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O INSÓLITO EM MURILO RUBIÃO: UMA ANÁLISE ESTILÍSTICO-COMPARATIVA D O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA

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LINGUAGEM

MARCELA DE CASTRO ÁVILA AGUIAR

O INSÓLITO EM MURILO RUBIÃO: UMA ANÁLISE

ESTILÍSTICO-COMPARATIVA D’O EX-MÁGICO DA

TABERNA MINHOTA

CUIABÁ/MT

2014

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O INSÓLITO EM MURILO RUBIÃO: UMA ANÁLISE

ESTILÍSTICO-COMPARATIVA D’O EX-MÁGICO DA

TABERNA MINHOTA

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Profa. Dra. Célia Maria Domingues da Rocha Reis.

CUIABÁ/MT

2014

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À Professora Célia, pela confiança em minha capacidade de realizar esta pesquisa, pela orientação cuidadosa e pelo carinho.

À Professora Franceli, por todo o ensinamento recebido em suas disciplinas na graduação e no mestrado – sempre gentil e atenciosa – e, especialmente, pelas valiosas contribuições no Exame de Qualificação.

Ao Professor Audemaro, pela disciplina ministrada neste Programa de Pós-Graduação, e pela gentileza ao fazer suas considerações sobre este trabalho.

Ao Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais, pela disponibilização do material utilizado nesta pesquisa.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, da Universidade Federal de Mato Grosso.

Às queridas Professoras Soraia e Patatas, pelo carinho e incentivo desde a graduação. Às colegas do mestrado, que se tornaram amigas queridas, Izabel e Mirian.

Aos amigos que (quase) se acostumaram às minhas ausências nesses anos de estudo e pesquisa. Aos meus pais, pelo apoio em todos os meus projetos.

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Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram um ímã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar (...). ‘As coisas têm vida própria’, apregoava o cigano com áspero sotaque, ‘tudo é questão de despertar a sua alma’.

Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão (1967)

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Nesta pesquisa investigamos o estilo literário de Murilo Rubião, considerado pela crítica como pertencente à literatura fantástica. Após leitura dos contos do autor, pesquisa da sua fortuna crítica e de leituras crítico-teóricas acerca da literatura fantástica, dos primórdios ao contemporâneo, concluímos que as narrativas de Murilo Rubião correspondem ao insólito banalizado. Tendo em perspectiva esse conceito, centramos a pesquisa na análise comparativa extrínseca e intrínseca de três versões do conto “O ex-mágico da Taberna Minhota”, respectivamente, com base na teoria da modernidade líquida, de Zygmunt Bauman, e da estilística literária, de Dámaso Alonso, e da língua portuguesa, de Nilce Sant’Ana Martins. As obras do linguista José Lemos Monteiro e dos gramáticos, José Carlos de Azevedo e Napoleão Mendes de Almeida, também constituíram fontes bibliográficas importantes para esta análise estilística. Desse modo, foi-nos possível afirmar que o autor antecipou características da sociedade contemporânea – como a diluição da identidade do sujeito – e também refletiu sobre a função da literatura.

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The present study investigates the literary style of Murilo Rubião, whose work is considered by the critic as fantastic literature. After reading all the author’s short stories, having a deep look into his critical fortune and having critical-theoretical reading of fantastic literature, from its beginnings up to contemporary times, we concluded that his narratives correspond with the trivialized uncommon. Keeping this concept in perspective, we focused our research on the comparative analysis both extrinsic and intrinsic of three versions of the short story “The ex-magician of Minhota Tavern”, basing, respectively, on the theory of liquid modernity from Zigmunt Bauman, on the literary stylistic from Damaso Alonso and on portuguese language stylistic from Nilce Sant’Ana Martins. Other important bibliography sources to such stylistic analysis are the work of linguist José Lemos Monteiro and grammarians José Carlos de Azeredo e Napoleão Mendes de Almeida. Hence, we concluded that the writer Murilo Rubião not only anticipated characteristics of contemporary society in his work – such as the dilution of the subject identity – but also reflected about the very role of literature. Keywords: Brazilian fantastic short story. Murilo Rubião. Trivialized uncommon.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...11

Capítulo 1 O fantástico literário: da tradição ao modo discursivo...14

1.1. Um percurso teórico...14

1.2. Murilo Rubião e o insólito ficcional...26

Capítulo 2 O ex-mágico da Taberna Minhota: um projeto literário...37

2.1. A criação literária, o insólito banalizado e a modernidade líquida...42

2.2. A reescrita muriliana: aspectos estilísticos...56

CONSIDERAÇÕES FINAIS...69

BIBLIOGRAFIA...72

ANEXOS...78

A- Versão não publicada do conto “O ex-mágico da Taberna Minhota” B- Versão publicada no livro O ex-mágico (1947)

C- Reedição do conto para o livro O pirotécnico Zacarias (1974) D- Carta de Marques Rebelo a Murilo Rubião

E- Carta de Caio César Pinheiro a Murilo Rubião

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INTRODUÇÃO

O universo fantástico foi um assunto que sempre me interessou. Gabriel García Marquez foi o primeiro autor com o qual tive contato – primeiro com a leitura de Doze contos peregrinos (1992), depois, Cem anos de solidão (1967) – e, durante a graduação em Letras, pesquisando sobre o assunto e selecionando um conto para analisar em minha monografia, deparei-me com os contos de Murilo Rubião. A partir daí, o fantástico se tornou um objeto, e a identificação de elementos do fantástico nos contos murilianos, um objetivo, estudos aos quais dei continuidade no projeto de pesquisa elaborada para ser desenvolvido no curso de pós-graduação, na UFMT.

O primeiro procedimento da pesquisa sobre o autor mineiro foi a consulta à biblioteca digital da FALE – Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais –, com a leitura de alguns artigos publicados no Suplemento Literário do Minas Gerais – semanário criado e dirigido por ele, em 1966, quando diretor de redação do jornal mineiro (RUBIÃO, 2010, p.225).

Em seguida, já no primeiro ano da pós-graduação, visitamos o Acervo dos Escritores Mineiros, na Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais. O contato com textos originais e algumas correspondências entre o autor d’O ex-mágico (1947) e colegas escritores e editores, constituíram um grande estímulo ao nosso trabalho.

Concomitantemente, realizamos uma revisão bibliográfica das teorias acerca do fantástico, o que, em primeiro lugar, indicou a necessidade de um posicionamento a respeito do fantástico como gênero ou modo literário. Os estudos tradicionais – como os de Furtado (1980), Ceserani (2006) e Todorov (2007) –, lidam com o fantástico como um gênero. Mesmo nas décadas de 80 e 90, encontramos, nos livros de Jorge Schwartz (1980) e Audemaro Goulart (1995), essa denominação.

Já os trabalhos produzidos por grupos de pesquisa mais recentes – como o Nós do Insólito: vertentes da ficção, da teoria e da crítica, sob a coordenação do Prof. Flávio García / UERJ, e Vertentes do fantástico na literatura, coordenado por Karin Volobuef / UNESP – observam a necessidade de uma historiografia sobre o fantástico literário. Esses estudos têm em comum o alinhamento com as idéias da estudiosa francesa Irene Bessière, Le récit fantastique: forme mixte du cas et de la devinette

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(1974), que usou a denominação “relato fantástico”. Incluímos, também, em nosso texto, a questão do insólito banalizado terminologia que, em nosso entendimento, traduz com precisão o modo discursivo praticado por Murilo Rubião.

Tais são os conteúdos apresentados e discutidos no Capítulo 1 desta dissertação, dividido em dois subitens: “Um percurso teórico” e “Murilo Rubião e a narrativa do insólito”. A compreensão das variáveis que fizeram de Rubião um escritor que lançou mão de uma estética nova – no sentido de diferir do realismo social que caracterizava a cena literária brasileira naquele período – foi o que direcionou nossa redação nessa primeira parte.

