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Atores não estatais ilícitos e a governança global: o lugar do terrorismo dentro do debate normativo das Relações Internacionais/ Illicit non-state actors and global governance: terrorism’s place within International Relations’ normative debate

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Academic year: 2021

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ATORES NÃO ESTATAIS ILÍCITOS E A GOVERNANÇA GLOBAL: O

LUGAR DO TERRORISMO DENTRO DO DEBATE NORMATIVO DAS

RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Natalia Nahas Carneiro Maia Calfat1

Resumo: É objetivo deste artigo discorrer sobre o papel o terrorismo dentro do debate sobre

governança global nas Relações Internacionais. Apesar da agenda normativa reconhecer a emergência e importância de atores não estatais ilícitos no cenário internacional, a literatura parece centrada em resolver questões de legitimidade, accountability, transparência, democratização e inclusão. Ignorando, neste sentido, o relevante papel de grupos terroristas tanto sobre a (in)governança global quanto na contestação da autoridade estatal. Através da análise da literatura normativa sobre governança global identificaremos neste artigo a necessidade, por parte destes teóricos, da contemplação de forma mais exploratória da emersão destas novas modalidades de autoridade e de governança.

Palavras-Chave: terrorismo, atores não estatais ilícitos, governança global, autoridade. ILLICIT NON-STATE ACTORS AND GLOBAL GOVERNANCE: TERRORISM’S PLACE WITHIN INTERNATIONAL RELATIONS’

NORMATIVE DEBATE

Abstract: This current essay discusses the role of terrorism within the debate over global

governance in the field of International Relations. Despite the normative agenda recognition of the emergence and importance of illicit non-state actors at the international arena, the literature seems focused on solving issues such as legitimacy, accountability, transparency, democratization and inclusion. Ignoring, therefore, the relevant role of terrorist groups over both global (in) governance as well as its impugnment of state authority. By analyzing the normative literature on global governance we identify through this article the normative theorists’ need for contemplating, on a more exploratory manner, the emergence of these new forms of authority and governance.

Key-words: terrorism, illicit non-state actors, global governance, authority.

Introdução

1 Mestranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, pós-graduada em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (2013) e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (2007). É membro integrante do Grupo de Trabalho sobre Oriente Médio e Mundo Muçulmano da Universidade de São Paulo (FFLCH-LEA) e articulista semanal do CEIRI Newspaper 'Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais' para a área de Política Internacional e Oriente Médio. Atualmente é diretora de Relações Internacionais do ICARABE, Instituto da Cultura Árabe. A autora atua nas áreas de Relações Internacionais e Política Internacional relativas à Paz, Defesa e Segurança, Análise de Conjuntura, Terrorismo, Conflitos Internacionais, Oriente Médio e Mundo Muçulmano (e-mail: nnahascalfat@usp.br).

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BJIR, Marília, v. 5, n. 3, p. 643-669, set/dez. 2016 Nos últimos vinte anos, o debate normativo na disciplina de Relações Internacionais esteve centrado nos múltiplos níveis de governança global, no reconhecimento e inclusão da multiplicidade de atores não estatais, na fraqueza do debate teórico clássico e na potencialidade do programa de ação política que a Escola Cosmopolita aventa. Em virtude da concentração da análise teórica sobre o projeto político de emancipação do cidadão global, na desigualdade dentro das instituições internacionais, hierarquização e marginalização, pouca ou insuficiente atenção foi dada aos aspectos indesejáveis da governança global: como o poder das máfias, dos grupos terroristas e do crime internacional. Será foco deste artigo contribuir para esta literatura, demonstrando de que forma o terrorismo como ator não estatal ilícito não é fruto da unidade estatal, mas contesta, ao contrário, sua autoridade. O ator não estatal ilícito está em oposição ao Estado nacional e frequentemente reflete sua insuficiência em termos de ação e de alcance, como demonstraremos adiante.

O terrorismo, contudo, está longe de ser um fenômeno recente. Foi a Revolução Francesa que introduziu o termo "terror" em nosso vocabulário, que originalmente se referia às ações do governo revolucionário que iam além das regras que regulavam as punições contra opositores políticos. O terrorismo como ato político tem suas origens nos anarquistas russos dos anos 1880. Posteriormente, o terrorismo foi o instrumento utilizado pelas ondas de descolonização nos anos 1920, pelos membros da esquerda europeia nos anos 1960, por lutas anticoloniais na África (como no caso argelino) e, finalmente, por movimentos religiosos islâmicos e de extrema-direita nas últimas décadas. É verdade que o efeito midiático amplifica e confere maior visibilidade ao terrorismo - assim como o fez o advento do terrorismo suicida nos anos 1980 - e que em termos securitários o terrorismo é alvo cada vez maior de preocupação dos Estados e das instituições internacionais. Mas o terrorismo não é um fenômeno novo ou exclusivamente hodierno, e deve ser analisado com maior cautela neste sentido. O enredamento contemporâneo torna a difusão desta ameaça cada vez mais transnacional, e será nosso objetivo verificar de que forma estes atores contestam a autoridade estatal e como contribuem com a governança ou com a “desgovernança” global.

O Debate Normativo Sobre Governança Global

A contribuição neoinstitucionalista das Relações Internacionais está fortemente associada à reforma das instituições e à resolução da governança na ausência de uma autoridade central. A ação coletiva seria organizada através da cooperação e da coordenação, e a ordem seria garantida pela racionalidade dos atores e pelo compartilhamento de certos

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valores. Já os teóricos da governança global propõem interpretações diferentes, mudanças qualitativas das relações transnacionais e a governança global como programa de ação política. Estes proponentes conferem centralidade a novos atores como a sociedade civil global, comunidades epistêmicas e indivíduos, engajando-os em políticas públicas globais e em novas formas e níveis de governança. Esta visão normativa propõe uma democratização das Relações Internacionais, maior justiça global e ajuste das desigualdades e assimetrias. O complexo conjunto de estruturas e processos que envolvem atores públicos e privados está enredado de forma progressiva e é envolto por um processo de aprendizado social. Às instituições são conferidos novos papéis dentro de uma proposição maximalista da ordem, aperfeiçoando-as e tornando-as mais democráticas e mais inclusivas. Os autores da governança global conferem centralidade aos cidadãos cosmopolitas, que detêm interesses globais e dão sequência a este projeto político de mudança de realidade. Ambos, neoinstitucionalistas e cosmopolitas, ao descentrarem o foco da análise do Estado, conferem maior preponderância aos atores não estatais que regulam, corrigem e geram benefícios ao sistema. Este movimento de deslocamento da autoridade estatal – ainda que feito em maior ou menor grau por cada uma das correntes – debruça-se sobre os resultados salutares à ordem mundial, esquecendo-se daqueles atores que representam ameaças, desafios e concorrências à mesma.

Conforme Dingwerth & Pattberg (2006), a governança global como conceito analítico observável e como programa político reflete uma insatisfação com teorias realistas e liberais-institucionalistas que dominaram o campo nos anos 1970 e 1980. E, em particular, quanto ao fracasso das teorias tradicionais em capturarem o vasto aumento – tanto em número quanto em influência – de atores não estatais e as implicações da tecnologia na era da globalização. Neste sentido, o estudo da governança global reconhece uma enorme diversidade de formas de organização social e de decisão política que não são nem orientadas em direção ao Estado, nem emanam dele. A governança global implica uma perspectiva de multi atores na política mundial, composta por atores supranacionais (como a Comissão Europeia), atores judiciais (como a Corte Criminal Internacional), organizações intergovernamentais (como o Banco Mundial); mas também organizações privadas e híbridas, além de outras de difícil categorização, como é o caso da mídia de massas. As produções da governança global - ao contrário do Realismo clássico que presta pouca atenção aos atores não estatais – não estabelecem uma relação de hierarquia entre a política entre nações e os demais atores. Inversamente, é concedida igual importância às organizações não governamentais, corporações transnacionais, sociedade civil e atores científicos.

