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Transrelativismo dialéctico? : ensaio de aproximação

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Academic year: 2021

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(1)TRANSRELATIVTSMO DIALÉCTICO? ENSAIO DE APROXIMAÇÃO*. I 1. A filosofia poderá ser perspectivada como uma reflexão radical sobre a realidade, sobre o homem e o mundo. Como reflexão radical a filosofia situa-se no plano de uma racionalidade interpretativa e explicativa. Esta racionalidade interpretativa e explicativa implica que as posições assumidas não se. * Neste estudo foram utilizados alguns elementos que constam do artigo A Transrelatividade Dialéctica do Conhecer, publicado na Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo XXXVI, 3-4, 1980, pp. 257-378. No texto usamos sem destrinça os termos «ser», «ser real», ou simplesmente «real». Não ignorando, obviamente, a sua conceptualização diferenciada e diferenciadora no âmbito da ontologia queremos, no entanto, apontar para um conceito abrangente de «real» ou de «realidade». Com efeito o «ser ideal» interfere em termos fácticos nos processos efectivos, tanto teóricos como práticos, como teórico-práticos. De igual modo, sabemos as incidências particularmente relevantes da inserção do imaginário na construção teórica e na realização da prática. O contexto do «reab» e da «realidade» não é um terreno expurgado de todo o ser ideal e pensamental, tanto em termos gnosiológicos e ônticos, como no plano ético e axiológico. Isto não significa, porém, reduzir a sua amplitude constitutiva ao domínio de uma racionalidade ideal ou idealizada, mas acentuar que «ser», «pensar» e «conhecer» se entrecruzam, se interpenetram, se inter-determinam constitutivamentc, se fecundam entre si, numa complexificação crescente que desenha de forma ambígua e envolvente a tecitura sincrónica e a movimentação diacrónica de tudo quanto é, e vai sendo.. — 67.

(2) alicercem em crenças ou meras opiniões, mas se enraízem numa fundamentação que minimamente lhes confira uma justificação consistente. Por consequência, no âmbito da filosofia não terão sentido atitudes dogmáticas, visto que a dogmatização, mesmo terminal, envolverá necessariamente a ausência de uma fundamentação racional aberta. Quer isto dizer que não bastará uma ausência de dogmatização apenas ao nível dos fundamentos principiais e metódicos, mas também no terreno da própria teorização reflexiva. É aliás esta ausência de dogmatização uma das notas que distingue de uma forma essencial a filosofia da ideologia. A ideologia será falsa teorização na medida em que precisamente recorre a pseudo-evidências carentes de uma fundamentação racional necessária e/ou suficiente. Porque apela frequentemente à metáfora interiorizada como verdade incontroversa num discurso entretecido de persuasão, porque recorre muitas vezes ao chamamento de desejos e de motivações conscientes e/ou inconscientes, a ideologia move-se quase sempre num terreno com uma forte indiciação dóxica e emocional que, no entanto, pode ocultar-se sob a «aparência» de uma discursividade que aparece como sendo neutra e objectiva. Mas nem tudo o que aparece «é», como parece ser. Isto não significa pensar que a ideologização e a ideologia ocorram num campo «maléfico», onde se desenham necessariamente fins inconfessáveis ou objectivos empenhados no contexto estrito de uma lógica de interesses imediatos ou mediatos, no âmbito de uma exclusiva contabilidade subterrânea de lucros e perdas. As explicações lineares são sempre simplificadoras e redutoras. As ideologias como sistemas de ideias, dogmatizados, fechados, auto-bloqueados à reflexão crítica e pensante, não são no entanto algo de supérfluo e de totalmente ultrapassável nas sociedades que os produzem e reproduzem. Com efeito, a ideologia como sistema de ideias funciona como força aglutinadora dos grupos sociais e, desse modo, define-se como um dos factores constitutivos mais importantes de uma unidade grupai na contextura dialéctica mais vasta de um conjunto de relações complementares, opostas e contraditórias. 68 —.

(3) Mas para além deste específico processo dialéctico sócio-histórico em que as ideologias se integram, há aquele outro que, de cariz análogo, diz respeito ao relacionamento entre ideologia e filosofia e entre ideologia e ciência (1). Quer dizer que a ideologização da ciência e a ideologização da filosofia se constituem no âmbito de um conjunto de relações dialécticas de oposição com a própria ciência e a própria filosofia, respectivamente. A ciência, por um lado, e a filosofia, por outro, têm de opor-se à sua própria ideologização, parcial ou integral, sob pena de se degradarem na sua constitutividade própria. Além disso, a filosofia terá de efectivar a análise crítica das ideologias mediante a determinação das suas componentes formais e materiais que ente-si se articulam formando uma totalidade. Esta análise crítica permitir-lhe-á não só o entendimento dos processos de ideologização, como também demarcar-se com nitidez e rigor de algo que numa abordagem superficial poderá com ela confundir-se.. (1) A referenciação do termo «ciência», em vez de «ciências», não significa um necessário enfeudamento a uma conceptualização ideológica da ciência como pretende Dominique Lecourt na sua obra Pour une Critique de L'Epistémologie (F. Maspero, Paris, 19712). Admitimos, obviamente, regiões autónomas do conhecimento científico e correlativas histórias diferenciais. Consideramos, porém, que falar em «ciência» não implica, necessariamente, destruir a sua pluralidade objectual e regional, nem a sua conexa multiplicidade metódica, expressas em diferentes e específicos processos de laboração. Para além do trânsito migratório dos conceitos que nessa tramitação vão, muitas vezes, significando significados em si mesmos já transformados pelo seu uso teórico diferenciado, embora inicialmente a sua contextura possa ter sido analógica, ter-se-á de considerar ainda a deslocação teórica dos modelos paradigmáticos, interpretativos e explicativos. Acresce que se a realidade é regionalmente compartimentada em termos metódicos e objectuais ela está, no entanto, aberta à inter-relacionação como o comprovam todas as investigações interdisciplinares. Além disso, a pluridisciplinaridade pressupõe também a ideia de uma perspectivação pluralizada em termos metódicos e gnosiológicos de um mesmo referente ôntico objectualizado, todavia, segundo processos de laboração específicos, metódica e epistemologicamente diferenciados. Aliás, toda a tentativa de classificação das ciências deixaria de ter qualquer espécie de sentido se se tratasse de um conjunto avulso e radicalmente heterogéneo nas suas fundamentais componentes e estruturas, que são precisamente objecto de. — 69.