O Capítulo 2 concentra-se na análise do modo como o autor construiu o seu estilo, utilizando-se de elementos do insólito literário. No primeiro subitem, “Criação literária, insólito ficcional e a modernidade líquida”, apresentamos, brevemente, a teoria de Zygmunt Bauman sobre a modernidade líquida, terminologia adotada pelo autor para designar a sociedade contemporânea.

O aprofundamento de nossa análise se deu a partir de leituras interpretativas das obras O mal-estar da pós-modernidade (1998), Modernidade Líquida (2001) e Identidade (2005), as quais nos permitiram detectar, no conto analisado, uma temática já tratada desde o romantismo e acentuada no modernismo – a da identidade –, que assume uma nova forma na sociedade atual: a da identidade diluída. Abordagem possível quando consideramos o fato de o protagonista do conto não ter origem, passado ou memória, situação responsável pela sua dificuldade de se relacionar com as pessoas com as quais convive.

A revisão bibliográfica realizada no decorrer de nossa pesquisa nos levou à obra de Ítalo Ogliari, A poética do conto pós-moderno e a situação do gênero no Brasil (2012), que nos esclareceu os caminhos percorridos pelo conto brasileiro e nos permitiu afirmar o insólito ficcional como representação da representação literária da sociedade líquida descrita por Zygmunt Bauman em seus estudos de sociologia humanística. Do mesmo modo, a teoria do conto de Ricardo Piglia (1994) nos auxiliou no aprofundamento dos aspectos da construção poética de Murilo Rubião.

Já o subitem “A reescrita muriliana: aspectos estilísticos” compreende a análise estilístico-comparativa de um dos contos mais conhecidos de Murilo Rubião (e que deu nome ao seu primeiro livro): “O ex-mágico da Taberna Minhota”.

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As três versões de que nos utilizamos são as seguintes: uma versão não publicada, a versão publicada em 1947 e a versão da reedição de 1974; nas quais verificamos que a maior parte das modificações, realizadas pelo autor, buscavam a forma perfeita, como ele próprio declarou em entrevistas. Isso nos lembrou uma das explicações de Ítalo Calvino para a sua opção pelo insólito ficcional:

Se num determinado período de minha atividade literária senti certa atração pelos contos populares e as histórias de fadas, isso não se deveu à fidelidade a uma tradição étnica (...), nem por nostalgia de minhas leituras infantis (...), mas por interesse estilístico e estrutural, pela economia, o ritmo, a lógica essencial com que tais contos são narrados (CALVINO, 1990, p.49).

Murilo Rubião se alinhava, portanto, aos autores de sua geração, fascinados pelos aspectos estilísticos do texto; e, como Calvino, o autor mineiro se identificava com o insólito ficcional justamente pelas possibilidades desse modo discursivo.

O estudo dos recursos estilísticos que ora apresentamos focalizou a relação entre essas escolhas sintático-semânticas e o contexto da criação literária, procurando vislumbrar o sentimento de um artista diante de sua realidade e a sua proposta de transformá-la. A seleção do conto “O ex-mágico da Taberna Minhota”, dentre todos os outros que, do mesmo modo, sofreram modificações após a primeira publicação se deu pelo nosso gosto pessoal e, também, pelo interesse em apresentarmos uma possibilidade de leitura para a história do mágico que perde sua capacidade de fazer truques, vendo-se condenado a uma existência precária nessa sociedade diluída, construída a partir do desmoronamento das ideologias vigentes no início da era moderna.

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Capítulo 1

O FANTÁSTICO LITERÁRIO: DA TRADIÇÃO AO MODO DISCURSIVO

Iniciamos nossa análise pelo estudo dos textos críticos, a fim de compreender as linhas gerais da literatura fantástica, considerada por pesquisadores como um objeto movente, uma vez que suas características principais tornam-se mais ou menos acentuadas de acordo com a época em que é produzida.

Partimos da variação na sua classificação no âmbito da teoria literária, nomeadamente duas, gênero e modo literário. Considerados alguns autores que discutem o assunto, e ora diferem, ora convergem entre si; das discussões decorrem, em princípio, a questão: o que significam tais denominações e quais implicações são assumidas em se optar por uma ou outra?

1.1 Um percurso teórico

As raízes da literatura fantástica estão nas lendas medievais e nas novelas góticas. O escritor e crítico H. P. Lovecraft (1890-1937), tomou aquelas narrativas, que tinham como principal efeito o despertar do medo no leitor, como objeto de estudo, em O horror sobrenatural em literatura (1945). Para ele,

Os primeiros instintos e emoções do homem foram sua resposta ao ambiente em que se achava. Sensações definidas baseadas no prazer e na dor se desenvolveram em torno dos fenômenos cujas causas e efeitos ele compreendia, enquanto em torno dos que não compreendia – e eles fervilhavam no Universo nos tempos primitivos – eram naturalmente elaborados como personificações, interpretações maravilhosas e as sensações de medo e pavor que poderiam atingir uma raça com poucas e simples idéias, e limitada experiência. O desconhecido, sendo também o imprevisível, tornou-se, para nossos ancestrais primitivos, uma fonte terrível e onipotente das benesses e calamidades concedidas à humanidade por razões misteriosas e absolutamente extraterrestres, pertencendo, pois, nitidamente, a esferas de existência das quais nada sabemos e nas quais não temos parte (LOVECRAFT, 2007, p.14).

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O medo é, então, o sentimento mais antigo experimentado pela humanidade, e o seu tipo mais instigante é o medo do desconhecido.

Para este crítico norte-americano, a literatura que explorava o medo como sentimento estético só era apreciada por um pequeno número de leitores sofisticados, que se permitia, por meio de “um curioso rasgo de fantasia”, um distanciamento do cotidiano, do mundo que lhe era familiar. Além disso, o caráter de permanência da literatura do medo é ilustrado pelo fato de escritores com escolhas estéticas diferentes se aventurarem, vez ou outra, no terreno do sobrenatural (p.16).

Lovecraft (2007) também se preocupou em tratar o fantástico como “a literatura do medo cósmico”, a qual, diferentemente do “medo físico e do horrível vulgar”, caracterizava-se pela “atmosfera inexplicável e empolgante de pavor de forças externas desconhecidas” e pela “suspensão ou derrota maligna” das forças da Natureza que tudo explicam, livrando o sujeito “do caos e dos demônios dos espaços insondáveis” (p.17).

O detalhamento dessa estética do medo – cujos pressupostos também orientaram a escrita de Mary Shelley (1797-1851) e Edgar Allan Poe (1809-1849), para ficarmos em dois dos autores que tiverem seus estilos analisados por Lovecraft (2007) – não é pertinente ao nosso trabalho, uma vez que nos interessa, inicialmente, o fantástico com a configuração de que tratou Tzvetan Todorov (1939 -), em Introdução à literatura fantástica, na década de 70.

O filósofo e linguista búlgaro recuperou as obras mais expressivas de artistas dos séculos XIX e XX a fim de delimitar suas características principais – isso o transformou no maior representante da tradição crítica em estudos sobre o fantástico literário.

De acordo com a teoria todoroviana, a condição essencial para que o fantástico se constitua é a dúvida quanto à natureza de um acontecimento não natural:

Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos (...), produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso a realidade é regida por leis desconhecidas para nós (TODOROV, 2007, p.30).

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Para essa corrente teórica, portanto, a existência do fantástico está atrelada à permanência da dúvida, à hesitação diante do acontecimento sobrenatural. A fragilidade do fantástico está aí, uma vez que a hesitação termina no momento em que a personagem ou até mesmo o leitor decide por uma das alternativas mencionadas por Todorov: trata-se ou de um produto da esfera onírica, ou de uma (outra) realidade, até então desconhecida. Essa definição do fantástico origina-se, portanto, da oposição entre o que é real e o que é tido como um elemento do imaginário (2007, p.48).