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BJIR, Marília, v. 5, n. 3, p. 643-669, set/dez. 2016 Enquanto as Relações Internacionais tradicionais centram sua atenção nas relações de poder, na barganha entre Estados baseada no auto interesse racional, na autoridade e no papel das normas, a governança global parte de uma ampla variedade de formas de governança existindo lado a lado umas das outras - e a hierarquia entre estes vários mecanismos é bastante nebulosa. Dingwerth & Pattberg (2006) explicam que a governança global concebe a política mundial como um sistema de múltiplos níveis no qual processos políticos locais, nacionais, regionais e globais estão ligados de forma inseparável. Os diferentes níveis de política e a forma de interligação entre eles é interesse particular dos teóricos da governança global. Somente o conceito de governança capturaria, portanto, esta pluralidade de mecanismos que conecta as atividades de diversos atores não estatais e estatais de forma horizontal. Em um ambiente internacional ou transnacional de ausência de autoridade central, a governança engloba negociações intergovernamentais assim como outros processos de coordenação menos formais que envolvem atores públicos e privados.

A produção de normas mínimas de convivência através da racionalidade dos Estados, como proposto pelas teorias tradicionais, não são mais suficientes para pensar a ordem internacional. Tampouco o é a ideia de governança associada à noção de governabilidade no sentido de produção de regras que garantam a estabilidade política e criem condições para organização da ação coletiva. A ordem passa a ser pensada como uma “ordem em progresso” em que se dá a identificação de pontos de harmonia que favoreçam a convivência internacional e a criação de normas mais justas. Deste modo, a agenda da governança global lidaria com os impactos dos processos de globalização, promovendo mudanças qualitativas nos estudos das Relações Internacionais e novas oportunidades de ação política. A governança global não é somente governabilidade, mas a busca de soluções integradas e a estruturação de um programa de ação política que assegure a participação dos cidadãos em vários níveis. Assim, a agenda normativa promove uma reconceitualização da ordem internacional, promovendo a necessidade de concepções solidaristas e de esquemas mais extensivos de cooperação, ampliando o leque de ambições normativas não estatais - bem como o prolongamento das fronteiras morais do Estado, como proposto por Linklater (1998). A sociedade civil torna-se uma nova arena de ação política, as instituições internacionais espaços de consenso e o ambiente da governança global um de compartilhamento da noção de bem comum global. Ainda assim, esta agenda maximalista não contempla as maneiras de se lidar com a ameaça terrorista, e continua ignorando as ameaças representadas pela sociedade civil transnacional.

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De acordo com Held (2004), a política cosmopolita não chama pela diminuição do poder estatal per se, mas busca entrincheirar e desenvolver instituições políticas nos níveis regionais e globais como um suplemento necessário àquelas no âmbito do Estado. Assim, Held, ao contrário de eliminar a significância contínua dos Estados democráticos, pede por camadas adicionais de governança democrática para endereçar questões globais mais amplas. Essas camadas de governança estariam aliadas a uma noção de cidadania em múltiplos níveis e dimensões, baseada não na filiação exclusiva a uma comunidade territorial, mas a regras e princípios universais em torno da democracia, da liberdade, da igualdade de oportunidade participativa e dos Direitos Humanos.

Para Hurrell (1999), mais receoso, apesar da densa e integrada rede de instituições e práticas que estabeleceram na sociedade internacional um compartilhar de entendimentos e expectativas sociais sobre justiça e injustiça global, há também graves deformidades nas instituições sociais internacionais devido à disparidade de poder no cenário mundial. A governança global depende do estabelecimento de consenso em relação aos procedimentos, ou seja, o acordo entre Estados e outros grupos políticos sobre a estrutura de regras e instituições internacionais através das quais os choques de interesses e conflitos de valores possam ser negociados, por meio da qual se atinja a acomodação - e o unilateralismo dos poderosos seja ‘domado’. Assim, argumenta Hurrell, é somente nestas bases que a sociedade internacional “poderá estar capacitada para buscar, de modo sustentável, um consenso substantivo de valores e uma convergência em relação a um conjunto de valores morais e princípios de justiça compartilhados.” (Hurrell, 1999: 75).

É preocupação central da governança global a emergência de novas esferas de autoridade independentemente das nações estatais soberanas, além da emergência de autoridades privadas com novos mecanismos de governabilidade que diferem tanto da tomada de decisão doméstica hierárquica como da não hierárquica barganha interestatal. De modo que seria preocupação fundamental destes teóricos da governança global o fenômeno da aquisição de autoridade e de capacidade decisória por atores não estatais e supra estatais – incluindo aqui uma miríade de atores como regimes privados entre empresas; redes transnacionais de advocacia que exercem autoridade moral sobre temas como biodiversidade e Direitos Humanos; e, finalmente, as autoridades ilícitas, como a máfia e os exércitos mercenários. De acordo com Ruggie (2004), o efeito de um novo domínio público global não é o de substituição dos Estados nacionais, mas de incorporação de novos sistemas de governança a um arcabouço global de capacidade social antes inexistente. De acordo com Rosenau & Czempiel (2000), a autoridade sofre um contínuo deslocamento, tanto no sentido das

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BJIR, Marília, v. 5, n. 3, p. 643-669, set/dez. 2016 entidades supranacionais como no sentido dos grupos subnacionais, e a segurança internacional está cada vez mais intimamente ligada à possibilidade de governança na ausência de um governo centralizado e sob novas ameaças transnacionais.

Muito mais do que excluir o Estado nacional e o paradigma centrado no Estado, trata-se de investigar a contaminação das relações interestatais pelas relações transnacionais. Os Estados têm sido e permanecem os atores mais importantes na política mundial, mas o paradigma Estado-centrado vem se tornando cada vez mais inadequado para análise do cenário internacional. Não se pode ignorar importantes atores não governamentais que alocam valor e que usam meios similares àqueles utilizados pelos governos para atingirem seus objetivos. Isto porque a política mundial trata, fundamentalmente, de atores que conscientemente empregam recursos – tanto materiais quanto simbólicos, incluindo a ameaça ou exercício da punição - para induzir outros atores a agirem de forma diferente do que agiriam de outro modo. Conforme descrevem Nye & Keohane (1971), trata-se de um ator expressivo, relativamente autônomo, individual ou reunido em torno de uma organização, que controla recursos substantivos e participa nas relações políticas com outros atores atravessando as linhas dos Estados. E aqui se incluem os atores ilícitos, cuja racionalidade política é patente. Qualquer organização transnacional que empregue técnicas como boicotes econômicos, sequestros de voos ou excomunhão religiosa para alterar o comportamento de outro ator age politicamente, gerando efeitos importantes e penetrantes.

Kacowicz (2012) também escreve sobre a realocação da autoridade política fora dos Estados nacionais e das Organizações Internacionais na direção de atores privados e não estatais, incluindo corporações multinacionais e organizações não governamentais como participantes e componentes de uma emergente sociedade civil transnacional. Os benefícios de se incluir novas formas de autoridade na análise das Relações Internacionais estão relacionados à possibilidade de tratar de questões até então negligenciadas pelas escolas realistas e liberais-institucionalistas. Além disso, como programa político, a governança

global possibilita o debate sobre como lidar com a “perda de controle estatal”2, como

equilibrar o descontrolado processo de globalização e como endereçar problemas verdadeiramente globais, sugerindo propostas concretas de reforma e de cooperação.

