PLANTAS QUE CURAM, SABERES ELIDIDOS. TENSÕES E ADVERSIDADES EM TRABALHO DE CAMPO NO SUL DE ANGOLA
Rosa Meloi
Instituto de Investigação Científica Tropical
Departamento de Ciências Humanas – Programa d Desenvolvimento Global e rosmelo@hotmail.com
Resumo
O texto aborda questões relativas à medicina tradicional no Sul de Angola, tendo como referência os Handa um grupo social com características específicas, naquela região do país. Analisa a experiência da investigação empírica em torno das práticas terapêuticas e de plantas medicinais, num contexto sociocultural particular matizado por dinâmicas típicas de um país em mudança. A abordagem das plantas medicinais assenta, sobretudo, na sua utilização para o tratamento das patologias mais importantes localmente. Nessa reflexão, são convocados diversos aspectos da vida sociocultural do grupo mencionado, nomeadamente as crenças e as relações de poder, com vista a elucidar, por um lado, sobre a primazia do recurso aos etnofármacos e aos agentes tradicionais de cura e, por outro, a perceber os silêncios em torno dos saberes, nomeadamente ligados à nomenclatura das plantas, aos poderes e às terapias. Tendo a malária, as diarreias, as doenças respiratórias e os problemas sexuais sido apontados como patologias mais comuns, na região e grupo mencionados, a listagem das plantas medicinais, através dos seus nomes vernáculos e correspondentes nomes científicos, assim como o confronto das mesmas com as doenças para as quais são localmente usadas constituem um contributo para a divulgação da cultura handa − ainda mal conhecida no contexto das relações sociais locais e, grosso modo, no contexto da história de Angola − e, também, para a valorização económica dos seus recursos etnobotânicos. Palavras-chave: Handa; Plantas medicinais; Práticas terapêuticas; Saberes; Poderes; Doenças; Etnofármacos.
INTRODUÇÃO
Angola tem sido apontada como um país dos mais minados do mundo. As minas, além de continuarem, hoje ainda, a ceifar vida humanas, a mutilar homens, mulheres e crianças, a embaraçar projectos e desenvolvimento agrícola (sejam estes familiares ou não), assim como de construção de estradas e de linhas-férreas, constituem um factor de inibição para se desenvolver e aprofundar pesquisas científicas que implicam deslocações pelo mato, a pé, de carroça ou de qualquer outro meio. A colheita de plantas medicinais, em zonas rurais (como a que me propus), sobretudo longe das habitações, constitui ainda, do mesmo modo que a agricultura de sobrevivência e a pastorícia, uma tarefa de alto risco. Em 2005 (pouco depois do inicio das pesquisas sobre as quais abordo neste texto), estimava-se o equivalente a uma mina por cada habitante, ou seja, cerca de 14 milhões de minas um número que se vai reduzindo com os esforços conjugados de organismos como o Ministério de Assistência e
Reinserção Social, a constituída Comissão Executiva de Desminagem, etc.. Entretanto,
hoje ainda, cerca de 10% do país está minadoii. A província do Namibe,
comparativamente a outras como o Bié, o Huambo e a Huila, é das relativamente menos minadasiii. No que diz respeito à Huila, estimativas avançadas, recentemente, através da imprensa, apontam para a existência, nessa província, de mais de meio milhão de minas em toda a provínciaiv. Entretanto, ambas as províncias, isto é, o Namibe e a Huila, constituindo a matriz territorial dos Handa grupo étnico de referência nas pesquisas tornaram-se, não obstante os riscos mencionados, incontornáveis para a consecução da pesquisa. Com efeito, o trabalho de campo, desenvolvido nestas condições, contou com o apoio de pessoas singulares, conhecedoras de lugares e acessos que permitiram uma circulação mais segura quer dos investigadores, quer dos acompanhantes.
Paralelamente ao levantamento dos principais recursos botânicos usados nas práticas terapêuticas entre os Handa, somou-se o interesse em saber como essas espécies são usadas, quais as mais usadas, que doenças são as mais atendidas em função dos recursos que possuem e do saber que circula, e até que ponto as propriedades fotoquímicas dessas espécies botânicas patenteiam o fim para os quais são usadas.
BREVE CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DE ESTUDO
Sobre o clima e a vegetação
As províncias da Huila e do Namibe são duas regiões contíguas, do Sul de Angola, nas quais tiveram lugar as pesquisas retratadas neste texto. Não obstante a proximidade uma da outra, elas apresentam características climatéricas distintas, facto que se reflecte na sua vegetação:
A província da Huila é caracterizada por uma vegetação do tipo “miombo”, savana e
“ongote” submontanosv que, ocupando a zona central de Angola, se estende pelo
planalto do Huambo e a determinadas zonas do Kwanza Sul, Benguela e Bié. Numa pequena extensão, até junto à linha limite com a Bibala (província do Namibe), estende-se um faixa de terra com uma vegetação do tipo “prados de altitude” ou “anharas do Alto”, em solos ferralíticos ou psamoferralíticos e delgados”vi. Entretanto, o “miombo”
ralo e savana dos declives mesoplanálticos, assim como o bosque e matagal altovii
constituem também tipos de vegetação que caracterizam diferentes zonas da província da Huila. Nesta província, a distribuição das chuvas é variável, tornando-se mais
perceptível à medida que se avança para Sul e Sudoeste, com reflexos importantes na agricultura. A prática da agricultura é mais intensa ao longo dos rios e das principais linhas de água, sendo frequente a utilização dos solos das baixas marginais (ovilola), drenados naturalmente e mais férteis. A criação de gado bovino, apoiada por uma agricultura subsidiária, é feita de forma extensiva e constitui uma das principais actividades das populações rurais aqui sediadasviii. Comparativamente à actividade agrícola, a criação de gado aumenta do Norte para Sul da província da Huila, o que leva a considerar toda esta província como uma zona agro-pecuária de transição entre as regiões pecuárias do Sul e as agrícolas típicas dos planaltos do Norteix. Desenvolvem-se igualmente, na zona em referência, actividades industriais, bem como o comércio de produtos agro-pecuários, etnofarmacológicos e derivados vegetais como o carvão. Pelo seu papel na família e na sociedade e, também, por diversos outros condicionalismos impostos, desde os primeiros anos de independência, em Angola, a participação das mulheres nessas actividades atinge largas proporções, o que reforça cada vez mais o seu poder em casa e não sóx.