À época da elaboração do modelo estruturalista do gênero fantástico, buscava-se uma maneira de atribuição de sentido às obras do século XVIII e XIX, que se diferenciavam daquelas narrativas de horror de que falava Lovecraft (2007). E a atmosfera dos estudos estruturalistas favorecia as análises que priorizassem a forma do texto literário excluindo, assim, o contexto histórico, o autor e o leitor real (OLIVEIRA, 2011, p.9). Nesse sentido, o estudo de Todorov alcançou êxito, uma vez que se voltou para a estrutura da obra literária, possibilitando, desse modo, a atribuição de sentido aos textos que se enquadravam nas características do novo gênero.

Entretanto, perante as narrativas do século XX, especialmente A metamorfose (1915), de Franz Kafka, Todorov (2007) se perguntaria, no último capítulo de Introdução à literatura fantástica: “Em que se transformou a narrativa do sobrenatural do século XIX?”. Para ele, “a Psicanálise substituiu (e por isso mesmo tornou inútil) a literatura fantástica”, uma vez que passou a tratar de tabus, loucuras e perversões sem recorrer aos elementos do fantástico, mas considerando-os uma realidade específica dos pacientes que os manifestassem (p.169).

Da mesma maneira, no século XX, não existiria mais o que Todorov chamou de “metafísica do real e do imaginário” e a crença em uma “realidade imutável” também perderia sustentação. Nesse sentido, realmente, a literatura fantástica descrita naquele seu modelo de análise desapareceu: “desta morte, deste suicídio nasceu uma nova literatura” (TODOROV, 2007, p.177). E é nesta nova forma de narrativa que a obra de Franz Kafka estaria situada. Nesse ponto, é possível estendermos nossas considerações para as narrativas de Murilo Rubião, que serão estudadas no próximo capítulo, no qual observaremos que elas devem ser pensadas neste novo modelo, que Todorov não chegou a enunciar, mas percebeu que existia. Daí a aproximação natural entre Murilo Rubião e Franz Kafka, mesmo o autor mineiro não tendo admitido essa influência.

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A respeito das mudanças na configuração do fantástico, Schwartz (2006) resolveu da seguinte forma:

Ao contrário dos modelos canônicos do século XIX, em que prevalece a hesitação do narrador, do personagem e até do leitor, o sobrenatural moderno nunca postula um enigma a ser decifrado, uma intriga que vise a desvendar o inexplicável ou uma explicação racional para a intrusão do irracional (SCHWARTZ, 2006, p.102).

Os estudos críticos que se seguiram, em alguma medida, retomaram as principais ideias todorovianas, e se dedicaram ao preenchimento das lacunas deixadas pelo teórico búlgaro – principalmente no que se refere à hesitação como elemento essencial para a existência do fantástico. Dentre esses estudos, situa-se o de Filipe Furtado, em A construção do fantástico na narrativa (1980)1.

Nessa obra, o teórico português sustenta que a manifestação do insólito não se dá arbitrariamente em um mundo desconhecido, mas surge “no contexto de uma ação e de um enquadramento espacial até então supostamente normais” (p.19). Um mundo normal, um ambiente cotidiano e, de repente, um ou mais elementos aparentemente estranhos passam a pertencer àquela esfera, alterando sua ordem normal de funcionamento e estabelecendo o equilíbrio de um novo gênero.

Elementos sobrenaturais, seres estranhos, manifestações insólitas – alguns dos termos possíveis ao se referir ao que Furtado chamou fenomenologia meta-empírica; que não trata apenas dos elementos sobrenaturais em sentido mais geral, mas também daqueles que,

[...] seguindo embora os princípios ordenadores do mundo real, são considerados inexplicáveis e alheios a ele apenas devido a erros de percepção ou desconhecimento desses princípios por parte de quem porventura os testemunhe (FURTADO, 1980, p.20).

Esse crítico se utilizou, indiferentemente, das palavras: sobrenatural, extranatural, meta-natural, alucinado e insólito, ao abordar a temática.

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O sobrenatural aparece, então, em um ambiente quotidiano, comum, no qual são encenados temas da literatura universal. Furtado (1980) ressalva que a temática do sobrenatural não é exclusiva do fantástico – o estranho e o maravilhoso também fazem parte do grande grupo da “literatura do sobrenatural” (p.20).

Onde estariam, então, as diferenças entre esses três gêneros? O crítico, para responder a esse seu questionamento, passa à investigação da característica comum ao estranho, ao maravilhoso e ao fantástico – a temática do sobrenatural.

Inicialmente, explica que nem todas as narrativas que descreviam manifestações insólitas pertenciam ao gênero fantástico:

[...] entre a infinidade de variantes dessa fenomenologia imaginária, muitas não se adequam minimamente às outras características do fantástico, pelo que se torna necessário distinguir entre as que convêm à construção do gênero e as que dele se excluem (FURTADO, 1980, p.22).

E conclui que tais narrativas não fazem parte do que chama “literatura do sobrenatural”, pois incluem apenas “parcelas da ação ou personagens de índole meta-empírica” – o sobrenatural, portanto, não possui caráter dominante. Este último termo foi utilizado pelo formalista russo Tomachevski, ao descrever os “processos dominantes”, isto é, elementos a que “todos os outros processos necessários à criação do conjunto artístico” estariam subordinados nessas narrativas (TOMACHEVSKI apud FURTADO, 1980, p.20).

O crítico ressalta, ainda, a existência do sobrenatural positivo e do sobrenatural negativo – o primeiro associado à ideia do Bem, e o segundo, ao conceito de Mal –, e declara: “só o sobrenatural negativo convém à construção do fantástico” (FURTADO, 1980, p.22).

Essa questão pode ser compreendida se considerarmos que o sobrenatural positivo reestabelece, na narrativa, a ordem do mundo natural – justamente a ordem que o elemento insólito vem romper; e apenas o sobrenatural negativo é de caráter “irreversível e de consequências inelutáveis, conduzindo a um desenlace nefasto às forças positivas integradas na natureza conhecida” (Ibidem, p.24).

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Neste ponto, Furtado separa o fantástico e o estranho – que trabalham com o lado negativo do sobrenatural – do maravilhoso, que admite ambos os aspectos do elemento sobrenatural.

Voltando ao fantástico, observa que o sobrenatural positivo até pode aparecer, mas não como elemento dominante, afinal, apenas o sobrenatural negativo apresenta-se como um “transgressor” da ordem de funcionamento tida como normal para o mundo e as coisas. Caso ocorra o predomínio excessivo de elementos extranaturais de índole positiva, a narrativa passa ao universo do maravilhoso (FURTADO, 1980, p.25).

No tocante às narrativas do maravilhoso, o extranatural está presente desde o início e, em nenhum momento, existe um movimento por parte do narrador para torná-lo real aos olhos do receptor ou, ao menos, suscitar a dúvida. Ao contrário, narrador e receptor travam um pacto no qual cabe a este último “aceitar todos os fenômenos (...) de forma apriorística, como dados irrecusáveis e, portanto, não passíveis de debate sobre a sua natureza e causas” (FURTADO, 1980, p.35). A ambiguidade não se instaura, portanto.

Já em se tratando do estranho, Furtado esclarece:

Com efeito, o texto deste género faz usualmente surgir a hipótese de que determinados acontecimentos ou personagens por ele encenados têm origem e carácter alheios às leis naturais. Tal conjectura, porém, apenas permanece durante uma parte da acção. A dado passo ela é completamente destruída, vindo a esclarecer-se de forma lógica todos os aspectos que poderiam levantar dúvidas quanto à completa integração dessa fenomenologia no mundo familiar quotidiano (FURTADO, 1980, p.35).

No fantástico, a dicotomia natural/antinatural, real/imaginário não tem fim e o elemento insólito permeia toda a narrativa, aderindo a ela, e o gênero, “tenta suscitar e manter por todas as formas o debate sobre esses dois elementos cuja coexistência parece, em princípio, impossível” (FURTADO, 1980, p.35).

