e-cadernos ces
09 | 2010
Desafios aos direitos humanos e à justiça global
Introdução
Boaventura de Sousa Santos and Cecília MacDowell dos Santos
Electronic version
URL: http://eces.revues.org/593 ISSN: 1647-0737
Publisher
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Electronic reference
Boaventura de Sousa Santos e Cecília MacDowell dos Santos, « Introdução », e-cadernos ces [Online], 09 | 2010, colocado online no dia 01 Setembro 2010, consultado a 03 Outubro 2016. URL : http:// eces.revues.org/593
Introdução
Introdução
Introdução
Introdução
Nas últimas décadas, o tema a que se dedica este número dos e-cadernos CES – os direitos humanos e a justiça global – saiu do monopólio do saber jurídico para penetrar nos mais diversos campos de estudo, ocupando um lugar de destaque quer nos discursos científicos, quer nos discursos políticos, económicos e sociais no Norte e no Sul globais. Este é um tema que requer, indubitavelmente, um diálogo entre saberes para além das fronteiras disciplinares e geopolíticas, saberes que reflictam sobre o que sejam ou devam ser os conteúdos e os sujeitos dos direitos humanos, sobre os critérios de identificação e os significados das práticas dos direitos humanos e das suas consequências, sobre as ideologias legitimadoras das práticas dos direitos humanos e da justiça global.A actual trivialização deste tema exige, porém, uma nota preliminar explicativa sobre as motivações e os objectivos deste número dos e-cadernos CES, que se inspira nos resultados do Colóquio Internacional “Desafios aos Direitos Humanos e à Justiça Global: As Lutas pela Igualdade e pelo Reconhecimento da Diferença”, realizado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em Novembro de 2008 e cujo título é tomado de empréstimo pelos organizadores deste número. Quem hoje não invoca os direitos humanos e a justiça global? Estes termos tornaram-se um lugar tão comum na linguagem dos mais variados actores que os seus discursos perderam qualquer vínculo de representação entre as palavras e a posição de quem fala. Evidentemente, a ambiguidade e a contradição dos discursos de direitos humanos, aqui entendidos em um sentido amplo como ideais, princípios e normas norteadoras de práticas, também estão presentes nas normas internacionais vigentes, as quais representam e simultaneamente invisibilizam os interesses, as identidades e as necessidades de actores que participam na histórica construção, sempre resultante de lutas sociais e políticas, dos sujeitos e dos problemas sociais dignos de reconhecimento político-jurídico e da protecção normativa às escalas local, nacional e internacional.
Se o critério básico para se reconhecer o sujeito de direito humano reside na sua condição humana, verifica-se que, desde a constituição da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, nem todos os indivíduos, grupos sociais e povos têm recebido o
exemplos são infindáveis, relembrando aqui apenas alguns, a título ilustrativo, como a exclusão dos direitos dos povos que se encontravam sob o domínio colonial na época da consagração da Declaração Universal, tal salientado por Issa Shivji; a constituição de “apátridas” sem “direito a ter direitos”, como referiu Hannah Arendt no contexto europeu pós-Segunda Guerra Mundial; as variadas situações de violência infligida aos imigrantes não documentados, que se encontram desde sempre vulneráveis a condições sub-humanas de trabalho, algo que se acentua com uma política racista, classista e sexista, cada vez mais hegemónica e globalizada, de criminalização destes trabalhadores por Estados e sociedades que, em nome da segurança e do combate ao tráfico, criam leis anti-tráfico e anti-imigração com funções sociais, económicas, políticas e morais semelhantes às desempenhadas pelas leis de vadiagem que surgiram na Inglaterra, a partir do século XIV, na passagem do feudalismo ao capitalismo; as situações de extrema pobreza por todo o mundo, acentuadas por políticas neoliberais; as graves violações ao direito de soberania e autodeterminação dos povos, traduzidas nas invasões arbitrárias a outros países, praticadas, entre outros, pelos Estados Unidos, exemplo máximo e paradoxal de um Estado-nação que comete extermínio humano e ambiental em nome dos direitos humanos, da justiça global, da democracia, da paz global e da segurança. Neste contexto de abuso retórico dos direitos humanos para os fins da manutenção do domínio de um império em decadência e de privilégios de grupos sociais dominantes por todo o mundo, faz algum sentido epistemológico e político-jurídico continuarmos a invocar os direitos humanos e a justiça global? Como podemos abordar este tema de maneira crítica e conferir-lhe algum significado útil para as lutas sociais transformadoras?