No que diz respeito ao Namibe refira-se que, do ponto de vista climatérico, uma característica dominante da faixa litoral dessa província prende-se com os elevados valores de humidade relativa do ar. Entretanto, na região interior, paralelamente à faixa mencionada, e em direcção ao Sudeste, destaca-se uma linha divisória além da qual o clima é do tipo semi-áridoxi. Com uma vegetação muito irregular encontram-se, nessa região de Angola, formações estepóides, sublitorais, arbustivas e herbosasxii. Adaptada à secura da região, a vegetação, aqui, aproveita a água que se acumula nas depressões com solos de textura fina, sendo, igualmente, os nevoeiros e as condensações ocultas, que ocorrem durante a noite, importantes recursos hídricos a considerar.xiii
A variabilidade da vegetação é influenciada pelos cursos de água existentes, independentemente da sua duração, o que permite a divisão da vegetação em duas subunidades: formações estepóides de peneplanícies e as formações ribeirinhas. Apesar da aridez nas zonas de baixa (vales à saída do Namibe para o Lubango), a agricultura é praticada na base da montanha ou no leito seco e margens do rio Bero. Nesses locais, criam-se hortas individuais ou familiares nas quais se cultivam, sobretudo, a batata-doce (denominada entre os kimbari por cará) e o milho. É nesses terrenos agrícolas e noutros, em redor, onde também se desenvolvem espécies vegetais usadas, localmente, nos tratamentos tradicionais. Refiram-se, por exemplo, o omuliahonka (Senna 3
occidentalis (L) Link), o mbumbulu (Momordica charantia L.) e o omunhenlĕlĕ (Boehravia coccinea Miller)xiv. Entretanto, mais para o interior Norte da província, isto é, nas adjacências das terras altas da Huila, a vegetação da província do Namibe apresenta características distintas. Aqui, como mostra a Carta Fitogeográfica de Angola, a vegetação pode apresentar-se do tipo “miombo” ralo e de savana dos declives mesoplanálticos.
SOBRE A ESTRUTURA SOCIOCULTURAL
Como, aliás, acontece em todo o território de Angola, a par das suas especificidades climáticas, ambas as províncias acima referenciadas albergam uma enorme multiplicidade de grupos identitários, nomeadamente, os Ovimbundu, os Handa, os Nyaneka, os Nkhumbi, os Kuvale, os Ndimba, os Kuanyama, os Kuisi, os designados Vakwankhala, os Muila, os Ngambwe, etc.. Fruto da mobilidade dos seus membros, dos seus interesses, da própria dinâmica desses grupos sociais, assim como das políticas sociais implementadas, sobretudo, após a independência facto que estimula as inter- relações dos grupos mencionados entre si e com os outros, bem como o acesso à escola, ao emprego remunerado, à informação, ao comercio em grande escala e ao poder todos os grupos sociais apontados, emergindo embora de contextos rurais, estendem-se também pelas zonas mais urbanizadas de Angolaxv.
Como referi, o meu interesse recaiu sobre os Handa um grupo social com características específicasxvi cuja distribuição territorial, partindo do Noroeste de Cipungu, passa por Kakula e se prolonga até à região da Lola. Estendem-se, igualmente, até Kamukuiyu, prolongando-se para Oeste de Congoloi; e, desde a sede administrativa
de Cipungu, confrontam com a área ocupada pelos Nyaneka.xvii Nos meios rurais,
vivem, sobretudo, da agricultura e da pastorícia. Aqui, ou simplesmente nos meios mais urbanizados, impulsionados, particularmente, pela guerra e pelo imperativo da busca de melhores condições de vida, grande parte dos Handa recorrem também a práticas comerciais e ao desenvolvimento de actividades profissionais outras.
TENSÕES E ADVERSIDADES NO TERRENO DE PESQUISA:
A especificidade do objecto de estudo, assim como as particularidades dos locais de pesquisa e do grupo socio-cultural estudado impôs a realização de “trabalho de campo”, uma prática tão peculiar na antropologiaxviii. Nessa conformidade, impôs-se 4
também a partilha das minhas experiências de vida com os meus interlocutores e o reforço do factor tempo no exercício das trocas diversas estabelecidas com os mesmos, com vista a criar condições de legitimação científica do conhecimento produzido. Não obstante a relativa ausência de exotismo, nos lugares de pesquisa, o exercício da observação participante, método clássico e, em geral, esperado no contexto da pesquisa antropológica, revelou-se importante quer no processo de colheita das plantas, quer no do acompanhamento das pessoas no seu quotidiano. Dada a escassez de recursos bibliográficos sobre a região e sobre os Handa, tanto a preparação do trabalho de campo quanto as investidas, no próprio terreno de trabalho, tiveram como principal suporte a minha própria experiência de pesquisa, no grupo e regiões mencionadas, assim como os resultados (alguns já publicados) dessa pesquisa. Tiveram, igualmente, como suporte os laços que criei, localmente, quer através do meu próprio processo de socialização, quer enquanto membro do grupo estudado, quer enquanto angolana, quer ainda enquanto antropóloga noutros processos de pesquisa empíricaxix. Nesse processo, partilharam-se olhares, cumplicidades, sensibilidades e vivências, não com “outras gentes” mas, sim, com a “minha gente”, os Handa, dos quais sou originária. Daí me parecer útil expor não só os resultados da minha pesquisa, nos diversos textos que vou produzindo mas,
também, evidências, a la John Beattiexx, de alguns dos procedimentos e práticas,
vicissitudes e ansiedades, em torno de determinados momentos da pesquisa empírica. Daí me parecer útil referir alguns dos esforços na compreensão dos usos das plantas medicinais e da relação dos Handa com as mesmas.