2 Para Nye & Keohane (1971) a questão do controle governamental é muito mais uma temática para investigação do que uma afirmação efetiva à priori que declare a perda de controle do Estado. De fato, os Estados estão se tornando mais ambiciosos e o impacto das relações transnacionais criam uma “lacuna de controle” entre as aspirações de controle pelo Estado e as capacidades de alcançá-lo. Este contexto, frequentemente, força os Estados a reagirem ou a se adaptarem às organizações e interações transnacionais, sendo levados algumas vezes a rivalizar com forças transnacionais relativamente autônomas e com novas formas de governança.

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Fundamentalmente, trata-se de como lidar com estas ameaças. E, neste ambiente, ainda que os teóricos globais procurem identificar e dar visibilidade à emergência de diferentes esferas de autoridades privadas não estatais e à ampla variedade de mecanismos de governança, as novas formas de autoridade ilícitas permanecem detendo menor visibilidade.

De acordo com Dingwerth & Pattberg (2006: 197), a governança global não é inter-nacional, tampouco Estado centrada, já que na emergente ordem global - essencialmente multipolar - o poder está dividido em múltiplas esferas de autoridade. O conceito de governança global vai além da abordagem Estado centrada e reconhece a emergência de esferas autônomas de autoridade para além da dicotomia nacional/internacional, focando nas complexas inter-relações entre os diferentes atores societários e instituições governamentais e nas novas modalidades de governança. Deste modo, a governança global não seria a governança internacional adicionada de atores transnacionais; já não haveria hierarquia a priori e cada uma destas esferas possuiria status ontológico equivalente. Tampouco a governança global é centrada na existência de atores específicos, mas na existência de normas, regras e padrões que estruturam e constrangem a atividade social. A unidade central de análise seria, portanto, a condição para a atividade social, normas e regras, e não atores e a relação entre eles – resultando tão somente em complexidade, e não parcimônia. Nos termos de Kacowicz (2012: 696), governança global configura um novo mundo de atores, redes, alianças, autoridades e identidades sobrepostas - confusas, mas vitais. Na era pós Guerra Fria de globalização econômica e de problemas globais, deve-se compreender o conjunto de práticas políticas, atores e instituições que melhoram a coordenação, fornecem bens públicos globais, competem e coexistem com os Estados nações - ainda vívidos e vibrantes - na promoção de respostas políticas às demandas da globalização.

Kacowicz (2012), ao alocar a governança global em um contínuo que vai da ordem internacional ao governo mundial, alerta para as importantes temáticas trabalhadas pelos teóricos da governança global e ainda não superadas. Em primeiro lugar, a democratização da governança global e a superação do inerente déficit democrático, tornando a governança global responsiva (para quem?). E, em segundo lugar, a questão da promoção da justiça distributiva global que supere a pobreza e a desigualdade, enquanto se mantém a ordem. Neste sentido, o desafio maior dos democratas cosmopolitas é a expansão da democracia como forma de governança global. Ou, nas palavras de Archibugi (2004: 438), “globalizar a democracia enquanto, ao mesmo tempo, se democratiza a globalização”, por meio de recomendações tais como: aumento de poder decisório para Estados mais afetados por determinadas questões, participação compartilhada, aumento da legitimidade institucional, da

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BJIR, Marília, v. 5, n. 3, p. 643-669, set/dez. 2016 transparência e da responsabilidade democrática. Sua proposição é de uma relação mais funcional e menos hierárquica entre os diferentes níveis de governança. Já para Held (2004), é preciso restaurar a simetria e a congruência entre fazedores e tomadores de decisão, entrincheirando o princípio de equivalência de forma consistente com a inclusividade e a subsidiariedade, dentro de um quadro de governança global fortalecida e de resolução dos problemas globais.

Organizações da sociedade civil pressionam governos e empresas a aderirem a uma maior responsabilidade social global, de modo que os atores não estatais se tornaram peças-chave da governança global, sendo em alguns casos capazes de promoverem mudanças significativas, como argumenta Ruggie (2004). Apesar do autor considerar uma miríade de motivações como valores universais, ganância, considerações de lucro, eficiência ou busca da salvação por atores não estatais, ainda assim, o foco parece excessivamente centrado nas expectativas relativas à responsabilização social global de empresas por novos e emergentes princípios organizadores e lícitos, para além do Estado territorial. Concedendo, portanto, menor importância à relevância e capacidade dos atores ilícitos em influenciar decisões, além de ignorar seu próprio papel de questionamento da atuação estatal e de suas medidas contra grupos ilícitos, como é o caso da política antiterror.

O foco destas análises está em como novos arranjos de governança global cruzam a cena política transnacional, propiciando tratar de questões direcionadas às implicações das transformações da governança para conceitos chave como autoridade, soberania e legitimidade democrática. Somente incluindo atores não estatais ilícitos na agenda de governança global é que será possível endereçar estas questões de forma apropriada e buscar formas de resolução do terrorismo, por exemplo, que não envolvam as tão controversas invasões militares e ataques com drones. Recomenda-se, igualmente, evitar o foco excessivo nos bens públicos globais como necessariamente benéficos, por exemplo, e como atenuadores das crises financeiras, das desigualdades políticas e socioeconômicas, ou ainda como auxílio ao desenvolvimento como proposto por Carbone (2007).

Mesmo Zürn (2004), que trata especificamente das resistências transnacionais e nacionais em sua tentativa de promoção de maior justiça internacional e democratização nacional, concentra sua análise na melhoria da justiça. A perda do poder decisório dos Estados e em resposta à intrusão de atores externos ou do multilateralismo executivo das instituições faz florescer diversos grupos de resistência no âmbito da chamada “desnacionalização reflexiva”. Trata-se da politização de determinados grupos preocupados

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com questões internacionais e seu impacto que substituiriam o multilateralismo executivo, em crise, por um multilateralismo apoiado socialmente. Apesar da preocupação de Zürn com tais questões, o autor, da mesma forma que Scholte (2004), concentra as respostas aos desafios da governança global em instrumentos de monitoramento, accountability, controle público, transparência e prestação de contas. Ambos preocupam-se fundamentalmente com o aumento do controle público feito por atores não estatais e membros da sociedade civil das instituições da governança global, sem desenvolver sobre os malefícios ou concorrência representada pelos atores não estatais ilícitos. Ao se advogar a inclusão de atores marginalizados e dar vozes às minorias, por exemplo, o eixo do argumento está sempre centrado na ampliação da justiça, da inclusão, do humanitarismo e da diversidade, sempre em termos que flertam com a benevolência e o cooperativismo. Sem, em nenhum destes casos, propor uma agenda de diálogo ou de entendimento mais pormenorizado das causas mais profundas para ascensão e poder de cooptação de atores não estatais ilícitos.

No que tange ao déficit de legitimidade, é consenso entre boa parte dos autores mais propositivos da governança global - como Nanz & Steffef (2004) e Held (2004) - a existência de um ambiente excludente e pouco transparente nas associações políticas internacionais, que deixa de lado tanto os cidadãos quanto os países com menos recursos. Os autores propõem a realização de uma esfera pública descentralizada, um espaço público para deliberação coletiva entre sociedade civil e representantes dos governos. A proposta, nos moldes do resgate da ideia de parlamento mundial por Danielle Archibugi (2004), visa debater temas que geram impactos globais, aumentar a governança democrática e a participação nas deliberações – especialmente daqueles significativamente afetados por um bem ou por um mal público e que não fazem parte dos canais institucionais para tomada de decisão (Held, 2004 ; Archibugi, 2004).