Importante salientar que, para Furtado, assim como para Todorov, o fantástico é um gênero “abordado como uma organização dinâmica de elementos que, mutuamente combinados ao longo da obra, conduzem a uma verdadeira construção de equilíbrio difícil” (FURTADO, 1980, p.15). E é a dúvida perante o acontecimento insólito, ou

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seja, a ambiguidade resultante de uma construção que se dá nos planos do enunciado e da enunciação, a responsável por esse equilíbrio, não no sentido da proporcionalidade e harmonização de forças e circunstâncias, mas no sentido de que uma nova unidade narrativa é criada.

Outro estudo importante sobre o fantástico foi o desenvolvido por Irène Bessière, em Le récit fantastique. La poétique de l’incertaine, publicado em Paris, no ano de 1974, traduzido no Brasil por Biagio D’Angelo e Maria Rosa Duarte de Oliveira, em 2009. Dedicamos algumas linhas a um capítulo em especial, “O relato fantástico: forma mista do caso e da adivinha”, no qual a autora passa ao exame textos críticos anteriores aos seus, e atribui grande parte da dificuldade expressa pela comunidade crítica em relação ao estudo do fantástico à perspectiva teórico-metodológica adotada.

A esse respeito, a autora faz referência ao estudo de Jean Bellamin-Nöel (1972) e à afirmação de que as narrativas fantásticas se estruturam como “fantasmas”, o que, em seu entendimento, é uma redução da “organização do relato [fantástico] a um traço não-específico: a hesitação”. Para ela, essa declaração associa o universo fantástico a uma situação inconsciente, excluindo todo o seu conteúdo semântico e, principalmente, as suas raízes na sociedade e na cultura(BESSIÈRE, 2009, p.1).

Proceder à análise do fantástico na perspectiva daquele crítico, diz Bessière, não leva o estudioso a outro lugar senão o das “enumerações de imagens”, e conclui:

Todo o estudo do relato fantástico é sintético, não por evocar ou intuir uma lei artística (...), mas por uma perspectiva polivalente.

[...]

A síntese não nasce aqui do inventário vasto e diverso dos textos, mas da organização, por contraste e por tensão, dos elementos e das implicações heterogêneas que fazem o atrativo do relato fantástico e sua unidade (BESSIÈRE, 2009, p.2).

A autora alerta para o fato de que a análise temática e, portanto, a ênfase nas “referências teológicas, esotéricas, filosóficas ou psicopatológicas” não é recomendada, na medida em que esses elementos não instauram o insólito na narrativa, nem mesmo garantem a sua permanência, são, tão somente, “artifícios narrativos destinados a encerrar o herói e o leitor em uma forma de paradoxo” (BESSIÈRE, 2009, p.3).

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O relato fantástico, explica a autora,

utiliza marcos socioculturais e formas de compreensão que definem os domínios do natural e do sobrenatural, do banal e do estranho, não para concluir com alguma certeza metafísica, mas para organizar o confronto entre os elementos de uma civilização relativos aos fenômenos que escapam à economia do real e do surreal, cuja concepção varia conforme a época (BESSIÈRE, 2009, p.3).

Percebemos que o que incomoda essa estudiosa é o fato de se procurar o fantástico na reação do leitor ou das personagens ao elemento insólito, quando, entretanto, o fantástico é uma construção, um trabalho com a linguagem:

O relato fantástico provoca a incerteza ao exame intelectual, pois coloca em ação dados contraditórios, reunidos segundo uma coerência e uma complementaridade próprias. (BESSIÈRE, 2009, p.2).

E, portanto, deve-se partir da linguagem, da análise formal e semântica, para se desvendar os mistérios que ela instaura no texto literário.

Em sua análise das proposições de Irène Bessière (2009), Remo Ceserani (2006) mostra concordância ao afirmar o fantástico como um modo literário, uma vez que pode assumir diversas formas de gênero – assim, seria possível ampliar as possibilidades de ocorrência do fantástico na literatura, mesmo em obras posteriores às do século XIX (CESERANI, 2006, p.149).

Dentre os outros estudos sobre o fantástico, já no século XX, destacamos a proposta de Jaime Alazraki (2001), que introduziu o termo “neofantástico” na esfera dos estudos literários.

Esse crítico argentino partiu do trabalho com contos dos escritores argentinos Júlio Cortázar e Jorge Luis Borges e, procurando relacioná-los à teoria do fantástico tradicional, concluiu que esses textos apresentavam um mecanismo de funcionamento distinto daqueles incluídos sob a denominação do fantástico.

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Alazraki (2001) passou a refletir sobre essa questão após assistir a duas conferências de Cortázar, uma no ano de 1962 e outra em 1975, nas quais o escritor falava de sua insatisfação quanto à classificação de suas obras (p.272).

Então, o crítico argentino partiu da definição de Cortázar sobre o gênero ao qual pertencia, em uma entrevista ao jornalista Ernesto Gonzalez Bermejo:

Para mim o fantástico” – explica – “é a indicação súbita de que, à margem das leis aristotélicas e da nossa mente racional, existem mecanismos perfeitamente válidos, vigentes, que nosso cérebro lógico não pode captar, mas que em alguns momentos irrompem e se fazem sentir (ALAZRAKI apud BERMEJO, 1981, p.42, tradução nossa).

e elaborou o conceito dessa variação do fantástico tradicional, que assume o mundo real como uma máscara que esconde uma segunda realidade: o verdadeiro espaço ficcional.

Neste ponto, Alazraki diferencia o fantástico contemporâneo do fantástico tradicional que, segundo ele, “se propõe a abrir uma fissura ou rachadura em uma superfície sólida e imutável”, enquanto para aquela, “a realidade é uma esponja, um queijo gruyère, uma peneira, de cujos orifícios se pode enxergar, como num flash, essa outra realidade” (ALAZRAKI, 2001, p.276, tradução nossa).

Segundo Alvarez (2009), esta segunda realidade é “o cenário apresentado pelo escritor em suas obras e também é a zona de lucidez a partir da qual cria sua arte”, e quanto ao surgimento do insólito, a autora completa que esta é “rapidamente digerida pelas forças em jogo, de tal modo que é impossível isolar o fato insólito do todo da narrativa (...)” (p.6).

A outra característica desse novo relato fantástico diz respeito à intenção da narrativa, que já não é a de suscitar o medo, como eram as narrativas referidas por Lovecraft (2007). E qual seria essa intenção?

Para Alazraki, a perplexidade e a inquietude até estão presentes nos relatos fantásticos – o que é explicado pelo caráter insólito das situações narradas –, no entanto, a sua intenção é ainda outra, qual seja a de expressar, a partir de suas metáforas,

[...] vislumbres, entrevisões ou interstícios da irracionalidade que escapam ou resistem à língua da comunicação, que não cabem nos casulos construídos pela razão, que vão contra o sistema conceitual e

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científico com o qual estamos acostumados (ALAZRAKI, 2001, p.277, tradução nossa).

O crítico enfatiza, portanto, o sentido metafórico do relato fantástico – a necessidade de uma “segunda linguagem” para descrever aquela segunda realidade (Ibidem, p. 278).

Por último, o modus operandi é o que mais distancia o relato neofantástico do fantástico tradicional. É ele o responsável pela introdução, já nas primeiras linhas, do elemento insólito, que é “incorporado ao cenário que vai sendo construído” e, ao contrário do funcionamento do fantástico tradicional, “personagens e leitor estão presos numa teia vagarosa e habilmente tecida, sem sobressaltos, surpresas ou reviravoltas contundentes” (ALVAREZ, 2009, p.7).

Como percebemos, o neofantástico de Jaime Alazraki apresenta-se como uma nova forma de compreensão das obras surgidas a partir do século XX, que se associam ao fantástico tradicional por meio do insólito e, ao mesmo tempo, guardam certa distância devido ao seu modo de funcionamento.

David Roas (2001) também entende o fantástico como um modo narrativo originado no “código realista, mas que, por sua vez, supõe uma transformação, uma transgressão daquele código” (p.27, tradução nossa). Entretanto, o autor espanhol, utiliza em seus textos, indiferentemente, os termos: relato, modo e gênero.

