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A comédia de costumes brasileira na sala de aula 1

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1 Artigo aprovado em 10/12/2016.

2 Mariana Oliveira (CAp-UERJ; ensinohistoriadoteatro@gmail.com) é atriz, doutora em Artes Cênicas pelo PPGAC/UNIRIO e

professo-ra de Teatro no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveiprofesso-ra (CAp-UERJ).

Resumo: Este artigo busca desenvolver o tema “teatro brasileiro em sala de aula”, dispensando inicialmente algumas considerações históricas sobre a presença do te-atro brasileiro em ambientes de ensino/educação e apontando a existência de no-vas condições de trabalho com o adensamento das pesquisas acadêmicas sobre o assunto. Propõe, em seguida, a abordagem da comédia de costumes brasileira do século XIX, mostrando sua importância para a nossa história teatral e recorrendo ao olhar renovado que se tem dado a ela, especialmente à obra de Martins Pena. Em consonância com esse movimento de reavaliação crítica, a terceira e última parte do texto sugere procedimentos práticos (leitura, improviso, reescrita) a partir de um fragmento de cena da comédia Os dois ou O inglês maquinista, de Pena. Como resul-tado, encontramos a possibilidade de que se faça, em sala de aula, uma aproximação crítica e inovadora com o teatro brasileiro desde suas primeiras tradições.

Palavras-chave: Teatro brasileiro. Comédia de costumes. Martins Pena.

Abstract: This article seeks to develop the theme “Brazilian theater in the classroom”, initially dispensing some historical considerations about the presence of Brazilian theater in teaching/educational environments and pointing out the existence of new working conditions with the increase of academic research on the subject. Then, it proposes the approach to Brazilian comedy of manners of the 19th century, showing its importance for our theatrical history and resorting to the renewed look that has been given to it, especially to Martins Pena’s work. Consistent with this critical reap-praisal movement, the third and final part of the text suggests practical procedures (reading, improvising, rewriting) based on a scene fragment from the comedy The Two or The English Machinist, from Pena. As a result, we found the possibility to

A comédia de costumes brasileira na sala de aula

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make a critical and innovative approach in the classroom with Brazilian theater from its earliest traditions.

Keywords: Brazilian theater. Comedy of manners. Martins Pena.

1. O teatro brasileiro no ensino formal

A busca de um “teatro brasileiro” tomou vulto em nossa história no momento em que se procurou colocar em prática um projeto de construção da nação. Já no início do século XIX, a vin-da vin-da corte portuguesa para o Rio de Janeiro provocara a intensificação vin-da vivin-da artística e teatral entre nós: por exemplo, entre muitos outros feitos, em 1813, inaugurou-se o então chamado Real Teatro de São João. Após a Independência, em 1822, fortaleceu-se a associação desse movimento artístico e cultural com o caráter nacional. O chamado “momento decisivo” da formação do teatro brasileiro deu-se, assim, alguns anos mais tarde, com o advento do romantismo, quando o teatro se constituiu “como um ‘sistema’ integrado por autores, atores, obras e público” e deu ensejo à “continuidade fecunda do trabalho cênico” (FARIA, 1998, p. 15-16).

Nesse contexto, entretanto, ao que tudo indica, o teatro foi ignorado pelo ensino formal. Mesmo que a ideia civilizadora que nos guiava tivesse moldes europeus, o aspecto da valoriza-ção da literatura dramática em ambientes de ensino, em especial no que concerne à produvaloriza-ção nacional, não se verificou por aqui. Vejamos o caso do Colégio Pedro II, fundado em 1837, para a instrução das elites políticas e intelectuais brasileiras, em cujo currículo estava ausente

[...] a tradição secular de leitura de peças dramáticas em públi-co, mesmo num momento em que já faziam sucesso as obras de Martins Penna e Gonçalves de Magalhães e as montagens de João Caetano, esses que foram os três brasileiros respon-sáveis pela modernização do teatro nacional (SANTANA, 2000, p. 65).