(4) Isto não significa, porém, que no campo da filosofia e da ciência existam «fundamentos» absolutamente fundamentados e que não haja, por vezes, recorrência a suposições ou pressuposições, não haja necessariamente a interferência de mediações históricas e culturais, posteriormente validadas e explicadas. O que pretende dizer-se é que tais conjuntos principiais, metódicos, ou mediatamente recorrentes, terão de ser explicitados, uma ordenação classificatória. Com efeito, não se ordena o que é radicalmente inordenável, porque radicalmente «alheio», porque absolutamente «outro». De igual modo deixariam de ter sentido os conceitos de corte epistemológico e de obstáculo epistemológico, bem como o estabelecimento de uma diferenciação estrutural entre o discurso pré-científico e o discurso científico. Postas estas considerações quando se utiliza o significante «ciência» não se pretende assinalar uma unicidade estritamente idêntica, muito embora se admita uma unidade possível no âmbito da pluralidade. Ou seja, admite-se a pesquisa de alguns traços comuns entre as diversas ciências, tal como se encontram constituídas, pesquisa epistemológica essa que poderá servir de fundamento conceptual unitário à utilização do significante «ciência». Cumpre esclarecer, todavia, que a unidade neste contexto, como em muitos outros, não significa identidade, nem «mesmidade», mas unidade no âmbito de uma diferenciação pluralizada. Julgamos, aliás, que o conceito de unidade quando elaborado e estruturado num enquadramento dialéctico se relaciona sempre com o conceito de uma unidade de «diferentes», perspectivando-se ainda a unidade no plano de uma unidade de opostos. Por conseguinte, a pesquisa de uma unidade no âmbito da pluralidade não pressupõe uma movimentação num enquadramento teórico necessariamente idealista ou idealizante, como pretende Dominique Lecourt, visto que tal implicação envolveria, por sua vez, a determinação necessariamente idealista ou idealizante de toda a dialéctica. A estas considerações poderemos adiantar ainda que, na obra citada, Dominique Lecourt postula, de forma implícita e, portanto, não expressa, dois pressupostos que não esclarece nem fundamenta. Um deles é o pressuposto nominalista, o outro consiste na consideração de que no plano discursivo tudo quanto não é científico é necessariamente ideológico. Ora esta estrita alternativa além de não ser documentada, nem provada, mas apenas suposta no texto em questão, envolve necessariamente também uma conceptualização unitária da própria cientificidade, ou seja, uma conceptualização do que é científico como oposto a ideológico. Por conseguinte, no próprio contexto teórico em que se movimenta Dominique Lecourt essa conceptualização teria de ser ela mesma ideológica, visto que em seu parecer não há «a ciência», mas ciências várias e diversas que não permitem senão por artifício idealista ou idealizante a referenciação de um campo discursivo passível de uma unidade conceptual. Estas são algumas das dificuldades mais relevantes que o posicionamento de Dominique Lecourt suscita no tocante às questões que acabámos de enunciar.. 70 —.

(5) conhecidos e explicados pela laboração epistemológica e/ou filosófica, sob perna de deslize para o terreno pseudo-transparente da ideologia. Sendo a reflexão filosófica uma reflexão radical ela implicará, por conseguinte, uma necessária abertura e disponibilidade que remete não só para a elaboração metódica e/ou sistemática de uma heterocrítica diversificada, como também para a exigência de uma auto-crítica que consistentemente se vai desenhando no horizonte de um itinerário vivo e dinâmico. A expressão «reflexão radical» envolve, portanto, neste contexto teórico os seguintes pontos de referência: 1. Existe efectivamente uma actividade de reflexão crítica que é exercida por homens concretos e reais. 2. Nem toda a reflexão crítica se apresentou como sendo a filosofia, havendo várias instâncias em que ela poderá diversificar-se, assumindo contornos específicos e inse rindo-se em campos teóricos diferenciados. 3. Nem toda a reflexão crítica filosófica se desenvolveu através da mesma enunciação problemática, nem de idên ticas vias metódicas. 4. Nem toda a reflexão crítica filosófica serviu de caminho a uma idêntica teorização do homem, do mundo e das suas relações. Estes pontos de referência conduzem-nos à consideração de que a reflexão crítica filosófica não é uma actividade imutável e eterna nas suas componentes semânticas e estruturais e que, como actividade de homens concretos e reais, necessariamente se integra no âmbito de um enquadramento histórico e cultural. A historicidade da condição humana e da filosofia explicará a relevância conferida aos problemas que expressam as preocupações fundamentais do tempo que define a sua contemporaneidade. 2. Mas a filosofia inserindo-se no horizonte de uma reflexão crítica radical envolve, por isso mesmo, vários referenciais cuja constitutividade lhe é essencial. — 7/.

(6) Com efeito, a exigência e a índole dessa reflexão implicam uma experienciação plural e multifacetada, produzida e articulada em diferentes níveis de aprofundamento metódico que se vão distanciando cada vez mais de uma empiricidade imediatamente «dada». Além disso, essa experienciação diversificada exige, de forma recorrente, a inserção actuante de diversas mediações discursivas e categoriais que se vão plasmar na vectorialidade de uma interpretação multidimensional e na construção explicativa da sua correlativa inteligibilidade, que irão tornar-se progressivamente adensadas no cruzamento de uma crescente complexificação. Por sua vez, os vários conjuntos de «objectos», interpretados e explicados, irão constituir-se como «objectualidade-segunda», pois sobre eles irão desenvolver-se formas de discursividade reflexiva polarizadas pela efectivação conseguida de uma radicalidade crítica. A filosofia desenhando-se como pesquisa da inteligibilidade do ser, ou de tudo quanto é e vai constantemente sendo, alicerçando-se como procura afectiva de uma totalização, sempre aberta e provisória, terá de constituir-se não só como entendimento do mundo da natureza em estreita relação com o homem, mas naturalmente também como elaboração de uma radical explicabilidade racional que permita estabelecer o horizonte de significações pluralizadas que o mundo da cultura vai sucessivamente gerando. Ora no âmbito do mundo da cultura a realidade social reveste-se de uma particular importância na constituição da própria onticidade do homem, enquanto ser simultaneamente «natural» e «cultural», por virtude da sua configuração como envolvente central e polarizante. Por consequência, compreender o estatuto ôntico e existencial do homem remete para o conhecimento das componentes e estruturas sociais organizadas e/ou desorganizadas cuja tecitura e dinâmica, interna e externa, irão determinar o perfil da sua vida individual e colectiva, no contexto do qual assume decisivo relevo a realização e/ou desrealização das suas potencialidades criativas. Este tópico carece, no entanto, de um breve esclarecimento. A referência a componentes e estruturas sociais organizadas e/ou desorganizadas poderá parecer, no primeiro caso, uma tautologia e, no segundo caso, uma desadequação manifesta. Com efeito, uma estrutura social, tal como qualquer outra estrutura, é um sistema de inter-relações sincrónicas caracterizado 12 —.

(7) por uma ordem e por uma organização internas definidas. Por conseguinte, a invariância e a sincronia parecem ser traços que de uma forma fundamental definem a essencialidade de uma estrutura. No entanto, sabemos que o conceito de estrutura, perspectivado segundo parâmetros exclusivamente sincrónicos e tendencial-mente invariantes, dificilmente se articula com a movência e a dinâmica da realidade histórica e social. Na verdade a presença de coordenadas diacrónicas torna-se imprescindível ao entendimento do devir histórico e social. E sendo assim, uma forma de superar esta antinomia, de harmonizar a sincronia e a diacronia da realidade histórica e social, de articular as estruturas sociais provisoriamente invariantes e as dimensões de transformação e mudança, poderá vislumbrar-se na seguinte consideração. As estruturas sociais não são realmente imutáveis. Julgamos poder afirmar-se a existência de um movimento dialéctico de cons-truçãodesconstrução que abarca momentos de estabilidade e de ordenação e momentos de desorganização e de desequilíbrio. Os primeiros correspondem a fases de unificação convergente e de ultrapassagem progressiva das contradições, os segundos traduzem, ao contrário, mutações crísicas e maximização das contradições. Por conseguinte, no devir histórico das sociedades teremos de considerar tanto a estruturação das estruturas como a sua desestruturação, ou seja, é necessário perspectivar a sua génese e formação até ao momento de uma ordenação e organização solidificadas nos termos de uma invariância sincrónica, sempre provisória, mas igualmente se impõe a análise da sua posterior desconstrução progressiva que será expressa por uma crescente desorganização e desordem que se orientam quase sempre para uma declarada ruptura crísica. Nesta ordem de ideias poder-se-á falar de um movimento estruturante — desestruturante, formativo e transformativo, que se processará no dinamismo alternante tendencialmene entrópico ou neguentrópico. Além disso, este processo que articulará sucessivamente tendências entrópicas e neguentrópicas não se desenvolverá necessariamente ao mesmo ritmo em todas as sociedades, visto que cada uma delas, consoante as suas características históricas específicas, terá o seu ritmo próprio inserido nos quadros gerais da sua temporalidade e espacialidade. — 73.