Os organizadores deste número entendem que é possível, e necessário, abordar a temática dos direitos humanos e da justiça global de maneira crítica, cabendo-nos questionar o saber liberal dominante que privilegia os direitos individuais em detrimento dos direitos colectivos, que propaga um modelo de justiça global imposto de cima para baixo por Estados e organizações internacionais, governamentais e não-governamentais, não raro distantes das realidades e das necessidades locais. Nos artigos “Poderá o direito ser emancipatório?” e “Para uma concepção multicultural dos direitos humanos”, publicados na Revista Crítica de Ciências Sociais, Boaventura de Sousa Santos sinaliza alguns caminhos a trilhar para que o potencial emancipatório dos direitos humanos não seja desperdiçado. Estes textos conduzem-nos a duas conclusões principais, entre outras: primeiro, é preciso ir além do saber dominante liberal que predomina nas abordagens individualistas e eurocêntricas do direito, em geral, e dos direitos humanos, em particular; segundo, para superar o etnocentrismo europeu, o autor propõe um diálogo intercultural sobre os direitos humanos, mediante uma prática de tradução
denominada “hermenêutica diatópica”, cuja premissa é a incompletude dos quadros culturais de referência.
Partindo desta proposta, as motivações e os objectivos do presente número dos
e-cadernos CES e do colóquio internacional que lhe serviu de inspiração consistiram em
estimular o aprofundamento de estudos e diálogos críticos centrados numa reflexão sobre os desafios que se colocam ao discurso liberal dominante dos direitos humanos e da justiça global. Lançamos também um convite a uma discussão sobre os possíveis caminhos para a articulação de saberes alternativos que contribuam para uma melhor conceptualização e fundamentação teórica dos direitos humanos e da justiça global, para o desenvolvimento de práticas, enfim, mais inclusivas de conscientização, legalização e implementação de ideais, princípios e normas de direitos humanos em múltiplas escalas. O subtítulo “as lutas pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença” teve como objectivo principal guiar a identificação de alguns dos desafios às práticas dos direitos humanos e da justiça global que, a nosso ver, passam pela falta de reconhecimento de sujeitos colectivos e individuais de direitos que lutam tanto pelo acesso igualitário aos recursos económicos, sociais e políticos em variados contextos geopolíticos, como pelo reconhecimento igualitário de diferenças culturais construídas historicamente.
Organização deste número
Os textos reunidos neste número reafirmam alguns dos desafios e caminhos teóricos já apontados por Santos e discutidos no colóquio realizado no Centro de Estudos Sociais em Novembro de 2008. Mas acrescentam ainda outros desafios que merecem destaque e uma reflexão mais aprofundada. Em primeiro lugar, os desafios relacionados com a delimitação, a ideologia e a política dos direitos humanos. Quais são os direitos humanos? Qual a relação entre os diferentes tipos de direitos humanos? Quais devem ser as escalas de regulação e protecção de tais direitos – supranacional, estatal, local? Estas questões são abordadas no texto de Carlos V. Estêvão, que propõe uma concepção de “democracia como direitos humanos” e examina as implicações desta proposta no campo da educação. Sem se referir a um estudo de caso específico, o autor argumenta que é preciso pensar a democracia em função dos direitos humanos, para que as questões das igualdades e diferenças sejam traduzidas em direitos para além da regulação do Estado-nação. Uma das ferramentas fundamentais para a prática democrática como exercício dos direitos humanos é a educação, desde que esta seja concebida como uma prática de transformação social numa perspectiva global, ou seja, desde que a prática educativa se realize através daquilo que o autor designa por “educação cosmopolita”. O texto de Manoel Severino Moraes de Almeida também
brasileiro. O autor argumenta que a ideologia da “guerra contra o terrorismo”, que se expressa no país numa guerra contra “inimigos internos”, dá continuidade à ideologia da “segurança nacional” que serviu de fundamento ao regime da ditadura, no passado recente, e produz um antagonismo entre a protecção constitucional do direito humano à segurança pública e a garantia dos direitos humanos económicos, sociais, culturais e ambientais. Esta ideologia incute nos policiais e na população em geral uma necessidade de guerra e um sentimento de medo, contrapondo a segurança pública aos princípios democráticos, apresentando os direitos humanos como uma protecção injustificada de “bandidos”.