Tampouco antes do século XIX, a historiografia brasileira havia registrado usos escolares do teatro, o que pode ser explicado por meio de, pelo menos, duas hipóteses, conforme Décio de Almeida Prado:

As festividades escolares organizadas em formato teatral, como se faziam nos colégios europeus da Companhia de Jesus,

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ou desapareceram no Brasil com a passagem do tempo ou en-tão caíram no rol dos fatos rotineiros, de que não se dá notícia nem se guarda memória (PRADO, 1999, p. 20-21).

Inexistente ou fato rotineiro, portanto, as representações teatrais escolares entre nós não mereceram registro como no caso do humanismo do século XVI europeu, em que o teatro antigo foi utilizado para desenvolver a arte do falar e o ensino do latim nas escolas, conforme descrito por Richard Courtney (2003, p.10) ao evidenciar rastros históricos das relações entre teatro e educação no ocidente.

Esse tipo de ausência, no que tange especialmente à literatura dramática nacional, não se limitaria temporalmente ao momento em que começamos nossa formação como nação, mas se transformaria numa verdadeira problemática ao longo de nossa história. Segundo Sábato Magaldi, em seu Panorama do teatro brasileiro, publicado em 1962: “Ninguém, infelizmente, nos ensinou a amar o teatro brasileiro. Enquanto, nas escolas, nos transmitem o gosto pela poesia e pelo romance, nenhum estudo é feito da literatura dramática” (MAGALDI, 1997, p. 11-12). Ainda hoje, muitas vezes nos ressentimos do pouco destaque dado ao tema em nossos estabelecimen-tos de ensino, mesmo em nível universitário.

Nesse sentido, o adensamento, durante as últimas décadas, das pesquisas acadêmicas sobre teatro brasileiro tem grande relevância na medida em que representa o potencial de se cria-rem condições para a ampliação da área em todos os níveis de ensino. Reflete essa intensificação, por exemplo, a publicação, em 2012, dos dois volumes de História do teatro brasileiro (Editora Perspectiva), abrangendo desde suas raízes até a contemporaneidade. Sob direção do professor João Roberto Faria, a obra aponta para a construção de uma nova história, com a colaboração de vários especialistas. Igualmente, a coleção Dramaturgos do Brasil (Editora Martins Fontes), com o intuito de reunir a produção dramática dos principais dramaturgos brasileiros e pelo menos de-zesseis volumes lançados, também ajuda a difundir o conhecimento sobre nosso teatro.

O presente estudo, tendo como tema o teatro brasileiro na sala de aula, traz, neste con-texto, um novo desafio, pois que coloca o questionamento de como se tem experimentado, ou se poderia fazê-lo, a abordagem de nosso teatro em ambientes de ensino/educação. Com o avanço das pesquisas acadêmicas e a disponibilização de obras dramatúrgicas de forma organizada e acompanhadas de material crítico, as condições seriam mais favoráveis?

Evidentemente, a abordagem do teatro brasileiro em sala de aula não depende exclusiva-mente da existência desse tipo de material de apoio. A ida ao teatro para assistir a espetáculos, a consulta a vídeos e a bancos de peças na internet, algumas das quais em domínio público, a

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observação e a prática de formas teatrais populares (o Bumba meu boi, brincadeiras de Cavalo Marinho, teatro de bonecos/mamulengo, teatro de rua etc.) são outros de muitos exemplos de caminhos ou ferramentas possíveis. De todo modo, quanto mais instrumentos forem disponibili-zados, maior será a probabilidade de se fomentar a abordagem em questão.