(8) Também este processo se diferenciará consoante a formação e o desenvolvimento das diversas estruturas sociais e das suas respectivas componentes. No terreno da vida social várias instâncias se entrecruzam na fluência e determinação de uma dinâmica, simultaneamente endógena e exógena, que irá permitir descortinar interferências, relações de interdependência recíproca, de complementaridade e de exclusão antagónica. Com efeito, as componentes e estruturas sócio-económicas, sócio-políticas, sócio-culturais, sócio-psicológicas, não estão entre si isoladas, havendo múltiplos vectores de interferência e relacionamentos vários, correlativos e intrínsecos, que se interlaçam numa tecitura complexa e dinâmica. Esta tecitura complexa e dinâmica de inter-relações e de determinações recíprocas intra-componenciais e intra-estruturais e, além disso, extra-componemciais e extra-estruturais no contexto das componentes e estruturas sócio-económicas, sócio-políticas, sócio-culturais e sócio-psicológicas, possui uma índole histórica e dialéctica, ou seja, não é uma rede de comunicações e inter-comunicações estável e imutável, dependendo fundamentalmente da contextualidade histórica englobante em que se inserem e determinam as sociedades. Por consequência, qualquer teorização explicativa que privilegie em termos de invariância apenas um tipo de factores determinantes, mesmo que sejam perspectivados em última instância, acaba por deslizar para um posicionamento reducionista. Isto não significa, porém, que em termos conjunturais não possa delinear-se a determinação em última instância, salvaguardando a consideração de correlações circulares e espirais, das componentes e estruturas sócio-económicas, ou das sócio-políticas, ou das sócio-culturais, ou das sócio-psicológicas. Simplesmente esta primazia parece dever entender-se sempre em termos provisórios e historicamente circunscritos. No contexto global dos fenómenos sociais destacam-se entre outros de cariz diverso, conforme vimos, os fenómenos políticos, pelas suas profundas incidências na própria forma de organização institucional das sociedades. Além disso, a sociedade e a política revestem-se de uma indiciação particularmente significativa para o sentido da vida individual e colectiva. 74 —.

(9) Quer isto dizer que os projectos sociais e políticos assumem uma densidade existencial e inter-subjectiva e um correlativo significado ético e axiológico na Vida das colectividades. Os valores e os fins de uma comunidade política obviamente se relacionam de forma estreita com os projectos éticos e axiológicos assumidos a nível pessoal e/ou colectivo. Por este motivo, não há possibilidade de desligar a política e as questões sociais de uma problemática ética e axiológica presentificada como teorização e vivência na interioridade e na exterioridade de uma centração existencial e intersubjectiva, mas também cognitiva e crítica. A íntima correlação entre a axiologia, a ética e a política constitui um novo ponto de encontro ou de desencontro entre a filosofia e a sociedade instituída. A dimensão ética e axiológica dos fenómenos sociais e políticos e o seu intrínseco relacionamento com a ocorrência e constituição de um plano ôntico e existencial, remetem ainda para a questão de saber se a filosofia se reduz a uma simples ou complexa interpretação explicativa do mundo, ou se o horizonte de transformações alternativas se inscreve necessariamente no seu caminho pesquisante. Poderá a filosofia transformar o mundo? Ou poderá apenas conhecê-lo, assistindo de forma passiva ao seu percurso histórico? Nesta altura, será possível referenciar ainda esta questão ao problema de saber se a filosofia é apenas teoria isolada ou isolável de toda a prática ou se, sendo teoria, a filosofia se inscreve necessariamente no itinerário de uma prática actuante. O problema das relações entre teoria e prática insere-se, portanto, na questão que se refere ao estatuto da própria filosofia. Se a filosofia orienta a sua reflexão critica radical para a sociedade e para a política naturalmente assumirá, explícita ou implicitamente, uma atitude valorativa perante o poder político instituído. Ora esse ajuizamento crítico poderá constituir-se como fundamentação ou justificação do poder ou, ao contrário, poderá apresentar-se como fundamento da sua contestação radical ou ainda como alicerce de uma crítica construtiva de tipo reformista. Deste modo, entre filosofia e poder político (e/ou outros poderes) poder-se-ão estabelecer relações de harmónica convergência, relações de exclusão antagónica ou de oposição diferenciadora. — 75.

(10) Na hipótese de uma relação de oposição ou de exclusão antagónica, explícita ou implícita, o poder instituído terá a possibilidade de se exercer contra a filosofia, marginalizando-a ou eliminando-a pura e simplesmente como actividade supérflua ou perigosamente «revolucionária». A «cicuta» funcionou durante séculos como uma opção viável, posta de lado, no entanto, a partir do momento em que a filosofia se institucionaliza nos quadros do ensino escolar oficial. Sócrates «funcionário» torna a «cicuta» simples lembrança de outros tempos, pois a ameaça de desemprego se apresenta como verdadeiramente operacional. Sendo assim, a domesticação dos filósofos é tarefa assumida, ou tendencialmente assumida, por parte do poder político instituído, qualquer que ele seja, desde que o condicionalismo aludido ocorra, ou possa ocorrer como ameaça latente, ou declarada. Há, por assim dizer, dois caminhos que se cruzam num «encontro» nem sempre fácil — há a filosofia do poder construída como sua justificação teórica e seu sustentáculo ideológico e há o poder da filosofia que potencial ou efectivamente perverte e subverte a «ordem» estabelecida e os seus quadros culturais dominantes. Mas, por outro lado, a própria filosofia como actividade cultural é indiscutivelmente um fenómeno social que não é isolável da sociedade concreta em que emerge e se desenvolve. Não queremos de modo algum dizer que a filosofia seja apenas mero reflexo sociológico ou superestrutural e que, portanto, o seu estatuto seja de uma dependência total e absoluta relativamente à sociedade em que surge. Julgamos haver antes uma determinação recíproca e dialéctica entre sociedade e filosofia que não é consentânea com uma dependência unilateral. Na vertente dessa determinação encontraremos a historicidade como um parâmetro referenciador e essencial à própria constituição da filosofia como reflexão crítica radical. A temporalidade histórica é, com efeito, um tópico simultaneamente sincrónico e diacrónico, em função do qual se forma a filosofia e se constituem as suas áreas objectuais, discursivas e pensamentais. Os problemas fundamentais de uma certa conjuntura histórica, bem como a maneira peculiar da sua enunciação e da sua abordagem, inscrevem-se no itinerário das filosofias concretas que a 76 —.

