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2 Metapsicologia 2.1. Comunicação Preliminar

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Metapsicologia

2.1.

Comunicação Preliminar

Em Comunicação Preliminar (1895[1893]/1990), texto que viria a constituir o primeiro capítulo de Estudos sobre a Histeria (1895/1990), Breuer e Freud apresentam um novo método de tratamento para a histeria, que consistia em evocar, através da hipnose, lembranças atribuídas ao período no qual os sintomas haviam surgido pela primeira vez. Isto implicava que essas lembranças estariam causalmente associadas ao fenômeno psicopatológico, ou mais do que isso: que tais lembranças seriam, elas mesmas, os agentes desencadeadores dos sintomas histéricos (Breuer & Freud, 1895/1990). Através da rememoração do evento original, em conjunção com o afeto vivenciado em tal ocasião, o paciente seria capaz de reviver a situação traumática e produzir uma ab-reação do afeto vinculado à representação psíquica do trauma. Todo o processo psicoterapêutico de cura era realizado através da fala (Breuer & Freud, 1895/1990).

Ao analisarmos o método introduzido por Breuer e Freud, em 1893, percebemos que o tratamento proposto por ambos está relacionado a uma concepção particular sobre a causa dos fenômenos psicopatológicos. Tal concepção ficou conhecida como 'teoria do trauma psíquico'. Esta teoria pretende atribuir ao sintoma uma causa externa, que ocasionaria um trauma psíquico no sujeito (Breuer & Freud, 1895/1990). A teoria do trauma psíquico só pode ser sustentada na medida em que se atribui um papel fundamental ao mecanismo da memória, capaz de registrar no psiquismo a representação de uma determinada situação traumática, bem como o afeto ligado à mesma. Igualmente importante para esta teoria é o papel atribuído à linguagem na formação dos sintomas. Freud afirma que há “uma relação “simbólica” entre a causa precipitante e o fenômeno patológico” (Breuer & Freud, 1895/1990, p. 43), uma relação análoga àquela encontrada na formação dos sonhos. Freud, juntamente com Breuer, também chama atenção para o fato de que a linguagem substitui a ação, oferecendo um efeito 'catártico' semelhante a uma reação adequada, na qual o afeto pode ser 'ab-reagido' (Breuer & Freud, 1895/1990).

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Ao realizar suas pesquisas clínicas, Breuer e Freud encontram material suficiente para estabelecer hipóteses sobre o mecanismo de formação dos sintomas histéricos, mecanismos análogos aos encontrados nas neuroses traumáticas. Não obstante, eles procuram articular o conhecimento adquirido em sua prática clínica com algumas concepções teóricas de sua época, como é o caso do associacionismo. De acordo com Breuer e Freud, se, por um lado, o afeto não ab-reagido é 'estrangulado', por outro lado, a representação psíquica de uma experiência traumática poderia ser isolada das outras representações psíquicas da cadeia associativa, sendo, portanto, suprimida da consciência. Neste caso, haveria uma ação psíquica intencional que produziria o recalque (Breuer & Freud, 1895/1990).

2.2.

O ‘Projeto’ freudiano

Em 1895, Freud escreve sua “Psicologia para neurologistas”, mais conhecido como Projeto para uma psicologia científica, publicado postumamente, em 1950. Nesta obra, Freud declara sua intenção de construir uma teoria psicológica fundamentada nas ciências naturais (Freud, 1950[1895]/1990). Toda a sua argumentação toma como ponto de partida dois conceitos: 1) o de uma

quantidade (Q) em movimento; e 2) o de neurônios como partículas materiais.

Não obstante, no Projeto, Freud utiliza um vocabulário neurológico para falar de noções psicológicas. Freud parte de observações clínicas acerca das psicopatologias de sua época para formular suas teorias. No entanto, não podemos descartar o fato de que Freud era neurologista e, tendo sido por alguns anos pesquisador nesta área, conhecia muito bem o funcionamento do sistema nervoso, de tal maneira que esses conhecimentos devem ter contribuído para um entendimento mais apurado das relações entre os conceitos que formulou.

No Projeto, Freud postula a existência de dois tipos de neurônios: 1) os neurônios phi (permeáveis), que permitem a passagem de Q sem que haja uma alteração no nível de excitação; e 2) os neurônios psi (impermeáveis), que permitem apenas uma passagem parcial de Q, devido à presença ativa das barreiras de contato. Assim, apenas os neurônios psi apresentam resistência à

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descarga e, portanto, podem representar uma memória (Freud, 1950[1895]/1990). Os neurônios phi, por sua vez, são responsáveis pela percepção sensível (o que envolve apenas a percepção de uma quantidade [sensação] e não de uma qualidade [percepção-consciência]). Segundo Freud, ainda, a função da memória está relacionada à existência de facilitações entre os neurônios psi, que tendem a torná-los menos impermeáveis, ou seja, semelhantes aos neurônios phi.

Freud ainda afirma que os neurônios psi, além de se comunicarem com os neurônios phi, recebem catexias (investimentos) a partir do interior do corpo ('estímulos endógenos'); “e é provável que os neurônios psi devam ser divididos em dois grupos: os neurônios de pallium, que são catexizados a partir de phi, e os neurônios nucleares, catexizados a partir das vias endógenas de condução” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 428). Para Freud, os estímulos endógenos possuem uma origem intercelular e são produzidos de forma contínua pelo organismo, sendo transformados em estímulos psíquicos apenas periodicamente. Segundo Freud, ainda, as Qs endógenas atuam apenas por soma de excitação, pois são originalmente constituídas de parcelas mínimas de excitação. É, portanto, a soma dessas parcelas mínimas que, eventualmente, chegará aos neurônios psi-nucleares. É somente quando as Qs endógenas chegam aos neurônios psi-nucleares que podemos caracterizá-las como 'pulsões'.

Em uma determinada passagem do Projeto, Freud passa a se referir ao 'problema da qualidade' e da 'consciência', os quais ele considera como fundamentais na elaboração de uma teoria psicológica, “independentemente do que se realiza do ponto de vista da ciência natural” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 418). Segundo Freud, os processos neuronais “devem ser considerados em sua totalidade, antes de mais nada, como inconscientes, e que devem ser inferidos como os demais fenômenos naturais” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 419). Contudo, é necessário que haja uma percepção qualitativa e consciente dos fenômenos e objetos da realidade externa. Esta percepção-consciência deveria emergir, segundo Freud, do sistema de neurônios psi.

Para resolver o problema acima, Freud postula a existência de um terceiro sistema de neurônios (futuro 'sistema Pcpt.-Cs.'), os neurônios ômega (perceptivos), que são excitados durante uma percepção, mas não durante uma reprodução (ou recordação), uma vez que não são dotados de memória. Estes neurônios seriam, então, os responsáveis pela percepção consciente das

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qualidades, e estariam catexizados (investidos) com uma Q mínima (inferior àquela que circula no sistema psi, porém provinda deste último sistema) (Freud, 1950[1895]/1990). Ao postular a existência dos neurônios ômega, Freud introduz a noção de temporalidade ou período. Assim, ele presume “que toda a resistência das barreiras de contacto se aplica somente à transferência de Q, mas que o período do movimento neuronal é transmitido a todas as direções sem inibição, como se fosse um processo de indução” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 421). Em última instância, os neurônios ômega não receberiam Q, mas apenas um período de excitação. Freud ainda acrescenta mais duas características ao sistema de neurônios ômega: 1) a capacidade de gerar motilidade (isto é, de transformar Q em movimento físico) - quando isto ocorre, há uma descarga e uma perda simultânea da qualidade e do período associado a esta; e 2) a capacidade de agregar sensações de prazer ou desprazer às qualidades.

A questão da 'qualidade' é um problema antigo nas ciências naturais, que nos remete a Aristóteles, o qual defendia ser “impossível fornecer uma dedução matemática da qualidade” (Koyré, 1982, p. 169). Assim, toda ciência moderna, a partir de Descartes, deixa de lado o problema da qualidade, por considerá-lo de ordem subjetiva. Não obstante, Freud procura incluir a 'qualidade' em seu sistema explicativo, uma vez que uma teoria psicológica completa não poderia prescindir dessa categoria epistemológica. Desta maneira, Freud se depara com os limites entre, por um lado, uma teoria baseada apenas em pressupostos das ciências naturais (segundo a qual a consciência seria um mero epifenômeno) e, por outro, uma teoria fenomenológica acerca da consciência. Isto fica claro na seguinte passagem:

Segundo uma avançada teoria mecanicista, a consciência é um mero apêndice aos processos fisiológico-psíquicos e sua omissão não acarretaria alteração na passagem psíquica [dos acontecimentos]. De acordo com outra teoria, a consciência é o lado subjetivo de todos os eventos psíquicos, e é assim inseparável do processo mental fisiológico. A teoria aqui elaborada situa-se entre essas duas (Freud, 1950[1895]/1990, p. 423).