Assim, apesar dos avanços mencionados, é preciso notar uma carência relacionada espe-cificamente ao ensino básico. Com essa finalidade em particular, ainda são escassos os materiais didáticos sobre teatro brasileiro. É verdade que há alguns com viés histórico, produzidos por se-cretarias de educação e, em outros âmbitos, também se pode encontrar: a publicação sobre tea-tro do “Novo Telecurso” (EAD Globo TV) que abarca a história do teatea-tro desde os gregos antigos ao teatro brasileiro moderno (JUNIOR, 2008); o livro Teatro, de Raquel Coelho (Editora Formato, 1999), que, com conteúdos simplificados e ênfase no colorido de suas ilustrações originais, dedica algumas páginas ao teatro no Brasil; e o livro Pequena viagem pelo mundo do teatro, de Hildegard Feist (Editora Moderna, 2005), que, também recheado de imagens mas com viés documental, conta com um capítulo sobre teatro brasileiro. É uma oferta, entretanto, bastante limitada. Assim, seria bastante interessante que hoje se pensasse possibilidades de produção de obras e materiais sobre teatro brasileiro que sejam atualizados, de qualidade, diversificados, com amplo uso de imagens, e que tenham como finalidade específica o uso na educação básica3.

O universo da educação básica será, afinal, o escolhido no presente artigo para o desen-volvimento de propostas diante do desafio posto por esta edição de Lamparina. Apoiando-se teoricamente em obras já disponíveis, vejamos uma perspectiva, entre muitas outras possíveis, de desenvolvimento do tema “teatro brasileiro em sala de aula”: vamos experimentar trabalhar sobre a comédia de costumes brasileira, tendo como alicerce o momento mesmo de seu surgi-mento, no século XIX.

2. A comédia de costumes brasileira

Definida por Patrice Pavis como o “estudo do comportamento do homem em sociedade, das diferenças de classe, meio e caráter” (PAVIS, 1999, p. 55), a comédia de costumes traduz-se,

3 A título de curiosidade, ver o caso do CNDP (Centre national de documentation pédagogique), instituição pública que funciona sob

a tutela do Ministério da Educação nacional francesa e que se dedica à edição, produção e difusão de recursos pedagógicos. Sua linha editorial de teatro foi e tem sido responsável por uma série de publicações, oferecidas nacionalmente a bibliotecas, professores e artistas que intervêm nas escolas. Esses materiais não se restringem ao domínio da literatura dramática (clássica e contemporânea), mas também abarcam o espetáculo teatral, fazendo amplo uso de imagens e sendo frequentemente acompanhados de DVDs com registros de espetáculos.

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em francês, como comédie de moeurs, comédia em que “o riso é provocado pela pintura satírica dos costumes de uma época”4. Tendo raízes na Comédia Nova da Grécia antiga, essa forma cômica

foi também explorada por Molière em algumas de suas peças. Para nós, tem um significado espe-cial: é a comédia do romantismo brasileiro, que surgiu e formou-se junto com o teatro nacional, fazendo o registro e a crítica dos costumes de nossa sociedade no século XIX.

Segundo Sábato Magaldi, com a estreia de O juiz de paz na roça, de Martins Pena, em 4 de outubro de 1838, encenada pela companhia de João Caetano, começava “o verdadeiro teatro nacional, naquilo que ele tem de mais específico e autêntico” (MAGALDI, 1997, p. 40). Assim, sob o ponto de vista histórico, a representação da primeira comédia escrita por Martins Pena sinaliza dois importantes acontecimentos que podem ser apresentados de modo articulado: o floresci-mento de uma tradição, a da comédia de costumes brasileira, e o desabrochar do teatro nacional.

A estreia da comédia de Pena e o conjunto da obra cômica do autor, no contexto do ro-mantismo brasileiro, têm forte significado, não no sentido de momento primeiro do teatro brasi-leiro, construído a partir de um vazio original, mas de momento decisivo que estabelece tradição contínua, analogamente às ideias desenvolvidas por Antonio Candido para a formação da literatu-ra bliteratu-rasileiliteratu-ra (FARIA, 1998, p. 16). Segundo essa concepção, o estabelecimento da tliteratu-radição decorre da criação de um “sistema” articulado e orgânico, funcionando, no caso da literatura, como uma dinâmica viva de conjuntos de produtores/autores, conscientes de seu papel, receptores/leitores e mecanismos transmissores/obras (CANDIDO, 1981).