(11) historiografia da filosofia nos oferece numa interpretação variável e multifacetada. Por conseguinte, não há propriamente uma filosofia perene, que invulnerável percorra o tempo numa virgindade anhistórica. Além disso, os problemas filosóficos e a sua enunciação são codificados e definidos por conjuntos semânticos e estruturais de índole teórica e prática, no interior dos quais é possível detectar e analisar o funcionamento de um campo cultural, histórico e «a priori». Nesta ordem de ideias, a abordagem da problemática filosófica não é viável sem um enquadramento histórico e cultural, simultaneamente englobante e imanente, que constitui um terreno de mediação em função do qual se realiza uma aproximação dimensional que gera um efeito específico de perspectiva transversal e em profundidade. Deste modo, não é indiferente à filosofia a sua eclosão no século V em Atenas ou a sua emergência no século XVI ou no século XX. Não podemos hoje filosofar, ignorando por um lado o seu passado e, por outro, pon'do entre parêntesis a temporalidade histórica que define o horizonte do nosso presente. Ora a historicidade vai precisamente plasmar-se num conjunto complexo de relações sociais objectivas e inter-subjectivas que constitui uma dada sociedade. Quer isto dizer que o homem é um ser histórico, porque é também um ser social. É, portanto, no contexto das relações sociais que caracterizam as sociedades humanas que se concretizam e efectivam as coordenadas temporais definidoras de uma certa historicidade. Mas a historicidade social da filosofia não significa que a relatividade estrita seja o único horizonte possível da filosofia. A insularização da filosofia, a sua redução exclusiva a um tempo único, sem medida nem semelhança, sem possível analogia, torná-la-ia circunscrita apenas a uma historicidade social única. Contudo esta hipotética insularidade é desmentida pela verificação da íntima conexão instituída entre a filosofia e a história da filosofia. Entre a filosofia e a sua história estabelecem-se laços essenciais que permitem a emergência de novas formulações dos problemas do passado, em consonância com as coordenadas que definem o presente. De igual modo se podem analisar estreitas cone— 77.

(12) xões no tocante às construções metódicas e explicativas que, em muitos casos, se vão enraizar também em laborações pretéritas. Não se trata obviamente, tanto num caso como no outro, de uma reprodução passiva, de uma mera deslocação transitiva, mas de uma apropriação criativa reelaborada segundo parâmetros específicos. Por consequência, a temporalidade da filosofia não é fechada mas aberta a outros tempos e, nessa medida, a multiplicidade das filosofias não se reduz a uma simples pulverização que tornaria qualquer filosofia encerrada num mundo sem portas nem saídas. De resto, só a ideia de uma ruptura total e absoluta entre o presente, o passado e o futuro poderia validar uma estrita concepção relativista da filosofia. No entanto, parece legítimo admitir-se que na temporalidade histórica não há, tal como na filosofia, cortes totalmente absolutos e radicais. Do passado emergem coordenadas «formais» e «materiais» que vão ser reapropriadas e interpretadas pelo presente na estruturação de novas configurações sintéticas. Algumas componentes e estruturas do passado são reelaboradas e inseridas em novos conjuntos dialécticos que o presente vai alicerçando. O trânsito, a passagem, a integração-desintegração, a construção-desconstrução, a estruturação-desestruturação, constituem-se como parâmetros dinâmicos do percurso histórico que vão articular de forma dialéctica a sincronia e a diacronia, vectores de invariância e de equilibração, com vectores de mudança e de transformação. Ordem e desordem, entropia e neguentropia parecem constituir-se como as duas faces de toda a realidade histórica e social. Se assim não fosse, cada tempo estaria sempre no princípio dos tempos como tábua raza, havendo um recriar do «nada» constantemente iniciado. Os homens fazem a sua própria história, mas estando já inseridos nela, fazem a sua própria história, mas a partir das condições dadas e herdadas do passado ( 2 ) . (2) Escreveu Marx a este propósito: «Os homens fazem a sua própria história, no entanto, não a fazem espontaneamente em situações por eles escolhidas, mas antes em situações imediata e previamente encontradas, dadas e herdadas do passado.» (Karl Marx, Friedrich Engels, Der 18te Brumaire des Louis Napoleon, Werke, Band 8, Dietz Verlag, Berlin, 1960, p. 115. Cf. também Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte in Karl Marx et Friedrich Engels, CEuvres Choisies, Êditions du Progrès, Moscou, s.d., t. I, p. 251.. 78 —.

(13) Ora esta ausência de rupturas totais e absolutas igualmente caracteriza a história da filosofia e, por conseguinte, a filosofia remete para a apropriação dialógica do seu próprio passado. No âmbito deste contexto poder-se-á compreender a fragilidade teórica de uma filosofia absolutamente compartimentada. Além disso, a necessária inserção da filosofia na história poderá explicar ainda a pluralidade de formas de pensar e conceber o que a filosofia é, ou seja, a diversidade de que se reveste a determinação das características que a diferenciam como actividade específica. No entanto, se a filosofia se constitui na originalidade temporal de uma reflexão crítica radical sempre renovada, ela implicará necessariamente uma mobilidade interna que não é consentânea com uma sistematicidade conclusa e definitiva, acabada uma vez para sempre. Com efeito, só o pressuposto de uma realidade invariante e de uma interpretação e explicação imutáveis permitiriam a conclusividade de uma sistematização fechada. No entanto, não havendo nada de real que seja estático e determinado uma vez para sempre, sendo tudo-quanto-é em constante devir, não será difícil entender a necessidade de uma constante confrontação entre os modelos interpretativos e explicativos já elaborados e construídos e esse mesmo real em transmutação. Por isso referenciámos a filosofia como fundamentação racional aberta e a distinguimos da ideologia. As considerações que temos vindo a fazer sobre a história e sobre a filosofia naturalmente veiculam uma incidência análoga no domínio da filosofia social e política. A historicidade e a trans-historicidade inter-histórica da sociedade e da condição humana será, portanto, um parâmetro referencial constitutivo de toda a filosofia e de toda a filosofia social e política. 3. As características da filosofia como actividade crítica reflexiva, como interpretação do ser e correlativa pesquisa da sua inteligibilidade, envolvem naturalmente uma relação especial com a problemática gnosiológica. Em primeiro lugar põe-se a questão de saber se o conhecimento será possível, isto é, se o conhecimento efectivamente permite uma autêntica interpretação do ser e uma real apreensão da sua inteligibilidade. — 79.