De acordo com Nye & Keohane (1971), no ambiente de política entre Estados, diversas relações intersociais com significativa importância política acontecem sem que haja controle governamental. Estas entidades não estatais são capazes de, por vezes, afetarem o curso dos eventos internacionais, tornando-se verdadeiramente atores na arena internacional e competidores do Estado-nação. Estes atores identificam seus próprios interesses com órgãos sociais que não o Estado-nação. É objetivo de sua análise, portanto, centrar os estudos nas relações que transpassam os Estados – contatos, coalizões e interações que atravessam as fronteiras estatais e que não são controlados pelos órgãos de política externa dos governos – e seus efeitos recíprocos sobre o sistema de Estados. De acordo com os autores Nye & Keohane

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BJIR, Marília, v. 5, n. 3, p. 643-669, set/dez. 2016 (1971), as relações transnacionais aumentam a sensibilidade das sociedades umas com as outras e alteram, por conseguinte, os relacionamentos entre os governos.

É dentro desta perspectiva que o estudo do terrorismo deve ser proposto, como independente dos Estados nacionais, mas em constante diálogo e impacto sobre os mesmos. O terrorismo é uma das formas de emergência de atores autônomos com políticas externas privadas que podem deliberadamente se opor ou colidir com a política estatal. Neste sentido, coloca-se em debate em qual extensão o Estado nacional sofre de “perda de controle” como resultado das relações transnacionais. A emergência destes atores autônomos também pode alterar as percepções e opiniões sobre a realidade dentro das sociedades nacionais, como é o caso da propagação do terror e do aumento da percepção de ameaça.

O Lugar do Terrorismo na Agenda Normativa

Segundo Archibugi (2004), os pressupostos cosmopolitas identificam a erosão da autonomia política estatal através da globalização e a consequente redução da eficácia democrática baseada exclusivamente no Estado nacional. Postulam uma conexão progressiva das dimensões interna e externa, encerrando a dicotomia tradicional doméstico versus internacional. Os teóricos cosmopolitas contemplam o surgimento de movimentos sociais engajados em temas geográfica e culturalmente distantes de seu território nacional, além da emersão de identidades diversas acompanhadas por múltiplas formas e camadas de governança. Neste sentido, por exemplo, comunidades acionistas de determinados problemas não necessariamente coincidem com as fronteiras territoriais estatais e, frequentemente, faltam meios necessários para influenciar as escolhas políticas que afetam diretamente seus destinos.

Conforme visto acima, em sua reconceitualização da ordem internacional, a agenda normativa promove a necessidade de concepções solidaristas e de esquemas mais extensivos de cooperação, expandindo as ambições normativas e compartilhando da noção de bem comum global (Hurrell, 1999). A sociedade civil torna-se uma nova arena de ação política e as instituições internacionais espaços de consenso, refletindo mudanças qualitativas nos estudos das Relações Internacionais e denotando um programa de ação política, que promove a governança integrada e complementar em múltiplos níveis.

Após o fim da Guerra Fria, observa-se uma nova agenda de segurança fruto da internacionalização de temas, do surgimento de novas ameaças e de novos atores demandantes no sistema internacional (Buzan, 1991). Em um contexto internacional de

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ascensão de novos atores não estatais que influem na governabilidade global (Rosenau & Czempiel, 2000), registra-se uma ampliação no conceito de segurança (Buzan, 2001 & Cepik, 2001) e a presença de novas ameaças à segurança internacional, além de novas percepções de insegurança. O poder dos Estados nacionais é limitado, e novos atores, temas e agendas ascendem - o terrorismo sendo uma das ameaças mais latentes.

É neste contexto pós Guerra Fria e de expansão e ampliação no conceito de segurança que traçamos nossa análise sobre a talvez mais temida ameaça transnacional: o terrorismo. Não se trata propriamente de novas agendas no pós Guerra Fria, novas ameaças ou novas formas de guerra, agora de caráter étnico e religioso. Trata-se, na realidade, do desenvolvimento de temas que tomaram centralidade no cenário internacional, vez que com o fim da bipolaridade estava também sepultada a classificação de todos os conflitos globais na chave da Guerra Fria, da ameaça vermelha e da aliança por blocos ideológicos. Não são novos tipo de guerra que agora ameaçam a segurança, guerras religiosas e étnicas do século XXI. Trata-se, na realidade, dos mesmos temas e conflitos de poder reformulados de novas maneiras. O terrorismo é histórico e possui motivações de ordem estrutural e política, que são na verdade mais profundas do que superficiais (como sugerem, erroneamente, as análises meramente centradas nos aspectos étnicos e religiosos desta ameaça).

Historicamente, a ascensão do terror não estatal associado a uma atividade política consciente – para propaganda mais que por razões reais de desafio ao Estado – data principalmente de um século atrás, presente especialmente em movimentos nacionalistas, como nos casos da Irlanda e da Armênia, e do movimento anarquista russo. Após 1945, o chamado ‘terrorismo de baixo’ foi comumente associado às lutas do terceiro mundo contra o poder colonial. Este, que considerado extremamente poderoso para ser confrontado exclusivamente no campo de batalha, foi alvo de ataques que exploravam taticamente sua vulnerabilidade política doméstica. Foram os casos da Frente de Libertação Nacional (FLN) na Argélia, do Exército Republicano Irlandês (IRA) na Irlanda, da Organização Militar Nacional na Terra de Israel (IZL) e do Pátria Basca e Liberdade, o (ETA) basco (Carneiro Maia, 2013b).

Foi somente no final dos anos 1960 que os principais incidentes terroristas migraram para o Oriente Médio, como no caso das guerrilhas na Palestina, Irã e Eritréia, que fizeram uso de ataque a civis, sequestro de aviões, de políticos e de cidadãos comuns. É importante observar que estes grupos eram inspirados por uma ideologia secular, frequentemente radical ou autoproclamada Marxista-Leninista, conforme alerta Halliday (2004). De acordo com Martha Crenshaw (2007), a tendência atual do terrorismo suicida e de ataques com bombas

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teve início no Líbano com o Hezbollah nos anos 19803 em meados da Guerra Civil, tendo se

espalhado posteriormente para regiões que hospedavam conflitos civis como Sri Lanka, áreas curdas da Turquia e Chechênia. Os ataques palestinos a civis israelenses nos anos 1990 e 2000 ampliaram a visibilidade desta ameaça. A adoção desta tática pela Al-Qaeda forneceu dimensão transnacional ao fenômeno, que se espalhou em alcance geográfico e numérico. Atualmente, o auto proclamado Estado Islâmico é o grupo terrorista com maior visibilidade

transnacional e com maior capilaridade entre diferentes países.4

Ainda que seja verdade que a agenda normativa maximalista reconheça a existência e impacto de atores não estatais ilícitos, a presença de comunidades afetadas pelos ‘males públicos’ e a necessidade de sua inclusão no processo decisório, o tratamento do terrorismo como ator não estatal ilícito parece não ter avançado de forma suficiente. Conforme esclarecem Hurrell & Woods (1995), a sociedade civil transnacional fornece um prospecto atrativo e visto como capacitante e empoderador por grupos independentes e auto-organizados que atuam contra os abusos do poder estatal na arena internacional. A ideia de sociedade civil tem sido vista pela tradição liberal (criticada pelos autores) como algo definido em oposição ao Estado e valioso precisamente na medida em que se configura como um mecanismo de monitoramento do poder do Estado. Neste sentido, as organizações não governamentais são vistas como palcos que dão voz aos mais fracos e vulneráveis, aos excluídos e não membros de um Estado particular, ou àqueles que se localizam entre as rachaduras do sistema estatal - como refugiados, indígenas e gerações futuras. Mas o que é ignorado pela tradição liberal, defendem Hurrell e Woods (1995), é que a sociedade civil transnacional é em si uma arena de poder, e as relações entre a sociedade civil transnacional não são necessariamente mais equitativas que as relações entre os Estados, podendo reforçar ou criar novas desigualdades.