Magaldi afirma: “Martins Pena é o fundador da nossa comédia de costumes, filão rico e responsável pela maioria das obras felizes que realmente contam na literatura teatral brasileira” (MAGALDI, 1997, p. 40). Neste ponto, vale lembrar que grande parte das comédias brasileiras escritas ou encenadas por outros autores nos decênios de 1830 e 1840 não foi publicada e se perdeu, mas que, a despeito desse fato, já nos anos 1850, intelectuais brasileiros se referiam a Martins Pena e Joaquim Manuel de Macedo como os únicos comediógrafos importantes do pe-ríodo romântico. (ARÊAS, 2012, p. 123). Pode-se dizer, afinal, que a obra de Pena “efetivamente instaura um modelo de comédia para os seus contemporâneos e para os que vieram depois dele” (Id. Ibid., p. 122). Assim, o “rico filão da comédia de costumes” contaria com cinco autores prin-cipais, situados no âmbito de uma mesma tradição, apesar das heterogeneidades em suas obras e propostas: Martins Pena, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, França Júnior e Artur

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Azevedo. Este último viria a fundar uma cadeira da Academia Brasileira de Letras a de número XXIX, com o nome do primeiro, em nome da celebridade que suas peças teatrais alcançaram.

Entretanto, a permanência da comédia de costumes em nossa história nem sempre foi vista como positividade. Para Décio de Almeida Prado, a “comédia brasileira, em última análise, nunca rompeu a barreira que a fechava num campo afinal bastante restrito”, não alcançando a “fantasia poética shakespeariana”, nem a construção de caracteres no sentido francês (PRADO, 1999, p. 138). Em sua trajetória, nossa comédia de costumes teria ainda encontrado a rejeição do espírito modernizador da década de 1930, quando ela própria, e o sistema teatral que ajudara a construir, já se encontrava decaída, funcionando sob uma engrenagem mecanizada (PRADO, 1986).

Associando a isso a desvalorização que o gênero cômico em geral sofreu historicamente, seria interessante recorrer às revisões que se tem feito de nossa comédia de costumes, procu-rando recolocar seu valor. Vilma Arêas, por exemplo, propõe reavaliar a obra de Martins Pena, chamando a atenção para um processo que acabou por

[...] negar uma série de lugares-comuns sobre o comediógrafo, principalmente as afirmações de que escrevia mal e desleixa-damente, que era indiferente a questões sociais e interessado somente em fazer rir com suas farsas, supostamente ingênuas (ARÊAS, 2007, p. IX).

Na biografia de Martins Pena (1815-1848), consta diversificada formação artística e cultu-ral: pintura, estatuária e arquitetura; música e canto; literatura, inglês, francês e italiano. Tendo ele ingressado na Academia de Belas Artes, foi aluno de professores franceses remanescentes da Missão Francesa, de 1816. Seus Folhetins, publicados em livro em 1965, refletem essa formação, pela profundidade de conhecimento que demonstra ter do palco e da ópera (ARÊAS, 2007).

Familiarizado com diferentes convenções teatrais, desde a tradição francesa (evidente, por exemplo, em Os três médicos, diretamente inspirada em Molière) até a do teatro popular (te-atrinhos de feira, circo de cavalinhos, teatros mecanizados, representações de rua e até números da Commedia dell’Arte que por aqui se apresentavam), o comediógrafo escrevia com os olhos voltados para a cena e acertou “na forma miúda, vivíssima, a todo momento posta à prova no palco” (ARÊAS, 2012, p. 128). Sua obra possui eficácia dramática e não necessariamente literária, com estrutura ágil e engenhosa, ritmo acelerado com grande concentração de acontecimentos, qüiproquós, correrias, esconderijos, disfarces, saídas e confusões.