Ainda no Projeto, Freud define o ego como sendo um conjunto específico de neurônios psi catexizados (investidos) e bem facilitados entre si; no entanto, o ego não é capaz de distinguir entre uma idéia (lembrança) e uma percepção sem que haja uma indicação da realidade. Esta indicação qualitativa (que,

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posteriormente, será chamada de 'teste da realidade') é, segundo Freud, provavelmente fornecida pelos neurônios ômega. Trata-se, para Freud, de encontrar um critério para estabelecer uma diferença entre a percepção alucinatória, proveniente da catexia de desejo no sistema psi, e a percepção qualitativa da realidade externa, que é uma função dos neurônios ômega. A percepção qualitativa da realidade só pode ser realizada de forma adequada, pelos neurônios ômega, se houver uma inibição, por parte do ego (catexizado), das intensas catexias de desejo provenientes do sistema psi. Caso contrário, o ego falha em sua função, e ocorrem as alucinações. É importante mencionar que, para Freud, uma catexia perceptiva é sempre uma catexia de complexos de neurônios, e nunca de neurônios isolados (Freud, 1950[1895]/1990). Tendo em vista a diferença entre percepção alucinatória e percepção qualitativa da realidade, Freud atribui ao pensamento a qualidade de ser um processo psíquico secundário; enquanto nos sonhos, por exemplo, predominam os processos psíquicos primários. Do ponto de vista econômico, portanto, o papel do ego seria o de realizar a

inibição dos processos psíquicos primários.

Sobre os afetos e estados de desejo, Freud (1950[1895]/1990) afirma que

ambos são aquilo que resta de uma experiência de satisfação e de dor, sendo produzidos a partir de um aumento de Q em psi. Entretanto, o afeto seria produzido a partir de uma elevação súbita de Q; enquanto que os estados de desejo seriam produto de uma soma de excitações. Ambos são, portanto, restos de experiências de prazer ou desprazer, isto é, tanto o afeto quanto os estados de desejo deixam rastros, ou facilitações, que podem estar relacionados a uma 'compulsão' (mais tardiamente em sua obra, Freud falará de uma 'compulsão à repetição' (Freud, 1920/2006)). A experiência de satisfação resulta numa “atração

de desejo primária” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 436); enquanto a experiência de

dor resulta numa “defesa [repúdio] primária”, isto é, num recalcamento (Freud, 1950[1895]/1990, p. 436). Tanto a atração de desejo quanto a defesa (recalcamento) seriam funções do ego.

Considerando o exposto acerca das hipóteses básicas do funcionamento do aparelho neuronal (desenvolvidas na Parte I do 'Projeto'), Freud segue seu projeto de realizar uma psicologia científica, acrescentando “alguns determinantes adicionais do sistema fundamentado nas hipóteses básicas” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 467). Neste sentido, Freud procura inferir esses

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determinantes adicionais a partir da análise dos processos patológicos com os quais ele se deparou em sua atividade clínica. Assim, aquilo que, num primeiro momento, havia sido deduzido à priori por Freud sofrerá, num segundo momento, acréscimos e eventuais correções a partir da análise dos dados clínicos.

Ao analisar a gênese da compulsão histérica, Freud (1950[1895]/1990) aponta para dois dados clínicos: 1) a existência de afetos penosos associados a idéias (lembranças) desagradáveis, às quais, por sua vez, sofrem recalcamento; e 2) a natureza sexual das idéias (lembranças) recalcadas.

De acordo com Freud, o afeto que originalmente estava associado a uma determinada idéia (lembrança) é deslocado para outra idéia. A lembrança (idéia) original é, portanto, recalcada, permanecendo no psiquismo como um “complexo de catexias” que desenvolve uma resistência “extraordinariamente forte e difícil de vencer” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 472). O deslocamento do afeto para outra idéia, por sua vez, explica o caráter compulsivo na histeria. Entretanto, Freud se coloca a seguinte questão: como um processo psíquico oriundo do ego - o recalcamento histérico - pode realizar 'formações simbólicas', que, por sua vez, são processos primários encontrados particularmente nos sonhos? E mais: por que “tudo isso ocorre apenas na esfera sexual” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 474)?

Freud, então, vai utilizar um exemplo clínico (o ‘caso Emma’) para mostrar como duas cenas, ambas registradas no psiquismo, podem estabelecer uma relação associativa entre si através da formação de símbolos. Neste caso, “[...] é muito comum uma associação passar por uma série de vínculos intermediários inconscientes antes de chegar a um que seja consciente” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 478). Assim, a lembrança de uma cena originária pode despertar, num segundo momento, uma liberação sexual que não estava presente num primeiro momento. É só então que o afeto penoso se transforma em angústia. Portanto, as histéricas “recalcam lembranças que só se tornaram traumáticas por ação retardada” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 478). Freud, neste momento, relaciona essa 'ação retardada' ao papel atribuído à maturação sexual tardia, que ocorre somente na puberdade. Sobre o afeto, Freud afirma, ainda, que o “curso normal do pensamento” pode ser inibido pela “geração de afeto” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 480). Assim, a irrupção de um afeto intenso (como o de angústia, por exemplo) pode interromper um ato ou um pensamento; neste caso, prevalece a via facilitada anteriormente. Isto pode ocorrer, por exemplo, num ato

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falho ou num esquecimento, e “envolve o desaparecimento da [capacidade de] seleção, da eficiência e da lógica no decurso [do pensamento], tal como acontece nos sonhos” (Freud, 1950[1895]/1990, p. 480).

Tendo em vista o que já foi dito sobre o afeto, é importante acrescentar uma das definições mais importantes na obra freudiana acerca do conceito econômico de (quota de) afeto:

[...] nas funções mentais, deve-se distinguir algo – uma carga de afeto ou soma de excitação – que possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos meios de medi-la) passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os traços mnêmicos das representações como uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo (Freud, 1894/1990, p. 65).

Em outras palavras, podemos dizer que as quantidades atribuídas aos afetos podem variar de acordo com a intensidade da experiência inscrita na forma de traço mnêmico, ou representação, no psiquismo. Trata-se, portanto, de uma definição econômica do afeto, que privilegia o seu aspecto quantitativo em detrimento do qualitativo. Segundo o próprio Freud (1894/1990), ele já tinha em mente esta definição quando escreveu com Breuer a Comunicação Preliminar (1895[1893]/1990).

2.3.

Tradução e memória

Na 'Carta 52', escrita em 6 de dezembro de 1896 e destinada a Fliess, Freud desenvolve a hipótese de que o aparelho psíquico é estratificado em diversos níveis de memória, e que os traços de memória que compõem o conteúdo de cada nível do aparelho psíquico devem passar por uma retranscrição (Freud, 1950[1896]/1990), ou tradução, se ajustando ao modo de organização do nível posterior. Assim, há uma seqüência de traduções dos traços mnêmicos que permite um rearranjo periódico do material psíquico.

Freud não se propõe a estabelecer o número exato de registros do traço mnêmico no psiquismo, porém trabalha com a hipótese de três registros: o da indicação da percepção (Wz), cujo modo de organização supõe a existência de

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associações por simultaneidade entre as percepções; o da inconsciência (Ub), cujo conteúdo consiste em lembranças conceituais que possuem uma relação de causalidade entre si; e, por último, o da pré-consciência (Vb), cujo conteúdo consiste em representações verbais, correspondendo ao domínio do ego. O material pré-consciente (Vb) poderia se tornar consciente segundo determinadas regras (Freud, 1950[1896]/1990), de modo que as representações verbais encontradas no pré-consciente (Vb) seriam ativadas de forma alucinatória e percebidas pelos neurônios responsáveis pela percepção-consciência (neurônios

ômega).