Luiz Costa Lima (1981) examinou a questão dos gêneros no decorrer da história dos estudos literários e percebeu o seu caráter mutável e transitório, relacionando-o ao ambiente sociocultural.

Para esse crítico, o gênero não é uma “entidade fechada”, ou seja, não apresenta traços rigorosamente definidos e que permitem os “julgamentos de valor”; ao contrário,

[...] o gênero apresenta uma junção instável de marcas, nunca plenamente conscientes, que orienta a leitura e a produção – sem que, entretanto, se presuma que as marcas orientadoras sejam as mesmas. (LIMA, 1981, p.286)

o que justificaria a mudança sofrida pelo gênero fantástico a partir do século XX, com o advento da sociedade moderna.

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Esse caráter flexível do gênero nos permitiria entender o fantástico em suas diferentes vertentes e, em cada uma delas, compreender suas variações e especificidades.

As tensões entre as concepções genológica e modal também foram tratadas pelo pesquisador Flávio García (UERJ/CNPq) que, em artigo publicado em 2008, por meio de um percurso pela história do insólito ficcional, observou as diferentes terminologias assumidas por essas narrativas, e achou pertinente a criação de uma nova terminologia, mais condizente com a pós-modernidade, o “insólito banalizado”. Nesse artigo, García (2008) demonstrou a existência de um “macro-gênero” do insólito, do qual fariam parte, também, aqueles gêneros já estudados pela crítica – o maravilhoso, o fantástico, o estranho, o sobrenatural, o realismo maravilhoso e o absurdo (p.1).

As leituras dos contos de Murilo Rubião e de sua fortuna crítica indicam não apenas a elaboração de outra realidade ou outro mundo, de onde ou para o qual personagens fossem deslocados, e sim a convivência de duas realidades ou, melhor dizendo, de um mundo com as características do mundo tal qual o conhecemos, aceitamos e vivenciamos, mas com a presença de elementos e/ou situações insólitas.

A definição da palavra “insólito” nos remete ao não habitual, não comum, ou seja, ao elemento que está fora de lugar, no sentido de ser uma transgressão às leis da realidade. Jorge Schwartz, em Murilo Rubião: a poética do uroboro (1981), observa a existência de três categorias operacionais:

a) o sólito, que sói acontecer, e que representa a vigência da norma. Não chega a se configurar como tema central da literatura; é o universo do cotidiano, do corriqueiro, cuja função ficcional é a de servir como suporte real de dados inverossímeis;

b) o insólito, que não sói acontecer, opondo-se assim à norma, apontando para o ‘estranho’;

c) o sobrenatural propriamente dito, que não tem possibilidade alguma de acontecer no universo real, apontando na ficção para o ‘fantástico’ e o ‘maravilhoso’ (SCHWARTZ, 1981, p.54).

Essa narrativa pressupõe a presença de um ou mais elementos que vão contra a ordem aceita pelas categorias narrativas e pelo leitor, atentando-o para o absurdo mascarado por situações cotidianas.

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Também para García (2011), o insólito

[...] engloba eventos ficcionais que a crítica tem apontado ora como extraordinários – para além da ordem – ora como sobrenaturais – para além do natural – e que são marcas próprias de gêneros literários de longa tradição, a saber, o Maravilhoso, o Fantástico, o Sobrenatural, o Estranho, o Realismo Maravilhoso e o Absurdo (GARCÍA, 2011, p.1).

Parece-nos, então, que o “relato”, assim como exposto por Bessière (2009) – e que orientou os trabalhos dos grupos de pesquisa recentes que optaram pela concepção modal – coloca o fantástico como um dos modos literários que têm no insólito o seu diferencial. Assim, outros modos discursivos (ou literários) nos quais o insólito se manifesta seriam – citando apenas os já tratados neste trabalho – o sobrenatural, o maravilhoso, o estranho e o neofantástico.

A questão do enquadramento teórico-crítico da literatura fantástica, como gênero ou modo literário, também foi objeto de discussão no artigo de Marisa Gama-Khalil (UFU/CNPq), “A literatura fantástica: gênero ou modo?”, publicado em dezembro de 2013, constituindo-se, portanto, como o referencial teórico mais atual utilizado em nossa pesquisa.

Nesse artigo, a autora realizou uma análise detalhada da tradição crítica sobre a construção da narrativa fantástica e posicionou-se favoravelmente aos teóricos que, como ela, entendem a literatura fantástica “por intermédio da fratura que ela realiza no real, do descompasso que ela gera em seu espaço discursivo” (GAMA-KHALIL, 2013, p.24). Assim como Ceserani (2006), essa pesquisadora adotou a concepção modal2. No entanto, a sua justificativa para tal, complementou as considerações do teórico italiano:

Pela vertente que considera o fantástico como um modo, podemos alargar o enfoque analítico sobre essa literatura, porque o que mais nos interessa nas pesquisas sobre a literatura fantástica não é datar determinada forma de fantástico nem enfeixá-la em uma espécie ou outra, mas compreender de que maneira o fantástico se constrói na narrativa e, o mais importante, que efeitos essa construção desencadeia (GAMA-KHALIL, 2013, p.30).

2

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Uma atualização possível ao trabalho ora citado seria quanto à adoção de “insólito ficcional” para se referir a todos os modos literários nos quais o sobrenatural se configura como o seu elemento estruturador. Já que o “fantástico”, como vimos, é apenas um desses modos.

1.2 Murilo Rubião e o insólito ficcional

Apenas um detalhe se intromete, mas o mundo inteiro vira fantástico. (ANDRADE, 1996, p.3)

A breve biografia que aqui incluímos sintetiza as informações contidas no capítulo inicial do livro de Audemaro Taranto Goulart, O conto fantástico de Murilo Rubião (1995); no texto de Vera Lúcia Andrade, “A trajetória fantástica de Murilo Rubião”, publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 1996; e no prefácio “A aventura solitária de um grande artista”, de Humberto Werneck para a edição de O pirotécnico Zacarias (2006), da editora Companhia das Letras. Nessa introdução, registramos, também, nossas impressões acerca da visita ao Acervo dos Escritores Mineiros, na Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais, bem como algumas indagações a respeito do projeto literário desse escritor obstinado e cuidadoso.

Murilo Eugênio Rubião, nascido em 1916, no interior de Minas Gerais, seguiu o caminho da escrita não por acaso. Seu avô e seu pai foram escritores; além de seu primo, Godofredo Rangel, membro da Academia Mineira de Letras. Apesar de haver iniciado seus estudos no interior do estado, já no ensino médio estava em Belo Horizonte, onde cursou a faculdade de Direito. Ainda na faculdade, envolveu-se em atividades ligadas ao jornalismo e à literatura.

Incentivado pela família e pelas leituras de Machado de Assis e da Bíblia, revelou-se um escritor para além de seu tempo na medida em que partiu das raízes

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realistas e dessas leituras para imprimir em sua criação o insólito e o absurdo que, em sua opinião, faziam parte do mundo à sua volta (WERNECK, 2006, p.8).

A respeito de Murilo Rubião haver inaugurado, na literatura brasileira, um novo modo discursivo, há alguns trabalhos críticos que investigaram as primeiras publicações do autor mineiro, as quais indicam o caráter inaugural de sua obra no âmbito nacional.

A primeira versão do conto “Elvira e outros mistérios” foi publicada na Revista Tentativa, em de fevereiro de 1940 (FURUZATO, 2009, p.119), mas o autor havia estreado em 1939, com a publicação do poema “Ausência”, na mesma revista literária (NUNES, 2010, p.138).