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Consciente, portanto, das técnicas teatrais, Pena também buscou aprimoramento. Se, nas primeiras peças, a construção frouxa pode ser justificada pela forte influência do entremez portu-guês, que, junto com a farsa, era abundantemente encenado por aqui nos anos de 1830, outras de suas comédias mostram-se estruturalmente mais elaboradas, sendo compostas por vários fios da tradição teatral. Em termos técnicos, Arêas situa em Os dois ou O inglês maquinista (provavel-mente de 1842), um ponto de inflexão, salientando nesta peça a concentração espacial, a funcio-nalidade do espaço, as rubricas precisas e a elaboração do enredo (ARÊAS, 2007;2012). Também nessa comédia, assim como em outras, podemos ver o exemplo de um autor com propósito críti-co críti-consciente no que tange ao aspecto social. À semelhança do que se percebe em seus escritos jornalísticos, por exemplo, na simpatia explícita aos coristas grevistas de 1847.

Em suma, é com esse olhar renovado que lançaremos a seguir proposições para o desen-volvimento do tema “teatro brasileiro na sala de aula”, fazendo o recorte da comédia de costumes do século XIX e, num segundo momento, sugerindo procedimentos práticos a partir de fragmento de texto de Martins Pena.

3. A comédia de costumes na sala de aula

A abordagem da comédia de costumes na disciplina de Teatro no ensino básico traz consi-go uma série de possibilidades interdisciplinares, por exemplo com Artes Visuais, Música, Língua Portuguesa, História e Sociologia. Chamaremos atenção aqui para essas duas últimas possibilida-des, pois, ao fazer a crítica dos costumes brasileiros no momento em que se iniciou o projeto de formação da nação, nossa comédia de costumes produziu discursos de referência para o imagi-nário constitutivo de nosso país. Ajudou, portanto a constituir imagens e auto-imagens da nação, compondo historicamente a memória do Brasil. Sob o ponto de vista sociológico, a comédia de costumes dá a ver o processo de formação da sociabilidade brasileira5.

Sobre a comédia de Martins Pena, especificamente, já Sílvio Romero a considerava “o painel histórico da vida do país, na primeira metade do século XIX” (MAGALDI, 1997, p. 40). Sua obra foi, inclusive, comparada à do pintor francês Jean-Baptiste Debret, que, ao integrar a Missão Francesa, documentou a vida social brasileira no século XIX. Em Pena,

5 Em projeto interdisciplinar entre Artes Cênicas e História, no Colégio de Aplicação da UFRJ, em 2006, realizamos a montagem da

comédia Caiu o ministério!, de França Júnior. Para Artes Cênicas, o projeto permitia a aproximação entre teoria e prática ao desenvol-ver a reflexão acerca do papel do teatro na sociedade, para além do intuito do entretenimento. Para a disciplina de História, era uma oportunidade para os alunos melhor compreenderem os processos históricos, ao se trazer indivíduos e a figuração de suas vidas à cena principal, mesmo que pela ficção (CARVALHO, OLIVEIRA, ACSELRAD, 2007).

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[...] estão, desdobrados em vários momentos, nossos vícios maiores: a política do favor como mola social, a corrupção em todos os níveis, a precariedade e atraso do aparelho judicial, a exploração exercida por estrangeiros e a má assimilação da cultura europeia importada, que o inspirou a escrever irônicas paródias da ópera [...]. Acrescentem-se a esse rol o contraban-do de escravos, os mecanismos de contravenção, a servidão por dívida, comportamentos sexuais e familiares etc. Esses e outros aspectos que percorriam a sociedade brasileira de alto a baixo são exibidos no palco (ARÊAS, 2012, p. 125).