Segundo Freud (1950[1896]/1990), cada registro do material psíquico aponta para uma época diferente da vida do indivíduo. A tradução do material é realizada na passagem de uma época da vida à outra. O material não-traduzido de uma determinada época poderia permanecer em atividade, contribuindo causalmente para a aparição dos sintomas psiconeuróticos. De acordo com Freud, ainda, a coexistência dos diversos registros de memória, com modos de organização próprios, aponta para um anacronismo inerente ao psiquismo. Freud também afirma que uma falha no processo de tradução é o que caracteriza, do ponto de vista clínico, o ‘recalcamento’(Freud, 1950[1896]/1990).

A tradução do material psíquico, segundo Freud (1950[1896]/1990), produz desprazer. O modo de organização de um determinado nível de memória (instância) é capaz de realizar uma defesa normal diante do desprazer. Contudo, tal defesa se torna patológica na medida em que o material não-traduzido persiste num determinado nível, influenciando o nível de memória imediatamente posterior. Assim, a liberação de desprazer seria responsável pelo recalcamento, enquanto a liberação de prazer, que não é inibida, seria responsável por uma

compulsão (Freud, 1950[1896]/1990).

2.4.

Os sonhos e o aparelho psíquico

Em 1900 [1899], Freud publica a obra inaugural da psicanálise, A

Interpretação de Sonhos (Freud, 1900/2001). Entre outras coisas, Freud afirma, a

partir de seu estudo sobre os sonhos, a existência de um determinismo psíquico,

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ou seja, a idéia de que nada que se passa na mente humana pode ser arbitrário (Freud, 1900/2001).

O modelo de aparelho psíquico construído por Freud em A Interpretação

de Sonhos difere dos anteriores na medida em que se trata de um modelo

puramente psicológico, sem a preocupação de localizar as instâncias psíquicas em regiões anatômicas do sistema nervoso. Essas instâncias, ou sistemas psíquicos, se relacionam entre si de forma dinâmica e podem ser entendidos como o sistema psi que Freud desenvolve no Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950[1895]/1990).

O aparelho anímico criado por Freud pode ser descrito como dotado de um sentido ou direção (Freud, 1900/2001), que vai do pólo sensitivo ao pólo motor. Freud chama o pólo sensitivo de sistema Pcpt., o qual não possui memória. Os diversos níveis de memória (processos psíquicos) - que já haviam sido mencionados na 'Carta 52' – situam-se, por sua vez, entre o pólo sensitivo e o pólo motor. Portanto, assim como o modelo apresentado na 'Carta 52', o novo modelo é baseado na existência de traços mnêmicos, os quais possuem a função de memória e são responsáveis pelas associações. Ademais, o modelo proposto por Freud no capítulo VII de A Interpretação de Sonhos é muito semelhante àquele apresentado no Projeto (Freud, 1950[1895]/1990).

Não obstante, a partir deste momento, Freud passa a introduzir novos sistemas psíquicos em seu novo modelo de aparelho anímico. Situado na proximidade do pólo motor – portanto, responsável pelo movimento voluntário - está o sistema pré-consciente (Pcs.), cujos processos excitatórios podem ter acesso à consciência

sem maiores empecilhos, desde que certas condições sejam satisfeitas: por exemplo, que eles atinjam certo grau de intensidade, que a função que só se pode descrever como “atenção” esteja distribuída de uma dada maneira, etc (Freud, 1900/2001, p. 521).

Continuando no sentido regressivo do aparelho anímico, encontraremos o sistema inconsciente (Ics.), ou simplesmente ‘o inconsciente’, que só pode ter acesso à consciência através do pré-consciente e mediante uma série de modificações no curso de seu processo excitatório. Segundo Freud, o impulso (desejo) responsável pela formação dos sonhos se encontra originariamente no sistema inconsciente

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(Ics.). Já “no caso das crianças, onde ainda não há divisão ou censura entre o Pcs. e o Ics., ou onde essa divisão se está apenas instituindo gradualmente, trata-se de um desejo não realizado e não recalcado da vida de vigília” (Freud, 1900/2001, p. 532). De acordo com Freud, ainda, “a censura entre o Ics. e o Pcs., cuja existência os sonhos nos obrigaram a supor, merece ser reconhecida e respeitada como a guardiã de nossa saúde mental” (Freud, 1900/2001, p. 545).

Em A Interpretação de Sonhos, Freud faz algumas considerações acerca

dos afetos. Segundo o psicanalista, a geração de um afeto deve ser atribuída a “uma função motora ou secretória, a chave de cuja inervação reside nas representações do Ics” (Freud, 1900/2001, p. 558). Assim, para Freud, a origem dos afetos se dá a partir das representações inconscientes. É o processo de recalcamento que transforma um afeto originalmente de natureza prazerosa num afeto desprazeroso, que é vivenciado como angústia no Pcs (Freud, 1900/2001).

A respeito da consciência (Cs.), Freud a define como “um órgão sensorial

para a percepção de qualidades psíquicas” (Freud, 1900/2001, p. 587). Assim,

Freud aproxima a consciência ao sistema Pcpt., de tal maneira que podemos chamar este sistema de Pcpt.- Cs.

2.5.

O recalque

Em 1915, no artigo metapsicológico O Recalque (Freud, 1915/2004), Freud introduz, pela primeira vez, uma distinção entre recalque primário (ou originário) e recalque secundário. Segundo Freud (1915/2004), o recalque, como mecanismo de defesa, não está presente desde o início. Isto implica que deve existir um recalque originário, o qual é responsável pela separação “entre a atividade psíquica consciente e inconsciente” (Freud, 1915/2004, p. 178). Freud ainda acrescenta, sobre o recalque, que “sua essência consiste apenas na ação de

repelir algo para fora do consciente e de mantê-lo afastado deste” (Freud,

1915/2004, p. 178).

De acordo com Freud, então, existiria um recalque originário (ou recalque primário), cuja função “consiste em interditar ao representante [Repräsentanz] psíquico da pulsão (à sua representação mental [Vorstellung]) a entrada e

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admissão no consciente” (Freud, 1915/2004, p. 178-9). Ocorre, então, uma

fixação do representante psíquico (representação) no sistema Ics., ou seja, a

representação inconsciente permanece inalterada e ligada a uma pulsão. O recalque propriamente dito (ou recalque secundário), por sua vez, “refere-se a representações derivadas do representante recalcado ou ainda àquelas cadeias de pensamentos que, provindo de outros lugares, acabam estabelecendo ligações [Beziehungen] associativas com esse representante” (Freud, 1915/2004, p. 179). Para Freud, ainda, o destino do material recalcado é sempre o mesmo do originalmente recalcado. “O recalque propriamente dito é, portanto, um pós-calcar [Nachdrängen]” (Freud, 1915/2004, p. 179), afirma Freud.

A tendência recalcante se realiza, assim, devido ao movimento de repulsão do material recalcado, a partir do sistema Pcs. / Cs., em conjunção com um movimento de atração desse mesmo material por parte do núcleo originalmente recalcado. Segundo Freud (1915/2004), o representante pulsional continua atuando no sistema Ics. sem sofrer perturbações, de modo que o único sistema psíquico que, de fato, sofre perturbações pela existência do recalque é o sistema

Pcs. / Cs.

Podemos, então, ampliar a compreensão a respeito do recalque se pensarmos na existência dessa cadeia de pensamentos que, segundo Freud (1915/2004), está ligada por meio de associações ao núcleo originalmente recalcado. Assim, quanto mais distante do originalmente recalcado uma representação dessa cadeia se encontra, menos estaria submetida à força atrativa desse núcleo originalmente recalcado e, conseqüentemente, seu acesso à consciência seria mais fácil. Portanto, no que diz respeito ao recalque propriamente dito, há uma dinâmica que favorece o acesso à consciência quando uma representação se encontra mais distante do originalmente recalcado. Em suma, o núcleo originalmente recalcado se encontra fixado num ponto estabelecido (o sistema Ics.) do aparelho psíquico, enquanto os representantes derivados estão submetidos a um movimento dinâmico e se encontram num ponto qualquer da cadeia de pensamentos do sistema Pcs. / Cs.

Do ponto de vista econômico, Freud (1915/2004) afirma que a magnitude (ou intensidade) do investimento (catexia) realizado numa determinada representação da cadeia de pensamentos no sistema Pcs. / Cs. pode influenciar, de um modo geral, a capacidade de tornar essa representação consciente ou

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inconsciente. O critério estabelecido, portanto, para o recalque propriamente dito é, mais uma vez, o dinâmico. Trata-se, neste caso, de um inconsciente dinâmico. Freud também vai mencionar a existência de outro representante psíquico: a quota de afeto (Freud, 1915/2004). Este elemento quantitativo presente no sistema Ics. pode ser reconhecido como um afeto do ponto de vista do Pcs. / Cs. Freud examinará o problema dos afetos inconscientes no artigo metapsicológico O

Inconsciente (Freud, 1915/2006), como veremos adiante.