Ora, a questão das plantas medicinais entre os Handa não está dissociada das suas crenças religiosas, nem da concepção de saúde e doenças; não está dissociada das normasxxi e relações que as pessoas estabelecem entre si na mesma família ou grupo social; não está dissociada do poder, como o atribuído aos espíritos (sejam estes benévolos ou malévolos), e o imputado a figuras socialmente categorizadas de ocimbanda, onganga e omunyanekixxii. Abordá-la, implica “entrar na intimidade” destas figuras; implica reconhecer o seu papel no seio dos grupos sociais nos quais se integram; implica criar afectividades entre os beneficiários dos préstimos do ocimbanda (curandeiros?), entre os ovaniyaneki (médiuns?) e entre os supostos praticantes de owanga (poder de nganga ou poder do mal); implica uma aproximação às representações da saúde e da doença, assim como uma compreensão do lugar das plantas medicinais na vida das pessoas. Com efeito, a consecução destes aspectos requer
(i) tempo que, por sua vez, abre caminho à efectivação de conversas informais em torno dos assuntos de pesquisa, desbloqueia a contenção dos interlocutores e os ajuda a disporem de si no estreitamento de laços com o investigador. Diga-se que esse tempo não pode ser demasiado curto, sob pena de incorrecção na apreensão e interpretação dos dados, nem matizado com insuficiências logísticas (como habitualmente acontece aos investigadores nacionais, pela ineficácia de apoios locais) que perturbem o desenrolar da pesquisa. Ora, se a minha ligação com o grupo em estudo, por um lado, queima etapas na gestão desse tempo, na mobilização dos recursos, na convocação das pessoas e na apreensão e interpretação dos dados, por outro, cria constrangimentos na supressão dos limites impostos, nomeadamente, na relação com o outro (neste caso, com os interlocutores), na colocação de questões e na minha própria postura corporal. Para o caso em questão, tais limitações foram atenuadas pelo facto, entre outros, de eu mesma ter partilhado a pesquisa com outro colega. E mais, por constituirmos uma dupla de investigadores de áreas científicas diferentes e de origens, género e pertenças étnicas igualmente diferentes. Com efeito, alguns dos meus próprios medos diluíram-se nesta base, além de nos encorajarmos mutuamente. Entretanto, sublinhe-se que, a referida supressão dos limites, podendo embora inibir o interlocutor (ofendido ou perturbado) e quebrar tabus, pode também, na perspectiva do sujeito investigado, revelar ignorância ou desrespeito (se for entendido como transgressão) da parte do investigador. Consequentemente, o interlocutor reserva-se a fornecer-lhe informações precárias, a exprimir-se por meio de elocuções codificadas e parabolizadas, de expressões e símbolos peculiares, dificultando a compreensão do objecto uma dificuldade acrescida aos estranhos, aos não ritualizados, aos detentores de lógicas outras de pensamento e de culturaxxiii ou permitindo uma interpretação errónea dos factos ou dos dados recolhidos.
Além da disponibilidade de tempo, entendo que a abordagem das plantas e práticas terapêuticas tradicionais, como qualquer outra ao longo do trabalho de campo, requer, também, (ii) a gestão de constrangimentos relacionais, dos modos de apreensão e de reprodução dos dados; e ainda (iii) a criação de sentimentos de confiança, no terreno de pesquisa. O termos sido autorizados, ao contrário do que é norma, a entrar calçados no “consultório” do ocimbanda Kamakela uma concessão anuída pelos onosande (espíritos) destes; o termos sido autorizados a presenciar rituais de adivinhação e de cura de indivíduos e famílias, com a conivência do próprio ocimbanda,
constituem mostra de brechas que se abrem nas relações que se criam no terreno de trabalho e que favorecem a criação e o fortalecimento de sentimentos de confiança entre o investigador e seus interlocutores. Note-se que não foram poucas as vezes em que as pessoas implicadas nos rituais, sobretudo nos de adivinhação, questionavam, constrangidas, a nossa presença. O mencionado ocimbanda dizia-lhes: “ Eu sou o chefe de todos os ovimbandaxxiv daqui. Eles estão aqui por mim, não se preocupem”
De qualquer modo, é difícil de conquistar ou manter a confiança, numa relação com pessoas que manipulam poderes transordinários como os ovimbanda, onganga e omunyaneki, ou entre estes e os investigadores. Sobretudo quando estes não partilham os mesmos poderes que aqueles ou, como é o meu caso, porque familiarizados com a cultura, porque socializados nessa cultura e porque conscientes dos riscos e dos perigos dessa relação têm limites e pruridos que os detém em determinadas circunstâncias da relação.
A noção do controlo imposto na relação inter-geracional e entre pessoas com e sem os poderes especiais mencionados, por um lado, a percepção dos mistérios em torno dos saberes da cura, das doenças, dos males, dos espíritos, assim como dos próprios agentes, já mencionados, com poderes extraordinários, por outro lado, são factores de inibição, que somados ao medo que isso causa, podem perturbar o percurso da pesquisa e da relação com os interlocutores, nomeadamente os detentores do saber relativo às plantas medicinais, que se pretende harmoniosa. Entretanto, diga-se, confere, ao mesmo tempo, garantia de segurança do investigador e garantia de fiabilidade dos dados obtidos, conforme se vai desenrolando a pesquisa.