No rol de temas abordados, merece destaque a figuração do escravismo na sociedade brasileira, pois, na obra do comediógrafo, a maneira como é colocada chega a implicar uma ino-vação de forma.

[...] a verdadeira invenção formal de Pena foi introduzir na simetria da tradição cômica (velhos versus jovens, serviçais versus amos, nacionais versus estrangeiros etc.) uma assime-tria básica: a presença dos escravos, que se deslocam no palco sem correspondência de pares. Sem voz e sem razão, traba-lham sem descanso, chicoteados, empurrados, enganados, sugerindo uma outra história recalcada pela trama colorida e veloz que gira diante dos olhos do espectador (AREAS, 2012, p. 130).

Pena rejeitou a tradição de identificar o escravo à figura do palhaço, tal como na Comédia Nova grega e na comédia romana. Ao mesmo tempo, não procurou maquiar a realidade em cena, com qualquer tipo de intenção moralizante.

Em Martins Pena, o escravo está à margem da convenção cristalizada e à margem da sociedade, embora seja o único visto a trabalhar em cena. Como se nas margens e contra-marchas da comédia fosse introduzido um elemento retar-dador, silencioso, que impressiona por também aludir à ten-são de classes da época. [...]. Com o silêncio, talvez Martins

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Pena sugira não haver palavras para descrever tal ignomínia (ARÊAS, 2012, p. 130).

Vejamos o exemplo da cena VI da comédia Os dois ou O inglês maquinista, em que as comadres Clemência e Eufrásia, acompanhadas de suas filhas, Mariquinha e Cecília, conversam vivamente, quase falando ao mesmo tempo, na sala de estar, examinando vestidos novos recém--chegados da costureira. O fragmento a seguir foi extraído do primeiro dos três volumes da cole-ção Dramaturgos do Brasil dedicados às comédias de Pena.

CLEMÊNCIA – A Merenciana está cortando muito bem. EUFRÁSIA – É assim.

CECÍLIA – Já não mandam fazer mais na casa das francesas? MARIQUINHA – Mandamos só os de seda.

CLEMÊNCIA – Não vale a pena mandar fazer vestidos de chi-ta pelas francesas; pedem sempre chi-tanto dinheiro! (eschi-ta cena deve ser toda muito viva. Ouve-se dentro bulha como de lou-ça que se quebra) O que é isto lá dentro? (voz, dentro: Não é nada, não senhora.) Nada? O que é que se quebrou lá dentro? Negras! (a voz, dentro: Foi o cachorro.) Estas minhas negras!... Com licença. (Clemência sai)

EUFRÁSIA – É tão descuidada esta nossa gente!

JOÃO DO AMARAL – É preciso ter paciência. (ouve-se dentro bulha como de bofetadas e chicotadas) Aquela pagou caro... EUFRÁSIA (gritando) – Comadre, não se aflija.

JOÃO – Se assim não fizer, nada tem.

EUFRÁSIA – Basta, comadre, perdoe por esta. (cessam as chi-cotadas) Estes nossos escravos fazem-nos criar cabelos bran-cos. (entra Clemência arranjando o lenço do pescoço e muito esfogueada)

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CLEMÊNCIA – Os senhores desculpem, mas não se pode... (as-senta-se e toma respiração) Ora veja só! Foram aquelas desa-vergonhadas deixar mesmo na beira da mesa a salva6 com os

copos pra o cachorro dar com tudo no chão! Mas pagou-me! EUFRÁSIA – Lá por casa é a mesma coisa. Ainda ontem a pa-monha da minha Joana quebrou duas xícaras.

CLEMÊNCIA – Fazem-me perder a paciência. Ao menos as suas não são tão mandrionas7.

EUFRÁSIA – Não são? Xi! Se eu lhe contar não há de crer. Ontem, todo o santo dia a Mônica levou a ensaboar quatro camisas do João.

CLEMÊNCIA – É porque não as esfrega. EUFRÁSIA – É o que a comadre pensa.

