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UMA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE MÚSICA POPULAR: EXPLORANDO IDENTIDADES, RELAÇÕES E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM LETRAS DE MÚSICA RAP

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REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM LETRAS DE MÚSICA ‘RAP’

Marcos Antonio Morgado de OLIVEIRA (Universidade Federal de Santa Catarina)

Resumo: Recentes pesquisas sobre discurso e grupos étnicos (van Dijk 1991, 1992, 1998) concentraram suas análises nas representações destes grupos em textos políticos, educacionais e de mídia, entre outros. Contudo, poucos estudos investigaram como estes grupos étnicos são representados enquanto produtores de seus próprios textos. Com o objetivo de preencher essa lacuna, este estudo investiga como um grupo étnico específico, a saber, Afro-brasileiros, representa a si próprio e outros grupos nas letras de ‘rap’ de suas músicas. A análise dessas letras busca identificar como a identidade e representações sociais são construídas lingüisticamente e como elas estão ligadas à questões sócio-históricas.

Palavras-chave: discurso, identidade, representações sociais, grupos étnicos.

1. Introdução

Estudos recentes sobre discurso e grupos étnicos (Van Dijk, 1991, 1992, 1998), mostram que em uma grande variedade diferente de textos (orais e escritos) tais como textos políticos, educacionais e de mídia, as ‘elites’ estão constantemente engajadas em discursos que reforçam e/ou reproduzem seu domínio sobre outros grupos étnicos/minoritários.

Van Dijk define as ‘elites’ como “...aqueles grupos na estrutura sócio-política de poder que desenvolvem políticas fundamentais, tomam as mais influentes decisões e controlam de maneira geral as maneiras de agir...” (1991: 4).

De acordo com Van Dijk (1991), o discurso das ‘elites’ pode ser explícito, quando produzem textos abertamente discriminatórios contra grupos minoritários e étnicos, ou implícito através da representação (na maioria das vezes negativa) destes na imprensa, filmes, anúncios, livros didáticos, etc.

Van Dijk (ibid.) afirma ainda que o discurso das elites forma a base para a produção, reprodução e aquisição de ideologias racistas, já que o racismo é “…aprendido socialmente” (1991: 3). Portanto, como o discurso deste grupo tende a ser predominante, Van Dijk afirma que aos grupos minoritários e étnicos é raramente dado voz. Em sua pesquisa sobre racismo e imprensa, estes grupos são representados em um número bastante limitado de tópicos tais como imigração, violência e crimes, entre outros.

Segundo Van Dijk, o preconceito destes tópicos é enfatizado porque eles são constantemente apresentados dentro de uma perspectiva negativa:

A imigração será descrita primeiramente em termos de problemas, conflitos ou dificuldades para ‘nós’ (superpopulação, entrada e residência ilegal, falta de recursos), e raramente como um problema para ‘eles’, tais como assédio de oficiais de imigração, e recusa ao acesso ou residência mesmo tendo legalmente o direito a tal. A mesma perspectiva negativa está presente quando os tópicos são a violência, crime ou desvio comportamental. Da mesma maneira, diferenças culturais são geralmente vistas como problemáticas, quando não ameaçadoras, para a cultura majoritária, como é tipicamente o caso pelo interesse especial nas práticas e valores do Islamismo e de muçulmanos. (1991, 9)

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O mesmo se aplica à sua pesquisa da representação de grupos minoritários e étnicos em livros didáticos, onde não somente os tópicos são semelhantes aos da imprensa como também a ênfase em perspectivas negativas, isto é, em problemas e/ou conflitos que podem ameaçar o grupo dominante.

No Brasil, um exemplo, segundo Herschmann (2000), foram as representações da violência produzida pela mídia nacional, com os famosos arrastões nas praias do Rio de Janeiro no início dos anos 90. Essas representações foram freqüentemente relacionadas aos movimentos hip-hop e funk, o que levou os jovens (em sua maioria, Afro-brasileiros) envolvidos nestes movimentos a serem vistos como sujeitos e participantes ativos daqueles incidentes e conseqüentemente estigmatizados.

