória ou em potencial de exploração econômica através do turismo.

Neste contexto, passado e presente se fundem, se misturam e são traduzidos na forma das expressões do patrimônio cultural. Estas “ruínas” que aí estão são capazes, de uma forma ou de outra, presentificar o passado jesuítico – guarani, mas ao mesmo tempo identificar ou tentar identificar quem somos hoje. Na boca do povo, somos missioneiros. Conceituar, categorizar, definir o que significa isso, se é uma construção, uma invenção ou idealização e como isso foi desenvolvido têm sido objeto aprofundado de estudos de alguns Historiadores que inevitavelmente serão citados neste texto. Ademais, nos cabe aqui discutir o papel que o patrimônio cultural, principalmente o imaterial desempenha nesse processo.

As ruinas permitem ver e imaginar o todo que foi um dia. A exposição da materialidade desgastada é elemento que potencializa a imaginação e desperta a sensibilidade estimulando a evocação (PESAVENTO, 2007, p. 52). Porém, ao mesmo tempo em que essa materialidade transformada em patrimônio é capaz de suscitar este imaginário, apropriação e pertencimento ao passado, entendemos que também as expressões da imaterialidade do patrimônio podem fazer o mesmo. As músicas, as festas, os rituais religiosos, os saberes e fazeres dos Guarani e das etnias europeias que ocuparam o território das Missões desde o século XIX também são fortes elementos capazes de constituir essa identidade missioneira,

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3 que sim existe, mas que não é algo dado, natural, intrínseco aos habitantes da região das Missões, mas algo historicamente construído, legitimado, mas que também se caracteriza como um forte elemento de pertencimento dos moradores da região.

Trataremos de expor e analisar algumas expressões desta imaterialidade da cultura das missões e que implicações elas têm nesse processo.

O PATRIMÔNIO CULTURAL NA REGIÃO DAS MISSÕES E A QUESTÃO DA IDENTIDADE MISSIONEIRA.

O conceito de patrimônio cultural já teve muitas interpretações, passando por transformações e ressignificações, tanto no âmbito legislativo, em Constituições e leis; acadêmico, em obras e pesquisas; e até mesmo no senso comum das sociedades nacional e internacional. Para que essas transformações ocorressem sempre foi necessário entender os diferentes usos que do patrimônio foram feitos, sua validade, relevância e importância para os grupos sociais, além da interpretação que esses mesmos grupos fizeram com relação às diferentes expressões do patrimônio cultural.

Toda essa evolução da concepção do que é patrimônio faz parte de um processo de transformação do conceito e das mais variadas expressões patrimoniais que surgiram entre diferentes grupos sociais através de suas manifestações culturais. Essa evolução do que é, representa e como pode ser utilizado o patrimônio cultural da sociedade em suas múltiplas especificidades, esteve vinculada e ainda se vincula aos interesses momentâneos de grupos sociais e instituições que perceberam não apenas o valor cultural, ideológico ou político do patrimônio, mas também o seu valor monetário. Dessa forma:

Depende dos valores da sociedade, presentes em cada momento da sua trajetória, a definição do que vai se constituir em patrimônio cultural – compreendido como os elementos materiais e imateriais socialmente reconhecidos e que servem de referência ao seu desenvolvimento. A atribuição de valores está ligada ao universo da escolha e o reconhecimento de seus significados inscreve-se na dimensão simbólica do imaginário (MEIRA, 2004, p. 13).

Como é notório que os valores sociais passam por significativas transformações, também se constata tal transformação naquilo que se estabelece, se reconhece ou se preserva enquanto patrimônio cultural na sociedade. Esses efeitos não foram sentidos apenas a partir

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4 do momento em que se passou a discutir sobre a noção do que era e representava patrimônio cultural, mas também atualmente, especialmente a partir da segunda metade do século XX. Deste período em diante se acompanha uma infinidade de casos em que expressões de patrimônio são criadas e erigidas enquanto lugares de memória, que para Pierre Nora (1993, p. 13) são lugares ou até mesmo práticas e costumes sociais que remetem a um passado que é institucionalizado e dotado de sentidos. Assim:

A mundialização dos valores e das referências ocidentais contribuiu para a expansão ecumênica das práticas patrimoniais. Essa expansão pode ser simbolizada pela Convenção relativa à proteção do patrimônio mundial cultural e natural, adotada em 1972 pela Assembleia Geral da UNESCO. Esse texto baseava o conceito de patrimônio cultural universal no de monumento histórico – monumentos, conjuntos de edifícios, sítios arqueológicos ou conjuntos que apresentem “um valor universal excepcional do ponto de vista da história da arte ou da ciência” (CHOAY, 2001, p. 207).