(14) Mas a possibilidade ou impossibilidade do conhecimento relaciona-se de uma fornia estreita com o estabelecimento de um conhecimento verdadeiro e, por conseguinte, com o problema da instituição de um critério de verdade fundamentador. Ora o estabelecimento de um conhecimento verdadeiro através de um critério fundamentador articula-se precisamente com a determinação das características essenciais que definem a índole das relações estabelecidas entre sujeito e objecto. Esta determinação implicará ainda a abordagem necessária da questão relativa ao idealismo e ao realismo gnosiológicos. Por sua vez, a caracterização essencial do conhecimento correlaciona-se com a questão de saber como é que ele se torna possível, ou seja, significa analisar a sua origem e a constituição dos seus fundamentos principiais e metódicos. Estes problemas, no entanto, não se articulam segundo uma ordem unidireccional, pois entre eles se estabelecem correlações circulares. Mas se a problemática gnosiológica se toma um referencial necessário à constituição e desenvolvimento da reflexão filosófica, isso não quer dizer que a sua constelação preencha a totalidade do campo teórico da filosofia. Dar um sentido â existência, ao homem e ao mundo é um imperativo da filosofia como reflexão crítica radical. A necessidade da pesquisa de um sentido «totalizante» capaz de conferir uma significação teleológica à textura ôntica de todo o ser, constitui-se como factor determinante da emergência do filosofar ( 3 ). Todavia, a pergunta que pergunta «para quê?» remete necessariamente ainda para a questão de saber «o-que-é-isso» acerca do qual perguntamos que sentido poderá ter. Ou seja, encontrar um sentido para o «ser» requer uma investigação acerca do próprio «ser». Mas será viável uma investigação sobre o ser que não implique, por sua vez, a determinação do sentido do ser? Julgamos que as duas questões se interpenetram e condicionam de forma recíproca. (3) Um sentido «totalizante» não é uma totalização absoluta e definitivamente concluída, nem se reporta obviamente a uma totalização objectual, monádica e singularizada.. 80 —.

(15) Nesta ordem de ideias, a filosofia constituir-se-á também como uma reflexão cujo campo teórico inclui uma necessária referenciação ontológica, ética e axiológica. Cumpre acentuar ainda que a orientação filosófica e metódica efectivada na reflexão crítica radical dos problemas sociais, económicos, políticos, culturais, bem como dos que se reportam às tematizações ontológicas, antropológicas, éticas e axiológicas que lhes são correlativos, embora estas possam trancendê-los em certos contextos teóricos, se prende também, e de um modo fundamental, com as questões que o conhecimento origima. Ora o estabelecimento da sua primordialidade numa ordem metódica foi, como se sabe, uma característica relevante da filosofia moderna, a partir de Descartes. No entanto, toda a filosofia anterior a Descarteis abordou problemas relativos ao conhecimento, na medida em que a efectivação de uma reflexão crítica radical necessariamente suscitava essa abordagem. A pluridimemsionalidade da problemática filosófica envolve, pois, a relevância da filosofia do conhecimento e da epistemologia não havendo, todavia, legitimidade para o estabelecimento de um reducionismo unidimensional. As dimensões pluralizadas da problemática filosófica, embora entre si correlacionadas e inter-determinadas, são no entanto mutuamente irredutíveis, não sendo, portanto, válida uma filosofia que ponha entre parêntesis qualquer uma dessas dimensões, igualmente relevantes e imprescindíveis à totalização provisória que toda a filosofia constrói no contexto da sua especificidade própria. II 1. No âmbito da discursividade teórica em que este texto se situa a referenciação da verdade e do conhecimento verdadeiro não deverá entender-se em termos substancialistas, mas relacionais. Não se trata, portanto, de uma conceptualização do conhecimento como fenómeno estático, invariante, mas da sua perspectivação como processo dialéctico e histórico. Ora precisamente a sua dialecticidade e a sua historicidade impedem não só a consideração de um sujeito insular, individuado, em termos gnosiológicos, como ainda a referenciação de um sujeito cognoscente imutável e anhistórico. — 8/.

(16) De igual modo se desenha uma correlativa conceptualização histórica e gnosiológica da «objectualidade-segunda» a que a relação cognoscitiva se reporta na sua própria constitutividade. Nem o sujeito nem o objecto gnosiológicos se constituem de forma avulsa e insular, pois vários conjuntos de vinculações dialécticas unitárias permitem alicerçar a conceptualização de um «sujeito epistémico», histórico e social, e a conceptualização de totalidades objectuais inseridas também no contexto dinâmico de um necessário devir. No enquadramento das estruturas relacionais cognoscitivas poder-se-á legitimamente considerar também vários conjuntos categoriais e pensamentais cuja intervenção concretiza a efectivação do conhecimento como processo de mediação dialéctica entre o homem e o mundo. Esta mediação dialéctica implica não só uma interpretação como ainda uma construção explicativa da realidade objectualizada. O plano desta objectualidade que a relação cognoscitiva elabora, porque justamente resulta de uma mediação constitutiva, poder-se-á considerar derivado e não-dado numa imediatidade empírica e/ou racional. Por conseguinte, o objecto do conhecimento é sempre função da relação cognoscitiva, é, afinal, o ser objectualizado através da sua intrínseca correlação dialéctica com o sujeito que, por seu turno, conhece sempre através de mediações também dialécticas, progressivas e sucessivas, das quais resultarão a construção de totalidades objectuais, sempre abertas e provisórias. 2. Em termos fácticos é possível pensar-se que a interpretação e a construção explicativa de um objecto por um sujeito exijam uma absoluta homogeneidade entre ambos, ou seja, que se identifiquem, pois se assim não sucedesse não se entenderia a própria possibilidade de uma tal interpretação e explicação. Parece-nos, no entanto, que uma identificação total entre sujeito e objecto do conhecimento destruiria a própria possibilidade de um efectivo processo cognoscitivo, em vez de o fundamentar. Efectivamente, a apreensão interpretante e a construção explicativa do objecto pelo sujeito implicam uma necessária dualidade entre estes dois pólos, sem a qual perderiam a sua consistência própria. Ora, a estrita identificação exclui a dualidade e com ela o próprio conhecimento,. 82-.

(17) Mesmo as concepções idealistas acerca do conhecimento, que tanto afirmam a unidade do sujeito e do objecto, não deixam de reconhecer a necessidade da sua distinção. Assim sucede na forma mais extrema de idealismo — o «idealismo actual» de Gentile — onde se formula a diferença entre pensamento-pensante (o sujeito) e pensamento-pensado (o objecto) ( 4 ). Não se julgue, contudo, que excluir uma identidade absoluta entre sujeito e objecto significa aceitar a sua radical e absoluta heterogeneidade. Na verdade, se sujeito e objecto fossem radicalmente alheios um ao outro, não sendo, por consequência, possível estabelecer entre eles nenhum vínculo efectivo, tornar-se-ia impossível a apreensão interpretante e a construção explicativa do objecto pelo sujeito. A necessidade de considerar a possibilidade de um vínculo unitário entre sujeito e objecto não envolve, porém, o desaparecimento da sua dualidade, mas antes postula uma unidade na dualidade. Poder-se-á perguntar agora se o ser susceptível de objectualização cognoscitiva terá de ser «totalmente» interpretado e explicado. Julgamos que uma interpretação e uma construção explicativa do referente ôntico gnosiológico na sua totalidade não se impõem como necessárias. Várias mediações gnosiológicas podem visar o mesmo ser, interpretálo de diferentes formas, explicá-lo consoante diversas perspectivas, no enquadramento de campos teóricos pluralizados. Por conseguinte, não se impõe a necessidade lógica e gnosio-lógica do conhecimento esgotar por força a totalidade ôntica do ser ou região do ser visados. O que parece impor-se, como já vimos, será precisamente a exclusão de uma perspectiva de totalização absoluta, no âmbito da interpretação e da explicação cognoscitivas.. (4) Giovanni Gentile, Sistema di Logica come Teoria del Conoscere, vol. II, Sansoni, Firenze, 3.* ed. rev., 1942, pp. 8-9; Teoria Generale dello Spirito come Atto Puro, Sansoni, Firenze, 6." ed. rev., 1944, pp. 38-34; Introduzione alia Filosofia, Sansoni, Firenze, 2.ª ed. rev., 1958, p. 235; La Riforma delia Dialettica Hegeliana, Sansoni, Firenze, 3." ed., 1954, pp. 184-185.. — 83.