Há, portanto, dois representantes psíquicos da pulsão: a representação e a quota de afeto. As representações, como vimos, podem ser recalcadas. Já a quota de afeto, segundo Freud (1915/2004), pode ter três destinos: 1) é suprimida [unterdrückt]; 2) transforma-se em qualidade, isto é, em afeto propriamente dito; ou 3) converte-se em angústia [Angst]. De acordo com Freud (1915/2004), o sucesso do recalque se dá pela ausência de desprazer ou angústia, isto é, pela supressão da quota de afeto. Mesmo que a representação aflitiva seja recalcada, isto não impede que a quota de afeto se transforme em angústia; neste caso, a finalidade última do recalque não se realiza.

Até agora, pudemos reconhecer a existência de três fenômenos psíquicos que estão inseridos dentro de uma noção mais geral de 'recalque', quais sejam: 1) o recalque originário (ou primário); 2) o recalque propriamente dito (ou secundário); e 3) a supressão. Freud (1915/2004) acrescenta mais um fenômeno psíquico que está ligado à noção de 'recalque': o retorno do recalcado. Este último se manifesta através das formações substitutivas e dos sintomas.

2.6.

O Inconsciente

A primeira tentativa de apresentar uma definição mais completa dos vários sentidos atribuídos ao termo 'inconsciente' foi realizada por Freud em 1912, no artigo intitulado Alguns Comentários sobre o Conceito de Inconsciente na

Psicanálise (Freud, 1912/2004). Neste artigo, Freud procura deixar claro que sua

concepção de 'psíquico' vai além da 'consciência', incluindo os processos denominados 'inconscientes'. Freud atribui ao termo 'inconsciente' três sentidos: 1) descritivo; 2) dinâmico; e 3) sistemático.

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Segundo Freud, toda representação que se encontra latente, isto é, fora da consciência, pode ser considerada como 'inconsciente no sentido descritivo'. Neste sentido, a maior parte dos processos em atividade no aparelho psíquico - o que inclui toda atividade mnêmica (memória) e associativa - são inconscientes (Freud, 1912/2004). Se, no entanto, considerarmos que uma representação está inserida numa cadeia associativa, e que permanece ativa mesmo em estado latente, então estaremos tratando de um 'inconsciente dinâmico'. Podemos considerar o inconsciente recalcado (i.e., aquelas representações submetidas ao 'recalque secundário') como idêntico ao inconsciente dinâmico (Freud, 1912/2004). Neste caso, a representação recalcada continua atuando e influenciando a cadeia de pensamentos, mesmo sem poder tornar-se consciente. As representações da cadeia que são passíveis de se tornarem conscientes, por sua vez, são denominadas de pré-conscientes. De acordo com Freud (1912/2004), a princípio, não podemos dizer se a atividade inconsciente e a pré-consciente possuem, ou não, uma mesma natureza; contudo, a diferença entre esses dois processos se torna evidente na medida em que consideramos a existência do recalque.

Freud ainda acrescenta um último e importante sentido ao termo 'inconsciente': trata-se do inconsciente enquanto sistema, denominado Ics. ou simplesmente ‘o inconsciente’. De acordo com Freud, o sistema Ics. “se revela por meio de um signo indicativo da inconsciência de cada um dos processos psíquicos que o compõem” (Freud, 1912/2004, p. 89), ou ainda: “O valor do inconsciente como signo, ou marca indicativa, ultrapassou em muito a importância de seu significado como propriedade” (Freud, 1912/2004, p. 89).

É, contudo, no artigo metapsicológico O Inconsciente (Freud, 1915/2006), de 1915, que Freud realiza a mais completa descrição desse conceito fundamental em psicanálise. Não obstante, nesse artigo, Freud só utiliza os sentidos descritivo e sistemático do termo 'inconsciente'. O sentido dinâmico, neste caso, parece estar incluído no sentido sistemático do termo. Podemos considerar, então, o inconsciente dinâmico (recalcado) como uma parte do sistema Ics., sendo a outra parte o núcleo originalmente recalcado que jamais se torna consciente (Laplanche, 1997). Segundo Freud, ainda, só podemos conhecer o inconsciente quando o mesmo “sofre uma transposição ou tradução para o consciente” (Freud, 1915/2006, p. 19). Esta tradução, portanto, seria uma função do recalque originário (Laplanche, 1997).

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No capítulo II do artigo O Inconsciente, Freud se refere mais precisamente ao ponto de vista tópico. De acordo com o psicanalista, o ponto de vista tópico poderia ser deixado de lado em função do ponto de vista econômico, contudo perderíamos muito acerca das vantagens que o ponto de vista tópico poderia nos oferecer na tentativa de compreender de forma mais ampla as relações entre o consciente e o inconsciente (Freud, 1915/2006). É neste sentido que Freud opõe o sistema Ics. ao sistema Pcs. / Cs.

Não obstante, surge um problema:

Quando um ato psíquico (e limitemo-nos aqui a atos como idéias [Vorstellungen]) passa do sistema Ics. para o sistema Cs. (ou Pcs.), devemos supor que essa transição implica uma nova fixação, isto é, um processo análogo a um novo segundo registro da referida idéia? Portanto, que também a nova inscrição estaria situada numa nova localidade psíquica, que a partir de então passaria a existir em paralelo ao antigo registro inconsciente original? Ou devemos supor que a transposição consiste em uma mudança de estado que se aplica ao mesmo material e no mesmo local? (Freud, 1915/2006, p. 26).

Com esta questão, Freud introduz a problemática: hipótese tópica versus hipótese

dinâmica (ou funcional) (Garcia-Roza, 1996).

A hipótese tópica remete ao modelo introduzido por Freud na 'Carta 52', o qual atribui ao aparelho psíquico a coexistência de vários registros de memória. Este modelo parece apropriado quando pretendemos, entre outras coisas, sustentar a hipótese de que há uma função de tradução psíquica.

Freud considera a hipótese tópica “a mais grosseira, mas também a mais cômoda” (Freud, 1915/2006, p. 27). Por outro lado, considera a hipótese dinâmica (ou funcional) como “a mais provável, embora menos plástica e mais difícil de manipular” (Freud, 1915/2006, p. 27). Por fim, Freud não se decide por nenhuma das duas hipóteses (mas de maneira alguma irá abandoná-las), na esperança de encontrar outros fatores que possam determinar melhor qual das hipóteses apresentadas é a mais adequada. Outra possibilidade levantada por Freud (1915/2006) seria a de uma reformulação da questão em outros termos, o que sugeriria uma redefinição dos conceitos de 'consciente' e 'inconsciente' (que ele fará poucos anos depois, introduzindo a 2ª tópica) (Freud, 1923/1990).

O capítulo III de O Inconsciente, por sua vez, é todo dedicado à investigação da problemática dos ‘sentimentos inconscientes’. Segundo Freud (1915/2006), uma pulsão pode ser inconsciente (na verdade, esta é a sua origem);

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no entanto não poderiam existir sentimentos ou afetos inconscientes, uma vez que isso deveria envolver uma percepção consciente dos mesmos. Não obstante, na clínica psicanalítica, utilizamos descrições como “amor, ódio, raiva, etc. inconscientes” (Freud, 1915/2006, p. 29), ou ainda falamos na existência de um 'sentimento inconsciente de culpa'. Como poderíamos, então, explicar esse uso prático que a psicanálise faz do termo 'afetos inconscientes'? De acordo com Freud, apenas a representação pode ser recalcada (tornando-se, portanto, inconsciente); a quota de afeto, que deveria estar ligada à representação original, é deslocada para outra representação, a qual atribuirá à quota de afeto uma qualidade (Freud, 1915/2006). Esta qualidade seria o afeto propriamente dito. Assim, quando atribuímos o caráter inconsciente aos afetos (amor, ódio, raiva, culpa, etc.), estamos nos referindo à quota de afeto original, que não se expressa como qualidade, mas apenas quantitativamente.