Na região das Missões, ao mesmo tempo em que as instituições se apropriaram do passado como uma estratégia política e econômica, valendo-se nos discursos da heroica saga de jesuítas e guarani, também se estimulou o desenvolvimento do turismo e se estabeleceu um sentimento de pertencimento e de constituição de uma suposta identidade missioneira, principalmente através do que ficou do passado jesuítico – guarani, como os sítios arqueológicos. Esses lugares de memória, passaram a ser também lugares onde a história estava materializada e presentificada, algo que muitas vezes de acordo com o que se estabelece o senso comum, escapa ao patrimônio imaterial. Canclini (2003, p. 162) destaca que: “o patrimônio existe como força política na medida em que é teatralizado: em comemorações, monumentos e museus”.

Em relação a essa busca de legitimar determinados lugares de memória enquanto expressão do patrimônio cultural, algo que tem sido recorrente em função da grande diversidade de expressões patrimoniais surgidas nas últimas décadas, Possamai destaca o seguinte:

Tomando o patrimônio como um campo, como foi visto acima, é necessário enfatizar quanto ele necessita ser apropriado por um maior número de pessoas. Muitas vezes, prédios e monumentos considerados de grande importância cultural, segundo os valores definidos por um limitado número de agentes, são totalmente desconhecidos e negligenciados por sua comunidade mais próxima. E a razão, muitas vezes, não está na falta de conhecimento daquele bem, mas no pouco

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5 envolvimento que as pessoas tiveram na construção do mesmo como patrimônio [...] (POSSAMAI, 2000, p. 23).

Cabe aqui evidenciar a partir das ideias da Antropóloga Ceres Karam Brum, que no que se refere à produção de identidades a partir dos múltiplos sentidos conferidos às Missões como experiência passada, existe a sua utilização como lugar de memória em um território gerador de identidades e disseminador do missioneiro (BRUM, 2016, p. 43). Esta identidade está em muito pautada nos referenciais históricos do período jesuítico – guarani, seja na materialidade dos sítios arqueológicos daquele período, seja na presença dos Mbyá-Guarani na região. Mesmo que este tronco dos guarani não seja exatamente aquele grupo étnico que protagonizou os acontecimentos do período colonial, há uma forte ligação com o passado missioneiro reducional, algo que trataremos mais adiante no que se refere ao reconhecimento da Tava Miri como lugar de memória e expressão do patrimônio imaterial.

Neste contexto, patrimônio e identidade se misturam na medida em que o patrimônio simboliza a identidade cultural de uma comunidade, pois ao se identificarem com aquele, os membros do grupo compartilham símbolos e significados (DIAS, 2006, p. 50).

Na medida em que se construiu socialmente a partir dos referenciais do passado uma chamada identidade missioneira, ou mesmo se esta foi se estabelecendo em um processo de significação e pertencimento dos moradores da região, tanto o patrimônio material quanto o imaterial possibilitaram a legitimidade desse processo. Para Joel Candau (2016, p. 163) a elaboração do patrimônio segue o movimento das memórias e acompanha a construção das identidades. O pertencimento ao passado missioneiro, evidencia as relações entre grupos e indivíduos e se inscreve em interesses específicos para acioná-lo, remetendo ao estabelecimento das relações entre passado, presente, história, memória, imaginário, representação, território, fronteira, tradição, identidade e pertencimento, onde se configura um universo em que o ser missioneiro é tornado presente e é utilizado de várias maneiras.