Como grupos étnicos/minoritários são geralmente representados negativamente na imprensa, por exemplo, por grupos dominantes, este trabalho investiga como os primeiros são representados enquanto produtores de seus próprios textos. A análise aqui desenvolvida busca mostrar como um grupo étnico específico, a saber, Afro-brasileiros, representa a si próprio e outros nas letras de ‘rap’ de suas músicas. Na próxima seção faço uma breve explanação sobre o objeto de estudo desta pesquisa. Na terceira seção apresento um resumo sobre o rap e o hip-hop e na quarta apresento conceitos teóricos de suporte para este trabalho e a análise da letra propriamente dita. Por fim, na quinta e última seção apresento as considerações finais sobre a analise neste trabalho.

2. O objeto de estudo

Como as letras de músicas, de maneira geral, contam estórias podemos considerá-las narrativas ainda que suas estruturas retóricas possam não necessariamente seguir a organização comum deste gênero textual: resumo, avaliação, orientação, ação complicadora, resolução e coda (Labov, 1972). Contudo, elas podem apresentar alguns, senão todos, destes elementos em suas textualizações.

Narrativas, como práticas discursivas, possuem um importante papel na vida social: “... ao historiarmos a vida social para o outro, estamos construindo nossas identidades sociais ao nos posicionarmos diante de nossos interlocutores e diante dos personagens que povoam as nossas narrativas”.(Moita Lopes, 2002: 64).

Da mesma maneira, as letras de músicas parecem ter seu papel na construção social dos indivíduos: compositores/letristas podem ser considerados contadores de estórias e a criação de personagens e suas relações é também uma maneira de construir identidades e relações tanto dos compositores/letristas quanto dos ouvintes/leitrores de suas músicas/letras, bem como representações sociais do mundo.

Portanto, através da análise das letras como narrativas pretende-se mostrar como um grupo de ‘rap’ constrói identidades, relações e representações sociais (Fairclough, 1989, 1992) em seu trabalho. A letra selecionada, que faz parte de um corpus mais amplo que reúne vinte letras e cuja pesquisa ainda está em curso, é do grupo Racionais MC’s, ‘Negro Drama’, do disco mais recente ‘Nada como um dia após outro dia’ lançado em 2002. Naquele ano, o grupo recebeu vários prêmios Hutúz (evento que premia exclusivamente o gênero hip-hop) nas categorias melhor disco do ano, melhor grupo, melhor Dj, melhor produtor musical e melhor música: ‘Negro Drama’.

O grupo Racionais MC’s é considerado um dos melhores grupos de rap do Brasil e, embora tenham uma posição política na qual seus membros raramente dão entrevistas, não aceitam convites para participações em programas de televisão e seus discos não são tocados pelas principais rádios do país, o disco ‘Sobrevivendo no inferno’ de 1997 vendeu mais de um milhão de cópias e o lançamento mais recente ‘Nada como um dia após outro dia’ de 2002 vendeu cem mil cópias em apenas três dias

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(Martins, 2002). Além do espantoso número de discos vendidos em um momento em que as indústrias fonográficas, brasileiras e mundiais, passam por grandes dificuldades, o que já poderia justificar a escolha de suas letras para a análise, o discurso do grupo é considerado como uma das mais fortes críticas às estruturas e relações de desigualdades presentes na sociedade brasileira (Rodrigues, 1998).

3. Rap e hip-hop

Originalmente, o movimento cultural Hip-Hop, que começou nos anos 70 nos Estados Unidos, desenvolveu-se como uma forma de arte que inclui o graffiti, a dança break e o rap. O hip-hop surgiu como uma criação única e original dos Afro-Americanos dos guetos Nova-iorquinos onde, durante o verão, festas de rua tornaram-se atividades comuns. Conectando seus equipamentos na base de postes de luz em lugares públicos os DJs estavam

...interessados no “break” – o intervalo instrumental, geralmente dominado pela bateria ou baixo ‘funky’, entre as estrofes das letras – que poderia ser isolado e tocado novamente. Tocando duas cópias de um mesmo álbum em toca-discos distintos, os Dj’s de rua estendiam o ‘break’ de uma mesma música transformando-a em uma música instrumental. Logo - em demonstrações de destreza manual e virtuose, parodiando a avançada tecnologia de multicanais que haviam produzido esses discos – eles estavam ‘scratching’, repetindo batidas, ‘breaks’, palavras, e frases no mesmo disco, e mixando com batidas e ‘breaks’ de diferentes discos. (Williams, 1992: 164-165)

Os Dj’s de rua tornaram-se, então, os criadores do ritmo que mais tarde receberia as palavras ou poesia dos MC’s (Mestres de cerimônia, pessoas que apresentavam os Dj’s e exaltavam as habilidades manuais destes), criando o termo ‘rap’ – rhythm and poetry (ritmo e poesia) – que é usado para designar esse gênero musical.

