Algumas paragens
entre
os
portugueses
deste
Doclisboa
Cinema
Luís
Miguel
Oliveira
Entre
os
12
filmes
em competição
estão
as
mulheres
com que Cláudia Varejão
mergulhou
no
Japão, o
espectador
de
cinema
dos nossos dias
segundo
Edgar
Pêra
e
um
sobrevivente,
Cruzeiro
Seixas
Layla e Lancelot, um poema visual deJoana Linda (à
esquerda);
O Espectador Espantado,interrogação
de Edgar Pêra sobreo
que
efeito
daexperiência
cinematográfica
(à
direita)
Doze filmes, indiscriminadamente
de curta e longa-metragem,
com-põem asecção competitiva
dedi-cada àprodução portuguesa no Doclisboa 2016, que hoje seinicia.
0
que se segue é umroteiro
poralgumas paragens do programa, e
apenas "algumas" porque nem to-dos os filmes estavam disponíveis
para visionamento
antecipado
(pelo menos em tempo
útil),
que de qualquer modo não dispensa oespectador de fazer aquilo que se
pede aum espectador de festivais: que siga àaventura eentre o
reco-nhecimento e adescoberta faça o seu caminho pelas muitas sessões
do programa.
Paramos
primeiro,
e semiro-nia nenhuma, no Japão. Para falar
de Ama-San (São Jorge, dia 22, às
18h45; Culturgest, dia 24, às10h30),
um filme que arealizadora
portu-guesa Claudia Varejão foi realizar
aopaís doSol Nascente. Éuma obra extremamente cuidada, e
provavel-mente anossa preferida de entre
os filmes que pudemos ver desta secção. Oseu objecto são as ama (palavra que emjaponês significa algo como "mulheres do
mar"),
que correspondem auma velhíssi-ma tradição das zonas costeiras do Japão: são mergulhadoras,
mulhe-resdedicadas àarte de perscrutar o
fundo do mar em busca dos
tesou-ros que este costuma conter (como
as pérolas). Éuma actividade para
avida, uma "especialização", que tradicionalmente costumava passar de mães para filhas. Ofilme de
Cláu-dia Varejão dá este aspecto
trans-geracional, ao acompanhai" mer-gulhadoras deidades diferentes,
e funciona por sua vez como um mergulho nos aspectos práticos e
filosóficos desta tradição, mostran-do ao mesmo tempo asformas dum
Japão ancestral a coexistirem com a
extrema modernização
(tecnológi-ca, entre outras) daquela socieda-de. Sem nada dos procedimentos convencionais eexplicativos, o
se-gredo de Ama-San émesmo essa sensação de enorme proximidade
que provoca no espectador, e asua
habilidade de restituir aprofunda sensualidade ritualística daquela
actividade,
o"formalismo"
queé essencial atantos aspectos das
tradições japonesas
-
épor
isso, de resto, que asama resistem num mundo em que as pressões comer-ciais exigem métodos mais efica-zes de resgatar o que se encontrano mar: o que importa éaforma,
éo processo, o gesto, muito mais do que o seu resultado prático ou contabilístico.
Ama-San,
deCláudia Varejão,
mergulha
numa velhíssimatradição
das zonas costeiras do Japão, passada de mãespara
filhasSer espectador, hoje
Paramos aseguir ainda longe de Portugal, em Belo Horizonte. O fil-me éACidade Onde Envelheço (São Jorge, dia 23, 15h30; Culturgest, dia
24, 18h45), de
Marília
Rocha, e oprimeiro aspecto que vale apena referir é tratar-se de um filme ins-talado naquela "dobra" entre a fic-ção e o documentário, talvez até
mais para o lado daquela do que deste
-
pelo que asua inclusão num festival que chama o "doe" para otítulo tem o seu quê de refrescan-te, no que indica quanto àvontade de passar uma borracha sobre as
fronteiras de género. Em todo o
ca-so, ofilme de Marília Rocha, sobre duas amigas portuguesas radicadas
em Belo Horizonte, uma que não
quer voltar para Portugal eoutra
que quer, não faz figura de objecto esdrúxulo: arespiração espontânea da sua encenação, amaneira como lança assuas personagens na cida-de, esobretudo aforma como a ci-dade vive dentro do filme fazem de A Cidade onde Envelheço uma obra inapelavelmente fundada num real preciso ejustificada por ele.
Territórios bem diferentes cobre,
como seria de esperar, a entrada
de Edgar Pêra nesta edição, O
24, às 22h). Na sequência de pre-ocupações que sempre foram ca-ras ao realizador mas que talvez se
tenham intensificado nos últimos tempos (ver, por exemplo, o seu episódio para ofilme de conjunto em 3D encomendado por Guima-rães 2012, Cinesapiens), ofilme
in-terroga oque éfeito da experiência
cinematográfica, da experiência de
se ser espectador decinema, num mundo em que as formas clássicas
dessas experiências sealteraram e
alteram radical e
velocissimamen-te. Estruturado em torno de uma
série dedepoimentos filmados em salas de cinema, depois tratados
com toda aespécie de sobreposi-ções visuais esonoras, o filme faz perguntas, dá respostas, deixa re-flexões em suspenso, sem nunca
abandonar um tom mordaz que por vezes otransforma numa "crítica
do espectador contemporâneo".