Apesar de sua primeira opção estética ter sido o poema, Rubião ouviu a recomendação de amigos escritores, como Jair Rebelo Horta e Fernando Sabino, e se concentrou nos contos e nas crônicas. Após consultar os originais dessas crônicas, Sandra Nunes (2010) relacionou as mais representativas, publicadas entre 1939 e 1945: “A filosofia do Grão Mogol”, “Carta à Lúcia”, “As primeiras ilusões de 1941”, “Lirismo de fim de semana”, “A minha Praça da Liberdade”, “Memórias de um calígrafo” e “Mariazinha não voltou”. A autora constatou que elas representam um “processo embrionário da escrita muriliana”, quando o insólito se delineia e “a linguagem do absurdo ou do fantástico” é a escolhida para a recriação da realidade (NUNES, 2010, p.145).

Fábio Furuzato (2009), em sua pesquisa de doutoramento, optou por pesquisar os primeiros contos de Murilo Rubião, publicados na Revista Belo Horizonte: “O outro José Honório” (1940), “Margarida e outras reticências” (1940), “O mundo tem duas faces”(1940) e “Ofélia, meu cachimbo e o mar” (1940) – dos quais apenas este último reapareceria em seu primeiro livro de contos, O ex-mágico (1947). A respeito deste, o crítico observa que já estava concluído em 1940, e teve vários nomes: Elvira e outros mistérios, Girassol Vermelho, Os três nomes de Godofredo e O dono do Arco-Íris.

Também Wilson Castelo Branco menciona, no texto “Um contista em face do sobrenatural” (1944), que Rubião já estava com um livro pronto, que carecia de editora. Castelo Branco se referia ao, então, O dono do Arco-Íris, no qual “o sobrenatural, plasmado no cotidiano, representa quase sempre uma atitude de revolta do homem contra as traições da realidade” (1944, s/p).

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Importante ressaltar, entretanto, que já em 1925, outro escritor mineiro, Aníbal Monteiro Machado (1916-1991) publicou o conto “O rato, o guarda-civil e o transatlântico” na Revista Estética. Em 1944, Aníbal Machado publicou o livro de novelas e contos Vila Feliz, reeditado em 1959, e que, na reedição de 1969, recebeu novo título, A morte da porta-estandarte e outras histórias, e o prefácio de Cavalcanti Proença, intitulado “Os balões cativos”, uma imagem que Proença utilizou para se referir à obra daquele que considerou o “contista do século”, por produzir uma narrativa que “se desenvolve em terreno fronteiriço, ora pisando chão de realidade, ora pairando nas nuvens do imaginário, entre sonho e vigília, entre espírito e matéria, verdade e mentira, relatório e ficção” (MACHADO, 1969, p.6).

Murilo Rubião era mais novo que Aníbal Machado, que faleceu quando Rubião ainda estava produzindo, mas eles tinham convívio. Ambos organizaram e participaram do I Congresso Brasileiro dos Escritores, realizado em São Paulo, em 1945 – um dos movimentos que contribuíram para a derrubada, em outubro do mesmo ano, da ditadura do Estado Novo3.

Também outros autores brasileiros, anteriores a Murilo Rubião, trabalharam com o insólito ficcional. Todavia, Antonio Candido (1989) esclarece o autor mineiro “elaborou os seus contos absurdos num momento de predomínio do realismo social, propondo um caminho que poucos identificaram e só mais tarde outros seguiram” (p.237).

No artigo “A corrosão do real na obra de Murilo Rubião”, Goulart (s/d) destaca que Álvares de Azevedo, Machado de Assis e Monteiro Lobato, entre outros, “já haviam feito incursões no terreno do surreal”, porém, esses autores não o utilizaram como um “sistema que patrocinasse a leitura da realidade, com o claro objetivo de chamar a atenção para esta realidade, pondo-a em xeque” (p.1)4.

A fim de resolver a questão de Murilo Rubião ter sido ou não o precursor do fantástico na literatura brasileira, e diante dos dados considerados em nossa pesquisa, é possível afirmar que ele foi um dos precursores do fantástico moderno brasileiro.

3 A respeito da participação de Aníbal Machado nesse congresso, conf. “Os balões cativos” (1969),

prefácio de Cavalcanti Proença ao livro do autor. A participação de Murilo Rubião pode ser consultada na Cronologia da edição de sua Obra Completa, pela Companhia de Bolso (2010).

4 Não encontramos a data de publicação deste artigo, que pode ser consultado no endereço eletrônico

: <http://www.pucminas.br/imagedb/mestrado_doutorado/publicacoes/PUA_ARQ_ARQUI201210111746 25.pdf>.

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Rubião, a partir de 1946, iniciou sua carreira na administração pública, como Oficial de Gabinete do Interventor Federal de Minas, João Beraldo. Chegando, em 1952, a Chefe de Gabinete de Juscelino Kubitschek. Durante todo esse tempo, o trabalho literário sempre esteve presente, como vemos nas cartas trocadas com amigos, alguns, autores já reconhecidos, como Carlos Drummond de Andrade:

Rio, 11 agosto 1947. Caro Murilo:

Em minha biografia não vai figurar: “foi diretor da “Folha de Minas”, mas gostaria que constasse: “recebeu várias mensagens afetuosas, inclusive um radiograma do Murilo Rubião”. E é em resposta ao seu radiograma que lhe mando um abraço agradecido, pesaroso por não ter podido ir dirigir a “Folha”, contente por ter recebido as palavras amigas que me chegaram de Minas. Mas não termino sem perguntar pelo seu livro – o livro que V. nos está devendo há alguns séculos, que estava pronto quando aí estive em maio e que até hoje não apareceu. Os amigos têm pressa em arrancar essa virgindade literária. Como é?... (Carta de Carlos Drummond de Andrade).5

A respeito de sua carreira no funcionalismo público, o escritor Fernando Sabino, muito amigo de Rubião, enviou uma carta de Nova Iorque, onde residia com a família, mostrando-se preocupado com o amigo mineiro que, segundo Sabino e outros amigos em comum, estava cada vez mais triste e angustiado com o trabalho que nada tinha em comum com o ofício para o qual havia nascido: o de escritor.

Estaria Murilo Rubião, à época da carta de Fernando Sabino, pensando em desistir da escrita literária? Isso explicaria a insistência do amigo:

Acho que seus trinta anos já dizem alguma coisa, Murilo, seu livro inédito já representa muito em sofrimento e sua falta de cabelo te convida a uma dignidade outra que você está tendo até agora: a dignidade de escritor. De modo que, com tudo isso, e você absolutamente convencido de que seu caminho não é nenhum outro e no mofo escuso dos gabinetes é que ele não começa e sim acaba como no fundo de um poço, agora que você sente que já passou por todas as provas que escolheram para você, agora você vai começar. Agora

5 Disponível para consulta em: <http://www.murilorubiao.com.br/correspcarlos.aspx>. Acesso em

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você é que vai escolher. Acho que você não deve esperar mais um ano, nem uma semana e nem um dia: deve fechar os olhos e avançar (Carta de Fernando Sabino)6.

Essa carta de Fernando Sabino é de 09 de agosto de 1946, um ano antes da publicação do primeiro livro de Rubião, quando ele ainda estava à procura de uma editora que o publicasse.

O dono do Arco-Íris era o segundo livro que ele tentava lançar, mas foi recusado em todas as editoras para as quais havia sido enviado e, após grande esforço de Murilo e de seu amigo Marques Rebelo, foi publicado em 1947, com outro título: O Ex-Mágico. Essas informações constam no final das edições de suas obras, mas os detalhes sobre a dificuldade de publicação enfrentada pelo autor estão documentados em seu acervo pessoal, localizado na Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte.

A Sala Murilo Rubião faz parte deste Acervo e conhecê-la foi importante para entendermos melhor o projeto de escrita do autor, o que o colocaria, mais tarde, no topo dos autores brasileiros que trabalharam com a literatura fantástica.

O local em que sua biblioteca foi acomodada, bem como os originais de seus contos e alguns rascunhos de textos nunca publicados foi escolhido por Murilo Rubião que, sistemático e detalhista, catalogou a maior parte dos textos críticos e das correspondências com amigos, escritores e editores.