Essa identidade missioneira é tratada por Pommer (2009) como construção de uma identidade regional a partir de certos eventos, como as Mostras de Arte Missioneiras desenvolvidas em São Luiz Gonzaga durante o final da década de 1970 e início da década de 1980, ou outras ações, que em um processo de rememorização do passado reducional tendem a produzir identidades e, por conseguinte, beneficiar certos grupos sociais. De acordo com a autora:

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6 Em parte da região das Missões ocorreu, nas décadas de 1970 e 1980, a recriação do passado colonial, atribuindo-se-lhe novo sentido visando à manipulação dos seus imaginários. Esse processo, por certo, não foi natural, mas arquitetado, a partir de uma conjuntura especifica, para parecer natural. Em sua base estiveram presentes ações que objetivavam, fundamentalmente, a produção de uma tradição identitária a partir do uso especifico dos referenciais do passado da região. Sob essa perspectiva, a população regional foi estimulada a fazer um uso especifico dos referenciais históricos apresentados para serem seus e para serem mantidos como tradição identitária (POMMER, 2009, p. 21 – 22).

Cabe destacar que a autora acima citada se refere a essa produção identitária fundamentalmente em relação à realidade de São Luiz Gonzaga. Em contrapartida, referindo-se a uma mesma identidade regional bareferindo-seada nos referenciais históricos do passado reducional das Missões, mas com uma realidade voltada para o município de Santo Ângelo, Nagel (apud GONÇALVES; BOFF, 2001, p. 14) chama a atenção para a heterogeneidade étnica da população santo-angelense com múltiplas descendências como alemãs, italianas, polonesas, entre outras. Além do que, a miscigenação entre essas e outras etnias proporcionou um verdadeiro mosaico étnico. Sendo assim, a autora destaca que a perda das raízes dos referenciais históricos dessas etnias fez com que esses grupos sociais idealizassem no passado histórico da região onde estiveram ou estão inseridos, uma nova face identitária, caracterizada por missioneira e identificada com o passado das reduções dos Sete Povos das Missões. Por mais que essa ideia de ser missioneiro seja uma idealização, “[...] quando abordamos as origens de Santo Ângelo, o que se preserva no imaginário é a constatação de ser missioneiro, precedido da construção da noção de temporalidade, ou seja, associação de tempo às práticas culturais na região [...]” (SANTOS, 2008, p. 195). Além do mais:

Imagem marcante e representativa do imaginário missioneiro santo-angelense é o lugar de memória, a Igreja Angelopolitana, que ocupa lugar de destaque no espaço urbano contemporâneo. Dessa forma, não são os cientistas sociais os únicos responsáveis pelo que foi escolhido, mas também a sociedade, que reconhece nos diversos ícones-vestígios, como a escultura de Cristo e no próprio projeto urbanístico da Catedral Angelopolitana (que apesar de erguida em 1929, procurava os princípios do templo de São Miguel), os atributos históricos que lhe dão e permitem alcançar a legitimidade necessária (SANTOS, 2008, p. 199).

Dessa forma, o que se tem são as expressões do patrimônio cultural ligado ao passado da redução de San Angel Custódio como os grandes agentes legitimadores da identidade missioneira dos santo-angelenses contemporâneos, pois são testemunhos de uma história que,

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7 utilizada como referência, é capaz de diferenciar os moradores da região das Missões frente ao todo do Estado do Rio Grande do Sul, afirmando sua identidade regional. Além disso, há outro propósito, o qual está ligado ao estímulo do desenvolvimento econômico, inserindo a cidade em um roteiro turístico-cultural dos Sete Povos das Missões.

A IMATERIALIDADE DA CULTURA MISSIONEIRA

O reconhecimento do patrimônio cultural imaterial passou a ser positivado através da Constituição de 1988, que em seus artigos 215 e 216 ampliou a noção de patrimônio cultural ao reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e imaterial. Porém, somente a partir dos anos 2000 se passou a desenvolver políticas públicas de registro e salvaguarda dos bens intangíveis da cultura brasileira. Com o Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, se instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, criando também o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Em 2004 foi criado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, o Departamento do Patrimônio Imaterial3.

Os bens culturais de natureza imaterial estão diretamente relacionados às práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes e fazeres, ofícios e modos de fazer, celebrações, formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas. Também se expressa nos lugares, como mercados, feiras, santuários que abrigam práticas culturais coletivas4. Obviamente que estes saberes e fazeres são múltiplos e que cada grupo social produz suas expressões, cabendo a sociedade como um todo conhecer, reconhecer e se apropriar, ou não, destes elementos.