O ENIGMA NAS DENOMINAÇÕES DAS PLANTAS MEDICINAIS
O saber acumulado em torno dos seres (ocimbanda, onganga e omunyaneki), poderes e experiências apontadas, incluindo o relativo às plantas medicinais e seus usos, envolve um certo sigilo, além de estar circunscrito a determinado grupo de pessoas. Estas que, por seu turno, não admitem estar “autorizadas” a verbalizar esses saberes, nem a transmiti-los fora desse grupo de pessoas e de determinados contextos. Tais saberes e poderes são outorgados pelos mais velhos (ovakulu) e mais especificamente pelos onosande yovakulu (espíritos ancestrais), cabendo, sobretudo, aos últimos a incumbência de eleger seus seguidores de entre os seus parentes. Faça-se excepção aos poderes de owanga (poder do mal), em geral, adquiridos, voluntariamente, pelos 7
próprios com recurso aos ovimbandaxxv. No modo de transmissão desses poderes e saberes em torno das plantas medicinais, assim como das suas práticas de cura, está uma das principais diferenças entre os fitoterapeutas e ervanários, por um lado, e os ovimbanda, por outro. No entanto, constata-se uma recorrência, entre os profissionais de saúde pública e de organismos que, hoje, em Angola, procuram controlar o exercício das práticas tradicionais de cura, alguma confusão na categorização dos actores sociais que nelas intervêm. Isto a ponto de, na classificação desses actores, incluírem os ovimbanda, por exemplo, no conjunto de fitoterapeutas, facto que, além de não os definir restringe-os, sobremaneira. São dados que, para serem apreendidos, exigem, como já referi, algum tempo e perspicácia, no terreno de trabalho, reforçados pelos laços que se criam, pela proximidade mas, também, pelo distanciamento imposto ao antropólogo, pelo encontro e pelo diálogo que se estabelecem. Foi num tal exercício de proximidade e de afastamento, de abrir e fechar portas nos contactos e relações, somado à extensão e intensidade da convivialidade com os meus interlocutores, no terreno de trabalho, que se tornou claro, nesta pesquisa, o facto de que, (i) tal reducionismo da figura do ocimbanda, imposta por via da classificação, pressupõe mais uma intenção dos que o fazem do que uma descrição efectiva dos seus atributos ou incompreensão dos pressupostos relativos aos poderes que lhe são conferidos. Uma intenção que visa limitar os seus poderes, convergi-los ao exercício único da fitoterapia, suprimir a vertente espiritualista e pretensamente malévola, facilitar o controle das suas actividades mediante a definição das suas práticas. O alistamento das doenças que curam e dos medicamentos que usam, por um lado, a obrigação de criação de espaços independentes para o exercício das suas práticas medicinais e do uso de credenciais de identificação oficial passadas por organismos locais do Estado ligados à saúde pública, por outro lado, constituem algumas das estratégias para efectivação desse controle.
Tornou-se, igualmente, claro (ii) que muitas das designações atribuídas aos etnofármacos vendidos, sobretudo, nos mercados são apenas comercias e descritivas das doenças que se supõe curaremxxvi. Elas não reflectem os nomes próprios das plantas, facto que, à partida, além de dificultar o acesso directo do utente à planta original, pondo em risco o negócio do vendedor, induz em erro qualquer leigo interessado num alistamento apressado de plantas medicinais, na região em referência. O mesmo acontece com os próprios ovimbanda. Estes raramente expressam o verdadeiro nome da
planta que, no círculo dos ovimbanda, tomam outras designações pelos quais não podem ser facilmente reconhecidas pelas pessoas comuns.
Eles fazem isso para nós não termos acesso aos medicamentos, para nos dificultarem a vida, para pensarmos sempre que vêm de longe e ganharem com isso, quando afinal são plantas que temos à volta das nossas casas e conhecemos todos muito bemxxvii.
Outra constatação é que não obstante o enigma que envolve os poderes e práticas de cura, assim como os saberes em torno das plantas medicinais pode-se dizer que, nos meios rurais, as pessoas detêm, cada um a seu modo, um conhecimento sobre plantas, sejam estas medicinais ou não. Conhecem-nas pelos nomes, alguns dos quais genéricos e, outros, mais específicos, veja-se o caso do tumbandjalixxviii designativo que, descrevendo apenas a função para o qual é usada, pode, na verdade, tratar-se do mamono (Ricinus communis L.). As próprias crianças vão acumulando esses saberes, assim como aprendem sobre os pássaros e outros animais. Não existe rigidez nesse tipo de aprendizagem. Só em casos especiais, como o de eleição por osande (espírito ancestral) ou por um mais velho praticante, é que se recorre a rituais específicos para se instituir tal poderxxix.
COLHEITA DOS ETNOFÁRMACOS: OS LUGARES E OS RECURSOS
As preocupações em torno do objecto de estudo começaram por ser discutidas num contexto familiar. Foi junto de pessoas próximas, e fruto das conversas que se iam desenrolando em torno dos objectivos e interesses de pesquisa, que surgiram os nomes de eventuais interlocutores, se teceram considerações sobre o perfil de alguns conhecidos fitoterapeutas e ovimbanda, se começou, enfim, a delinear um checklist de plantas medicinais dos Handa, antes mesmo de serem localizadas e recolhidas para posterior identificação científica. Alicerçada no conhecimento empírico de pessoas comuns foi-se, subsequentemente, associando as designações de plantas medicinais com os seus efeitos curativos o que permitiu, em determinados casos, enumerar também um conjunto de doenças discriminadas pelos próprios, registar as suas designações locais, assim como caracterizar a forma como as mesmas se manifestam. O contexto familiar constituiu um recurso para o arranque da pesquisa que começou por ser, praticamente, 9
de imediato. Sem esse recurso não obstante a ausência de exotismo nos lugares de pesquisa pelo menos o arranque desta teria sido tão difícil e demorado quanto o que acontece, frequentemente, com investigadores que trabalham em terrenos ditos “exóticos” e distantes. A própria especificidade do objecto de estudo, marcada pela natureza da sua relação com os domínios do saber e do poder e, também, com os mistérios que envolvem a cura e as representações locais desta, por um lado, e as desconfianças que envolvem os praticantes da medicina tradicional entre si e com os outros, por outro lado, facilitaria mais o acesso a prolongadas contemplações do que a uma acção impressa de qualquer investigador, numa atitude de indagação, de integração e de necessidade de criação de laços e de cumplicidades no terreno de pesquisa.