A sociedade civil transnacional é essencialmente pluralista e reúne uma ampla variedade de movimentos sociais, associações políticas formais, forças econômicas e grupos de interesse. Suas forças não puxam invariavelmente em uma mesma direção, sendo que muitas ações e atores da sociedade civil transnacional são profundamente iliberais e destrutivos – envolvendo a privatização da violência, o crime transnacional, o tráfico privado de armas, o crime e a violência social. A sociedade civil transnacional pode promover tanto ideias antiliberais quanto ideias de justiça e de igualdade, estas últimas largamente exploradas pelos teóricos cosmopolitas. É preciso, portanto, que nos esquivemos do perigo representado

3 Em seu estudo sobre atentados suicidas no Líbano entre 1983 e 1986, Merari (1998) demonstra que os combatentes se identificavam com organizações seculares mais frequentemente do que com motivos religiosos. 4 Sobre as quatro ondas de terrorismo revolucionário: anarquista russa em 1880, anticolonial nos anos 1920, nova esquerda nos anos 1960 e religiosa a partir de 1979, ver Rapoport (2002).

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pela visão benigna da sociedade civil transnacional, que enxerga nas forças sociais emergentes um contrapeso ao sistema liberal capitalista e às inequidades do sistema estatal. Esta visão dicotômica não é produtiva. Conforme escrevem Hurrell & Woods (1995),

“fundamentalistas religiosos e Rupert Murdoch5 são, afinal de contas, tão parte da sociedade

civil transnacional como a Anistia Internacional ou o Greenpeace.” (Hurrell & Woods, 1995: 467).

Muitos grupos da sociedade civil transnacional são produto – direto ou indireto – da ação estatal, e não podem ser compreendidos fora de sua relação com os Estados. A política da sociedade civil transnacional concerne fundamentalmente à forma através da qual determinados grupos emergem e são legitimados – por governos, instituições ou outras associações. E, por conseguinte, o papel de proeminência detido por determinadas instituições e grupos e sua relação com o poder estatal. Também é importante ressaltar que a sociedade civil transnacional deve ser vista como arena de contestação e de fragmentação, não se podendo ignorar a desigual voz política e influência concedida as diferentes organizações não governamentais entre Norte e Sul globais. Igualmente, não se deve ignorar o grave problema de accountability presente neste contexto, sempre negligenciado, na medida em que se desconhece qualquer agrupamento amplo ou processo político a quem as ONGs respondam.

Hurrell & Woods (1995) argumentam que a globalização é profundamente afetada pelas desigualdades entre os Estados, pelas regiões e pelos atores não estatais. As interpretações chamadas de liberais concedem pouca importância a este fato e fornecem uma visão otimista da globalização, ignorando quatro importantes problemas. Em primeiro lugar, a capacidade dos Estados de suportar os custos de ajuste à globalização e a importância da força

doméstica dos governos para adaptação e extração de benefícios da globalização6. Em

segundo lugar, a necessidade de reforma institucional para gerenciamento da globalização, na

5 Keith Rupert Murdoch, nascido em 1931 em Melbourne, é um empresário australo-americano acionista majoritário da News Corporation, um dos maiores grupos midiáticos do mundo. Em 2015, foi classificado como a 32ª pessoa mais poderosa do mundo pela revista Forbes. Murdoch é dono de um dos maiores conglomerados de mídia mundiais, envolvendo estúdios de cinema, canais de televisão paga como a FOX, operadoras por assinatura SKY e DirectTV, o site de relacionamentos MySpace e o Jornal “New York Post”, dentre outros. 6 Para Hurrell & Woods (1995), a globalização é um processo cuja natureza e impacto são vastamente influenciados pelas desigualdades entre os Estados, ao mesmo tempo em que produz profundas consequências sobre a igualdade entre eles no futuro. A perda de autonomia associada à globalização recai sobre os Estados de forma diversa. Estados mais poderosos são mais capazes de se insularem, adaptando estruturas domésticas aos novos constrangimentos (e oportunidades), dominando os regimes através dos quais a interdependência é gerenciada e competindo de forma mais efetiva dentro dos mercados globais, ou desenvolvendo estruturas estatais fortes o suficiente para controlar a interdependência. Estes Estados capazes de resistir à internacionalização emergirão como mais poderosos que aqueles incapazes de fazê-lo (Hurrell & Woods, 1995: 469-470).

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BJIR, Marília, v. 5, n. 3, p. 643-669, set/dez. 2016 medida em que as instituições internacionais não são neutras e solucionadoras de problemas, elas também são arenas de poder e de influência, geralmente com o mais forte formulando as regras. Em terceiro lugar, a globalização não gerará enredamento progressivo como defendem os otimistas, as desigualdades existentes indicam que a globalização gerará cada vez maior divisão entre os Estados centrais e periféricos. E, finalmente, a complexidade e ambiguidade da emergente sociedade civil transnacional.

De acordo com os teóricos liberais, a globalização criaria uma sociedade civil transnacional e nela floresceria o crescimento de associações econômicas, políticas e sociais não estatais, gerando um entusiasmo de empoderamento das organizações não governamentais e afins. Nas palavras de Hurrell & Woods, esta tese, “que pode ser atrativa aos apoiadores do Greenpeace e da Anistia Internacional, negligencia e ignora que as atividades de outros atores não estatais – como de grupos terroristas – são igualmente facilitadas pela globalização.” (Hurrell & Woods, 1995: 469). Como resultado, os autores condenam o empoderamento acrítico de atores não estatais. Primeiro, por sofrerem de déficit de legitimidade democrática e por não serem nem representativos nem politicamente accountable. E, em segundo lugar, porque a ascensão de tais grupos - como os fundamentalistas islâmicos no Oriente Médio - pode rapidamente corroer a ordem e a estabilidade política de governos frágeis e tênues, porém eleitos.

Como Compreender o Terrorismo

De acordo com Büthe (2004), a literatura de Relações Internacionais já ultrapassou debates anteriores sobre se os atores não estatais importavam, mudando seu foco analítico para de que forma e como eles importam. Contudo, a própria noção de atores não estatais permanece conceitualmente problemática. Ela é uma categoria residual, compreendendo qualquer ator que não seja um Estado, incluindo desde as já citadas organizações

governamentais internacionais, corporações multinacionais e organizações não

governamentais, até as redes internacionais de terrorismo e de crime organizado. Estes atores, geralmente coletivos, são socialmente construídos, argumenta Büthe, interagem com outros atores não estatais e também com governos, e operam na busca de lucro ou fornecem bens públicos. Através deste comportamento podem apoiar ou debilitar o sistema estatal. As novas formas de jurisdição privada na política internacional – aquelas nem estatais, nem baseadas no Estado, nem criadas pelo Estado – detêm autoridade na medida em que são formas ou expressões de poder institucionalizadas. Estas são legítimas no sentido de que existe alguma

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forma de consenso normativo não coagido ou reconhecimento da autoridade por parte daqueles que regula ou governa (Reinalda, 2001, Apud Büthe, 2004: 281-282).