No capítulo IV de O Inconsciente, Freud volta a abordar a economia envolvida no(s) processo(s) de recalque. Freud atribui ao recalque secundário o caráter de um desinvestimento. Neste caso, de acordo com Freud, prevalece a hipótese dinâmica (ou funcional) sobre a hipótese tópica (Freud, 1915/2006). Uma vez que a hipótese tópica é ameaçada, a definição de recalque primário (originário) também estaria comprometida, “pois, no recalque original já preexiste uma idéia [Vorstellung] inconsciente que ainda não recebeu a carga do Pcs, de modo que não haveria carga pré-consciente a ser retirada dessa representação” (Freud, 1915/2006, p. 32). Para resolver este problema, Freud postula a existência de “um contra-investimento de carga por meio do qual o sistema Pcs se protege da pressão de retorno ao consciente exercida pela idéia [Vorstellung]” (Freud, 1915/2006, p. 32). Assim, Freud apenas atualiza uma idéia que já estava contida no capítulo VII de A Interpretação de Sonhos (Freud, 1900/2001) a respeito das catexias (investimentos), o que caracteriza o ponto de vista econômico. Freud, então, apresenta uma definição completa do que ele denomina de 'metapsicologia': “Sugiro chamar toda descrição do processo psíquico que envolva as relações

dinâmicas, tópicas e econômicas de descrição metapsicológica” (Freud,

1915/2006, p. 33).

No Capítulo V de O Inconsciente, Freud descreve as características próprias do sistema Ics., as quais irão se distinguir daquelas atribuídas ao sistema

Pcs. / Cs. Freud se refere ao conteúdo do núcleo do sistema Ics. utilizando três

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denominações diferentes: “representantes pulsionais”, “impulsos de desejo” e “impulsos pulsionais” (Freud, 1915/2006). Todos esses termos, portanto, teriam o mesmo sentido. Esses conteúdos do Ics., segundo Freud (1915/2006), estão investidos de uma determinada carga (quota de afeto). No Ics., ainda, não há

negação. Os únicos dois processos que ocorrem no sistema Ics. são denominados

de deslocamento e condensação.

O deslocamento se caracteriza por uma passagem da carga (quota de afeto)

de uma representação (idéia) para outra. Já a condensação ocorre quando uma representação (idéia) se apropria da carga de investimento (quota de afeto) provinda de outras representações (idéias). Os dois processos citados caracterizam o que Freud denomina de processo psíquico primário (Freud, 1915/2006). Além da ausência de contradição (ou negação) e da vigência do processo primário, podemos caracterizar os processos que ocorrem no sistema Ics. como sendo

atemporais e dotados de uma realidade psíquica, a qual obedece somente ao princípio de prazer (Freud, 1915/2006).

Em oposição ao sistema Ics., o sistema Pcs. / Cs. caracteriza-se pela predominância do processo psíquico secundário; pela presença de uma

temporalidade; pela vigência do princípio de realidade; pela aplicação do teste de realidade; e pela introdução de censuras (que correspondem às diferentes

modalidades do recalque) (Freud, 1915/2006). No que diz respeito à memória consciente, Freud afirma que o sistema Pcs. / Cs. exerce um papel fundamental. Contudo, para Freud, a memória [Gedächtnis] se diferencia dos “traços da lembrança [Erinnerungsspuren] nos quais se fixam as vivências do Ics” (Freud, 1915/2006, p. 39).

A divisão em dois grandes sistemas – o Ics. e o Pcs. / Cs. - é um recurso que Freud utiliza para teorizar acerca de suas observações clínicas. Contudo, segundo o próprio Freud, esta divisão tópica não pretende ser definitiva ou acabada, nem se apresenta como algo simples (Freud, 1915/2006). A divisão tópica, na verdade, está embasada na existência de processos dinâmicos. Em outras palavras, podemos dizer que a economia psíquica (que se caracteriza pelos complexos afeto/representação e seus investimentos) possibilita a existência de uma dinâmica psíquica (que se caracteriza pelas diferentes relações funcionais estabelecidas entre os inúmeros complexos afeto/representação), que, por sua vez, permite realizar uma divisão tópica (que é caracterizada pela divisão em sistemas

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psíquicos e pelas relações dinâmicas entre esses sistemas). Por isso, é tão difícil optar entre a hipótese tópica e a hipótese dinâmica, uma vez que se pode dizer que há uma relação de constituição (Baker, 2002) entre as diversas dimensões (econômica, dinâmica e tópica) que compõem a metapsicologia.

Sobre os derivados dos representantes pulsionais do sistema Ics., Freud (1915/2006) afirma que, do ponto de vista qualitativo, os mesmos pertencem ao sistema Pcs. / Cs.; contudo, efetivamente pertencem ao Ics, o que explicaria o seu retorno à origem no processo de recalque. De acordo com Freud, a passagem de um sistema ao outro envolve a existência de uma censura, o que caracteriza o processo de recalque. Neste sentido, Freud afirma “que a cada passagem de um sistema para o imediatamente superior, ou seja, que a cada progresso para um nível maior de organização psíquica, corresponda uma nova censura” (Freud, 1915/2006, p. 41). Assim, além da censura existente entre o Ics. e o Pcs., haveria uma nova censura entre o Pcs. e o Cs.

Podemos, portanto, caracterizar a censura entre o Ics. e o Pcs. como sendo estabelecida pelo recalque originário. Os derivados que contornam essa censura seriam submetidos a uma tradução (ou transcrição) - se levarmos em consideração a hipótese formulada por Freud na 'Carta 52' - e entrariam propriamente na dimensão da linguagem.

No capítulo VII do artigo metapsicológico O Inconsciente, Freud introduz a distinção entre os dois tipos de representações que atuam no aparelho psíquico: a

representação-de-palavra [Wortvorstellung] e a representação-de-coisa

[Sachvorstellung]. Ambas provêm da percepção sensorial e formariam o que Freud denomina de ‘representação-de-objeto’, que, por sua vez, consiste na representação total e consciente que temos de um determinado objeto (Freud, 1915/2006). Sobre a representação-de-coisa, Freud afirma que esta “consiste no investimento de cargas – se não nas imagens diretas da lembrança-de-coisa [Sacherinnerungsbilder] -, nos traços de lembrança que estão mais distantes e derivam dessas lembranças” (Freud, 1915/2006, p. 49). Aqui, Freud desconsidera tanto a hipótese tópica quanto a hipótese dinâmica (funcional). De acordo com Freud, uma representação consciente, portanto, consiste na soma da representação-de-coisa e da representação-de-palavra; enquanto, por outro lado, a representação inconsciente consistira apenas na representação-de-coisa. Não obstante, “a vinculação a representações-de-palavra ainda não coincide com o

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afloramento da consciência, mas apenas possibilita que isso aconteça, ou seja, essa vinculação apenas caracterizaria o sistema Pcs” (Freud, 1915/2006, p. 50). Segundo Freud, ainda: “O sistema Ics contém os investimentos de carga referentes à coisa [Sache] que faz parte do objeto; na verdade, estes são os primeiros e verdadeiros investimentos de carga no objeto” (Freud, 1915/2006, p. 49). Assim, podemos compreender a origem inconsciente das quotas de afeto. Já o sistema

Pcs. / Cs. surge quando se acrescenta um sobreinvestimento de carga

[Überbesetzung] ao complexo representação-de-coisa / representação-de-palavra. De acordo com Freud, é este sobreinvestimento de carga que possibilita a instauração do processo secundário no sistema Pcs. / Cs., dando origem, portanto, a um modo de organização psíquica distinto daquele existente no sistema Ics.

Freud afirma, então, que o recalque consiste na rejeição de uma idéia (ou representação), isto é, o indivíduo que recalca “está recusando-se a aceitar a tradução da representação em palavras, pois essas palavras devem continuar associadas ao objeto. É a representação não revestida de palavras ou o ato psíquico que não esteja sobreinvestido que permanecerá como material recalcado no Ics” (Freud, 1915/2006, p. 49). Como podemos perceber, Freud considera a possibilidade de uma “tradução da representação em palavras”, o que é compatível com as idéias que defende na 'Carta 52'. O processo de tradução seria, então, uma função do recalque originário. O resto não-traduzido, portanto, permaneceria como material recalcado no sistema Ics. Se considerarmos a existência de um recalque originário que é responsável pela cisão entre os sistemas Ics. e Pcs. / Cs., e que estaria na base do processo de tradução psíquica (pois introduz o sujeito ao campo da linguagem), então não temos como deixar de aceitar a hipótese tópica. Em outras palavras, não há como apresentar uma descrição do aparelho psíquico sem levar em consideração as hipóteses tópica e/ou dinâmica (funcional). Se Freud, ao se referir aos tipos de representações, deixa de lado a problemática 'hipótese tópica versus hipótese dinâmica', que ele mesmo introduz no início do artigo O Inconsciente (Freud, 1915/2006), isto não quer dizer necessariamente que, ao final deste mesmo artigo, ele abandone o problema ou apresente uma solução definitiva para o mesmo.