Criados os laços e afectividades, e já com as informações anotadas sobre as práticas de cura e os saberes relativos às etiologias das doenças, com as indicações referentes à localização de plantas medicinais e, também, com o checklist em mãos, o passo seguinte do trabalho de campo consubstanciou-se na colheita de órgãos de plantas medicinais e na sua herborização com vista à sua identificação científica. Este processo, contudo, não excluiu a realização, em simultâneo, de entrevistas não estruturadas, permitindo aprofundar dados anteriormente registados e a introdução de novas questões. A colheita ficou circunscrita, sobretudo, às áreas rurais da província da Huila, nomeadamente Cipungu e Nkholo do Ngungu, primeiro, porque a maior parte das plantas referenciadas tinham a indicação dessa região, em termos de proveniência; segundo, pela concentração, nessas localidades, de plantas medicinais; terceiro, pela facilidade de acesso, acomodação e apoio ao longo da pesquisa. Numa primeira fase, foi levada a cabo dentro do perímetro do eumbo (conjunto de habitações) e nos espaços adjacentes. Só depois foram incluídas as cercanias dos caminhos, das lavras e dos pontos de água. A participação e colaboração, inclusive, de ovimbanda, nessa tarefa, revelam bem a cordialidade decorrente da relação estabelecida no terreno de trabalho.
TIMINGS E PERCURSOS
Os timings, no processo de colheita, dependiam da disponibilidade dos acompanhantes que, além de dominarem os acessos, conheciam os locais e as plantas, sabiam manuseá-las, conheciam as técnicas e cuidados na sua extracção, reconheciam
as suas propriedades curativas, conheciam os mitos em torno das mesmas, assim como a importância delas para a saúde e bem-estar das pessoas e, inclusivamente, dos animais.
Os percursos, quer sejam para acarretar água, para pastar e para o acesso às lavras, potencializados entre os Handa e, de modo geral, nas sociedades rurais de Angola como lugares de socialização, de troca de saberes e de experiências, constituíram também para o contexto desta pesquisa como um lugar de aprendizagem dos poderes e dos saberes em torno das plantas, da relação dos Handa com o meio envolvente e com os onosande (espíritos ancestrais), assim como da influência destes no tratamento das doenças.
ETNOFÁRMACOS. PESQUISA E RESULTADOS DA COLHEITA
De um universo de 126 plantas medicinais enumeradas no checklist (um número que tende a crescer, consoante a distensão dos lugares de pesquisa e da qualidade dos informantes), foram colhidos 50 exemplares e identificados cientificamente 46.
Nome Botânico Família Nome Vernáculo
1
--- Labiatae Elulu
2 Acacia brevispica Harms
Leguminosae-Mimosoideae
Okaliangui
3 Acacia sp.
“ “ Enkholo
4 Afzelia quanzensis Welw.
Leguminosae-Caesalpinioideae
Omuvandje 5 Annona Stenophylla Engl. & Diels
Subsp. Nana
Annonaceae Eiyolo
6 Asparagus sp. Asparagaceae Okapula Mbula
7 Boehravia coccinea Miller Nyctaginaceae Omunhenlĕlĕ
8 Boscia gossweileri Exell Capparaceae Omutunda
9 Brachystegia tamarindoides Welw.
Ex Benth.
Leguminosae-Caesalpinioideae
Omuhamba 10 Bridelia angolensis Welw. ex Müll.
Arg.
Euforbiaceae Omunkhuliungu
Nome Botânico Família Nome Vernáculo
11 Chenopodium ambrosioides L. Chenopodiaceae Santa Maria
12 Cissampelos mucronata A Rich. Menispermaceae Enhati
13 Cissus nymphacifolia (Welw. Ex
Baker) Planch
Vitaceae Ongombe
14 Cochlospermum angolense Welw. Cochlospermaceae Ofefe
15 Combretum collinum Fresen Combretaceae Omupupu
16 Combretum psidioides Welw. Subsp.
Psidioides
“ “ Omumphalu
17 Combretum sp. “ “ Omuhondjolo
18 Cucumis hirsutus Sond Cucurbitaceae Kacilingi Cimwe
19 Diplorhynchos condilocarpon (Mull. Arg.)
Pichon Apocynaceae Omundeo
20 Dolichos antunesii Harms
Leguminosae-Papilionoideae
Etutumwinho 21 Erythrophleum africanum (Welw. ex Engl.)