Dos elogios às habilidades dos Dj’s a produção de rimas e letras pelos MC’s o rap evoluiu para tornar-se o gênero musical mais vendido nos Estados Unidos no final dos anos 90. Segundo Farley (1999: 1-2), “...em 1998, pela primeira vez na história, o rap superou o que previamente tinha sido o gênero musical mais vendido até então, música ‘country’. O rap vendeu mais de 81 milhões de CDs, fitas e discos no ano passado comparado com 72 milhões para o ‘country.’

No Brasil, o rap também se desenvolveu nas ruas seguindo os encontros de dançarinos de break que se encontravam na Praça da Sé e na estação de metrô São Bento em São Paulo. De maneira semelhante, alguns jovens Afro-brasileiros começaram a dançar break, outros se tornaram Dj’s e outros faziam rimas, estabelecendo conseqüentemente a cena rap brasileira (Silva, 1999). No início dos anos 90, um bom número de grupos de ‘rap’ já eram bastante conhecidos: grupos tais como ‘Thaíde e DJ Hum’, ‘Sistema Negro’, ‘DMC’, ‘Câmbio Negro’, ‘MRN’, ‘Pavilhão 9’ e ‘Racionais MCs’ tiveram reconhecimento apesar da falta de acesso à mídia institucional.

Os membros do grupo Racionais MCs, por exemplo, iniciaram sua carreira profissional gravando duas músicas para uma coletânea chamado ‘Consciência Black’ em 1988 antes de unirem-se para formar o grupo. Seu primeiro disco, ‘Holocausto Urbano’ (1990), vendeu cinqüenta mil cópias, uma boa indicação da força do grupo. Os dois próximos discos, ‘Escolha Seu Caminho’ (1992) e ‘Raio X do Brasil’ (1993), abriram caminho para sua aclamação como melhor grupo de rap com o disco de 1997 ‘Sobrevivendo No Inferno’ (Rodrigues, 1998). Tamanho sucesso veio, contudo, sem comprometer suas opiniões políticas sobre, e suas atitudes para com, o sistema. Como mencionado na seção anterior, o grupo não se apresenta em programas de tv, seus discos

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não são tocados pelas principais estações de rádio e, ainda assim, o grupo conseguiu um grande número de jovens fãs (em sua maioria, Afro-brasileiros).

Esta grande simpatia do público Afro-brasileiro coloca em questão a natureza de tal simpatia. Silva (1999: 29) argumenta que existem dois pontos principais porque o ‘rap’ exerce tamanha influência nos jovens Afro-brasileiros: “o primeiro diz respeito à reconstrução da identidade negra e, o segundo, à experiência juvenil na periferia”. Não somente os Racionais MC’s, mas outros grupos de ‘rap’, também famosos ou mais desconhecidos, são capazes de lidar com estes dois aspectos principais. Eles vêm da periferia das grandes cidades, são majoritariamente Afro-brasileiros e, portanto, produzem uma cena cultural onde tanto os grupos quanto o público compartilham dos mesmos problemas e expectativas. Segundo Duarte (1999: 19), “... é na relação entre aquele que diz e aquele para quem se diz que deve ser pensada a força assumida pelo rap. Aquele que ouve também é aquele que tem o direito à palavra, porque a palavra se faz na linguagem que lhe é própria”.

Parece claro, portanto, a importância do discurso presente nas letras de ‘rap’ para a construção da identidade dos Afro-brasileiros e também de suas relações e representações. Na próxima seção veremos como esses aspectos estão construídos lingüisticamente, assim como um breve resumo do suporte teórico em que a análise está fundamentada.