Para Nye & Keohane (1971), está claro que o Estado-nação não será facilmente substituível com a proliferação dos atores não estatais. E isto é verdadeiro também para os atores não estatais ilícitos. De acordo com Bowyer Bell (1971), mesmo grupos revolucionários transnacionais geralmente buscam o poder dentro de um Estado – apesar de angariarem apoio de fora. Para o autor, movimentos revolucionários são geralmente transnacionais por necessidade, não por desenho próprio. Apesar do apoio externo e visibilidade internacional, os prospectos de uma revolução verdadeiramente transnacional não parecem claros. Isto porque, nem a lealdade nacional nem as ambições particulares dos vários patrocinadores revolucionários parecem estar em declínio. Apesar de ter sido escrito nos inícios dos anos 1970, o artigo é de extrema atualidade, ao identificar a variedade de movimentos revolucionários competindo pelos louros, sua insistência em atrelarem sua luta à bandeira supranacional e a permanência de tantos regimes ineficientes e brutais. É possível fazer um paralelo aqui com o Estado Islâmico, que já contabiliza significativos ganhos militares na Síria e no Iraque e promove ataques terroristas no Levante, no Golfo, no norte da África e, em menor escala, no Ocidente. O grupo empunha uma bandeira supostamente transnacional e pan-islâmica (mas exclusivamente sunita) e tem suas origens no desmantelamento do Estado Iraquiano após a queda de Saddam Hussein em 2003 e no vácuo de poder instaurado na Síria após o início de sua guerra civil em 2011 (Calfat, 2015). Nas palavras de Bell:

Até mesmo os movimentos mais militantes na vanguarda da revolução mundial, apesar de toda sua parafernália ideológica antinacional, estão quase sempre estabelecidos a nível nacional e atuam como regimes nacionais alternativos. Na melhor das hipóteses, a revolução em um país pode ser aliada na prática a revoluções semelhantes, mas raramente está submersa em um movimento transnacional totalmente integrado, universal. O resultado é que o revolucionário opera quase que inteiramente como um ator dentro de seu quadro nacional ou como um exilado do poder nacional. Sua organização, um contra-Estado, aspira alcançar o controle nacional de facto a partir de um status auto-proclamado de jure. Sua lealdade, preocupações e atividades organizacionais são direcionadas para adquirir poder em uma arena nacional específica. Seu movimento pode ser ilegal, mas seu papel é essencialmente similar à de qualquer ator nacional que vise proporcionar uma estrutura ou regime de poder alternativo. Como o regime, ele pode buscar aliados fora do Estado-nação, mas para fins nacionais. Mesmo que seu movimento seja dedicado à eliminação do "nacionalismo" como um obstáculo para uma sociedade mundial maior, ele não necessariamente vê qualquer contradição imediata entre seus papéis nacionais e revolucionários, não mais do que faz o padre que atende às exigências tanto de César quanto da Igreja. Assim, não há realmente qualquer conflito entre as aspirações "nacionais", que absorvem quase toda sua

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BJIR, Marília, v. 5, n. 3, p. 643-669, set/dez. 2016 atenção, e seus objetivos revolucionários – já que os últimos serão parcialmente obtidos como resultado das primeiras. (Bell, 1971: 503-504).7

Também conforme Juergensmeyer (2002, apud Büthe, 2004), embora a maioria dos atos terroristas religiosamente motivados seja local, os atores não estatais que os promovem frequentemente dependem de redes transnacionais de simpatizantes para financiamento e legitimação de seu apoio moral. Muitos também possuem uma agenda política comum, motivada por um "medo da globalização" combinado ao "medo da América", uma vez que veem os “males da cultura pop secular moderna” como intimamente ligados à dominação militar, econômica e cultural norte-americana. Contudo, argumenta Juergensmeyer, é sempre uma única tradição religiosa particular que sustenta a autoridade dentro de cada uma das redes religiosas. Por isso, esses grupos muitas vezes têm laços através das fronteiras, mas raramente entre religiões, mesmo que diferentes grupos religiosos violentos muitas vezes compartilhem um mesmo inimigo comum (Juergensmeyer, 2002: 147).

Ainda que a ausência de movimentos verdadeiramente transnacionais possa ser questionada, estas estruturas de poder dialogam com os grupos nacionais, contestam e influenciam as políticas governamentais. As relações transnacionais e os atores não estatais detêm a capacidade de constranger os governos e de tornar suas políticas mais cooperativas em relação aos seus próprios interesses – para o bem ou para o mal. De acordo com Nye & Keohane (1971), as organizações transnacionais são atores autônomos ou quase-autônomos na política mundial, mantendo políticas externas privadas – e, em alguns casos, detendo enormes recursos. As organizações transnacionais autônomas são potenciais e algumas vezes reais oponentes das políticas governamentais em uma ampla variedade de áreas, inclusive na luta por influência política. Os inter-relacionamentos entre Estados e organizações transnacionais são complexos e frequentemente recíprocos, de modo que a existência destas últimas não pode ser desconectada do Estado nacional. O argumento também é verdadeiro se

7 Tradução livre nossa. No original: “Even the most militant movements in the vanguard of world revolution,

despite all their paraphernalia of antinational ideology, are nearly always established on a national basis and act as alternative national regimes. At best, revolution in one country may be actually allied with similar revolutions, but rarely is it submerged in a fully integrated, universal transnational movement. The result is that the revolutionary operates almost entirely as an actor within his national framework or as an exile from national power. His organization, a counterstate, aspires to achieve de facto national control from a self-proclaimed de jure status. His loyalties, concerns, and organizational activities are directed toward acquiring power in a specific national arena. His movement may be illegal, but his role is essentially similar to that of any national actor that seeks to provide an alternative power structure or regime. Like the regime he may seek allies outside the nation-state but for national purposes. Even if his movement is dedicated to the elimination of "nationalism" as an obstacle to a greater world society, he does not necessarily see any immediate contradiction between his national and revolutionary roles any more than does the priest who answers the demands of both Caesar and the church. Thus, there is not really any conflict between the "national" aspirations that absorb nearly all his attention and his revolutionary goals since the latter will be achieved partly as a result of the former.” (Bell,

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considerarmos as demandas da ampla maioria dos grupos terroristas – sobretudo aqueles que combatem presenças militares de potências externas, conforme escreve Pape (2003). E também se considerarmos o papel sendo desempenhado pelo próprio Estado Islâmico nas regiões em que controla, sendo considerado um proto ou pseudo Estado que administra serviços, arrecadações e infraestrutura como presente em Cronin (2015) e Nasser (2014).

É central para a agenda de grupos religiosos radicais o questionamento ou o desafio à autoridade estatal como único poder legítimo. Juergensmeyer (2002), por exemplo, concentra sua análise na agenda política (racional) dos grupos terroristas em seu desafio, contestação e enfraquecimento da autoridade estatal, conferindo legitimidade e justificativa ética para suas próprias ações violentas. Deste modo contestam, consequentemente, o monopólio do uso legítimo da força pelos Estados nacionais. Nas palavras do autor:

Apesar de muitos grupos religiosos [violentos] terem visões de uma ordem global, "um pouco além da moldura da história mortal", eles raramente têm objetivos concretos proclamados para a construção da autoridade. Ao contrário, suas agendas políticas consistem principalmente em minar e desafiar a autoridade, ainda que não de forma aleatória ou sem rumo. O status religiosamente derivado dos líderes inspira consentimento e reconhecimento sem coação de seguidores; e crenças religiosas – que são "transcendentes" e independentes de qualquer Estado, e, geralmente, amplamente compartilhadas - fornecem uma justificativa ética para a violência, conferindo-lhe um ar de legitimidade. Ao mesmo tempo, essas ações assaltam o monopólio weberiano do uso legítimo da violência pelo Estado moderno. Ao tornar pública essa motivação religiosa, os grupos minam - mais simbolicamente que efetivamente - a autoridade do Estado, que eles veem como tendo lhes falhado e a tantos outros ao seu redor. (Juergensmeyer de 2002, apud Buthe, 2004: 286).8