Harms
Leguminosae-Caesalpinioideae
Omungae
22 Indigofera antunesiana Harms Fabaceae Okaiya Itito
23 Ipomoea verbascoidea Choisy Convolvulaceae Eiyumbi linene
24 Landolphia Parvifolia K. Schum. Apocynaceae Muvungoungo
25 Maytenus senegalensis (Lam.) Exell Celastraceae Omungondwe
26 Momordica charantia L. Cucurbitaceae Mbumbulu
27 Olax obtusifolia De Wild. Olacaceae Epanğene
28 Ozoroa insignis Delile. Subsp.
Latifolia (Engl.) R. Fern. Anacardiaceae Ekay Lyahava
29 Pavetta shumanniana F. Hoffm. ex
K. Schum Rubiaceae Ocinğe
Nome Botânico Família Nome Vernáculo
30 Peltophorum africanum Sond.
Leguminosae-Caesalpinioideae Omupalala
31 Prob. Leucas martinicensis (Jacq. R.
Br.) Lamiaceae Omututwa nğoma
32 Psorospermum mechowii Eng. Guttiferae Omunkhowela
33 Ptaeroxylon obliquum Radlk (Thunb) Ptaeroxylaceae Ombungululu
34 Pterocarpus angolensis DC.
Leguminosae-Papilionoideae Omulila-Honde
35 Rhus tenuinervis Engl. var.
tenuinervis Anacardiaceae Omumbendje
36 Rothmannia englerana (K. Schum.)
Keay Rubiaceae Ombindi
37 Securidaca longipedunculata Fresen. Polygalaceae Omutate
38 Senna occidentalis (L.) Link
Leguminosae-Caesalpinioideae
Omulianhoka
39 Senna singueana (Delile) Lock “ “ Mwenda
ngongololo
40 Solanum incanum L. Solanaceae Omatumbilili Atito
41 Stylochiton sp. Araceae Okakokoto
42 Terminalia sericea Burch. Ex DC. Combretaceae Omungolo
43 Vitex mombassae Vatke Labiateae Omushilishilu
44 Ximenia americana L. Olacaceae Omupeke
45 Zanha africana (Radlk.) Exell Sapindaceae Omushau
46 Ziziphus abyssinica Hochst. ex A.
Rich. Rhamnaceae Omukeketwa
Das plantas medicinais identificadas, predominam as arbustivas, seguidas das arbóreas, das herbáceas e/ou trepadeiras e das subarbustivas. Treze delas estão incluídas
nas famílias de plantas referidas como sendo economicamente mais importantesxxx. São elas: Anacardiaceae, Apocynaceae, Araceae, Capparaceae, Convolvulaceae, Cucurbitaceae, Menispermaceae, Nyctaginaceae, Polygalaceae, Rhamnaceae, Rubiaceae, Sapindaceae e Vitaceaexxxi. Embora as folhas e as raízes sejam os órgãos mais usados, na preparação dos medicamentos, há casos em que a casca do caule é mais importante. Em geral, os medicamentos resultam do decoto, da maceração e da fumigação desses órgãos. Quanto mais frescas, mais apreciadas são as folhas para a preparação dos remédios. Pelo seu simbolismo, elementos como o carvão e a cinza são integrados nas práticas de cura, de adivinhação e, inclusivamente em rituais festivos como o okupita pondje, o efuko e o ekwendjexxxii. Mas, é, igualmente, comum o uso de animais ou partes destes (como cauda, sangue e penas) nas práticas de cura.
O período da manhã é mencionado como sendo o mais propício para a recolha das plantas para uso terapêuticoxxxiii. Porém, existem algumas excepções, dependendo das circunstâncias. Do mesmo modo, os tratamentos, bem como o processo de adivinhação que confere o diagnóstico do paciente começam, em geral, pela manhã, antes do nascer do Sol. Quando ministrados pelos ovimbanda, crê-se que o efeito das propriedades curativas é reforçado pela acção do poder dos espíritos mentores destes e com os quais trabalham.
Os Handa distinguem plantas comestíveis das não comestíveis, plantas terapêuticas das venenosas. Atribuem um nome a cada uma, havendo, inclusivamente, designações que definem família e espéciexxxiv. Nos meios rurais, os fármacos obtêm-se natural e directamente, valendo-se os interessados dos conhecimentos empíricos, ou através dos ovimbanda, que são os agentes dotados deste saber e do poder de cura, por intermédio da acção dos espíritos. Crê-se que estes influem, inclusivamente, na localização dos fármacos, e quando alguém encontra, ao acaso, determinado fármaco em abundância, num certo lugar, diz-se que é pessoa iluminada pelos onosande, ou possui onosande.
Entretanto, nos mercados ditos “informais”, no qual o pendor principal tende para a compra, venda e troca de favores e de produtos, onde a concorrência se impõe no desenvolvimento destas práticas, onde os etnofármacos são conservados mormente secos e em pó e onde se concentram e convivem pessoas de diferentes grupos sociais e culturais, i) a origem e pertença étnica dos fármacos não são questionadas nem me perece que sejam tidas como fundamentais; ii) a propriedade intelectual dos mesmos 14
não é posta em causa; iii) a origem étnica dos vendedores, quase exclusivamente umbundu, impõe a disseminação dos nomes dos fármacos nessa língua e exige que aqueles que a eles recorrem sabendo por antecipação da especificidade do etno-fármaco de que precisam o designem nessa língua particular; iv) as designações atribuídas aos fármacos exprimem, em geral, a sua função terapêutica, eclipsando os nomes botânicos que, sendo em geral do domínio comum, facilmente seriam identificados por um leigo o que poria em causa o negócioxxxv; v) a aquisição dos fármacos é efectuada quer pelos cidadãos comuns (doentes ou saudáveis), quer pelos próprios ovimbanda; vi) os produtos são vendidos por ervanários, mas também por simples curiososxxxvi como estratégia de sobrevivência.
De simples entrepostos comerciais de etnofármacos, os pontos de venda destes produtos, nos mercados ditos “informais”, convertem-se, igualmente, em lugares de consulta, para onde o doente acorre e, mediante os sintomas, lhe é diagnosticada a doença, anunciado o receituário e vendido o remédio.