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2.7.

Compulsão à repetição

Em Além do Princípio de Prazer (Freud, 1920/2006), Freud volta a

enfatizar o ponto de vista econômico, resgatando idéias que já estavam presentes no 'Projeto' (Freud, 1950[1895]/1990). Freud ressalta que uma investigação metapsicológica completa deve contemplar não apenas os pontos de vista tópico e dinâmico, mas também o econômico. Neste sentido, Freud inicia seu texto de 1920 afirmando que, até então, a teoria psicanalítica reconhecia no princípio de prazer o regulador, por excelência, dos processos psíquicos. Entretanto, a partir de 1920, Freud vai apresentar novos dados que apontam para a existência de um 'além do princípio do prazer' que regularia os processos psíquicos mais arcaicos. Desta forma, Freud introduz modificações importantes no âmbito da teoria psicanalítica; modificações estas que irão levá-lo a formular a segunda tópica do aparelho psíquico (id, ego e superego), como veremos mais adiante.

Inicialmente, Freud reconhece que o princípio de prazer é um derivado direto do princípio de constância, uma vez que sua função é manter o menor possível a quantidade de excitação no aparelho psíquico (contudo, esta questão permanece em aberto no final do texto de 1920). O princípio de constância, por sua vez, já havia sido postulado por Freud em 1895, no Projeto para uma

psicologia científica (Freud, 1950[1895]/1990), como um dos princípios gerais

que regem o aparelho neuronal. Portanto, o princípio de prazer corresponderia a um derivado do princípio de constância que atuaria especificamente no aparelho psíquico (muito embora não seja o único modo regulador deste último, como ficará evidente a partir de 1920).

Os primeiros dados clínicos que irão contribuir para uma revisão da metapsicologia freudiana foram extraídos do exame das 'neuroses traumáticas', mais especificamente das neuroses de guerra. Freud observa duas características nas neuroses de guerra: 1) a presença de um fator surpresa, o susto [Schreck]; e 2) a presença de um trauma físico, um ferimento que acarreta numa perda de tecidos, órgãos ou membros do corpo, e impede o aparecimento do trauma psíquico e, conseqüentemente, o aparecimento da neurose (Freud, 1920/2006). A segunda característica observada por Freud não deixa de ser um fato curioso, uma vez que o trauma físico parece funcionar como uma 'vacina' contra o trauma psíquico. A

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primeira característica, por sua vez, enfatiza o elemento surpresa, o susto [Schreck], situação na qual um indivíduo estaria desprevenido, ou seja, não haveria uma expectativa diante do perigo iminente. Neste sentido, parece que a angústia [Angst] funcionaria como proteção numa situação de perigo, uma vez que a expectativa gerada pela possibilidade do perigo ajudaria o indivíduo a se preparar para o mesmo (Freud, 1920/2006). Esta questão será retomada por Freud, seis anos mais tarde, em Inibições, Sintomas e Ansiedade (Freud, 1926/1990).

A existência da neurose traumática (neuroses de guerra), como manifestação clínica evidente, somada à ocorrência de sonhos “traumáticos” (como exceção à máxima dos sonhos enquanto realização de desejos) e à repetição observada nas brincadeiras infantis (jogo infantil do “fort – da”); enfim, todos esses dados clínicos irão levar Freud a supor a existência de uma compulsão

à repetição, que se caracterizaria como modo regulador do 'além do princípio de

prazer' (Freud, 1920/2006).

O conceito de 'repetição' já havia sido formulado por Freud em 1914, no artigo técnico intitulado Recordar, repetir e elaborar (Freud, 1914a/1990). Neste texto, Freud afirma que a repetição geralmente se manifesta através da atuação (acting out) do sujeito em análise. Neste sentido, poderíamos falar de uma

tendência repetitiva. Não obstante, a compulsão à repetição é mais evidente

quando possui um suporte no ego, como é o caso das neuroses traumáticas. Neste outro sentido, por sua vez, estaríamos tratando de uma tendência restitutiva, “que procura por diversos meios restabelecer a situação anterior ao traumatismo” (Laplanche & Pontalis, 1996, p. 85). Outro suporte, semelhante ao ego, para a compulsão à repetição, seria o brincar (jogo infantil do “fort – da”), tendo em vista que, ao brincar, a criança está tentando expressar algo que é da ordem de uma repetição, o que é uma forma de fortalecer o seu ego em formação.

Portanto, podemos entender a compulsão à repetição como “uma tendência

repetitiva que define o id” em contraposição a “uma tendência restitutiva que é

uma função do ego” (Laplanche & Pontalis, 1996, p. 85). Estas duas concepções acerca do conceito de compulsão à repetição, originalmente elaboradas por Edward Bibring e resgatadas por Laplanche e Pontalis (1996), podem ser bastante úteis quando buscamos compreender os diferentes papéis atribuídos ao id e ao ego dentro da teoria psicanalítica (os conceitos de 'id' e 'ego' serão discutidos mais adiante). Podemos acrescentar, ainda, que a tendência repetitiva da compulsão à

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repetição é a que predomina no texto Recordar, repetir e elaborar (Freud, 1914a/1990); enquanto a tendência restitutiva da compulsão à repetição é melhor apresentada em Além do Princípio de Prazer (Freud, 1920/2006).

Podemos atribuir, então, à compulsão à repetição a função de regular os processos psíquicos mais arcaicos, os quais constituem o núcleo originalmente recalcado do sistema Ics. Neste sentido, Freud afirma que “a compulsão à repetição deve ser atribuída ao recalcado inconsciente” (Freud, 1920/2006, p. 145). Por outro lado, afirma que: “Não há dúvida de que a resistência consciente e pré-consciente do Eu esteja a serviço do princípio de prazer, pois ela procura evitar o desprazer que seria provocado pela liberação do recalcado” (Freud, 1920/2006, p. 145). Aqui, fica claro que a primeira tópica freudiana começa a dar lugar à segunda tópica. Isto fica mais evidente quando Freud opõe o “Eu coerente” ao “recalcado”, e quando afirma que: “Com certeza, grande parte do Eu é em si mesma inconsciente, justamente o que se pode chamar de núcleo do Eu” (Freud, 1920/2006, p. 145). Portanto, Freud passará a conceber o Eu (ego) como uma estrutura que pode ser tanto consciente como pré-consciente, e mesmo inconsciente. Por outro lado, há o recalcado que jamais se torna consciente, o qual será considerado como parte do ‘id’ na segunda tópica. Assim, o Eu (ego) está a serviço do princípio de prazer; enquanto o ‘id’ parece ser regulado por um 'além do princípio de prazer', isto é, por uma 'compulsão à repetição'.

Tendo em vista, as modificações realizadas no pensamento conceitual freudiano, o próprio Freud se pergunta: “Mas então surge a questão de como se estabelece a relação do princípio de prazer com a compulsão à repetição, que é a manifestação da força do recalcado” (Freud, 1920/2006, p. 145). Freud vai dizer, então, que o que a compulsão à repetição produz sempre causa um desprazer ao Eu (ego); no entanto, este desprazer não entraria em contradição com o princípio de prazer, uma vez que seria desprazer apenas para o ego, mas prazer para o id. Neste sentido, talvez seja mais adequado chamar de ‘satisfação pulsional’ o que, num primeiro momento, Freud nomeia como ‘prazer para o id’. Esta satisfação pulsional, portanto, atuaria em conjunção com a 'tendência repetitiva' da compulsão à repetição no id. Por outro lado, o princípio de prazer só seria, de fato, instaurado na medida em que a 'tendência restitutiva' da compulsão à repetição se tornasse possível. Neste último sentido, podemos nos remeter à brincadeira infantil, na qual, segundo Freud, a “compulsão à repetição e satisfação pulsional

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prazerosa e direta parecem convergir em íntima associação” (Freud, 1920/2006, p. 148), ou ainda, “a repetição, no sentido de reencontrar a identidade, constitui por si mesma uma fonte de prazer” (Freud, 1920/2006, p. 159).