4. Teoria e prática

Um conceito bastante importante e que é o fio condutor deste trabalho é o conceito de discurso. Dentro da linha anglo-saxônica da análise crítica do discurso, Fairclough (1992: 63) propõe que o discurso é “...o uso da linguagem como uma forma de prática social...’. Tal definição implica perceber o discurso não só como uma maneira de representar o mundo, mas também como uma maneira de agir sobre ele. Também implica perceber o discurso sendo, por um lado, moldado pelas estruturas sociais e, por outro, moldando estas mesmas estruturas. Isto significa dizer que o discurso segue normas, convenções e relações dentro dos diferentes níveis de estruturas sociais, mas também estabelece normas, convenções, relações e também identidades.

Além disso, segundo Fairclough (1992: 64), o discurso “...é uma prática não apenas de representar o mundo, mas de significá-lo, constituindo e construindo o mundo em significados”. Dessa maneira, o discurso ajuda estabelecer identidades e posições sociais, relações, crenças e conhecimentos.

Definido o conceito de discurso que sustenta esta analise, podemos seguir para o próximo ponto. Na segunda seção argumentei que podemos ver letras de musica como narrativas, o que significa estarmos tratando com um gênero textual especifico. Porém, a intenção aqui não é a de detalhar as especificidades deste gênero, destas letras, mas de perceber como atuamos socialmente através deste gênero textual. Meurer (2001:3) afirma, baseado em Fairclough, que

Toda vez que alguém usa um dado gênero textual, ele ou ela estará fazendo pelo menos três coisas simultaneamente através deste gênero: (1) ele/a estará criando uma determinada cena de algum aspecto da realidade, (2) ele/a estará estabelecendo algum tipo de relação social, e (3) ele/ela estará ou reforçando ou desafiando identidades específicas. Para cada texto com o qual nos deparamos, esses três diferentes aspectos de significado podem ser explorados através de três perguntas ...que podemos fazer: (1) como este texto representa a ‘realidade’ específica com a qual se relaciona?... (2) que tipo de relações sociais este texto reflete ou traz à tona? ...e (3) quais são as identidades, ou papéis sociais, envolvidos neste texto?

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Estas perguntas fornecem uma maneira clara e bastante eficiente de abordarmos diferentes textos e investigarmos os diferentes significados construídos neles. Portanto, a análise da letra que descrevo a seguir será conduzida através destas três perguntas. Na sub-seção abaixo apresento a análise da letra ‘Negro Drama’.

4.1 Explorando identidades e relações na letra ‘Negro Drama’

Antes de discutir cada uma perguntas apresentadas acima, é importante colocar que, por serem essas letras extremamente longas, a análise será feita mostrando alguns grupos de versos e estrofes observando-se diferentes aspectos em cada um deles. Abaixo temos as quatro primeiras estrofes da letra e, portanto, podemos rever a questão número um: como este texto representa a realidade específica com a qual se relaciona?

NEGRO DRAMA

ENTRE O SUCESSO E A LAMA

DINHEIRO, PROBLEMAS, INVEJA, LUXO, FAMA NEGRO DRAMA

CABELO CRESPO E A PELE ESCURA

A FERIDA, A CHAGA, A PROCURA DA CURA NEGRO DRAMA

TENTA VER, E NÃO VÊ NADA

A NÃO SER UMA ESTRELA, LONGE MEIO OFUSCADA SENTE O DRAMA, O PREÇO, A COBRANÇA

NO AMOR, NO ÓDIO, A INSANA VINGANÇA NEGRO DRAMA

EU SEI QUEM TRAMA E QUEM TÁ COMIGO

O TRAUMA QUE EU CARREGO PRA NÃO SER MAIS UM PRETO FUDIDO

Como é possível observar através dos itens lexicais usados, temos uma identidade já determinada, a identidade social de raça, e o que ela significa do ponto de vista do autor, um Afro-brasileiro. O item lexical drama parece resumir a realidade específica a qual se refere o texto: ele sugere que essa identidade social de raça, negro, no Brasil, implica em inúmeras provações as quais as pessoas com essa identidade são submetidas cotidianamente. Os itens lexicais lama, problema, inveja, ferida, chaga, ódio, vingança, trauma e fudido dão a dimensão dos problemas enfrentados por grande parte desse grupo de pessoas. Talvez seja importante ressaltar que esta perspectiva da realidade ajuda a derrubar o ainda naturalizado e incorporado mito da democracia racial na sociedade brasileira, que continua reforçando práticas discriminatórias ao negar que elas existem.