É preciso que a análise seja concentrada, portanto, nas modalidades de governança oferecidas através dos movimentos não estatais sociais e religiosos, nos domínios morais e na autoridade privada emanada dos atores ilícitos cujas atividades violam normas legais domésticas ou internacionais. Entendendo, neste sentido, como a modalidade privada de governança e de autoridade difere de outras formas de influência e de poder, por quais razões ela é considerada ilegítima e de que forma questiona as políticas estatais ou as debilitam. Cutler et al. (1999) falam sobre como - sob condições de aumentada complexidade tecnológica, falta de expertise necessária ou amento dos custos para manter ou adquirir esta expertise - o Estado pode não procurar ou não mais estar disposto a fornecer autoridade

8 Tradução livre nossa. No original: “Although many [violent religious groups] have visions of a global order,

“slightly beyond the frame of mortal history,” they rarely have concrete proclaimed goals for the construction of authority. Rather, their political agendas consist mostly of undermining and challenging authority, though not randomly or aimlessly. The religiously derived status of the leaders inspires followers’ uncoerced consent and recognition; and religious beliefs—which are “transcendent” and independent of any state, and usually widely shared—provide an ethical justification for violence, giving it an air of legitimacy. At the same time, these actions assault the Weberian modern state’s monopoly on the legitimate use of violence. In making this religious motivation public, the groups undermine—more symbolically than practically—the authority of the state, which they see as having failed them and many others around them”. (Juergensmeyer, 2002, apud Büthe, 2004: 286).

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BJIR, Marília, v. 5, n. 3, p. 643-669, set/dez. 2016 pública, levando tanto ao vazio quanto à delegação explícita de autoridade aos atores privados. E também em como mudanças ideológicas (o surgimento de ideias econômicas neoliberais sendo seu principal exemplo) podem minar a presunção ou a justificação normativa para a provisão pública de governança, novamente abrindo espaço para a governança privada.

Buthe sugere que talvez haja, contemporaneamente, uma tendência de reversão do fornecimento de bens públicos necessários não mais pelas autoridades públicas, mas pelas privadas, ou que os atores capazes de fornecê-los com mais eficiência se tornaram internacionais, e já não mais coincidem com os limites territoriais dos Estados - caso importante sendo a privatização da segurança e a formação dos exércitos mercenários. Neste sentido, porque não tratar da governança privada ilícita e da autoridade ilegal nestes termos? O vácuo possibilitado pela ausência da governabilidade pública e pela fraqueza estatal – quer seja por questões conjunturais, quer seja ideológicas – também abre espaço para a autoridade de atores não estatais ilícitos que se apropriam destes vazios, propiciando um cenário para sua também existente legitimidade. Ainda que a presença destes grupos possa ser indesejada, viole normas e padrões do Direito Internacional e conteste de forma pouco produtiva a autoridade estatal, ainda assim sua presença reflete uma importante anomia e deve ser endereçada e sanada desta forma. Indo, por conseguinte, além de julgamentos valorativos ou de cunho culturalista, especialmente em se tratando da análise de grupos radicais islâmicos.

Conforme escrevem Hall & Biersteker (2002), a autoridade de grupos lícitos e ilícitos envolve consenso, que pode ser baseado na persuasão, na confiança ou na apatia. A confiança – na expertise de determinados atores privados e a sua utilização deste conhecimento sobre o interesse ‘público’ ou comum - parece ser especialmente importante para o estabelecimento da autoridade moral. E não apenas a apatia, mas muitas vezes a completa impotência do Estado aparece como sustentáculo para qualquer autoridade – muito mais do que o poder coercitivo – que o crime transnacional organizado ou as firmas de segurança privada possam ter adquirido (Juergensmeyer, 2002). Aqui, o mesmo paralelo pode ser feito com grupos terroristas que, apesar de infligirem medo sobre seus alvos, frequentemente gozam de apoio e autoridade moral de seus membros. Eles não são meramente apáticos, mas buscam nestes grupos alternativas para problemas sociais endêmicos, ocupação militar estrangeira e anomia social.

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Há uma clara falta de consenso teórico em torno da definição do terrorismo e ausência de uma fórmula única para explicação das motivações do fenômeno, de modo que se faz necessário um estudo de conjuntura caso a caso e que leve em conta os aspectos mais plurais que estão na raiz deste problema (Crenshaw, 2007). O terrorismo é, sobretudo, um instrumento tático e estratégico, tendo como motivação frequente demandas políticas e de resistência à ocupação militar. O que o desvincula, portanto, de análises puramente religiosas ou que apontem sua irracionalidade (Pape, 2003; Nasser, 2011; Nasser, 2012). Crenshaw (2007) defende que o terrorismo não possui raízes em uma psicopatologia ou fanatismo, sequer está fundamentado em uma única causa exclusiva como privação, crença religiosa ou frustração pessoal. O terrorismo seria uma tática adaptável e controlável que detém valor instrumental para uma organização. Apesar de suas impressões de onipresença, sua popularidade e eficácia são limitadas e pouquíssimos indivíduos tornam-se terroristas suicidas. Conforme também apontado por Juergensmeyer (2002: 142), nos últimos anos o terrorismo religiosamente motivado ocorreu em praticamente todas as partes do mundo e em associação com todas as grandes tradições religiosas, ataques que foram desde bombardeios a clínicas de aborto por extremistas cristãos nos Estados Unidos, ataque com gás tóxico sarin pelo culto religioso Aum Shinrikyo no metrô japonês, até os bombardeios de locais públicos e privados por extremistas muçulmanos na África e na Europa (Büthe, 2004).

Jason Franks (2009) critica a abordagem estatal do terrorismo, ou teoria ortodoxa, como designada e empregada para legitimar a violência utilizada pelo Estado para reforçar sua vontade política, ao mesmo tempo em que deslegitima o uso da violência política por movimentos e organizações opositoras. Ela teria sido criada e empregada para lidar com o terrorismo de uma perspectiva de segurança de Estado, sem nenhuma forma reconhecível de debate quanto às causa-raízes do fenômeno, de modo a legitimar as políticas e ações anti e contraterrorismo aplicadas pelo governo. Elas falham, portanto, em identificar as raízes mais profundas do fenômeno, vez que mantêm uma aproximação do terrorismo a partir de uma perspectiva realista clássica, centrada no Estado e positivista. A teoria crítica dos estudos de conflito, por outro lado, propõe uma aproximação holística, multifacetada e multidimensional do terrorismo, permitindo que o fenômeno seja examinado, explicado e combatido a partir de perspectivas mais amplas e abrangentes.

De acordo com a abordagem crítica presente também em Jackson; Smyth & Gunning (2009), os estudos clássicos falham vez que reforçam uma perspectiva estatal da análise, insistindo na binariedade entre legal e ilegal, entre Estado (uso legítimo da violência) e terrorismo (uso paraestatal e ilegítimo da violência). Os estudos ocidentais dão ênfase

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BJIR, Marília, v. 5, n. 3, p. 643-669, set/dez. 2016 excessiva às formas não estatais de terrorismo e falta investigação sobre o terrorismo de Estado. Embora o conceito de terrorismo ainda seja um assunto bastante disputado e longe de um consenso, é contribuição dos estudos críticos do terrorismo a afirmação de que as ferramentas anteriores são insuficientes para o bom entendimento do fenômeno. A abordagem crítica é multidimensional e trata do fenômeno como conflito, em vários níveis de análise: estatal, não estatal, estrutural, político e individual. A abordagem crítica do terrorismo permite sua compreensão como ferramenta instrumental e estratégica que pode ser aliada a outros recursos e táticas, além de introduzir a possibilidade de análise do terrorismo de Estado, antes ignorado ou legitimado (Franks, 2009).