QUANDO A MEDICINA TRADICIONAL É UM RECURSO NÃO ALTERNATIVO
Nas comunidades rurais, sobretudo, a medicina convencional, ao contrário da tradicional, é que constitui o recurso alternativo para o tratamento dos males e das doenças. Daí que sejam os etnofármacos os principais produtos a serem usados, e os ovimbanda os primeiros a serem solicitados. É nas zonas mais urbanizadas, sobretudo, que o recurso aos médicos, aos enfermeiros e aos ervanários é visivelmente maior, embora esta última figura não seja típica dos Handa para os quais i) os poderes de cura são atribuídos pelos espíritos aos seus eleitos e ii) a cura é alcançada graças à conjugação dos poderes da planta (ou de outro elemento de origem animal ou vegetal) com os do próprio espírito através da acção do ocimbanda. Ressalte-se que, mesmo nas zonas urbanas, não obstante a intervenção dos órgãos do Estado para a cultura e saúde pública (com vista ao controle da acção dos ovimbanda e dos fitoterapeutas em geral) e, também, graças à consciencialização das pessoas quanto à relevância dos centros hospitalares, no tratamento das doenças, estes são, mormente, secundarizados. Na melhor das hipóteses, é comum conjugar-se os medicamentos hospitalares com os etnofármacos, dentro ou fora dos hospitais ou aceitar-se, em simultâneo, os cuidados médicos e o dos ovimbandaxxxvii.
Portanto, embora as questões de ordem financeira possam estar implícitas neste comportamento, não me parece que os factores pobreza e ignorância, por si só, expliquem a propensão do uso dos etnofármacos como principal recurso para a cura. A crença no poder dos espíritos, a confiança no ocimbanda e no poder dos etnofármacos, a ausência dessa confiança nos hospitais e agentes de saúde, a insegurança condicionada pelo ambiente hospitalar, pelas regras hospitalares, pela imposição da figura dos médicos, pela ignorância destes relativamente à cultura e às crenças dos pacientes e pelo seu desrespeito as suas regras de comportamento e relações sociais, enfim, os próprios mitos criados em torno de práticas hospitalares como as injecções e o uso de agulhas condicionam, também, o recurso à medicina convencional e aos centros hospitalares, em primeira instância. Consequentemente, a parcimónia no recurso às práticas hospitalares, além de revelar tenacidade na luta pela cultura e pelos seus valores, permite i) a preservação do saber local em torno das práticas medicinais, da etnofarmacologia, da etnobotânica, enfim, da fitoterapia; ii) o combate às doenças e à manutenção da saúde de grande parte das pessoas com base em recursos naturais.
PATOLOGIAS MAIS COMUNS
As restrições decorrentes do modo de vida, da carência de vária ordem, no país, das circunstâncias em que vivem, da cultura, das características do meio, das condições de vida e também, diga-se, da iliteracia de quase toda a população de angolana (Handa incluídos), concorrem para o enfraquecimento do organismo e para o desenvolvimento de certas patologias. As doenças respiratórias, as doenças sexuais, a malária e as diarreiasxxxviii são as mais frequentes, entre os Handa.
Medicamentos como o Omundeo (Diplorhynchos condilocarpon (Mull. Arg.)
Pichon)xxxix, Ombungululu (Ptaeroxylon obliquum Radlk. (Rhunb.)) e Omumbendge
(Rhus tenuinervis Engl. var. tenuinervis) são usados para combater a malária, embora, em áreas vizinhas, outras espécies do género Rhus, nomeadamente a Rhus natalensis, a Rhus wellmanii e a Rhus quartiniana sejam, igualmente, indicadas para tratamentos antidiarreicos, sendo as duas últimas referidas, sobretudo, para disenteriasxl.
Para além das já mencionadas o Omungondwe (Maytenus senegalensis (Lam.) Exell), o Mbumbulu (Momordica charantia L.), o Omulila-Honde (Pterocarpus angolensis DC.), o Omunkhuliungu (Bridelia angolensis Welw. ex Mül. Arg.) e o
Ocinğe (Pavetta shumanniana F. Hoffm. ex K. Schum) são usados pelos Handa e vizinhos para o combate às diarreiasxli.
Para as doenças respiratórias os Handa usam o Omuhondjolo (Combretum sp.), o Ombungululu (Ptaeroxylon obliquum Radlk. (Thunb.)) e o Omumphalu (Combretum psidioides Welw. Subsp. Psidioides). Plantas como Omungae (Erythrophleum africanum (Welw. ex Engl.) Harms), Omutate (Securidaca longipedunculata Fresen), Omukeketwa (Ziziphus abyssinica Hochst. ex A. Rich.), Omatumbilili Atito (Solanum incanum L.), Ongombe (Cissus nymphacifolia (Welw. Ex Baker) Planch) e Ombungululu (Ptaeroxylon Obliquum Radlk. (Thunb.) são referidas por Bossard como sendo também usadas por grupos vizinhos para o tratamento de doenças respiratóriasxlii. As doenças sexuais são normalmente tratadas com o Omulila-Honde (Pterocarpus angolensis DC.).
Um mesmo medicamento pode ser usado para o tratamento de múltiplas doenças. Veja-se, por exemplo o Ombungululu (Ptaeroxylon obliquum Radlk. (Thunb.)). Entretanto, para o tratamento de certas doenças podem ser indicados um amplo conjunto de medicamentos. Vejam-se os casos das doenças diarreicas e respiratórias.
Não existe uma dose estabelecida para a administração dos etnofármacos, sejam estes frescos, secos ou em pó. Praticamente tudo é medido a olho, incluindo a quantidade de água para as infusões ou de óleos para os unguentos. As latas vazias de um quilo (inteiras ou cortadas ao meio), canecas médias e pequenas de alumínio, pequenas panelas de barro e a palma da mão são algumas das principais medidas usadas para o efeito, servindo também elas de recipientes para a preparação dos medicamentos. Nos meios mais urbanizados, regista-se a introdução paulatina de colheres e copos na administração desses remédios, servindo também estes de doseador. As panelas pequenas ou cafeteiras de alumínio são, aqui, usadas, em geral, para a preparação da medicação a administrar. A duração da medicação assim como a alteração da prescrição depende da reacção do paciente aos remédios e da perspicácia do ocimbanda.