O segundo desafio identificado nos textos reunidos neste número dos e-cadernos
CES relaciona-se intimamente com o primeiro e centra-se na questão do reconhecimento
dos sujeitos de direitos humanos e na protecção dos seus direitos através de práticas políticas e judiciais que produzem exclusões e inclusões com base na identidade ou no status dos sujeitos de direitos. Bruna Angotti, por exemplo, reflecte sobre a constituição de sujeitos e normas de direitos humanos a partir de propostas teóricas feministas e multiculturais, desde Nancy Fraser a Boaventura de Sousa Santos. J. Flávio Ferreira e Fernanda Maria da Costa Vieira abordam a questão da exclusão e inclusão dos imigrantes no contexto europeu, valendo-se de um estudo de caso sobre o tratamento psiquiátrico dado a imigrantes das ex-colónias portuguesas. A partir deste caso, Ferreira e Vieira reflectem sobre ressignificações do “pensamento colonial diante do ser-imigrante”, num contexto que denominam de “desterritorialização do direito referenciado nos direitos humanos”. O texto de Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro e Klarissa Almeida Silva também apresenta uma reflexão sobre a exclusão e a inclusão de sujeitos de direitos humanos, baseando-se num estudo de caso relativo às práticas das delegacias de polícia no Brasil. Com base nas percepções de entrevistados que participaram numa pesquisa internacional sobre o funcionamento de delegacias de polícia em 20 países, incluindo o Brasil, uma das principais conclusões das autoras refere-se à discrepância entre os textos das leis que reconhecem os direitos humanos de grupos identitários discriminados na sociedade e as práticas policiais que ignoram tais direitos.
Por fim, o terceiro desafio aos direitos humanos e à justiça global que se destaca neste número dos e-cadernos CES refere-se à questão, examinada no texto de Mathias Thaler, sobre o pluralismo jurídico e religioso como forma de justificação dos direitos humanos, um tema que Thaler discutiu no Colóquio Internacional realizado no Centro de Estudos Sociais em Novembro de 2008 e que retoma e aprofunda neste texto. Ao examinar a questão da justificação religiosa dos direitos humanos, Thaler argumenta que é possível e desejável trilhar uma abordagem cultural e religiosa pluralista dos direitos humanos, propondo, assim, uma ruptura com o etnocentrismo europeu que invoca a
laicização dos direitos e do Estado, ao mesmo tempo que são utilizados argumentos religiosos judaico-cristãos na fundamentação pretensamente neutra e universal dos direitos humanos. Este debate é relevante não apenas em função da necessidade de se reconhecer a pluralidade de argumentos religiosos que fundamentam os direitos em diversas localidades, como também pela importância do reconhecimento de diversos aspectos do pluralismo cultural existente em todo o mundo. Se os direitos humanos têm, de facto, um potencial emancipatório, é fundamental que a diversidade cultural seja reconhecida e que os princípios e normas de direitos humanos emanem desta diversidade, em um diálogo intercultural, complexo e permanente, entre diversos actores que se localizam e transitam em variados espaços sociais e institucionais, desde aqueles envolvidos em relações sociais ditas “locais” até aos que ocupam as instâncias de poder consideradas “globais”.
Boaventura de Sousa Santos Cecília MacDowell dos Santos