(18) Com efeito, o conhecimento humano não é, nem pode ser, absoluto, imutável, visto que é sempre histórico e social, finito e parcial. Esta afirmação poderá hoje parecer evidente e sem grande interesse teórico. No entanto, a convicção e a certeza de que é possível exaurir a totalidade ôntica do ser a que o conhecimento se reporta constituíram o pressuposto teórico de toda a gnosiologia tradicional e, portanto, da filosofia clássica que não descobrira ainda a historicidade como um dos vectores constitutivos da condição humana ( 5 ). Uma das fórmulas que melhor exemplifica esse pressuposto é a célebre sentença que define a verdade como adequação entre o intelecto e a «coisa», pois ela postula a possibilidade de uma efectiva e total apreensão da «coisa» ou do ser, conseguida no conhecimento verdadeiro. Poder-se-á dizer que a circunstância da impossibilidade em termos sincrónicos de uma interpretação e construção da totalidade do ser em devir que será gnosiologicamente objectualizado não implica que a pluralidade de relações cognoscitivas que a esse referente ôntico se reportam tenha de revestir-se necessariamente de um carácter não-absoluto. Julgamos, porém, que um exclusivo conhecimento sincrónico de um referente ôntico em movimentação diacrónica não pode de modo algum efectivar a sua interpretação e explicação no plano de uma totalização absoluta. E se for objectado que é possível conhecer de uma forma «absolutamente» verdadeira não um referente ôntico gnosiológico na sua totalidade mas alguma ou algumas das suas partes, poder-se-á então retorquir que tal posição pressupõe a ideia de que o todo é uma simples soma de partes. Simplesmente esta concepção de uma totalidade ôntica que é exclusivo ou predominante somatório é singularmente problemática, conduzindo ainda a uma conceptualização do conhecimento em que este é entendido apenas como acumulação quantitativa. No entanto, quantidade e qualidade não são, em si mesmas, isoláveis, nem na «realidade» isoladas, pois o nível quantitativo a partir de certa gradação interfere dialecticamente na diferenciação qualitativa.. (5). 84 —. Inútil será dizer que a posição Kantiana se situa em quadrante diverso..

(19) O referente ôntico a que nos reportamos aqui não deverá perspectivar-se como um «sendo» insulado, dimensionado como «coisa», nem como «ser» entendido como substância, mas como imerso no terreno da complexa tecitura relacional que subterraneamente se constitui como raiz e matriz de múltiplas determinações. Mas esta estrutura e contextura relacionais, onticamente intrínsecas e constitutivas, não são desligáveis de uma outra tecitura relacional envolvente que se constituirá também num campo gerador de determinações. Quer isto dizer que a realidade nuclear dos referentes ônticos que serão objecto de objectualização cognoscitiva é de natureza relacional e inter-relacional, interferindo na sua própria constituição ôntica, factores endógenos e exógenos. Além disso dois parâmetros ônticos se articulam no contexto desta dupla e conexa determinação, o parâmetro quantitativo e o parâmetro qualitativo, de cuja articulação estrutural, dinâmica e dialéctica, resultará a configuração consistente de um determinado perfil. Configuração e perfil que se vão delineando, vectorializados quer por forças de manutenção que tendencialmente conservam alguns pólos de invariância referendai, quer por forças de transformação que, tendencialmente, vão alterando algumas das componentes e estruturas ônticas, anteriormente dominantes, nos termos de uma referenciação nuclear. Deste modo se vão aglutinando e inter-determinando vários conjuntos de factores sincrónicos e diacrónicos. 3. O conhecimento entendido como interpretação e explicação de um referente ôntico objectualizado por um sujeito levanta ainda, necessariamente, o problema que diz respeito à caracterização de um relacionamento inter-determinante que entre eles se processará. A célebre questão do realismo e do idealismo reporta-se precisamente ao problema de saber se o referente ôntico objectualizado no conhecimento é, ou não, independente do conhecimento, ou seja, se ele transcende ou não a esfera do ser imanente à consciência, à representação ou ao pensar racional. A independência do referente ôntico objectualizado no conhecimento pode perspectivar-se, contudo, numa dupla dimensão. — 85.

(20) A dimensão relativa ao facto de ser do referente e a dimensão que diz respeito ao que ele propriamente é. Estas duas dimensões não são equivalentes, pois é perfeitamente possível supor a existência de realidades cognoscíveis independentes do conhecimento e, simultaneamente, admitir que aquilo que elas são, ou a forma como são, se conexiona de um modo directo ou indirecto com o processo cognoscitivo. Se considerarmos que entre o homem e o mundo se estabelecem correlações dinâmicas de interdependência recíproca e se um dos núcleos desse circuito relacional for a relação cognoscitiva, não poderá justificar-se1 uma total independência dos referentes ônticos objectualmente conhecidos relativamente ao conhecimento. Esta dependência parcial, no entanto, não significa que necessariamente se julgue como dependente a própria existência dos referentes ônticos objectualizados no conhecimento, ou seja, que o facto de eles «serem» dependa da relação cognoscitiva. Por consequência, só a primeira dimensão corresponde a uma posição idealista, sendo a segunda perfeitamente compatível com uma posição realista. 4. A posição idealista tradicional não deixa, todavia, de suscitar uma série de aporias que passaremos a enunciar. Começaremos por reportar-nos, dada a sua indiscutível relevância, ao idealismo de Hegel, ou de matriz hegeliana. 4.1. A identificação entre ser e pensar racional que a célebre sentença hegeliana traduz, embora de um modo sintético: «todo o racional é real e todo o real é racional», implica um conjunto de problemas que parecem inultrapassáveis. 4.1.1. Um ponto prévio diz respeito ao esclarecimento do seu significado. Poder-se-á dizer, em primeiro lugar, que estas duas proposições não são de modo algum equivalentes. Na verdade, afirmar que «todo o real é racional» não implica que «todo o racional» tenha de ser necessariamente «real». Nem afirmar apenas que «todo o racional é real» obriga a pensar que só o que for racional será real..

(21) Quer isto dizer que é a conjunção das duas proposições e não apenas uma delas que caracteriza a posição idealista de Hegel. Com efeito, sustentar a racionalidade do real não pressupõe, ou implica, por si só, um posicionamento idealista visto que implicará apenas a ideia de que o real na sua essencialidade própria se reveste de uma inteligibilidade central e nuclear. Esta implicação, no entanto, é perfeitamente compatível como uma posição realista assumida no plano gnosiológico. A consideração de que é real tudo quanto é racional envolve, pelo menos, a ideia de que a racionalidade do pensar se constitui desde logo como real, gerandose desse modo uma identificação entre pensamento, conhecimento e pelo menos uma parte da realidade. No caso do posicionamento hegeliano dado que esta identificação é total, pois não é apenas parte da realidade que é racional, deslizamos para uma inequívoca postura idealista que, além de gnosiológica, assume também um alcance ontológico. Saliente-se, todavia, que esta identificação não se constitui em A Fenomenologia do Espírito numa etapa primeira que corresponderá à «objectivação», mas numa etapa segunda do processo dialéctico. 4.1.2. Mas a redução do mundo natural e cultural a uma única dimensão ôntica e estrutural constituída pela «razão» parece anular ou dissolver a multiplicidade dimensional que melhor se ajusta à complexidade e à diversidade do real. Um monismo redutor, mesmo dialéctico, não permite compreender nem explicar as facetas plurais que a realidade assume no seu próprio fluir. Além disso, como explicar as componentes nãoracionais do comportamento humano em diferentes níveis de acção que vão desde a relação erótica, à ligação afectiva, e a certas componentes da criação mítica e estética? Como explicar também o erro no âmbito da actividade cognoscitiva? Se o homem erra e se engana, serão os seus próprios — 87.