Além desta representação da realidade mais ampla e abrangente de discriminação e preconceito, podemos observar também outras representações adjacentes que ajudam a contextualizar ainda mais este quadro. Vejamos as estrofes seguintes:

O DRAMA, DA CADEIA E FAVELA

TÚMULOS, SANGUE, SIRENES, CHOROS E VELAS PASSAGEIRO DO BRASIL, SÃO PAULO

AGONIA, QUE SOBREVIVE EM MEIO A ZORRA, E COVARDIA PERIFERIA, VIELAS, CORTIÇOS

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VOCÊ DEVE TÁ PENSANDO O QUE VOCÊ TEM A VER COM ISSO DESDE O INÍCIO, POR OURO E PRATA

OLHA QUEM MORRE ENTÃO, VEJA VOCÊ QUEM MATA RECEBE O MÉRITO, A FARDA QUE PRATICA O MAL ME VER POBRE, PRESO OU MORTO JÁ É CULTURAL

Aqui podemos observar dois espaços onde o drama é extremamente doloroso, a cadeia e a favela. Nelas a morte parece ser um elemento constante dentro dessa realidade causando mais dor e sofrimento aos que vivem na periferia, vielas, cortiços como sugerem os itens túmulos, sangue, sirenes e velas. Podemos observar também que novas identidades sociais foram apresentadas: você em você deve ta pensando o que você tem a ver com isso sugere a existência do outro, provavelmente a ‘elite’, grupo dominante para o qual tal dura realidade passa desapercebida ou, ainda pior, negligenciada. A segunda identidade parece estar implícita nos itens mérito e farda: é possível interpretar e relacionar esses itens aos policiais e à violência costumeiramente cometida por eles. Veja você quem mata e a farda que pratica o mal denunciam a violência praticada por aqueles que deveriam, a princípio, proteger os cidadãos. Esse tipo de violência praticada por policiais parece estar enraizada nos tempos da ditadura militar, quando a repressão ostensiva era prática cotidiana de policiais e militares. Mesmo com a chegada da democracia tais práticas continuaram e continuam a ocorrer, muito embora seja possível perceber tentativas de repressão destas.

Embora as representações de discriminação e violência continuem a permear o texto como um todo, podemos agora discutir juntas a segunda e terceira perguntas já que está última foi observada já no primeiro exemplo: que tipo de relações sociais este texto reflete ou traz à tona?, e quais são as identidades, ou papéis sociais, envolvidos neste texto?

È possível perceber, ainda em referência à passagem anterior, que as relações existentes entre policiais e Afro-brasileiros é sem dúvida bastante assimétrica, expondo relações desiguais de poder e desafiando-as como no verso me ver pobre, preso ou morto já é cultural.

Nos próximos exemplos é possível observar como as diferentes identidades geram relações conflitantes:

SEU JOGO É SUJO E EU NÃO ME ENCAIXO

EU SOU PROBLEMA DE MONTÃO DE CARNAVAL A CARNAVAL EU VIM DA SELVA SOU LEÃO, SOU DEMAIS PRO SEU QUINTAL PROBLEMA COM ESCOLA EU TENHO MIL, MIL FITA

INACREDITÁVEL MAS SEU FILHO ME IMITA NO MEIO DE VOCÊS ELE É O MAIS ESPERTO XINGA E FALA GÍRIA, GÍRIA NÃO, DIALETO ESSE NÃO É MAIS SEU, Ó, SUBIU

ENTREI PELO SEU RÁDIO, TOMEI, CÊ NEM VIU MAS É ISSO AQUILO, QUE? CÊ NUM DIZIA? SEU FILHO QUER SER PRETO, AHHH QUE IRONIA COLA O PÔSTER DO 2PAC AÍ, QUE TAL QUE CÊ DIZ? SENTE O NEGRO DRAMA VAI TENTA SER FELIZ HEI BACANA QUEM TE FEZ TÃO BOM ASSIM?