Nesse sentido, conhecer e reconhecer que existem expressões culturais imateriais produzidas entre os grupos sociais e que estas devem ser analisadas é de suma importância para a compreensão dos demais componentes que constituem as culturas, as memórias e a identidade dos povos em seus territórios, consideradas suas especificidades.

Na região das Missões são múltiplas as expressões deste patrimônio intangível e não conseguiríamos aqui expor e analisar todas elas. O que se pretende é chamar a atenção para

3 IPHAN. Patrimônio Imaterial. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234>. Acesso em:

06/08/2016.

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8 algumas destas expressões e verificar o quanto também são importantes e determinantes para a constituição daquilo que se convencionou chamar de identidade missioneira. Mais do que isso, promover e efetivar políticas públicas de registro e salvaguarda destas expressões é fundamental.

Inicialmente trataremos de expor e analisar algumas manifestações da cultura imaterial dos Mbyá-Guarani, etnia indígena que habita a região das Missões, possuindo aldeias nos municípios de São Miguel das Missões e Santo Ângelo.

Os Mbyá-Guarani são parte do tronco de etnias Guarani e a sua presença no Estado do Rio Grande do Sul é resultado de um processo antigo de relações com membros e segmentos da sociedade regional. Em função de circularem pelas fronteiras do Brasil com a Argentina e o Paraguai, durante muito tempo se negligenciou direitos e reconhecimento a este grupo, principalmente no que se refere a demarcação de suas terras. (SOUZA, 2016, p. 12-13)

Apesar de haver divergências quanto a participação ou não dos Mbyá nas experiências reducionais dos padres jesuítas da Companhia de Jesus no período colonial, sabe-se que ao longo dos séculos XIX e XX esta etnia transitou com grande frequência pelo território dos antigos Sete Povos e também por áreas estrangeiras como recém destacado. Assim, sua influência na formação da identidade cultural dos habitantes da atual região das Missões é incontestável, principalmente no que se refere às expressões do patrimônio imaterial.

Recentemente, em julho de 2013 um grupo de indígenas Mbyá-Guarani se estabeleceu no interior do município de Santo Ângelo, na localidade de Barra do São João. Inicialmente batizada de Aldeia Nova e depois transformando-se na comunidade Tekoá Pyaú, fundava-se a primeira aldeia Guarani desde o período reducional do século XVIII na cidade oriunda dos Sete Povos das Missões. Parentes do povo Guarani que habitou a Redução de Santo Ângelo Custódio, os integrantes dessa comunidade já viveram em São Miguel das Missões, Porto Alegre e Argentina. Porém, existia a vontade de retornar a um espaço que possuem forte ligação ancestral. O grande marco da criação da aldeia foi o nascimento do pequeno Darlan, filho do Cacique Anildo Romeu. (FINOKIET; ROMEU, 2014, s.p)

Uma das principais expressões do patrimônio imaterial dos Mbyá-Guarani é a Opy, Casa de Reza que se constitui em elemento imprescindível para a cultura deste povo. A Opy, não representa apenas a espiritualidade dos Mbyá, mas a manutenção do modo de ser Guarani. De acordo com o Cacique Anildo:

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9 Através da Opy a gente sabe onde nós vamos viver. Através da Opy, conseguimos alimento. É importante plantar perto da Opy para se produzir bem, para ter essa produção, para não acabar essa produção e ter o alimento. A Opy é saúde para o Guarani. Assim como os brancos têm o hospital, a Opy é o hospital para nós. (FINOKIET; ROMEU, 2014, s.p)

Verifica-se nas palavras do Cacique o quanto a Opy é importante como espaço da espiritualidade, da manutenção material e também como um lugar de memória para os Guarani. Esses elementos são indispensáveis para o modo de vida da etnia, mas também caracterizam a identidade cultural. A Opy é ao mesmo tempo materialidade e imaterialidade do patrimônio Mbyá-Guarani.