(22) erros e a falsidade dos seus juízos de natureza estritamente racional? Mas, então, como ultrapassar esta aporia? 4.1.3. A dificuldade que acabamos de expor (4.1.2.) não se constitui, no entanto, como bloqueio intransponível à possibilidade de uma racionalização das componentes e estruturas que parecem «resistir» a uma caracteri zação ôntica racional. Se assim não fosse julgamos que não teria até sentido a própria afirmação da sua vertente ôntica não-racional, visto que tal afirmação pressupõe uma confrontação prévia com uma referenciação racional. Quer isto dizer que a própria conceptualização da não-racionalidade remete para uma centração racional que funcionará como eixo polarizador. Daí que um posicionamento de irracionalismo radical acabe sempre por implicar a sua própria negação. Razão e desrazão separam-se, mas unem-se também na contraposição dialéctica que necessariamente religa os pólos opostos. No entanto, será pertinente que se distinga entre o plano de uma racionalidade ôntica constitutiva e o plano de uma racionalidade gnosiológica, interpretativa e explicativa. 4.1.4. Julgamos ainda que para Hegel a «objectivação» do Sujeito sendo um momento provisório de alteridade ôntica posteriormente ultrapassado na «Aufhebung», que efectivará não só a sua «relativização» como tam bém a consciencialização correlativa de que a índole do objecto é, afinal, exclusivamente decorrente da consciência cognoscente e agente que o Sujeito é, não permitirá uma verdadeira distinção entre sujeito e objecto. Com efeito, se no término do desenvolvimento dialéctico da «objectivação» o objecto se descobre, pela consciência da consciência de-si, como totalmente posto pelo Sujeito-Espírito ou pelo Sujeito-homem, sendo a sua onticidade idêntica à onticidade ideal do Sujeito,.

(23) segue-se então que Hegel não conseguiu ultrapassar a identidade fichtiana entre sujeito e objecto. 4.2. Outro tópico que se prende com o sistema hegeliano e com a feição idealista do seu núcleo dialéctico é o problema das relações entre a temporalidade e o absoluto. Uma das ambiguidades mais graves da filosofia hegeliana consiste, conforme já notara Feuerbaoh, na absolutização do que é temporal e histórico. Ora absolutizar o que é temporal e histórico mais não é do que destruir o tempo e a própria história. Mas se não há «absolutos» no tempo, poderá haver o tempo no absoluto? Por outras palavras: se a inserção do que é «absoluto» na temporalidade e na história é de facto aporética, não pretenderá antes Hegel inserir a temporalidade e a história no próprio absoluto? Cremos que esta última relação nos conduz inevitavelmente ao seguinte dilema: a). ou o tempo e a história estão inseridos no absoluto e, então, este não poderá deixar de ser ainda um processo temporal e histórico;. b). ou o tempo e a história estão inseridos no abso luto, mas esta inserção absolutiza-os, isto é, destrói-os como tempo e história.. Por consequência, o absoluto parece revelar-se insusceptível de ser pensado como uma síntese capaz de integrar o tempo e a história, embora superados e ultrapassados. Esta grave dificuldade da filosofia hegeliana relacionasse de forma estreita com a contradição entre o método e o sistema de Hegel, contradição já salientada por Engels em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Com efeito, o método dialéctico não parece coadunar-se com absolutizações anhistóricas e, por isso mesmo, com o sistema do próprio Hegel. — 89.

(24) 4.3.. Por último, poder-se-á observar que a estrutura dia léctica triádica de toda a realidade envolvendo um movimento «necessário», logicamente necessário, as sume uma feição determinista dificilmente conciliável com a liberdade do homem e com a multiplicidade de opções que se lhe oferecem. Os valores éticos e o significado da acção humana tornar-se-iam destituídos de significação, pois toda a história surgiria como determinada por um sentido único e necessário. Dizer que a liberdade humana se insere nessa dialéctica e que o homem é livre na medida em que progressiva mente ascende ao infinito do Espírito que nele se en contra presente e imanente, não parece resolver a questão, visto que a liberdade pressupõe um «sim» e um «não» concretizados em alternativas plurais, in compatíveis com a unidireccionalidade do movimento dialéctico triádico de cariz necessitarista.. 4.4.. Passaremos agora à enunciação de algumas dificul dades teóricas que todo o idealismo gnosiológico gene ricamente envolve.. 4.4.1. O idealismo não parece garantir a objectividade ( 6 ) do conhecimento. Mesmo admitindo uma intersubjectividade cujo estatuto ultrapassasse o subjectivismo e o solipsismo, ainda nesta hipótese surgiria a questão de saber em que medida o pensamento experiencia] (empírico ou transcendental) e/ou racional poderia efectivamente ser algo de absoluto capaz de funda mentar a objectividade específica da realidade inter pretada e explicada. 4.4.2. O idealismo não pode explicar o progresso do saber (7). Esta dificuldade, contudo, parece reportasse apenas a uma forma de idealismo que suponha um pensamento estático, fechado na sua discursividade própria. (8) «Objectividade» não significa neste contexto «objectivismo», ou seja, transladação absoluta do referente ôntico. (7) Arnaldo de Miranda Barbosa, A Essência do Conhecimento, Coimbra, 1947, pp. 200-203.. 90 —.