O QUE CÊ VÊ O QUE CÊ FAZ O QUE CÊ FEZ POR MIM? EU RECEBI SEU TICKET, QUER DIZER KIT

DE ESGOTO A CÉU ABERTO E PAREDE MADERITE

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DE VERGONHA EU NÃO MORRI, TO FIRMÃO, EIS ME AQUI VOCÊ? NÃO, CÊ NÃO PASSA QUANDO O MAR VERMELHO ABRIR

Temos nestes versos as relações e identidades explícitas das elites, o grupo dominante, o bacana, e dos Afro-brasileiros, o grupo étnico/minoritário, o negro drama. Seu jogo é sujo e eu não me encaixo sugere o desafio ao preconceito e à discriminação reforçado pela analogia ao leão, animal forte e selvagem. O bacana, sugerindo identidade social de classe, mostra mais uma vez a relação assimétrica entre as duas classes e raças. O item bacana pressupõe um poder aquisitivo maior e, possivelmente, um grau de instrução também maior, mas é justamente por essas questões que é criticado por manter a distância social que os separa: o que cê vê, o que cê faz, o que cê fez por mim? Apesar de ser negligenciado pelo bacana, é sugerido que o Afro-brasileiro mantém-se em pé, firme ainda que sofra as privações decorrentes dessa assimetria social e econômica. Pode-se perceber também que há uma conotação religiosa nessa relação entre os dois grupos: pela sua negligencia, ao bacana será negado passagem quando o mar vermelho abrir. Ou seja, sugere-se que o bacana não merece passagem por causa do menosprezo para com o outro, pelo seu preconceito e discriminação.

Além disso, uma outra relação entre os dois grupos é estabelecida: através da força cultural e musical do rap e do hip-hop o filho do bacana, demonstrando afinidade com esse gênero musical, é conquistado e quer ser preto. Em ultima analise, talvez seja este o caminho para que as novas gerações de diferentes classes e raças possam estar mais abertas para discutir com mais franqueza e liberdade suas diferenças e problemas.

5. Considerações finais

Há um grande interesse em diferentes áreas das ciências humanas em relação à construção de identidades sociais, suas relações e representações. Segundo Meurer (2000: 152), “o conhecimento que os seres humanos possuem, suas identidades, relações sociais e suas próprias vidas são em grande parte determinadas pelos gêneros a que eles são expostos, que eles produzem e consomem”. Portanto, ao sermos expostos à gêneros textuais tais como o apresentado aqui, uma narrativa, é possível observar como estamos (re)construindo nossas identidades e relações ao interagirmos, via discurso, com os produtores desse texto.

Além disso, através da análise de alguns trechos da letra ‘Negro Drama’, a narrativa produzida pelo grupo Racionais MC’s demonstra a relação dialética entre discurso e identidades, já que é possível observar como estes são construídos em relação com o outro.

Moita Lopes (2002: 80) expande essa questão para a formação de professores tanto de línguas quanto de outras áreas:

Cabe, nesse sentido, focalizar dois pontos. O primeiro diz respeito à consciência do fato de que as histórias que se contam na escola constituem um repertório, apropriado pela turma, sobre como são as coisas no mundo fora da escola, criando um sentido de comunidade, de quem somos no mundo social e de como podemos agir no drama da vida social por intermédio das histórias que se contam, já que contar uma história é uma forma de ação. Como decorrência deste, o segundo ponto se refere à importância de expor os alunos na escola, a narrativas de grupos sociais outros que aqueles normalmente visíveis nas sociedades em que vivemos, tais como negros, indígenas, praticantes de cultos religiosos de origem africana, gays, lésbicas, idosos, mulheres, profissionais invisíveis como enfermeiras, empregadas domésticas, etc.

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Parece, portanto, bastante razoável afirmar que, neste contexto, a análise de letras de ‘rap’ ajuda a promover a exposição e o debate de discursos e identidades de classe e raça, entre outras, apostando na diminuição de práticas discursivas discriminatórias e preconceituosas. Como mencionado acima, talvez o melhor caminho seja ouvir e respeitar as diferenças.

Referências bibliográficas

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