As correspondências7 com Marques Rebelo, responsável por intermediar o contato com as editoras, e com Caio César Pinheiro, da Editora Universal, trazem informações interessantes, como a da ocasião da publicação de O ex-mágico: financiado pelo próprio autor, já que a editora só se responsabilizou pela metade das cópias. Rubião só teve seu primeiro livro impresso em razão do sucesso editorial de outro mineiro, João Guimarães Rosa, que havia alcançado uma boa vendagem com Sagarana (1946).

A consulta à correspondência entre o mineiro e Mário de Andrade também trouxe informações importantes, como a observação feita pelo escritor paulista após

6 Disponível para consulta em: <http://www.murilorubiao.com.br/correspfernando.aspx>. Acesso em

02-02-2014.

7

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uma primeira leitura dos contos de Murilo Rubião. Mário de Andrade associou a ficção do colega mineiro ao estilo de Franz Kafka. Em carta a Mário de Andrade, Rubião desabafou: “Li O Processo, de Kafka, para o qual você me chamou a atenção em sua carta. E estou apavorado, sentindo a influência dele sobre os temas que estou urdindo” (Carta a Mário de Andrade)8.

Anos depois, em entrevista a Vera Lúcia Andrade, Rubião mencionaria as conversas com Mário de Andrade e, referindo-se à temática do conto Teleco, o Coelhinho, encerraria a questão da semelhança com a obra kafkiana Metamorfose (1915): “(...) fruto de leituras demoradas da mitologia e do mito de Proteu. Então, nem Kafka, nem muito menos eu inventamos a metamorfose” (ANDRADE, 1996, p.6).

A única dívida realmente assumida por Rubião foi para com Machado de Assis: “Sem ele eu jamais teria chegado ao fantástico”, declarou em entrevistas. De fato, o conto Memórias do Contabilista Pedro Inácio, além da epígrafe bíblica característica de todos os contos murilianos, traz outra epígrafe, retirada de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis. Em seu artigo sobre a escrita muriliana, Rui Mourão (1987) observou a existência de um “protótipo de uma ficção” que procurava um “realismo de segundo grau”, na medida em que era “aberto para o onírico e para os desvãos indevassáveis da consciência” (p.7).

O que mais nos impressionou naquela visita, no entanto, foram as muitas versões dos contos. Realmente, a reescrita e o tempo dispendido nesse trabalho caprichoso fazem de Rubião uma personalidade literária obstinada e intrigante. Essa característica seria apontada mais tarde, por críticos e estudiosos de sua obra, como Vera Lúcia Andrade, Humberto Werneck, Álvaro Lins e Nelly Novaes Coelho, que observaram, também, que Murilo Rubião buscou nas imagens surreais e no absurdo os meios para desmascarar a hipocrisia social e retratar os conflitos existenciais do homem moderno, preso ao cotidiano.

Um de nossos questionamentos, quando do início dessa pesquisa, foi justamente este: por que a crítica demorou tantos anos para descobrir Murilo Rubião, sendo que a primeira publicação foi em 1947, mas apenas na década de 70 ganhou notoriedade?

8 Carta disponível para consulta em: <http://www.murilorubiao.com.br/corresprubiao2.aspx>. Acesso em

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Goulart (1995) observa que, à época da publicação de seu primeiro livro, Rubião não pôde contar com uma editora cuja impressão fosse de qualidade, nem mesmo com um bom trabalho de divulgação (p.10). Isso só viria na década de 70, quando a Editora Ática lançou a Coleção Nosso Tempo – obra aprovada pela Equipe Técnica do Livro e Material Didático –, cujo sucesso de vendas garantiria as onze edições de O pirotécnico Zacarias pela editora de São Paulo, momento em que foi incorporado nas atividades escolares:

O sucesso de Murilo Rubião, no entanto, só viria em 1974, quando se publicaram O convidado e O pirotécnico Zacarias, (...). É esse o momento em que o escritor se torna efetivamente conhecido e sua obra passa a ser divulgada, principalmente, devido à sua indicação para concursos vestibulares (1995, p.9).

No prefácio de uma das edições de contos de Murilo Rubião, o crítico Humberto Werneck (2006, p.7) se refere a uma atmosfera de sonho característica das obras do escritor mineiro e, ao abordar o realismo fantástico, destaca que a produção de Murilo é anterior ao chamado boom do realismo mágico hispano-americano.

Apesar de Jorge Luis Borges ter escrito Ficções, em 1944, e Julio Cortázar já haver estreado com Casa tomada (1946), o referido fenômeno editorial só aconteceria na segunda metade da década de 60, com publicações de Gabriel García Márquez e outros escritores latino-americanos (WERNECK, 2006, p.7). Mas o escritor mineiro publicara seu livro de contos O ex-mágico no ano de 1947.

Como o crítico bem observou:

É espantoso verificar, hoje, o quanto Murilo Rubião foi ignorado, durante tantas décadas, quando na verdade antecipara entre nós um tipo de literatura que só vinte anos mais tarde daria renome internacional a seus confrades hispano-americanos (WERNECK, 2006, p.8).

O próprio autor, em entrevistas publicadas no Suplemento Literário do Minas Gerais, declarou que à época da escritura de seus primeiros contos “Não havia ainda

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latino-americanos”; e, quando perguntado sobre suas influências literárias, citava Machado de Assis, Cervantes, Gogol, Hoffmann, Poe, Henry James e Pirandello. Além dos contos de fadas lidos na infância, a Bíblia e as Mil e Uma Noites (ANDRADE, 1996, p.6).

É fato, também, que Jorge Luis Borges publicou, em 1935, a História universal de la infamia, considerada pela crítica a primeira obra do realismo mágico. Apesar de haver diferenças entre o realismo mágico9 e o fantástico, é importante considerarmos que, já em 1940, na América Latina, havia um “vigoroso e complexo fenômeno de renovação ficcional” que denotava a “passagem da estética realista-naturalista para a nova visão (mágica) da realidade” (CHIAMPI, 1980, p.19).

Ao contrário do que ocorreu na literatura latino-americana, entretanto, Murilo Rubião não alcançou, com suas crônicas e com os primeiros contos, a projeção na esfera literária brasileira, pois os escritores daquela época não seguiram esse caminho estético (ARRIGUCCI Jr., 1999, p. 51).

A respeito dessa negligência por parte da indústria literária brasileira, Vera Lúcia Andrade conclui:

Incompreendido pela crítica de sua época, Murilo permanece desconhecido do público em geral até a década de 70, quando, mais preparado para a recepção de obras deste teor, devido ao grande ‘boom’ da literatura latino-americana, o público consagra-o como um dos grandes nomes da literatura brasileira (...). O Pirotécnico

Zacarias, editado em 1974, vendeu mais de cem mil exemplares

(ANDRADE, 1996, p.4).

Ao pensar sobre a “dispersão da crítica hispano-americana”, Chiampi (1980) faz a seguinte constatação:

A deficiência ou a estagnação do discurso crítico, em permanente descompasso com o ritmo da criação literária, é o resultado da falta de diálogo e do isolamento das idéias, como o é também de certa indiferença diante dos projetos interpretativos alheios. Na discussão do realismo mágico, como em outras importantes questões de literatura e cultura latino-americanas, a incomunicação ou o mero

9 Optamos por não nos estendermos nas diferenciações entre realismo mágico e realismo maravilhoso,

uma vez que nos concentramos no fantástico e, mais especificamente, no insólito banalizado. A respeito do realismo mágico, conferir Irlemar Chiampi (op. Cit.).

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silêncio são responsáveis pela solução de continuidade que sofrem as propostas críticas (1980, p.25).

A autora buscava o entendimento no que se refere à dificuldade de os críticos especializados conceituarem, em definitivo, o realismo mágico. Podemos, também, usar a explicação adotada pela autora para respondermos a um dos questionamentos de nossa pesquisa, qual seja a da demora em Murilo Rubião ser conhecido no Brasil.