Como quando Olaf Mõller (um dos críticos convocados, entre outros como Augusto M. Seabra ou Lavra Mulvey) preconiza o
inferno
co-mo olugar dos espectadores que
mandam mensagens de telemóvel durante as projecções, e dos que
as mandam logo a seguir, como se
fosse imperioso ter um pensamento sobre um filme no minuto
seguin-te ao fim da sua projecção
-
"pre-cisamos de desaceleração, não de aceleração".12
filmes
portugueses estão emcompetição
naedição
2016
do Doclisboa,
entre
curtas elongas-metragens
História oral
Uma menção ainda para Cruzeiro
Seixas
-As
Cartas doReiArtur
(São Jorge, dia 23, 18h45; Culturgest,dia 24, 15h30), um filme de
Cláu-dia Rita
Oliveira
construído em torno da figura do pintor e poeta, último sobrevivente de uma gera-ção praticamente desaparecida, apróximos. Seaestrutura daobra é
razoavelmente convencional neste
tipo de filmes, apresença de Cru-zeiro Seixas nele confere-lhe toda a
densidade necessária, na oscilações
entre o tempo presente e os
mer-gulhos memorialistas no passado (a relação com Mário Cesariny,
sobre-tudo), acompanhadas de abundan-te ilustração documental. Éuma
peça de história oral, na
primeira
pessoa, oque chega para atestar a validade doprojecto de Cláudia Ri-ta Oliveira-
quem dera que tantasoutras grandes figuras da cultura
portuguesa tivessem tido "filmes-arquivo" assim, que asregistassem
e asouvissem.
Entre
as curtasencontramos
um bonito "poema visual" de
Jo-ana Linda, Layla &Lancelot (São Jorge, dia 23, 22h; Gulbenkian, dia
26,19
h),
que esconde, através de um tratamento da imagem aapon-tar para formatos tão fora de uso como osuper 8 ou o16mm, o dis-positivo supremamente moderno com que as suas imagens
foram
registadas (um iPhone).
Possivel-mente
influenciado
pelaavant-garde mais contemplativa, as suas
imagens (anatureza "natural" e a natureza "urbana") oscilam entre a
atenção àsua própria plasticidade
(as cores, por exemplo) e o
ritmo
encantatório alcançado pela sua sequência. Ereferimos ainda mais uma curta: um filme sobre skaters, cheio demovimento, aprocurar o
"bailado" que existe naactividade
de andar às voltas e aos saltos em
cima de um patim: Downhill, de Mi-guel Faro (SãoJorge, dia 24, 18h30; Culturgest, dia 26, 16h15).
O
pianista
do
Hermitage
abre
a
porta
do festival
Que a noite de abertura de um
festi-vallhe sirva de cartão-de-visita é per-feitamente normal. Que aprimeira
noite do Doclisboa retrate aedição de 2016 com tal precisão
-
viajan-do da intensidade confrontacionalde Peter Watkins, o cineasta inglês alvo de uma das duas retrospectivas deste ano (Cinemateca, 19he21h30),
edo falecido pugilista Muhammad Ali filmado por William Klein (Cul-turgest, 21h45), ao testemunho da secretária de Goebbels em A German Life (SãoJorge, 21h30) e àrevolução rítmica das novas músicas de África em Fonko (SãoJorge, 21h45)
-
jáoémenos. Enão étambém por acaso que a sessão oficial deabertura
des-ta noite (Culturgest, 21h30) propõe um filme propositadamente "entre" categorias: nem retrato biográfico nem documentário de tema, Olegy
lasRaras Artes vêovenezuelano ra-dicado em Espanha Andrés Duque ir àRússia filmar um artista que foi mal-amado nos tempos comunistas
eque, mesmo hoje, parece ter ficado esquecido pelos recantos daquele enorme país.
À imagem da música do seu
re-tratado, o pianista e compositor
Oleg Karavaychuk (1927-2016), Oleg
y lasRaras Artes éum filme
impres-sionista pensado como carta de amor, registo histórico erendição
boquiaberta a estafigura excêntrica, com qualquer coisa de andrógino, demasiado "visível" para o confor-mismo exigido naURSS. O "compo-sitor maluco", como era conhecido
entre os vizinhos, escreveu muito
para filmes (de Serguei Paradjanov ou Kira Muratova) eproduções de palco, alegadamente por serem das
poucas actividades que não lhe cria-vam problemas com asautoridades, mas
-
àimagem demuitos nomes talentosos cuja arte não procurava apenas servir oaparelho-
só apósa Perestroika oseu nome e assuas
performances
multidisciplinares
atravessaram oCáucaso.
Nada disto, contudo, é
directa-mente referenciado no filme de An-drés Duque, que se concentra em deixar Karavaychuk falar por si
-
ou antes tocar por si, em cenasroda-das no interior do Museu Hermitage, em SãoPetersburgo, onde opianista
ora improvisa, ora ensaia frente às
câmaras num piano que pertenceu ao czar Nicolau 11.
0
corpo frágil eaaparência remediada desaparecem
para deixar apenas o fogo emocio-nal daarte, aideia de uma força da natureza libertada face àsteclas, um arrebatamento impetuoso e
impul-sivo. Olegy lasRaras Artes encontra
nesses momentos asua "função" de celebração quase catártica, de reco-nhecimento da arte como algo que transcende apolítica mesmo quando não consegue escapar àslimitações
que lhe coloca
-
porque toda aar-te étambém política, não apenas
por aquilo que revela, também por
aquilo que esconde. Quando Andrés Duque filma Oleg Karavaychuk nas
datchas de Komarovo, onde aelite soviética tinha assuas casas de
fim-de-semana, ou no Hermitage comen-tando aboçalidade daqueles que não têm sensibilidade para as artes,
es-tátambém afalar da história de um país edeuma cultura. ECíntia Gil, directora do Doclisboa, jáexplicava
a escolha de Olegy lasRaras Artes
pa-ra a abertupa-ra do Doe por esse duplo estatuto de celebração das artes com retrato sociopolítico nas entrelinhas. É,também por isso, uma abertura
representativa da intersecção criati-va onde oDoclisboa quer estar.