Uma outra forma de refletir sobre a prevalência tardia do princípio de prazer (em contraposição ao domínio arcaico da compulsão à repetição) se dá a partir dos conceitos de “cargas de investimento livremente móveis” e “cargas de investimentos presas” (Freud, 1920/2006, p. 158). Tendo em vista, portanto, o aspecto econômico relativo aos dois tipos de cargas de investimento (quotas de afeto), Freud supõe que as mesmas se encontrariam 'livremente móveis' nos sistemas inconscientes, o que caracterizaria o 'processo primário'; por outro lado, “a tarefa das camadas superiores do aparelho psíquico seria justamente enlaçar e atar [binden] a excitação das pulsões que chegam ao processo primário” (Freud, 1920/2006, p. 158), o que caracterizaria o 'processo secundário'. E acrescenta:

Só depois de ter havido um enlaçamento [Bindung] bem-sucedido é que poder-se-ia se estabelecer o domínio irrestrito do princípio de prazer (e de sua modificação em princípio de realidade). Enquanto isso não acontece, a tarefa do aparelho psíquico de processar [bewältigen] ou enlaçar [binden] a excitação teria prioridade, não em oposição ao princípio de prazer, mas operando independentemente dele e, em parte, sem levá-lo em consideração (Freud, 1920/2006, p. 158-9).

Assim, torna-se razoável a idéia de que o princípio de prazer (bem como o princípio de realidade) só dominariam uma parte do psiquismo (especificamente, o domínio do ego); enquanto a parte mais arcaica do psiquismo (o id) seria dominado por uma compulsão à repetição.

Freud, então, vai relacionar a compulsão à repetição com o conceito de 'pulsão'. Segundo ele: “Uma pulsão seria, portanto, uma força impelente [Drang]

interna ao organismo vivo que visa a restabelecer um estado anterior” (Freud,

1920/2006, p. 160). Desta forma, o domínio pulsional, ou território da pulsão (o ‘id’), é regulado pela compulsão à repetição. Em outras palavras, uma pulsão é

aquilo que se repete incessantemente na tentativa de restituir um estado anterior.

Ao final do texto de 1920, Freud define o princípio de prazer como uma tendência do aparelho psíquico; tendência esta “que está a serviço de uma função, a de tornar o aparelho psíquico inteiramente livre de excitação, ou de manter a quantidade de excitação constante, ou, ainda, de mantê-la tão baixa quanto

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possível” (Freud, 1920/2006, p. 180). Podemos identificar a primeira função com o 'princípio de inércia' e as duas últimas funções com o 'princípio de constância', ambos postulados no 'Projeto' (Freud, 1950[1895]/1990). Freud, por sua vez, não se decide por nenhuma das funções em particular; no entanto, atribui essas funções a um princípio maior e mais universal, cujo objetivo seria o retorno de todo ser vivo ao estado inanimado original. Freud está se referindo, portanto, à existência de uma pulsão de morte (Freud, 1920/2006), o que o leva a especulações que vão além do âmbito da psicanálise.

2.8.

O ego e o id

Em O Ego e o Id (Freud, 1923/1990), Freud propõe uma nova tópica, a fim

de organizar melhor os dados clínicos e obter uma compreensão mais ampla da metapsicologia. Trata-se de uma tópica estrutural, que pretende dividir o aparelho psíquico em estruturas. Cada estrutura possui uma função, o que implica na existência de uma dinâmica entre as diversas estruturas psíquicas.

A segunda tópica foi proposta por Freud como uma alternativa complementar à divisão estabelecida na primeira tópica, na qual o critério principal consistia em atribuir aos processos psíquicos a característica de serem 'consciente' ou 'inconsciente'. Tal critério, no entanto, mostrou-se insuficiente para explicar os desenvolvimentos mais recentes da teoria, como também tornava mais difícil a compreensão dos fenômenos clínicos. A nova solução proposta por Freud, portanto, consiste em dividir o aparelho psíquico em estruturas: o ego e o id.

O ego consiste em um conjunto coerente de processos psíquicos que está diretamente ligado à consciência, sendo responsável tanto pela percepção quanto pela motricidade, de tal maneira que podemos dizer que o sistema Pcpt.-Cs. está contido no ego (Freud, 1923/1990). De acordo com Freud, é também do ego que procedem as resistências contra o reprimido (recalcado), o que implica na existência de mecanismos de defesa do ego. Embora essas resistências sejam atribuídas ao ego, não se pode dizer que os mecanismos de defesa do ego sejam conscientes. Assim, Freud (1923/1990) admite que partes do ego são

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inconscientes. Mais do que isso: as partes inconscientes do ego possuem as mesmas características do reprimido (recalcado). Portanto, o ego pode ser consciente, pré-consciente ou inconsciente.

Tendo em vista a existência de uma parte inconsciente não-reprimida do ego, Freud vai propor chamá-la de 'id'. No entanto, o 'id' também contém o inconsciente reprimido (recalcado). Assim, podemos atribuir ao 'id' tanto a parte inconsciente não-reprimida do ego quanto “o reprimido que é expelido (split off) dele” (Freud, 1923/1990).

2.9.

Contribuição de Green para a teoria dos afetos

Tendo em vista o que foi exposto acerca da metapsicologia freudiana, partiremos para uma investigação das contribuições pós-freudianas ao corpo teórico da metapsicologia. Neste sentido, começaremos por analisar a contribuição de André Green para a teoria dos afetos. Em O Discurso Vivo (1982), Green realiza um estudo aprofundado da metapsicologia freudiana, ressaltando a importância de uma revisão sistemática da problemática do afeto na teoria psicanalítica. Assim, Green examina a obra de Freud e de outros psicanalistas, a exemplo de Klein, Bion, Winnicott e Lacan. Dentre os conceitos revisados por Green, analisaremos os conceitos de fantasmas inconscientes e fantasmas

originários, pulsão e desejo, e finalmente os afetos. Em seguida, realizaremos

uma discussão teórica acerca dos conceitos investigados por Green.

2.9.1.

Fantasmas inconscientes e fantasmas originários

De acordo com Green: “Os afetos primários são afetos-representações primários que a psicanálise contemporânea interpreta como fantasmas inconscientes” (Green, 1982, p. 185). Em outras palavras, inicialmente não há uma distinção entre afetos e representações, mas ambos se apresentam indiferenciados no conceito de pulsão (representante psíquico).

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O conceito de 'fantasma inconsciente' foi bastante utilizado e difundido pela escola kleiniana, que considera o fantasma como “a expressão quase direta do funcionamento pulsional” (Green, 1982, p. 212). Os fantasmas inconscientes, portanto, seriam manifestações de um inconsciente pulsional (i. e., do ‘id’). É preciso que haja uma tradução psíquica, a fim de tornar possível, em ultima instância, a expressão verbal dos fantasmas inconscientes. Basicamente, era isso o que Melanie Klein fazia, em sua clínica com crianças, ao interpretar os jogos e brincadeiras infantis, tendo em vista que essas crianças muito pequenas ainda não estavam aptas a realizar a tradução em palavras por si mesmas. Os fantasmas inconscientes, portanto, atuam no domínio da compulsão à repetição, no além do princípio de prazer. Podemos, ainda, relacionar os fantasmas inconscientes com o fenômeno clínico da alucinação negativa, que consistiria numa “representação da

ausência de representação” (Green, 1982, p. 295), situação na qual o afeto

surgiria de forma intensa, sem a presença de qualquer representação.

Os fantasmas originários, por sua vez, estariam relacionados com determinadas cenas da infância que ocorreriam em um período anterior ao recalque originário. Assim, toda psicanálise esbarra, em última instância, nos fantasmas originários, os quais se apresentam como estruturas irredutíveis. Esses fantasmas originários são constituídos em momentos importantes do desenvolvimento psicossexual, a exemplo da cena primitiva, da sedução e da castração. Trata-se, portanto, nas palavras de Green, de uma “matriz do inconsciente” (Green, 1982, p. 205), a partir da qual se constituirão os afetos e as representações. Como representantes pulsionais, portanto, os fantasmas originários atuam no núcleo do sistema Ics. freudiano, comandando os recalques secundários, isto é, submetendo as representações psíquicas 'pós-calcadas' a um movimento de atração para o núcleo originalmente recalcado.

Talvez seja importante ressaltar a distinção entre os fantasmas originários e as fantasias. Estas seriam derivadas dos primeiros. A fantasia, assim como as demais formações do inconsciente, está articulada ao desejo e à linguagem. Em outras palavras, a fantasia é um desdobramento do fantasma originário sob uma forma representativa (Green, 1982). O papel do fantasma originário, portanto, seria o de realizar uma modulação, funcionando como um regulador e organizador dos seus derivados (fantasias e demais formações do inconsciente). Portanto, o

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fantasma originário não pode ser conhecido diretamente, mas sua presença reguladora e organizadora é reconhecida através das formações do inconsciente.