Outro traço importante da imaterialidade do patrimônio Mbyá está relacionado aos cuidados com a saúde do corpo. A medicina tradicional faz parte do dia a dia e está baseada no uso das ervas e cascas de plantas, algo que em muito foi incorporado aos hábitos dos brancos, apesar de hoje esta prática estar fortemente afetada pelo uso de outros métodos de cuidado com a saúde, principalmente no uso de medicamentos da indústria farmacêutica. Entretanto, desde o período colonial, não apenas portugueses, mas diversas outras etnias que ocuparam o Brasil incorporaram estas práticas em seu dia a dia.

Na constituição dos saberes e fazeres, a produção do artesanato é elemento importante do patrimônio Guarani, servindo não apenas como um forte traço da expressividade da cultura, mas também como uma das principais fontes de renda das famílias que compõem as aldeias desta etnia no Rio Grande do Sul. Sabe-se que ainda hoje os Guarani são negligenciados em seus direitos tanto na demarcação de terras quanto na garantia de condições para a produção nas áreas em que vivem. A plantação, a pesca e a caça, além de serem formas de garantir a subsistência, tem forte influência no modo de ser Guarani.

Além de tudo isso, outra expressão marcante do patrimônio imaterial Mbyá-Guarani e fundamental para entendermos a cultura desse povo é a produção da erva mate através da Carijada. A produção e o consumo de erva mate hoje em dia são traços marcantes não apenas da cultura indígena, mas da cultura gaúcha como um todo. O chimarrão é um dos elementos culturais que identifica o gaúcho. Porém, muitas vezes, se esquece que esta herança, esta expressão do nosso patrimônio cultural tem origem e ainda se mantém expressa com base na

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10 cultura indígena Guarani. A produção da erva envolve todo um processo que pode durar dias, desde a colheita das folhas, passando pela secagem até a pilagem, onde a erva é moída.

Do ponto de vista do reconhecimento institucional das expressões imateriais do patrimônio Guarani e, consequentemente, da região das Missões, o IPHAN inscreveu em dezembro de 2014, o bem imaterial Tava como um lugar de referência para este povo indígena.

(...) Para os Guarani-Mbyá a Tava é um local onde viveram seus antepassados, que construíram estruturas em pedra nas quais deixaram suas marcas, e parte de suas corporalidades, por conter os “corpos" dos ancestrais que se transformaram em imortais; onde são relembradas as 'belas palavras' do demiurgo Nhanderu. Nesses locais, é possível vivenciar o bom modo de ser Guarani-Mbyá e esse modo de viver permite tornar-se imortal e alcançar Yvy Mara Ey (a Terra sem Mal)5.

A Tava também incorpora concepções coletivas de bem viver e integra as narrativas sobre a trajetória deste povo. A Tava é um lugar de memória, de significados onde a materialidade e a imaterialidade do patrimônio Guarani dialogam com as iniciativas de apropriação deste patrimônio pelas instituições e grupos sociais da atual região das Missões, na construção ou no sentimento de pertencimento capaz de efetivar uma identidade missioneira. Toda esta expressividade do patrimônio imaterial Guarani foi sendo conhecida e reconhecida, visibilizada e invisibilizada, interpretada e reinterpretada ao longo do tempo.

A música também é uma das grandes expressões do patrimônio cultural da região das Missões. Mesmo no período reducional a música fazia parte do cotidiano de jesuítas e dos Guarani. Obviamente era um tipo de música condizente com o modelo de (re)socialização imposto aos índios reduzidos, mais voltado a um modelo erudito de música. Entretanto, na segunda metade do século XX se desenvolveu um estilo musical ligado ao tradicionalismo gaúcho, mas com uma roupagem própria, autoral e voltada para o canto e a poesia do cotidiano dos habitantes das Missões e também fazendo referência ao passado jesuítico-guarani. Essa música foi popularizada por alguns artistas da região e associada principalmente ao poeta Jaime Caetano Braun e aos músicos Noel Guarany, Pedro Ortaça e Cenair Maicá. De acordo com Ortaça:

Em meados de 1966 eu, juntamente com Noel Guarani e Cenair Maicá nos reunimos para tocar e cantar e decidimos que iríamos criar um novo modo de tocar

5 IPHAN. Tava, Lugar de Referência para o Povo Guarani. Disponível em:

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11 e cantar. A maneira que as coisas do Rio Grande eram colocadas não nos satisfaziam, não era a maneira que queríamos para o norte do nosso trabalho. Nos reunimos para tocar e cantar a identidade musical missioneira. (ORTAÇA apud BARBOSA, 2012, p. 172).