CLEMÊNCIA – Eu não gosto de dar pancadas. Porém, deixemo--nos disso agora. A comadre ainda não viu o meu africano? EUFRÁSIA – Não. Pois teve um?

CLEMÊNCIA – Tive; venham ver. (levantam-se)

Tendo estreado em 1845, a peça foi imediatamente censurada pela Câmara dos Deputados. Esboçando em vários momentos os meios-tons de uma comédia refinada, ela não deixou de de-nunciar, num retrato cru e violento, a grande contradição da sociedade brasileira no século XIX, com personagens que, de tão mergulhadas no contexto escravista, são incapazes de entender a incompatibilidade entre o que dizem e o que fazem, “movimento que constrói a ironia dramática da peça” (ARÊAS, 2012, p. 126).

6 Salva significa “espécie de bandeja em que se servem copos, taças, etc” (Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&

palavra=salva >. Acesso em : 29 novembro 2016).

7 Mandriona é o feminino de mandrião, que significa “que ou aquele que demonstra preguiça ou falta de empenho em qualquer

atividade; indolente, madraço, mandrana, preguiçoso” (Em : <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=mandri%C3 %A3o >. Acesso em : 29 novembro 2016).

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Sob esse viés, seria importante pensar, para a prática cênica desse fragmento, uma inves-tigação acerca dos recursos cênicos que seriam capazes de dar conta da contradição e da ironia ali presentes. Seria interessante dar-lhes ênfase? De que maneira? Para compreensão mais apro-fundada da situação, poderiam ser feitas, além de leituras e improvisos, processos de reescrita, por exemplo, sob diferentes pontos-de-vista, tal como o da voz que vem de “dentro”, da cozinha, colocando em cena o que está à margem dela, invisível e silenciado, imaginando uma possível “história recalcada pela trama colorida e veloz” apresentada pela comédia. E por que não propor até mesmo novas criações cênicas, talvez mais atuais, inspiradas no espírito crítico do fragmento?

Surgiriam, a partir desses procedimentos, paralelos com nossa sociedade nos dias de hoje? Como poderíamos renomear os personagens em cena? Como as atualizações que se fizes-sem alterariam a contradição posta no original? Em que medida os costumes de nossa sociedade se modificaram ou não?

Considerações finais

Partindo da necessária provocação posta por esta edição de Lamparina, este artigo esco-lheu um de tantos caminhos possíveis para abordar o teatro brasileiro em sala de aula. Buscando a referência a obras historiográficas atuais, que visam à renovação do olhar sobre nossa história teatral, sobre nossa comédia de costumes e sobre Martins Pena, propuseram-se procedimentos de prática cênica sobre fragmento de uma comédia desse autor, sugerindo também articulações interdisciplinares. A trajetória percorrida reafirma a ideia de que novos materiais de apoio podem auxiliar uma nova prática em sala de aula no que tange ao teatro brasileiro e indica que aquela pode ajudar a renovar a imagem que possamos ter desse último. Com visão crítica e olhar renova-do, talvez possamos aprender e ensinar a amar o teatro brasileiro desde suas primeiras tradições.

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Referências

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_______. A comédia de costumes. In: FARIA, João Roberto (dir.); GUINSBURG, J. e FARIA, João Roberto (projeto e planejamento editorial). História do teatro brasileiro, volume I: das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2012, p. 119-137.

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COURTNEY, Richard. Teatro, jogo e evolução. In: COURTNEY, Richard (Org.). Jogo, teatro e pensa-mento. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.19-39.

FARIA, João Roberto. A formação do teatro brasileiro. In: FARIA, João Roberto (Org.). O teatro na estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira. São Paulo: Ateliê, 1998, p.15-31. FEIST, Hildegard. Pequena viagem pelo mundo do teatro. São Paulo: Moderna, 2005.

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PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro (1570-1908). São Paulo: Edusp, 1999.

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Referências

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