Para além das limitações de ordem teórica, supostamente conferidas à medicina dita tradicional, da ineficácia imputada aos ovimbanda no tratamento das doenças, das pretensas incongruências das práticas terapêuticas tradicionais, por ausência de controle e da reputada ausência de cultura e de sentido de responsabilidade por parte dos terapeutas ditos tradicionais, somam-se as perplexidades em torno do doseamento na 17
administração dos etnofármacos. Entretanto, não só a medicina convencional não deixa de ser marcada por excessos pontuais de sobredosagem como, na minha opinião, a pendência do doseamento na terapia dita tradicional é uma questão de preconceito já que i) a prática milenar dessa medicina provê indicações de doseamento que são transmitidas de geração em geração e ii) o número de vítimas no seio de famílias onde essas práticas são mais comuns, podendo imputar-se à demora no recurso aos hospitais, às crenças no ouanga ou às condições de higiene, raramente o são por razões de doseamento.
BIBLIOGRAFIA
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OUTRAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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http://www.jornaldeangola.com/(10 (política: 10 de Outubro de 2008).
http://www.inaroee.ebonet.net/relatorios.pt.html (acedido a 17 de Fevereiro de 2009).
i Doutorada em Antropologia (ISCTE – Lisboa). Bolseira de Pós-Doutoramento da FCT no Instituto de
Investigação Científica Tropical, em Lisboa e no Departamento de Antropologia da Indiana University (Bloomington – EUA).
ii Cf http://www.jornaldeangola.com/(10 (política: 10 de Outubro de 2008).
iii Cf. http://www.inaroee.ebonet.net/relatorios.pt.html (acedido a 17 de Fevereriro de 2009). iv http://www.angonoticias.com/full_headlines.php?id=20356 (acedido a 14 de Outubro de 2008). v Cf. Barbosa (1970).
vi Barbosa (1970 : 265). vii Barbosa (1970).
viii Cf Melo (2001, 2005(a) e 2005b). ix Cf. Diniz (1973).
x Cf Melo (2005a, 2005b, 2007(a) e 2007b). xi Cf. Diniz (1973).
xii Ver carta fitogeográfica de Angola in Barbosa (1970). xiii Cf. Barbosa (1970).
xiv Cf. Melo e Conceição (2008).
xv Cf Melo (2001, 2005a, 2005b, 2007(a) e 2007b).
xvi Sobre as particularidades sociais e culturais dos Handa, ver Melo 2001, 2005a, 2005b, 2005c, 2007a,
2007b, 2008a, 2008b, 2008(c) e Melo & Conceição 2008.
xvii Cf. Melo (2001, 2005a, 2005b, 2007(a) e 2007b).
xviii O “trabalho de campo” é um processo ora linear ora sinuoso, “através do qual o etnógrafo constrói um
relacionamento [mais ou menos] progressivo com os seus informantes (Berg 2006 : 37), interlocutores, sujeitos investigados e, enfim, com os “outros” com os quais se cruza e interage, no terreno de trabalho; Não obstante a variabilidade de formas para a sua execução, uma tal prática é, no contexto da Antropologia, tida como uma componente essencial para a construção científica do saber, nessa área disciplinar.
xix Mais pormenores sobre a pesquisa empírica no contexto das plantas medicinais, entre os Handa, ver
Melo (2008).
xx Cf. Beattie (1965).
20 xxii As figuras de onganga, omunyaneki e ocimbanda foram suficientemente caracterizadas por mim
noutros trabalhos. Enquanto o nganga é tido como um indivíduo cujo poder tem a finalidade única de provocar males sobre terceiros, o omunyaneki e o ocimbanda tendem a exercê-lo no sentido do bem. Entretanto, algumas discrepâncias pendem sobre a figura do ocimbanda, conferindo-lhe uma certa dualidade no que concerne à sua actuação. Ver, para o efeito, Melo (2001, 2005(a) e 2008a).
xxiii Este tipo de artimanhas da parte dos interlocutores, dos informantes, neste terreno de pesquisa, é
comum noutros contextos sociais. Debruçando-se sobre as adversidades inerentes ao trabalho de campo, em contextos africanos, e tomando como exemplo o caso de Cabinda, João Milando expõe, claramente, algumas das estratégias dos interlocutores no contexto da investigação empírica, no que toca ao fornecimento dos dados; estratégias que, embora permitam revelar, por um lado, dados aparentemente importantes para o investigador podem, por outro lado, pela sua natureza, dificultar a compreensão do seu objecto de pesquisa. Ver Milando (2008).
xxiv Ovimbanda é o termo que designa o plural de ocimbanda.
xxv Ovimbanda designa o plural de ocimbanda. Sobre a questão da outorga de poderes transordinários e
das diferenças entre o nganga, o ocimbanda e o omunyaneki, ver Melo (2001, 2005(a) e 2008a).
xxvi Para exemplos de plantas com designações descritivas das doenças que curam ver Melo (2008(a) e
2008b.
xxvii N., entrevista, Namibe, Agosto de 2006. xxviii Tradução livre “massajeador das parturientes”.
xxix Para mais pormenores sobre este assunto, ver Rosa Melo (2008). xxx Cf. http://waynesword.palomar.edu/families.htm
xxxi Melo e Conceição (2008).
xxxii Cf. Melo (2001, 2005a, 2007(a) e 2007b). xxxiii Ver Melo e Conceição (2008).
xxxiv Ver Melo (2008a).
xxxv Aliás, do envolvimento dos vahanda (os que pertencem aos Handa), nos meios rurais, com as plantas
desde tenra idade decorre, tal como na maioria da população rural africana, a sua aprendizagem sobre as mesmas, assim como sobre o meio circundante e sua relação com os onosande (Cf Melo 2001, 2005(a) e 2008b).
xxxvi Cf. Melo (2008b). xxxvii Cf. Melo (2008a). xxxviii Cf. Melo (2008b). xxxix Cf. Bossard (1996) xl Cf. Bossard (1996). xli Cf. Bossard (1996). xlii Cf. Bossard (1996).