Aos poucos esses quatro artistas da região das Missões foram criando esse estilo próprio de fazer música e abordar questões ligadas ao cotidiano dos gaúchos e gaúchas missioneiros, ao mesmo em que também retratavam em suas poesias e letras aspectos relacionados ao passado reducional e aos grupos de Guarani que habitam a região circulando também pela Argentina e Paraguai. De acordo com Iuri Daniel Barbosa:

Troncos Missioneiros é o nome de um disco (um LP lançado em vinil em 1988 e re-lançado em CD na década de 2000) que reúne quatro artistas da Região Missioneira do Rio Grande do Sul: Jaime Caetano Braun, Noel Guarany, Cenair Maicá e Pedro Ortaça. Com registros fonográficos a partir dos anos 1970, a obra desses artistas está intimamente relacionada à construção da identidade missioneira no Rio Grande do Sul, Brasil. Também podem ser considerados como troncos de uma “Música Regional Missioneira”, que acabou por influenciar uma parcela significativa da música regional produzida nesse estado. (BARBOSA, 2012, 171-172).

O termo música missioneira do ponto de vista do que passou a ser produzido pelos artistas citados está vinculado a um regionalismo territorial e também quanto ao estilo de música que se propuseram a fazer. Jaime Caetano Braun, Noel Guarany, Pedro Ortaça e Cenair Maicá influenciaram diversos outros músicos no Rio Grande do Sul e inclusive em outros países do Mercosul, principalmente a Argentina, tendo em vista que parte de seu território vivenciou as experiências reducionais no período colonial.

Hoje são realizados no Estado diversos festivais de música regional que são influenciados pelo estilo desenvolvido pelos troncos da música missioneira. Nas letras das músicas verifica-se um forte apelo a figuras míticas do passado reducional, principalmente a Sepé Tiarajú, imortalizado como grande liderança indígena na Guerra Guaranítica. Todos estes elementos foram determinantes para a construção desta identidade missioneira que se coloca em questão hoje. A música como uma das maneiras mais fortes de expressão das regionalidades e das culturas dos povos é capaz de influenciar este processo e ser parte integrante do patrimônio cultural, dada a sua expressividade e representatividade imaterial.

Do ponto de vista étnico, ao mesmo tempo em os povos indígenas que viveram e circularam pela região das Missões em diferentes períodos históricos foram importantes e determinantes para a formação de uma identidade cultural regional, também outros grupos

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12 contribuíram neste processo. Dentre estes grupos destacam-se algumas etnias de imigrantes europeus que desembarcaram no Rio Grande do Sul com mais frequência a partir dos séculos XIX e XX, já nos períodos imperial e republicano da história do Brasil, como alemães e italianos, por exemplo. Obviamente não podemos desconsiderar portugueses e espanhóis que circulavam pelo território desde o período colonial.

Estes grupos étnicos trouxeram consigo não apenas seus idiomas, mas também uma infinidade de expressões culturais materializadas e imaterializadas em suas vestimentas, técnicas construtivas de moradias, religiosidade, culinária, festas, danças típicas e outros elementos que até hoje podem ser notados na cultura da região das Missões.

Na configuração atual dos municípios que compõem a região das Missões nota-se uma influência muito grande de etnias europeias que ocuparam a região. Dessa forma, verifica-se, além de uma identidade missioneira ligada ao período reducional e aos grupos indígenas Guarani, também uma identidade missioneira europeia. Assim:

(...) esta micro-identidade missioneira é regionalizada em municípios que foram colonizados por imigrantes europeus. Com o planejamento do turismo regional, as áreas identificadas com as identidades étnicas foram planejadas de forma a serem reconhecidas como um diferencial do tipo missioneiro. Na verdade, a diversidade cultural tornou-se um atrativo a mais para o planejamento turístico das Missões. O que se observa é uma disputa da identidade missioneira com as outras identidades microregionais. Por mais que ela esteja hibrida entre as mesmas. Esta percepção de que a identidade missioneira está fragmentada em outras identidades regionais é uma interpretação inovadora do estudo proposto, pois tanto nos estudos do IPHAN, assim como nos trabalhos acadêmicos, a região das Missões é percebida através de um olhar unificado, fechado, cristalizado. (PINTO, 2012, p. 144)