A perspectiva crítica assume um compromisso com a interdisciplinaridade e com o envolvimento com a pesquisa de disciplinas fora das Relações Internacionais, além de contestar a tendência de reproduzir muitos dos mitos dominantes sobre o terrorismo, incluindo os mitos que o terrorismo constitui uma grave ameaça à segurança internacional e que os terroristas são mentalmente instáveis. De acordo com Jackson (2008), os desafios também incluem a falha em apreciar e refletir sobre a política de atribuição de nomes em relação ao "terrorismo", as consequências político-sociais da investigação do terrorismo para comunidades e indivíduos particulares e a adoção de abordagens que podem ser amplamente chamadas de "resolução de problemas" ao estudo do terror político.

Além de desqualificar abordagens culturalistas que defendem que a violência é inerente a determinados contextos religiosos e culturais, a perspectiva crítica do terrorismo visa também desvincular a noção de terrorista atrelado a um Estado falido (rogue state). A visão dos estudos de conflito reconhece o terrorista como ator não estatal independente, desvinculando a ideia de um proxy agent de um Estado terrorista. (Franks, 2009). Para a teoria crítica existem ameaças políticas e socioeconômicas que galvanizam, estimulam e excitam a identidade de grupo, e, neste sentido, implica-se a existência de um grupo étnico com identidade de grupo detentora de medos relacionados à segurança, necessidades não realizadas, ou uma agenda política e/ou socioeconômica. Também é necessário indicar a influência da ideologia política, especialmente o nacionalismo, como poderoso motivador do terrorismo – além da religião como instrumento catalizador. Esta ideologia política pode mobilizar e, em alguns casos, radicalizar o indivíduo, grupo ou sociedade ameaçado ou privado na medida em que fornece um senso de direção e justificativa para a violência – trata-se de uma ideologia de empoderamento ou de capacitação.

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“O terrorismo envenena onde os conflitos são endêmicos […] onde os Direitos Humanos, a dignidade humana e a vida humana não são protegidos e a impunidade prevalece”, afirmou Ban Ki Moon, atual secretário geral das Nações Unidas, sublinhando a ligação entre segurança, desenvolvimento e bem-estar humano. (TERRORISMO..., 2013). Além da importância de não se associar extremismo com qualquer religião ou cultura, o secretário afirmou que o fortalecimento dos Direitos Humanos e do Estado de Direito é de fundamental importância no combate ao terrorismo, quarto pilar da Estratégia Antiterrorista Global das Nações Unidas 9.

Combinando as abordagens de terrorismo político e de conflito social é possível analisar um fenômeno complexo como o chamado “terrorismo étnico” de uma perspectiva multi nivelada. É necessário, portanto, que se analise a ideologia política empregada para gerar e justificar a violência - como a religião ou o nacionalismo - ao lado das forças sociais que geram estes movimentos. Deste modo, é possível identificar como o terrorismo por vezes é fomentado por grupos étnicos que, sob o disfarce do nacionalismo ou da religião, exploram necessidades não satisfeitas de um grupo étnico de modo a cumprir com suas próprias agendas políticas. Grupos terroristas religiosos são capazes de legitimar sua ação através da construção de percepções de apropriação indevida de recursos estatais e de abusos de poder,

como pode ser percebido com o Boko Haram na Nigéria, por exemplo10. Além de

deslegitimar a ação estatal, estes atores buscam empoderar seu discurso e conceder autoridade à sua causa – e isto é especialmente latente nos grupos religiosos, que fazem uso do discurso piedoso para conferir legitimidade à sua narrativa. Contudo, conforme dito anteriormente, é preciso que a análise dos grupos não estatais ilícitos não seja desvinculada do comportamento dos Estados nacionais e das relações entre estes atores.

Considerações Finais

9 Apesar do combate ao terrorismo ter estado presente na agenda das Nações Unidas durante décadas, foram somente os ataques aos Estados Unidos em 11 de Setembro de 2001 que levaram o Conselho de Segurança a adotar a resolução 1373, que pela primeira vez estabeleceu o Comitê contra o Terrorismo (CTC). Posteriormente em 2006, de forma inédita, todos os Estados Membros da Assembleia Geral entraram em acordo sobre um quadro estratégico comum de luta contra o terrorismo: a Estratégia Antiterrorista Global da ONU. A estratégia é um instrumento único para melhorar os esforços da comunidade internacional para combater o terrorismo em quatro pilares: direcionamento a condições propícias à propagação do terrorismo; prevenção e combate ao terrorismo; capacitação dos Estados-Membros para prevenir e combater o terrorismo e reforçar o papel do sistema das Nações Unidas a este respeito; e assegurar o respeito aos Direitos Humanos para todos e o Estado de Direito como base fundamental para a luta contra o terrorismo. Cf. http://www.un.org/en/counterterrorism/ 10 Para mais informações sobre as origens endêmicas do Boko Haram, as diversas modalidades de insatisfação popular e o amplo descontentamento com o status quo nigeriano e seu Estado secular ineficiente e corrupto, ver Carneiro Maia (2013).

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BJIR, Marília, v. 5, n. 3, p. 643-669, set/dez. 2016 A agenda normativa maximalista em Relações Internacionais acertadamente reconhece a existência e impacto de atores não estatais ilícitos, a presença de comunidades afetadas pelos ‘males públicos’ e a necessidade de sua inclusão no processo decisório. Ainda assim, o tratamento do terrorismo como ator não estatal ilícito parece não ter avançado de forma suficiente no debate da disciplina. A sociedade civil transnacional é em si uma arena de poder, e as relações entre a sociedade civil transnacional não são necessariamente mais equitativas que as relações entre os Estados, podendo reforçar ou criar novas desigualdades. Muitas ações e atores da sociedade civil transnacional são profundamente iliberais e destrutivos, de modo que é preciso estar atento aos perigos representados pela visão benigna da sociedade civil transnacional. É preciso que se proponha uma agenda de diálogo ou de entendimento mais pormenorizado das causas mais profundas para ascensão e poder de cooptação de atores não estatais ilícitos. Somente incluindo atores na agenda de governança global é que será possível endereçar de maneira adequada estes problemas, sobretudo o terrorismo.

É fundamental que a sociedade civil transnacional e a emergência de novos atores não sejam vistos de forma exclusivamente benéfica, como minimizadores dos custos das externalidades da globalização, ampliadores da democracia ou como monitoradores dos Estados nacionais. Muitos dos atores não estatais transnacionais possuem pouco comprometimento com a agenda normativa, liberal e maximalista. Ao contrário, contestam estas mesmas formas de autoridade e o próprio sistema liberal capitalista. E sua ação não pode ser desconsiderada, na medida em que detêm significativos recursos, geram bens [males] públicos globais e promovem impactos relevantes sobre a segurança internacional e sobre aos Estados nacionais – ainda que a percepção de que o terrorismo constitui uma grave ameaça à segurança internacional deva ser relativizada, conforme nos alerta a própria teoria crítica do terrorismo.

O terror como ator não estatal ilícito reflete uma autoridade de poder que detém a capacidade de constranger, contestar e influenciar os governos e suas políticas governamentais. Trata-se, fundamentalmente, de atores agindo na política mundial que conscientemente empregam recursos – tanto materiais quanto simbólicos - para induzir outros atores a agirem de forma diferente do que agiriam de outro modo. Esta estratégia torna patente a racionalidade política destas novas autoridades e sua influência sobre a governabilidade global. É preciso que a análise seja concentrada, portanto, nas modalidades de governança oferecidas através dos movimentos não estatais sociais e religiosos, dos domínios morais e da autoridade privada emanada dos atores ilícitos. Entendendo, por

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