Inclusive, a questão da falta de timing e de comunicação por parte da produção crítica brasileira parecia ser uma preocupação do autor que, em 1966, criou, na Imprensa Oficial, o Suplemento Literário, que viria a ser, por muitos anos, uma das publicações mais importantes do país na área da crítica literária.

Foi no Suplemento Literário que os primeiros trabalhos críticos sobre a obra de Murilo Rubião foram publicados. Um desses textos foi o de Vera Lúcia Andrade (1996), no qual procurou “traçar o percurso literário do escritor (...), buscar no alinhavado geral de sua vida as linhas mestras de sua formação”, enfatizando, naturalmente, o fato de Rubião ter sido o “precursor” da literatura fantástica no Brasil (p.3), e ressaltando a qualidade da obra do autor mineiro, a despeito do número reduzido de contos publicados no decorrer de sua carreira:

Sua marca de fábrica sempre foi o insólito, insólito que se incorpora, sem surpresa, à banalidade da rotina. Desde o princípio o que mais espanta em Murilo é a perfeita naturalidade da convivência com o espantoso (ANDRADE, 1996, p.6).

Nos contos murilianos, o leitor se depara com uma atmosfera onírica, em que personagens desaparecem (Elisa, O homem do boné cinzento, A noiva da casa azul); um defunto narra a sua morte apesar de insistir que continua vivo (O pirotécnico Zacarias); um mágico tira bichos e pessoas dos bolsos e das mangas de seu casaco (O ex-mágico da Taberna Minhota); uma mulher dá à luz infinitamente (Aglaia); um edifício, aparentemente obsoleto, cresce sem parar (O edifício); e muitas outras situações narradas com naturalidade, sem que as personagens se mostrem surpresas ou indignadas.

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Foi precisamente com a expressão “sequestro da surpresa” que Arrigucci Jr. (1999) se referiu a essa falta de estranhamento diante do insólito, característica do fantástico na produção desse escritor mineiro:

É no mínimo curioso que o traço marcante atribuído a toda arte, o de surpreender, comece aqui por faltar. Grande parte da dificuldade de interpretação dessas narrativas reside, pois, na ausência de espanto, intrínseca ao modo de ser da obra como um atributo do mundo ficcional (ARRIGUCCI Jr., 1999, p.306).

Dessa maneira, o leitor aceita, tranquilamente, que um coelhinho, no primeiro parágrafo do conto, peça cigarros ao narrador e, em seguida, transforme-se em pulga, porco-do-mato ou bode (Teleco, o coelhinho).

No conto Aglaia, a protagonista que dá título ao conto, após contrair matrimônio, fica grávida, mas recusa-se a ter filhos. Entretanto, após várias tentativas abortivas, a protagonista não só permanece grávida como engravida novamente, dando início a uma sequência infinita de partos.

A obra de Murilo Rubião, mesmo possuindo raízes no realismo – influenciadas, como vimos, por suas leituras de formação –, inclui o sonho, o mágico e o sobrenatural. O próprio autor se dizia uma pessoa que acreditava no que está além das coisas: “Nunca me espanto com o sobrenatural, com o mágico, com o mistério. (...) Quem não acredita em mistério não faz literatura fantástica” (RUBIÃO apud ANDRADE, 1996, p.7).

Entretanto, a existência do medo de que falava Lovecraft (2007), ao descrever as narrativas de horror, bem como a hesitação defendida por Todorov (2007), estão ausentes na obra do autor mineiro. Nas narrativas murilianas, o leitor se depara com a angústia do homem diante da sociedade contemporânea, e o insólito é aceito sem questionamento ou estranhamento, integrado ao relato de situações cotidianas.

Nesse sentido, a teoria de Alazraki (2001) traz uma contribuição mais efetiva para a análise das narrativas murilianas, afinal, o trabalho com a linguagem realizado pelo autor mineiro é de fato o responsável pela criação de uma “segunda realidade” (p.276) a que se referiu o crítico argentino.

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Outro aspecto a considerar é o de que as histórias de Rubião estão ambientadas no mundo normal, conhecido dos leitores, no quotidiano. Para David Roas (2001), a literatura fantástica é aquela cuja temática tende a colocar em dúvida a nossa percepção do real e, para que essa ruptura aconteça, é necessário que o texto apresente um ambiente o mais real possível, de maneira a contrastar com o insólito, para que ocorra, de fato, o choque entre esses dois mundos (p.24).

Assim, o relato fantástico difere profundamente das outras narrativas que possuem o elemento insólito, mas cuja ambientação é bastante diferente da do mundo real, como as narrativas do maravilhoso. E, segundo Roas (2001), o fantástico inscreve-se na realidade e, ao mesmo tempo, “repreinscreve-senta um atentado a essa mesma realidade”. (p.25).

Não obstante os estudos de Roas (2001) e Alazraki (2001) darem nova perspectiva ao estudo dessas narrativas, o neofantástico surgiu como forma de descrição de algumas narrativas hispano-americanas.

Já entre as mais recentes produções críticas brasileiras acerca do insólito ficcional, e como observado anteriormente10, García (2007) propôs um novo gênero representativo da contemporaneidade, o insólito banalizado. Segundo o autor, nessa categoria operacional, os eventos insólitos

Acabam aceitos sem a possibilidade de serem impedidos de acontecer ou explicados quanto à sua razão ou natureza, são, então, banalizados como algo possível de acontecer na experiência cotidiana, bem próximo do absurdo sem, contudo, configurarem uma denúncia que busque a transformação, mas como uma constatação desesperadora da realidade vivenciável ou vivenciada (GARCÍA, 2007, p.14)

Apesar de nos alinharmos aos estudos que tendem a analisar a produção muriliana no âmbito do insólito banalizado, percebemos uma falta de consenso, entre os trabalhos da crítica atual, quanto à concepção dessas narrativas como gênero ou modo literário. O que revela que a literatura sempre demandará mais da crítica do que esta pode oferecer em termos de estabelecimento de um corpo teórico particular.

10

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CAPÍTULO 2 O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA: UM PROJETO LITERÁRIO

[...] a língua é a área de uma ação, a definição e a espera de um possível. (BARTHES, 2004, p.10)

Estou convencido de que o escrever prosa em nada difere do escrever poesia; em ambos os casos, trata-se da busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável. (CALVINO, 1990, p.61)

O ponto de partida para o estudo estilístico é, certamente, a compreensão dos pressupostos dessa disciplina do campo de estudos da linguagem. Torna-se imprescindível, também, a conceituação de estilo.

Na Antiguidade grega, o estilo referia-se ao modo de falar em público de modo a persuadir o ouvinte – era objeto de estudo da Retórica, disciplina bastante prestigiada até a Idade Média. Para a Retórica, a “arte de persuadir” estava ancorada em três pressupostos: o da escolha das ideias; o da disposição das ideias; e o do estilo, ou seja, “os meios de expressão particulares, selecionados pela natureza do discurso a pronunciar, de acordo com os temas, os objetivos e circunstâncias do que seria manifestado” (UCHOA, 2013, p.13).

De acordo com os estudos críticos, a Retórica perdeu espaço no fim do século XVIII, quando o ambiente questionador do Iluminismo propiciou uma nova maneira de pensar a linguagem e a criação literária, colocando de lado a obsessão classificatória e normativista da retórica clássica.

Para Uchôa (2013), o período marcado pelo fim da hegemonia dos estudos da retórica clássica e, consequentemente, o início dos estudos estilísticos pode ser assim sintetizado:

Perdida a Retórica sua longa autoridade normativa, e também o seu valor de critério de avaliação, abre-se um vazio no campo do estudo da linguagem. A Linguística, ao se firmar como estudo científico da linguagem, no século XIX, na perspectiva histórico-evolucionista, sob notória influência da filosofia positivista, não podia acolher como objeto de estudo o estilo, sabidamente um fenômeno de origem individual e de natureza psíquica. Como se ficou na expectativa da progressão do pensamento científico que viesse a alcançar o enfoque

Referências

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