Cabe destacar aqui que enumerar manifestações do patrimônio imaterial das etnias europeias apresenta-se como um desafio, tendo em vista a diversidade dos grupos étnicos, bem como as expressões deste patrimônio imaterial. Porém, nota-se claramente a influência predominante de alguns destes grupos em determinados municípios, casos de Cerro Largo com os alemães ou Guarani das Missões com uma das maiores colônias de imigrantes poloneses do Brasil. Entretanto, outras cidades, como Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga e São Borja parecem apresentar uma maior diversidade destes grupos étnicos possuindo marcante influência de várias etnias, como os próprios alemães ou italianos e até mesmo árabes. Salienta-se, dessa maneira, a importância de novos estudos que venham a comtemplar estas questões, produzindo pesquisas, registros e inventários que possam contribuir para a

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13 institucionalização dos registros e reconhecimentos das manifestações imateriais destas etnias, principalmente por parte do IPHAN.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas exposições, ponderações e análises que se buscou fazer no presente texto a intenção não foi de listar, elencar ou hierarquizar manifestações do patrimônio imaterial da região das Missões institucionalizadas ou não. Até porque isso seria um grande equívoco. O que se buscou efetivamente foi identificar algumas delas e propor novas pesquisas e reflexões que possam contribuir para o entendimento de que as expressões do patrimônio imaterial são de suma importância para o entendimento do processo de construção, apropriação e legitimação de identidades, ao mesmo tempo em que promovem vínculos de pertencimento das populações aos lugares de memória.

Na região das Missões do Rio Grande do Sul o passado legou grandes expressões materiais do patrimônio cultural, principalmente através dos sítios arqueológicos preservados de algumas das reduções dos Sete Povos. Políticas públicas institucionais e ações voltados para o uso político e econômico destes espaços foram implementadas e são desenvolvidas até hoje. Porém, cabe dar maior atenção e visibilidade às expressões do patrimônio imaterial que possuem vinculo, não apenas ao período das missões jesuítico-guarani, mas também com o período pós reducional, onde diversos grupos étnicos de origem europeia passaram a ocupar a região.

Atualmente os Mbyá-Guarani habitam a região das Missões e do ponto de vista étnico são o grande elo de ligação com o passado das reduções. Apesar de passarem por inúmeras dificuldades no reconhecimento e efetivação dos seus direitos, permanecem na região que entendem ser parte do seu passado e do seu modo de ser. A Tava e o seu reconhecimento por parte do IPHAN como lugar de referência para os Guarani é a prova disso.

Entretanto, como buscamos destacar no texto, existem diversas outras expressões do patrimônio imaterial das Missões que ainda requerem maiores estudos e registros, visando futuro reconhecimento acadêmico e institucional enquanto expressões patrimoniais. Não seria possível neste curso espaço de análise pontuar cada uma delas, mas chamar a atenção para

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14 que se leve em consideração estes elementos quando se debater a existência e o modo como se constituiu a identidade missioneira.

As músicas, festas, rituais, saberes e fazeres, bem como os lugares de memória das etnias precisam ser estudados, pois possuem significados que se projetam do passado para o presente e podem dizer muito sobre o futuro.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Iuri Daniel. Os troncos missioneiros e a construção da identidade missioneira a partir da música. Para Onde!?, Porto Alegre, Vol 6, nº 02, p. 171-177, 2012, Jul./Dez. BRUM, Ceres Karam. Identidade Missioneira? In: QUEVEDO, Júlio. Missões: reflexões e questionamentos. Santa Maria: Editora e Gráfica Caxias, 2016. 31-51.

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CANDAU, Jöel. Memória e Identidade. – Tradução de Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2016.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: UNESP, 2001.

DIAS, Reinaldo. Turismo e patrimônio cultural: recursos que acompanham o crescimento das cidades. São Paulo: Saraiva, 2006.

FINOKIET, Bedati; ROMEU, Anildo. Mbya Rekoete: nossos costumes verdadeiros. Santo Ângelo: FuRI, 2014.

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Referências

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