(25) 4.4.3. O idealismo nega a evidência sensível da realidade exterior ( 8 ). Esta asserção, no entanto, pressupõe a validade do que é posto em questão pelo próprio idealismo, ou seja, a validade da afirmação de uma realidade exterior ao próprio conhecimento. 4.4.4. O idealismo não explica «as resistências» que a von tade do sujeito encontra na sua actuação ( 9 ) . 4.4.5. A «praxis» na sua efectiva concreção e no âmbito de instâncias diversificadas, constitui-se como refutação prática do idealismo (10).. (8) Êtienne Gilson, Réalisme Thomiste et Critique de la Connaissance, Vrin, Paris, 1947, pp. 196-212. (9) W. Dilthey, Beitrãge zur Losung der Frage vom Ursprung unseres Glaubens an die Realitãt der Aussenwelt und seine Recht in Gesammelte Schriften, V Band, B. G. Teubner Verlagsgesellsehaft — Stuttgart, Vandenhoeck und Ruprecht in Gottingen, 5.* ed., 1968, pp. 133-134. Cf. também: Acerca del Origen y Legitimidad de Nuestra Creencia en la Realidad del Mundo Exterior in Psicologia y Teoria del Conocimiento, trad. do alemão de Eugenio Imaz, Fondo de Cultura Economica, Mexico, 1945, p. 199. (10) Sem pretender aqui uma referenciação completa dos textos de Marx e de Engels que concretizam o posicionamento que aludimos, citaremos apenas alguns deles que são para o efeito significativos: — Karl Marx, Friedrich Engels, Thesen uber Feuerbach, Werke, Band 3, Dietz Verlag, Berlin, 1969, pp. 533-S35. Cf. também K. Marx, Thèses sur Feuerbach in Karl Marx et Friedrich Engels in CEuvres Choisies, Êditions du Progrès, Moscou, s/ d., t II, pp. 439-442. — Karl Marx, Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach und der Ausgang der Klassischen deutschen Philosophie, Werke, Band 21, Dietz Verlag, Berlin, 1962, pp. 299-307. Cf. também F. Engels, Ludwig Feuerbach et la fin de la philosophie classique allemande in Karl Marx et Friedrich Engels in CEuvres Choisies, Êditions du Progrès, Moscou, s. d., t. II, pp. 389-438. — Karl Marx, Friedrich Engels, Die deutsche Ideologie, Werke, Band 3, Dietz Verlag, Berlin, 1968, pp. 1:1-530. Cf. também Karl Marx, Friedrich Engels, L'Idéologie Allemande, trad. do alemão por Henri Auger, Gilbert Badia, Jean Beaudrillard, Renée Cartelle, Êditions Sociales, Paris, 1968. Cf. também Mao Tsétoung, De la Pratique, in Quatre Essais Philosophiques, Êditions en Langues Êtrangères, Pékin, 1967, pp. 1-25.. — 91.

(26) 4.4.6. À afirmação de que nada existe para além do conhe cimento só é possível a quem se situar para além do conhecimento (11). 4.4.7. O idealismo não poderá explicar coerentemente o erro, pois a redução do ser ao pensar (representativo e/ou racional) exclui todo o critério de verdade que não seja o próprio pensamento (representativo e/ou ra cional ). 4.4.8. O idealismo acaba por diluir a dualidade entre sujeito e objecto do conhecimento, visto que ambos se inte gram na esfera primordial do pensamento. A distinção entre pensamento-pensante e pensamento-pensado não é suficiente para o estabelecimento de uma dualidade e alteridade autênticas. 5. Se o idealismo gnosiológico radical suscita uma série de aporias que parecem insuperáveis, isso não significará que a posição realista não envolva uma série de dificuldades reais. A título de mero exemplo mencionaremos algumas delas. 5.1.. A apreensão interpretante e a construção explicativa de um objecto por um sujeito envolve, para além da dualidade dos termos da relação, uma unidade que torne possível a sua positividade efectiva. Ora o rea lismo sustentando a independência da realidade a que o conhecimento se reporta parece excluir essa unidade. Esta objecção, todavia, alicerça-se num conceito estático de unidade. No entanto, a unidade não gera ou pres supõe, necessariamente, uma estrita identidade, sendo perfeitamente admissível uma unidade de diferentes e até de opostos.. 5.2. A transcendência da realidade a que se reporta o objecto do conhecimento é, afinal, ainda uma afirmação do pró prio pensamento cognoscente. (11) F. Orestano, II nuovo realismo, Fratelli Bocca Ed., Milano, 1939, p. 202; Nuovi Principi, Fratelli Bocca Ed., Milano, 1939, p. 106.. 92 —.

(27) Afigura-se então impossível a ultrapassagem de um plano estritamente gnosiológico. Simplesmente esta hipótese só mereceria aceitação se fosse radicalmente impossível o conhecimento da realidade como ser parcialmente «transcendente» ao próprio conhecimento. 5.3. À posição realista tradicional que se alicerça na concepção da verdade como adequação poder-se-á objectar que a decisão acerca de uma «verdadeira» adequação implicaria um prévio e total conhecimento do ser visado — implicação que é obviamente aporética. 6. A determinação do conhecimento como interpretação e construção explicativa de um objecto por um sujeito nos quadros de uma perspectivação realista levanta ainda a questão de saber se o processo cognoscitivo será simples (ou complexa) «prática» ou se necessariamente será «teoria». Esta última interrogação, no entanto, «parece» assentar numa dicotomia entre teoria e prática. Que teoria e prática se diferenciem não significa, todavia, a existência de uma alteridade e isolamento radicais que à partida excluam a hipótese de uma interdependência recíproca. Se entendermos por teoria um sistema de enunciados centrado na concreção de um modelo interpretativo e explicativo do real e por prática a actuação efectiva dos homens, não será difícil estabelecer que qualquer nível de prática pressupõe uma teorização imanente (12). Com efeito, a prática inserindo-se no enquadramento do mundo circundante, sendo uma via através da qual se esboçam relações significantes entre o homem e esse mesmo mundo, implicará a condição prévia ou simultânea de uma interpretação do real, ainda que incipiente ou mesmo nebulosa.. (12) A actividade sensorio-motriz nos primeiros meses de vida parece escapar à relação mencionada, visto que nesse nível muito rudimentar de prática não será obviamente legitimo afirmar-se a existência de uma teorização implícita ou incipiente. A própria indiferenciação entre sujeito e objecto parece impedir aquela destrinça.. — 93.

(28) É óbvio, porém, que a própria teoria se alicerça mediante categorias diversificadas que vão polarizar-se em torno de diferentes domínios de inteligibilidade. A interpretação e a explicação do real nem sempre se instituíram através de modelos operatórios situados no âmbito de uma idêntica racionalidade explicativa. Todas as interpretações míticas e mágicas, as concepções do mundo assentes em componentes vitais e afectivas, centradas em torno de valores e crenças subjacentes, parecem comprovar a ausência de uma uniformidade explicativa acerca do real. No que diz respeito à prática igualmente se poderão detectar diferentes níveis de efectivação, não sendo pertinente que se reduza o conceito de prática ao conceito de utilidade, nem que se estabeleça como válida uma exclusiva concepção empírica da prática. Toda a prática humana se reveste de uma dimensão social e histórica que lhe confere características próprias, consoante a sociedade em que se concretiza e a historicidade que a integra num contexto temporal. Estas duas dimensões, contudo, irão delinear-se como determinações constitutivas que, de certo modo, vão condicionar a tripla face subjectiva, intersubjectiva e objectiva que toda a prática possui. Também o problema das teorias se enquadra no âmbito de uma contextualidade social e histórica cuja centralidade explicará, em certa medida, a própria índole dos problemas enunciados, dos conteúdos teorizados e das perspectivas assumidas. Se a prática pressupõe a imanência de uma interpretação do real, ainda que muitas vezes incipiente e nebulosa, também a teoria parece implicar a existência de uma prática. Se o pensar reflexivo se forma e articula em conexão com uma consciencialização progressiva enraizada na concreção de uma realidade existencial e social, se pensar implica necessariamente existir, não será fácil compreender aquela implicação. Mesmo as teorias que aparecem como mais distantes da realidade que procuram interpretar e explicar, se relacionam directa ou indirectamente com a prática, visto que esta se constitui como uma das componentes do próprio real. Além disso, a prática é um parâmetro imanente à própria teoria, pois a condição humana envolve a referência simultânea, explícita ou implícita, a uma teorização interpretativa e explicativa e a uma prática actuante entre si articuladas. 94 —.

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