2.9.2.

Pulsão e desejo

Green situa o conceito freudiano de 'pulsão' a partir de três definições do mesmo: 1) “conceito limite entre psíquico e somático”; 2) “representante psíquico

das excitações provenientes do interior do corpo e que chegam ao psiquismo”; e

3) “medida da exigência de trabalho que é imposta ao psiquismo em

conseqüência de sua ligação com o corporal” (Green, 1982, p. 200). Assim,

podemos dizer que o território da pulsão é psicossomático, pois se encontra no limite entre o psíquico [território das representações e (quotas de) afetos] e o somático [território dos 'estímulos endógenos'], sendo a pulsão o representante psíquico dos 'estímulos endógenos' corporais (instintos). Estes últimos servem, portanto, de apoio à pulsão. Podemos, então, situar a pulsão no 'id'. Trata-se do que Green denomina de pólo econômico do psiquismo (Green, 1982).

O desejo, por sua vez, está articulado à linguagem, e pode ser situado no

pólo simbólico do psiquismo. Assim, diferentemente da pulsão, o desejo possui

um objeto, uma representação psíquica. Trata-se do território do inconsciente enquanto lugar das representações e (quotas de) afetos; dos deslocamentos e condensações; do princípio de prazer-desprazer; dos significantes.

Assim, Green diferencia o 'id' do 'inconsciente', sendo o primeiro o lugar das pulsões e o segundo, lugar do desejo. Green ainda afirma que “a pulsão também é concebida como uma forma de memória” (Green, 1982, p. 211), e acrescenta:

O estreito vínculo entre linguagem e memória, caso particular do vínculo entre representação e memória, não exclui que o afeto tenha igualmente uma função mnêmica, embora esta seja definida com menor precisão (Green, 1982, p. 211).

(27)

2.9.3. Os afetos

Segundo Green (1982), podemos situar a problemática do afeto, em Freud, a partir de dois pontos de vista: um quantitativo e um qualitativo. Na primeira acepção, “o afeto designa essencialmente um quantum, uma quantidade ou soma de excitação” (Green, 1982, p. 191). O afeto, em última instância, deve sofrer uma descarga, que na maioria das vezes se dirige para o interior do corpo. A intensidade dessa descarga, portanto, determinará se o afeto será sentido pelo ego como prazer ou desprazer. É somente neste último sentido que o afeto assume seu caráter qualitativo. Assim, do ponto de vista qualitativo, o afeto deve sempre se apresentar como uma sensação (prazer ou desprazer) para o ego, o que para Green (1982) estaria na base das emoções. Desta forma, pode-se dizer que o afeto possui duas vertentes: 1) “uma vertente corporal, principalmente visceral”; e 2) “uma vertente psíquica, ela própria clivada em duas: a) Percepção dos movimentos

corporais; b) Sensações de prazer-desprazer”(Green, 1982, p. 193).

Green acrescenta que a relação do afeto com a consciência é sempre marcada por um limiar, dentro do qual o afeto é sempre percebido pela consciência. Caso ultrapasse esse limiar, o afeto passa a perturbar a consciência. É importante ressaltar, ainda, que o afeto é tornado consciente sem passar pelo pré-consciente (Green, 1982), o que atesta a dificuldade de apreender o afeto no campo da linguagem. Portanto, podemos afirmar que o sentido quantitativo do afeto (enquanto quota de afeto) é característico do inconsciente; enquanto o sentido qualitativo (o afeto propriamente dito) sempre aponta para a percepção-consciência (Green, 1982), o que incluiria a percepção das emoções.

2.9.4.

Discussão teórica

Tendo em vista as contribuições de Green para a problemática metapsicológica dos afetos, podemos chegar a algumas conclusões. Em primeiro lugar, consideramos a existência de um território psicossomático, situado além do princípio de prazer, no qual os afetos e as representações se encontram indiferenciados no conceito de pulsão (representante psíquico). Podemos

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acrescentar, então, que esse pólo econômico do psiquismo pode ser identificado como sendo o 'id'; e que os fantasmas inconscientes remetem ao território do 'id', sendo governados por uma compulsão à repetição.

Em segundo lugar, podemos caracterizar o inconsciente propriamente dito como território das representações e das quotas de afeto, os quais estão submetidos às leis do deslocamento e da condensação. Este território psíquico funciona, portanto, pelo princípio de prazer-desprazer, e está articulado com a linguagem. Este pólo simbólico do psiquismo é também, por excelência, lugar do desejo. Além do inconsciente propriamente dito, há também um pré-consciente; a diferença entre ambos se dá principalmente no que diz respeito à natureza das representações, tendo em vista que no inconsciente há somente representações de coisa, enquanto no pré-consciente estas últimas coexistem com as representações de palavra.

Por último, podemos afirmar, seguindo Freud, que para que um conteúdo psíquico se torne consciente (insight), deve haver um encontro simultâneo da representação de coisa com a representação de palavra e o afeto. O caminho em direção à consciência, portanto, se inicia com excitações no nível dos 'estímulos endógenos' (instintos) que, por 'apoio', vão estimular ('exigir trabalho de') o representante psíquico (pulsão); os fantasmas inconscientes seriam então despertados, estimulando, por sua vez, os fantasmas originários (representantes pulsionais) na articulação da quota de afeto com as representações de coisa no sistema inconsciente (Ics.). Esta articulação caracterizaria o desejo inconsciente, que, por sua vez, é investido nas representações de palavra, no pré-consciente. O complexo afeto/representação no pré-consciente deve, então, atrair a 'atenção' da consciência para si, a fim de se tornar consciente. O que ocorre, às vezes, é que apenas o afeto se torna consciente, enquanto a representação permanece suprimida ou mesmo recalcada.

Há ainda uma questão que é abordada por Green (1982): trata-se de saber qual seria, de fato, a origem das representações. Esta questão parece apontar para uma resposta óbvia: as representações, bem como os afetos, se originam a partir da pulsão enquanto representante psíquico. Não obstante, Green afirma que esta concepção é apenas defendida pela psicanálise contemporânea (em especial, a psicanálise kleiniana), mas que Freud teria adotado outra solução. Segundo Green, Freud afirmava que as representações (de coisa e de palavra) têm origem a partir

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das experiências do indivíduo, envolvendo as percepções do mundo exterior (a partir da visão e da audição, respectivamente) (Green, 1982) e, de alguma forma, se ligariam à pulsão pelo trabalho psíquico.

Ocorre que a pulsão é constituída na relação primitiva do sujeito com o objeto, que caracteriza os fantasmas inconscientes. Trata-se, neste caso, de uma relação do indivíduo com o mundo externo através das sensações corporais, sem qualquer mediação da linguagem. Este momento seria marcado por uma indiferenciação entre id e ego. Não obstante, no decorrer de seu desenvolvimento o indivíduo se torna capaz de apreender as imagens do mundo externo através da maturação da visão, o que geraria uma memória visual dos objetos (representação de coisa), que seria imediatamente articulada com a vivência interna do fantasma originário (representante pulsional); em outras palavras, a pulsão (enquanto quota de afeto) se articularia com a imagem (traço mnêmico) do objeto dando origem ao desejo inconsciente.

É somente com o advento do recalque originário que o complexo quota de afeto/representação de coisa poderia ser traduzido em palavras, agregando-se às imagens auditivas (representações de palavra), as quais seriam armazenadas como memórias semânticas. Todo processo vai exigir, portanto, a capacidade de simbolização do sujeito. Por último, é necessário que o ego esteja maduro o suficiente para realizar o 'teste de realidade' e, através do processo de 'atenção', ser capaz de se adaptar ao princípio de realidade.

Assim, o ato de tornar-se consciente exige a superação de várias etapas no decorrer do desenvolvimento do indivíduo, nas quais as relações intersubjetivas são representadas no interior do psiquismo, formando uma rede concatenada de representantes-representações-afetos que, de acordo com a terminologia proposta por Green, vai do pólo econômico (psicossomático) ao pólo simbólico (propriamente psíquico).

2.10.

Concepção de Laplanche acerca do recalque originário e do processo de tradução psíquica

Dando continuidade às contribuições pós-freudianas acerca da metapsicologia, analisaremos a concepção de Laplanche a respeito do recalque

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